Força ao que te move
Dia 4
O sol ainda não havia cortado a linha do horizonte quando se encontraram à beira do vilarejo. A brisa era fria e úmida. A trilha norte chamava com seu cheiro de folhas molhadas.
Moarã já estava ali, arqueada sobre a terra. Pegou um punhado do solo escuro e o levou primeiro à testa, depois ao peito. Naiovi observou com atenção; era a mesma reverência que Moarã fizera na última vez que fizeram a trilha juntas – mas só agora ela se deu conta, acompanhando a forma como os dedos de Moarã se desfizeram do barro.
Não houve troca de palavras. Quando Moarã ergueu os olhos, apenas assentiu com um movimento leve de que estavam prontas para seguir.
Começaram a caminhar. A cada passo, a trilha se estreitava mais, como se a floresta quisesse guardá-las em segredo. A luz incerta do amanhecer filtrava-se entre as copas altas e a mata ainda piscava com sua bioluminescência única. O trajeto seguiu em silêncio, mas não um silêncio pesado; era quase contemplativo, como se ambas estivessem cuidando para que a lembrança da noite anterior não contaminasse o lugar. Havia respeito, mas também um desconforto não dito.
Naiovi andava um pouco atrás de Moarã. Seus passos eram cuidadosos, não apenas pela irregularidade do terreno, mas por algo mais recente e interno: uma angústia que ela ainda não sabia nomear. Observava a silhueta da guerreira à frente, forte, pesada, mas com movimentos silenciosos, respirando ao ritmo da floresta.
Ethel vinha logo atrás, arrastando-se com passos apressados para não perder Moarã de vista. A bioluminescência diminuía à medida que a luz natural tentava adentrar as folhas das grandes árvores. Era uma paisagem que não se revelava à pressa.
Moarã parou brevemente ao lado de um cipó caído, puxou com firmeza e cheirou. Seus olhos semicerraram. Depois continuou, como se confirmasse algo sem precisar dizer.
Ethel, atrás, deu um espirro contido. Estava encolhida num casaco improvisado com panos térmicos de Kohr, o nariz levemente rosado. Resmungou algo que Naiovi não captou, mas que soou como uma crítica mal disfarçada ao horário ou à umidade ou a qualquer outra coisa que pudesse culpar pela própria irritação.
Algum tempo depois – talvez meia hora, talvez menos, o tempo ali fluía diferente – chegaram a uma clareira envolta por grandes samambaias e pedras cobertas de líquen fluorescente. Os primeiros sinais de água surgiram como um gotejar ritmado. O som cresceu, suave, mas constante. Um cheiro frio e puro tomou o ar, cortando o aroma denso do mato. A claridade do céu começava a vencer a noite, pincelando reflexos cor de cobre em algumas folhas altas.
Por entre samambaias gigantes, o terreno abriu-se em uma pequena clareira protegida por rochas escuras cobertas de líquen brilhante. Lá, a nascente brotava como uma fenda viva entre duas grandes pedras entrelaçadas de raízes. A água jorrava de forma contínua, escorrendo por uma bacia natural esculpida no chão. Pequenas flores azuladas, que pareciam absorver e reemitir a fraca luz da manhã, cresciam rente às bordas úmidas.
Quando Moarã se abaixou junto à nascente e tocou a superfície da água com a palma da mão, houve uma hesitação partilhada. Tocar na água também era perigoso. Tanto Naiovi quanto Ethel permaneceram imóveis por instantes. Era como se Moarã estivesse testando algo invisível, uma fronteira entre o mundo das coisas tangíveis e o que vive por dentro da terra – Um limiar que poderia aceitar ou punir.
Ethel sabia o que aquilo significava. Já estivera em nascentes que repeliam, que escureciam a água ao menor contato, que exalavam odores quase metálicos quando contrariadas. Já vira um homem vomitar sangue após tentar beber. Sabia que havia uma escuta envolvida ali. E reconhecia quando o solo dizia sim.
Moarã fechou os olhos por um momento, os dedos ainda repousando sobre a água. Escutava com o corpo inteiro – o cheiro do ar, a pulsação das raízes, o som das aves. E, naquele instante, ouviu: hoje estava permitido. Fez a pequena reverência: molhou a mão, passou a água na testa, depois no centro do peito, como se ungisse a si mesma com a permissão do território.
– Hoje é seguro. – disse em voz baixa, sem olhar diretamente para as duas. Era uma constatação.
Pegou seu cantil e o mergulhou na nascente. A água era fria e pura, com um brilho quase dourado sob a primeira luz do dia. Bebeu longos goles, sem pressa. O som da água escorrendo por sua garganta ecoou como um rito. Ethel arregalou os olhos, depois sorriu largo.
– Tiramos a sorte grande! – Ethel animou-se, e em segundos já estava descalça, jogando no chão o macacão manchado de barro e suor e sem cerimônia pulou na água, afundando com um estalo fresco, libertador. A nascente a acolheu com delicadeza, como se a reconhecesse.
Naiovi permaneceu imóvel. Observava em choque aquela situação. Era para Ethel estar agonizando na água e Moarã, pelo menos, vomitando. Engoliu a seco e assistiu a cena pálida.
Seu olhar se desviou para Moarã, que agora se despia com um cuidado quase reverencial, dobrando cada peça de sua roupa de trilha antes de deixá-la sobre uma pedra seca. A forma como seu corpo se movia era firme, marcado, determinado. Manteve um short curto e a faixa que prendia os seios, escura, já úmida de suor. Sua pele era coberta por cicatrizes que pareciam reluzir sob a luz azulada das folhagens ao redor. Agora Naiovi teve a oportunidade de ver um pouco mais daquelas cicatrizes, que desciam em “V” até o alto do cóccix.
Moarã entrou na água sem pressa e nadou até onde Ethel já se espreguiçava, sorrindo com paz. Naiovi continuava paralisada. A mente corria com cálculos. Água assim, crua? Sem filtrar? Sem nem ferver, sem os tabletes químicos que sempre carregava? Nem mesmo uma análise rápida? Era irracional. Era perigoso. Era… Lindo.
A forma como a água abraçava aquelas mulheres fazia a floresta parecer mais viva, à beira do sagrado. Como os corpos, antes tensos pela trilha, agora pareciam parte da própria paisagem. Naiovi ajoelhou-se à borda. Mergulhou os dedos na água com receio, como quem espera queimar. Era fresca. Mais que fresca: era vital. Pela primeira vez desde que chegou, não pensou em filtrar.
Observou as duas nadando. Algo dentro dela cedeu mais um pouco – um fragmento da armadura rígida de Kohr rachou novamente. E ela ficou ali, entre a rocha e a névoa, com os joelhos molhados de lama e o com o coração barulhento.
Enquanto Ethel nadava em círculos e Moarã mergulhava com a serenidade de quem conhece cada pedra do fundo, Naiovi se sentia plantada ali, como um pilar. A brisa leve lhe trazia respingos gelados que faziam arrepiar cada centímetro de sua pele. Observava as mulheres que, tão diferentes entre si, pareciam ter encontrado um mesmo idioma naquele instante: o idioma da água, do corpo livre.
E havia o convite. Não dito, mas presente nos olhares que de vez em quando lhe lançavam. Um chamado silencioso para que se juntasse, que deixasse para trás a rigidez, a diplomacia, a certeza de Kohr – pelo menos por agora.
Ethel gargalhou quando Moarã a empurrou levemente, fazendo-a sumir sob a superfície. Quando emergiu, Ethel olhou para Naiovi com um sorriso e estendeu a mão. Moarã também ergueu o rosto, séria, mais distante, mas seus olhos diziam o mesmo.
Naiovi congelou. Seu coração batia alto em seu peito. Se entrasse, seria de alguma forma admitir que estava errada, que tudo o que soube até hoje era… um engano? E seria admitir, também, que desejava isso. Ainda havia a voz treinada dentro dela, martelando em um quase surto: Você vai contaminar a nascente. Seu corpo, sua pele, seus óleos. Se entrar, as amostras perderão a validade. Vai desperdiçar dados, arruinar o controle. Vai ser fraca.
Encarou o reflexo na água: suas feições duras, os olhos vermelhos de insônia, a boca que sempre continha palavras secas demais. Não gostou do que viu.
Desviou o olhar para Moarã, que a observava com aquela quietude de quem escuta até seu silêncio. Parecia que conseguia ler seus pensamentos. E para Ethel, que ria sem culpa. Elas já estavam na água, então não faria muita diferença Naiovi entrar também. A racionalidade gritava: É um erro. É imprudente. Mas outro canto, mais suave, sussurrava: Mas parece tão… bom. Livre. Você quer. Só por um instante. Não perca essa chance.
Inspirou fundo. Levantou-se devagar com o coração martelando mais alto a cada passo que dava para a borda. Sentia o corpo inteiro tremer – de frio, de medo, de desejo. Molhou os pés. A água subiu pelos tornozelos como um choque elétrico. A mente brigava com o corpo. Mas o corpo… o corpo pedia para se libertar. E ali, entre o terror do fracasso e a ânsia de pertencimento, Naiovi ficou suspensa, incapaz de avançar, mas também de recuar. Observava as duas mulheres se banhando, as gotículas de água faiscando no ar, e sentia a própria armadura trincar mais um pouco.
Com um último suspiro, Naiovi soltou as tiras do colete rígido que protegia seu torso e, peça por peça, deixou cair o uniforme diplomático de Kohr sobre as raízes úmidas. O capuz que cobria sua cabeça, símbolo de disciplina e status, escorregou por seus ombros, revelando as finas linhas de cabelo começando a crescer – marcas de quem já ousara romper regras.
Moarã a observou sem surpresa, mas com uma discreta satisfação nos olhos. Ethel vibrou, batendo palmas na água como uma foca animada. Respeitavam seu momento.
Naiovi entrou devagar, como se cada centímetro submerso fosse a travessia de um desfiladeiro interno. O frio cortante pareceu um convite selvagem; a água abraçou suas pernas, depois sua cintura, até que se deixou afundar de uma vez. Quando emergiu, tossindo uma risada engasgada, teve coragem. Levou a água aos lábios e bebeu. Não era apenas o medo da contaminação que enfrentava: era a barreira simbólica que separava sua disciplina e métrica da fluidez viva de Valeã.
A água a aceitou – sentiu isso no sabor neutro, na ausência de amargor, no calor que se espalhou em seu peito. E, com cada gole, ela também aceitava a água, em um pacto silencioso e recíproco que a fazia parte do lugar. Uma sede antiga, que talvez nem soubesse carregar, começou a ser saciada. Com mãos ainda trêmulas, encheu seu cantil. Guardou a água como se guardasse um segredo precioso – e, talvez, fosse mesmo.
Moarã estava recostada em uma rocha lisa, ao lado da pequena queda d’água que descia em finos véus prateados. Seus olhos percorriam a superfície que refletia o verde azulado da mata e, então, desviaram para Naiovi, que ainda experimentava a água como se fosse um mistério a ser decifrado.
– Ethel… – chamou com a voz rouca da manhã, mas calma – Já viu um bicho do deserto encontrar um oásis pela primeira vez?
Ethel, rindo entre um mergulho e outro, ajeitou o cabelo molhado que grudava em seu rosto.
– Já, sim. – respondeu com uma piscadela marota para Naiovi – E tô vendo de novo agora.
Moarã assentiu, se divertindo, e apontou para a corrente que se dividia em finas cascatas sobre as pedras.
– Olhem pra isso… – disse, mais suave, quase em reverência. – A água hoje tá mais farta do que ontem. Muito mais. – Seu olhar, firme e tranquilo, pousou em Naiovi. Por um instante, ali, parecia não haver cargos, medos ou acordos – só a constatação de que a terra, viva, as observava também.
A água juntava as três. Era mais do que refrescância: era uma linha visível, mas intangível, que conectava Naiovi e Moarã, unia Ethel em sua alegria quase infantil e dissolvia, gota a gota, a desconfiança que pairava entre elas. Ali, dentro daquele espelho cristalino, Naiovi se permitiu apenas existir – sem cálculos, sem relatórios, sem máscaras. Parecia enfim conseguir compreender melhor – não em palavras ou relatórios, mas na pulsação da terra que se insinuava pela corrente fria que escorria por sua pele.
******
Mais tarde, já vestidas, Naiovi e Ethel preparavam uma bancada improvisada com os materiais necessários para coleta e registro. Naiovi pegou a seringa, o canivete, os vidrinhos lacrados, e os organizou sistematicamente sobre o tecido estendido nas pedras. Em seguida, ajustou a lâmina do canivete com um estalo metálico seco. O som ecoou pelas rochas como uma nota dissonante. Então, alinhou os frascos, cada um esperando seu conteúdo.
De repente, algo nela se contraiu. O que antes era apenas procedimento, agora parecia cruel. Naiovi de alguma forma se sentiu mal. Parecia, dessa vez, que iria dissecar um ser vivo enquanto ainda está… vivo. Invadir, de alguma forma torturar, violar. Recomponha-se! ordenou a si mesma em silêncio. Respirou fundo. Fechou os olhos com intensidade, como quem quer expelir um pensamento à base da força. É só musgo, bioluminescência, provavelmente provinda de uma mutação, radioatividade ou reação química.
Sentiu uma mão tocando em seu ombro, a trazendo de volta. Era Moarã. Droga, isso não ajuda.
– Você está bem? – perguntou Moarã, com a voz baixa e firme.
Naiovi demorou a responder, ainda atordoada. Moarã a observara de longe. Afinal, fora designada para aquela função. Tinha visto o cerrar dos olhos – e, vindo de Naiovi, era fácil de interpretar. Moarã nascera naquele território, respeitava-o, conhecia o que os cheiros, sabores e sons queriam indicar. Sua segunda provação, tempos atrás, tinha sido percorrer aquela trilha sozinha: acampar por duas noites e voltar na terceira, sob lua cheia. Aprendera a sentir o sol do dia e a penumbra brilhante da noite de Valeã. Não sabia exatamente o que Naiovi pensava agora, mas trazia ares de insegurança.
– Eu… não sei.
Naiovi disse isso não porque não sabia, mas porque estava percebendo que não sabia. Soube que não sabia o que fazer. Travou, deu tilt. Era como se precisasse formatar o sistema para continuar operando. Sentia que estava sendo hackeada, mas por um vírus desconhecido. Ainda não conseguia discernir que tipo de simbiose esse vírus instalava: parasitária, mutualista ou comensalista.
– A terra já te deu boas-vindas. Pode pegar o que precisa, mas nada além disso.
Ouviu moarã como se ela fosse porta-voz daquele lugar. Com efeito: pegou os instrumentos e se movimentou para começar a coleta. Como um rito, retirou o mesmo embrulho com seu tapa-olho e vestiu-o no olho direito.
No começo do fim da tarde, Naiovi terminava de riscar algumas observações em seu caderno, enquanto Ethel começava a guardar os instrumentos nas bolsas.
Naiovi aproximou-se do musgo luminescente para realizar a última coleta. Ajoelhou-se, apoiou uma mão no solo úmido e, com a outra, inseriu delicadamente a lâmina do canivete na borda da colônia esponjosa. O tecido gelatinoso do musgo se contraiu, liberando um som quase imperceptível – como um suspiro molhado – que fez a espinha de Naiovi arrepiar. Com movimentos precisos, rasgou um fragmento mínimo, depositando-o em um dos frascos lacrados. O estalo do fecho soou mais alto do que gostaria, lembrando-lhe que tudo ali parecia estar vivo e escutando.
Ethel, que até então se mantinha atrás dela, rompeu o silêncio com um tom que misturava fascínio e desconforto:
– Ele… sangra? – sussurrou, a voz embargada. Os olhos dela brilhavam com reflexos azuis, arregalados como os de uma criança assustada.
Naiovi não respondeu de imediato. Moveu a seringa para extrair uma pequena amostra líquida que brotava da superfície rasgada, uma seiva viscosa que reluzia sob a luz fria. Cada gota parecia carregar segredos milenares – ou doenças fatais. Depositou cuidadosamente o fluido em outro frasco, lacrando-o com a mesma atenção clínica.
– Sangra, sim – disse por fim, sem desviar os olhos do trabalho.
Moarã, silenciosa, permaneceu a poucos passos, braços cruzados, acompanhando tudo. Seus olhos escuros alternavam entre Naiovi e Ethel, atentos. Percebia o fascínio de uma e a hesitação da outra, e reconhecia aquilo como parte do processo: o território testava cada uma delas à sua maneira. Ou testava para Moarã poder testemunhar.
Ethel, incapaz de conter a ansiedade, se aproximou mais um pouco – até sentir o cheiro acre da seiva se misturar com o ar denso do desfiladeiro.
– Isso vai… sobreviver? – arriscou perguntar, hesitando entre curiosidade genuína e medo de parecer burra.
Naiovi fechou o último frasco e, ainda ajoelhada, ergueu os olhos para encontrar os de Ethel.
– Vai – respondeu – Ou não. Não cabe a nós decidir. Vamos ver.
Ao se erguer, Naiovi guardou os frascos em um compartimento acolchoado de sua mochila. A coleta estava concluída, mas algo dentro dela seguia em estado de alerta.
Moarã, então, deu um passo à frente, impondo sua presença como se selasse o fim do ritual.
– Terminamos por aqui – disse com a voz carregada de uma serenidade que contrastava com a inquietação que pairava no ar. – A noite vai chegar rápido. Precisamos voltar antes que ela decida nos testar também.
*******
A noite começava a cair, pintando as pedras com tons arroxeados. Caminhavam em silêncio, ao som de botas contra o cascalho pontuando a descida. O ar trazia o cheiro agridoce do musgo recém-colhido, misturado ao odor acre do Sopra-Sangue que ainda pairava em traços no vento.
Naiovi caminhava rígida, os músculos tensos, as palavras entaladas. A exaustão do dia somada ao desconforto emocional a deixam mais vulnerável e propensa a revidar ao menor comentário. Moarã segue poucos passos atrás ou ao lado, observando sem interferir, mas claramente sentindo o clima espesso. Por duas ou três vezes, trocou com Naiovi olhares rápidos.
Quando o vilarejo apareceu entre as frestas da mata, iluminado por tochas dispersas, Ethel parou. Sorriu para ambas e convidou:
– Vou passar na adega mais tarde. Vocês deviam ir, sabiam? Hoje vai ter licor de tubérculo vermelho… É uma delícia.
Sem esperar resposta, despediu-se com um aceno exagerado e desapareceu em meio às vielas.
Restaram apenas Naiovi e Moarã na trilha que levava às casas mais isoladas, onde estava o conteiner. O silêncio entre elas se tornara quase insuportável. O atrito não é mais subentendido; está no jeito como Naiovi acelera o passo e como Moarã a alcança com calma implacável. O nervosismo de Naiovi latej*v*, misturada à humilhação de ter sido flagrada vulnerável horas antes. Já Moarã, cerrava a mandíbula – irritada com a postura de Naiovi, mas também com a própria irritação que não conseguia conter.
Quando chegaram à porteira do terreno que o laboratório se instalara, Naiovi parou bruscamente, girando para encarar Moarã:
– Vai continuar me seguindo como um cão de guarda até quando?
Moarã respirou fundo, os olhos duros.
– Você ainda não entendeu onde está. Eu não vou arriscar a segurança de Valeã por causa da sua arrogância.
– Segurança de Valeã? O que eu posso fazer de tão ruim assim, sozinha? Isso não é arrogância. É… – Naiovi hesitou, a palavra sumindo na garganta. – Eu sei o que estou fazendo.
– Então prove – Moarã rebateu, com a voz baixa e ameaçadora.
Um silêncio pesado caiu. Em seguida, Naiovi desviou o olhar, avançando até o conteiner. Digitou a senha na fechadura digital e abriu o compartimento do laboratório improvisado com um estalo, depositando algumas amostras na centrífuga automática. Os motores começaram a girar, zunindo baixo.
Moarã virou-se sem mais palavras e, com passos firmes, tomou a direção do centro do vilarejo. Naiovi ficou sozinha por instantes, encarando o painel luminoso do equipamento que exibia dados preliminares. O zunido das máquinas parecia rir dela, ecoando na noite que agora se fechava fria e silenciosa. Naiovi encostou-se na bancada, sentia o corpo inteiro rígido como se fosse estilhaçar ao menor movimento.
Ela esfregou o rosto com as mãos. Sentia-se exaurida, mas não conseguia parar. A análise preliminar dos musgos mostrava padrões químicos que confirmavam teorias que Naiovi já supunha, mas o sabor da vitória era amargo. Ela abriu o cantil com água e o gole gelado e puro desceu como lâmina na sua garganta.
********
No centro do vilarejo, a adega fervilhava. O cheiro do licor de tubérculo misturava-se ao calor dos corpos e à batida do triângulo que marcava o ritmo de um forró rápido. Luzes coloridas balançavam nas varandas, projetando sombras dançantes sobre as paredes de barro. Nas rodas de conversa carregavam uma energia de confissão: era lua minguante, prelúdio da lua nova que chegaria em poucos dias – época em que velhos ressentimentos começavam a borbulhar, e corações se preparavam para recomeçar em um novo ciclo.
Moarã chegou quase sem ser percebida – mas Ethel, que já dançava com um homem baixo de cabelos brancos, notou sua entrada de imediato. Soltou uma gargalhada e se desvencilhou, correndo até ela com os olhos brilhando.
– Achei que ia se esconder na caverna hoje! – disse Ethel, entregando-lhe um copo de licor cor de rubi. – Vai, toma. Hoje a noite chama pra expurgar – continuou, referindo-se à tradição de usar o período da lua minguante para descarregar mágoas e medos.
Moarã hesitou apenas o tempo suficiente para que Ethel notasse. Virou o copo de uma só vez, sentindo o calor alcoólico se espalhar pelo peito como brasa. O sorriso de Ethel foi como faísca: puxou-a pela mão e a arrastou para perto da apresentação da banda. O rítmo ecoava como um coração coletivo. Pessoas se entregavam à dança, algumas rodopiavam em pares, outras batiam palmas, enquanto crianças corriam rindo pelo salão.
Moarã ainda mantinha a postura, mas o segundo copo veio rápido, entregue por Ethel com um sorriso que misturava malícia e ternura. O líquido queimou ainda mais fundo, aquecendo suas bochechas. Ethel parecia não ter limites: brindava com todo mundo, ria alto, e a cada vez que se virava para Moarã, seus olhos pareciam mais próximos, mais brilhantes.
– Você não sabe dançar, sabe? – Ethel provocou, a fala já levemente arrastada pela bebida. – Ou vai dizer que vai ficar aí, parada como poste, a noite toda?
Moarã arqueou uma sobrancelha, tentando rebater, mas as palavras saíram num tom surpreendentemente suave:
– E se eu souber e só não quiser gastar meu talento assim, de qualquer jeito?
Ethel jogou a cabeça para trás e riu alto, segurando-se no braço de Moarã para não perder o equilíbrio. No embalo, arrastou-a para o centro do salão improvisado. O ritmo do xote se acelerava em ondas, puxado por sanfonas e casacas que batiam como corações fora do compasso. Elas se moveram, no começo desajeitadas – Moarã tensa, Ethel quase tropeçando – até que a bebida e a música começaram a dissolver as amarras.
Um terceiro copo circulou. O calor do licor parecia explodir em cada veia, e Moarã já ria com Ethel, tropeçando junto, deixando o peso do corpo se apoiar nela quando o mundo girava rápido demais. As mãos delas se entrelaçaram em um passo improvisado, os rostos tão próximos que podiam sentir o hálito quente uma da outra.
– Você é… – Moarã começou, mas se perdeu na frase, as palavras embaralhadas na língua pesada de quem já bebera demais.
– Linda? Irresistível? Um gênio incompreendido? – Ethel chutou as opções com humor, sendo segurada por Moarã pela cintura para que não tombasse.
Moarã apenas riu, a risada curta e sincera saindo como soluço. Avançou de repente, segurando Ethel pela nuca e roubando-lhe um beijo rápido, desajeitado, ainda com gosto de licor. A música subia num crescendo, e as lanternas balançavam sobre suas cabeças como vagalumes gigantes.
Ethel ficou paralisada por um segundo, depois soltou uma gargalhada que se misturou à batida do atabaque vindo da banda. Mordeu o lábio, as mãos ainda firmes na cintura de Moarã.
– Então é assim que você mata as saudades? – soltou, mas seus olhos deixavam claro que estava feliz por aquele contato. – Se você me soltar, eu caio – confessou a Moarã, a voz rouca, ainda entre risos.
– Então não vou soltar nunca – respondeu Moarã, apertando-a mais contra si.
E assim ficaram, dançando tropeçadas, rindo, às vezes quase chorando, enquanto a noite oscilava entre euforia e confissões sussurradas. Em alguns momentos, Ethel puxava Moarã para longe da multidão, apenas para ficarem juntas num canto, bebendo mais um gole e trocando segredos que o vento da lua minguante carregaria para lugar nenhum. A música foi ficando mais espaçada, os músicos parando para beber água ou retocar as cordas dos instrumentos. A banda se desfez aos poucos, deixando apenas pequenos grupos dispersos rindo e cochichando.
Ethel e Moarã encontraram refúgio em uma varanda lateral, iluminada por lampiões. Sentaram-se lado a lado em um degrau com os copos ainda nas mãos. As pernas se tocavam, as respirações ritmadas como se dançassem mesmo paradas. O riso foi cedendo lugar a um silêncio confortável, só rompido pelas vozes distantes do vilarejo.
– Sabe… – Ethel começou, encostando a cabeça no ombro de Moarã. – Às vezes eu esqueço que você é essa muralha toda. Quando a gente tá assim, parece que o mundo não existe.
Moarã virou levemente o rosto, sentindo o cheiro doce do licor misturado ao perfume terroso de Ethel. – Eu também esqueço que você vive se metendo em confusão – respondeu com um sorriso torto, passando o braço em torno dela.
– Você se lembra de quando eu cheguei? Você me olhou como quem avalia bicho ferido. Queria saber se eu ia feder ou dar trabalho.
Moarã bufou, rolando os olhos.
– E você dava trabalho! Tentava dormir em qualquer canto, pegava comida alheia… mas nunca reclamou do que precisava fazer pra ficar.
Ethel soltou um suspiro longo.
– Você me mostrou onde a água era limpa. Me ensinou a não pisar onde o chão era sagrado. Foi aí que percebi que, mesmo com seu jeito durão, você acolhia. Só não fazia discurso bonito.
Moarã ficou em silêncio um momento, encarando o teto de palha.
– E você não ficava perguntando o tempo todo o “porquê” de tudo. Você só… olhava. Observava. Por isso Valeã te aceitou.
– Acha que ela vai durar aqui? – Ethel perguntou em voz baixa, como quem teme quebrar um encanto. – A Naiovi.
Moarã respirou fundo, o humor se esvaindo um pouco com o nome.
– Ela é teimosa. Vai tentar até não conseguir mais. E se conseguir, vai fazer questão de esfregar na minha cara.
– Parece alguém que eu conheço… – Ethel cutucou Moarã com o cotovelo, sorrindo com malícia. – Eu gosto dela, apesar da armadura. Mas acho que não do jeito que você gosta – completou, séria, mas sem julgamento.
– Eu não gosto dela – Moarã retrucou rápido demais, o que fez Ethel rir alto, ecoando pela varanda.
– Você não precisa se explicar pra mim. Só… cuidado. Ela tem uma dureza que corta. E você também.
Moarã baixou o olhar para o copo vazio.
– Eu sei. Mas… ela me faz querer baixar a guarda. E isso me irrita.
– É, isso costuma ser um sinal – disse Ethel, enquanto cutucava a costela de Moarã com o indicador, rindo baixo sempre que a amiga reclamava. Pousou um beijo suave no pescoço de Moarã antes de sussurrar:
– Ela também escuta, sabe? A Naiovi. Mas diferente. É como se cada som, cada cheiro, cada textura fosse um ataque. Como se ela precisasse decifrar tudo rápido, antes que a engolissem.
Moarã suspirou fundo.
– Você viu como ela ficou? A forma como respirou quando se afundou… Era como se estivesse fora do tempo. Como se algo nela se abrisse, mas… não quer se render a Valeã. Luta contra até o que faz bem.
– É, eu percebi. Parece que ela carrega cada gota d’água que já viu na vida, com medo de perder.
Moarã riu, mas era um riso curto, sem alegria, e continuou:
– Ela me faz querer estar perto e longe ao mesmo tempo. Me faz querer que ela fique. E que vá embora. Me faz… Você acha que sou ingênua?
– Acho que você é humana – Ethel respondeu, firme, passando os dedos pelo queixo de Moarã para forçá-la a encará-la. – E que, se até a água quis abraçar Naiovi, talvez não seja só tolice.
Ficaram em silêncio, ouvindo o som distante de uma sanfona que alguém ainda tocava em alguma casa. Ethel sorriu torto e continuou:
– E agora vem a estrangeira de Kohr, cheia de perguntas. Mas também cheia de… – ela procurou a palavra, desistiu e gesticulou como quem segura algo instável – …cheia de pressa.
– Ela escuta Valeã – Moarã admitiu, com dificuldade – mas parece que cada som ameaça desmontá-la. E mesmo quando a água a chamou, lá na nascente, foi como se ela deixasse o mundo entrar por um instante… mas logo depois fechou tudo de novo.
– É bonita, né? Até irrita. Parece que tudo nela foi polido pra cortar. Aposto que você também acha isso.
Moarã revirou os olhos, mas acabou soltando um grunhido que era quase uma confissão.
– Não é sobre beleza. É… sei lá. É o jeito que ela não se deixa afundar. É como se ela sempre estivesse brigando com o lugar que pisa.
– Foi meio assim comigo também. Eu só consegui ficar quando parei de lutar contra tudo. Quando aceitei escutar, sem tentar consertar.
– Naiovi não vai ceder fácil Mas ela sentiu. Na água, ela sentiu. Mas ainda não decidiu o que fazer com isso. – Moarã murmurou, encarando a escuridão além da varanda.
– Pois é. Você acha que vai conseguir ajudar? Ou vai só ficar bufando em volta dela feito cachorro desconfiado?
Moarã soltou uma risada seca, meio cansada.
– Talvez eu não saiba o que fazer também. Talvez eu também esteja com pressa.
As duas ficaram em silêncio, a música distante ainda ecoando do vilarejo. Não havia romance naquilo, mas havia uma confiança antiga, suada, feita de noites como essa: conversas bêbadas, lembranças desconfortáveis, silêncio confortável.
*********
A primeira vez que Ethel pisou em Valeã, seu corpo carregava mais marcas do que cicatrizes. Eram símbolos gravados na espinha – a Marca da Travessia – cada um representando uma região superada, uma tempestade contornada, uma cidade abandonada deixada para trás. Esses símbolos contavam sua história antes mesmo que dissesse qualquer palavra.
Vinha dos Passantes das Terras Devastadas, um povo nômade que caminhava entre zonas contaminadas, cidades destruídas, florestas que engoliam ruínas, desertos que ainda lembravam o mar. Seguiam o compasso das tempestades radioativas, que chamavam de Véu Cinzento, como se fosse uma entidade viva, imprevisível, que decidia quem ficava e quem seguia. A cada avanço, os Passantes entoavam, nas noites silenciosas, o Ritual do Eco – músicas que imitavam o chiado de rádios velhos, rangidos de portões e estalos de motores, como se pudessem afastar os fantasmas do passado com os sons que os criaram.
Na infância, Ethel aprendeu a reconhecer o cheiro da chuva ácida no ar e a detectar as partículas de radiação rolando com o vento. Seus pais eram guias da tempestade: liam as nuvens como quem decifrava enigmas e ajustavam as rotas do comboio para escapar do Véu Cinzento. No acampamento, montavam barracas fortificadas a cada pôr do sol e desmontavam ao amanhecer, vivendo em movimento. Seus pais carregavam na mente um mapa que mudava a cada dia, redesenhado pelo caos do mundo.
O pai de Ethel, Arthur, com quem dividia sonhos e segredos, era o mecânico do impossível: seu maior desejo era criar um combustível vivo, capaz de transformar as águas tóxicas e a radiação da tempestade em movimento. De noite, ela o observava abrir carcaças de carros abandonados como quem disseca segredos, com os olhos brilhando de admiração enquanto as mãos dele costuravam cabos e ajustavam engrenagens. Faltavam peças, ferramentas, estrutura, tempo – mas nunca esperança.
Entre os Passantes, cada grupo tinha seu transmissor portátil em frequência única, conectando grupos separados por dias de marcha. Ethel, mesmo pequena, tornou-se a operadora do rádio, a responsável por ouvir vozes de longe e transmitir relatos sobre a tempestade – era através dessas vozes que sabiam onde estavam os outros e conseguiam informações cruciais. Juntos eram centenas, mas sempre divididos em pequenos grupos de até quinze pessoas, unidos por ondas que atravessavam o vento.
Na jornada, viram cidades que pareciam ter implodido de dentro pra fora, desertos que um dia foram florestas vibrantes e matas onde líquens brilhavam em verde sob a lua, enquanto corujas de três olhos vigiavam em silêncio. Alguns lugares ofereciam abrigo por muitos dias, outros, apenas por algumas horas. Cada parada era incerta, tudo dependia do humor do Véu e dos suprimentos disponíveis.
A noite parecia respirar junto dela e o vento frio varria a areia recém-assentada pelo Véu Cinzento. Ethel caminhava com passos curtos, os olhos ávidos varrendo o solo enquanto enfiav* as mãos em cada tufo de musgo, cada fenda na rocha. Procurava qualquer indício de plantas que acumulassem minerais raros, qualquer pista para ajudar o pai a completar o sonho impossível.
– Vai dar certo, não vai? – perguntara mais cedo, agachada ao lado do pai na lataria enferrujada de um sedã abandonado, iluminados apenas pelo clarão esverdeado do Véu que tinha passado horas atrás.
– Vai. Se eu conseguir catalisar as moléculas certas, a tempestade vai nos dar combustível pra atravessar metade do continente! – ele respondeu entusiasmado, enquanto girava parafusos, sem tirar os olhos do motor – Você vai me ajudar com isso, Ethel?
Ela sorriu. Queria ser como ele – destemido, brilhante. E prometeu:
– Vou te trazer o que precisar!
Mas o Véu voltou rápido. Quando retornou ao carro, o mundo estava irreconhecível: dunas avermelhadas se acumulavam onde antes havia estrada, como se o deserto tivesse engolido tudo em questão de minutos. Restos de barracas virados do avesso. Gente caída, coberta de areia, silêncio e sangue. Ela se aproximou do carro onde deveria estar Arthur – apenas para encontrar seu rádio estilhaçado no banco do passageiro, pingando estática que jamais se tornaria voz novamente.
– Não... não, não! – a palavra saiu como soluço, enquanto vasculhava desesperada, chamando nomes que só ecoavam de volta na noite.
Dias se passaram. Ela seguiu com o que aprendeu: bebendo seiva, desviando de zonas tóxicas, comendo frutinhas amargas. Cada símbolo na coluna queimava como brasa, lembrando tudo que perdera – ou que abandonara. E quando seus joelhos cederam pela primeira vez, pensou que o Véu a levaria também.
Mas então, de longe, vislumbrou luzes fixas no horizonte. Um contorno de muralha coberta por vegetação que parecia viva, respirante. Era Valeã.
Kauã foi o primeiro a encontrá-la: alto, forte, com a voz que soava como rocha rachando.
– Quem é você? – perguntou, empunhando a lança.
– Ethel… Passante… – conseguiu dizer, com suas últimas forças guardadas, antes de desmaiar.
Quando abriu os olhos de novo, estava coberta por mantas ásperas e o cheiro de ervas desconhecidas pairava no ar. E, parada à sua frente, uma jovem de cabelos trançados rente ao couro cabeludo, olhos escuros como a mata ao entardecer, estudava-a como quem avalia uma armadilha.
– Onde estão os outros do seu grupo? – perguntou Moara, ainda sem o “ã” de liderança em seu nome.
– Não sei… – a voz de Ethel quebrou. – O Véu… eles ficaram pra trás.
Moara se manteve em silêncio. Olhou os símbolos na espinha de Ethel, tocou de leve as marcas com a ponta dos dedos já calejados.
– Você sabe escutar a terra? – indagou.
Ethel assentiu, ofegante.
– Então vai precisar disso pra sobreviver aqui. – Moara disse, entregando-lhe um copo de água fresca – Beba. Vai precisar de forças.
Nos primeiros dias em Valeã, Ethel mal conseguia ficar de pé sem que as pernas tremessem. Suas noites eram regidas pelos gritos do vento e pelos sonhos em que o rádio voltava a chiar, ouvindo a voz de seus pais a chamando, apenas para silenciar no segundo seguinte. Quando acordava, o cheiro de terra úmida era um lembrete constante de que estava longe de casa – ou do que restara dela.
Kauã, o velho guarda da fronteira, foi quem tomou a decisão que mudaria tudo: colocou Moara, sua aprendiz mais confiável, para supervisionar cada passo da recém-chegada.
– Ela precisa aprender como escutar antes de falar – disse Kauã em tom grave, entregando a Moara a responsabilidade. – E você precisa aprender a ensinar sem tentar moldar tudo à força.
Moara não contestou, mas seu olhar deixava claro o ceticismo. A primeira tarefa que deu a Ethel foi simples, mas decisiva: ajudá-la a plantar novas mudas de tubérculos em uma clareira próxima, onde o solo ainda estava instável pelas últimas chuvas ácidas.
– Você sente a diferença na terra? – perguntou Moara, agachada, enfiando as mãos na lama até os pulsos.
Ethel hesitou, mas aproximou-se, tocando o solo. A textura falava: mais leve do que areia e mais viva do que pedra.
– Está… respirando – murmurou, surpresa com as próprias palavras.
Moara ergueu os olhos, avaliando-a com uma centelha de respeito.
Nos dias seguintes, Moara a levou para limpar nascentes, podar galhos que ameaçavam romper cabanas e coletar folhas de árvores que exalavam aromas capazes de acalmar quem respirava fundo. Cada tarefa era um teste: de paciência, de força, de escuta. Cada falha, um aprendizado.
– Você não vai durar se continuar agindo como se o mundo inteiro fosse te atacar a qualquer segundo! – alertou Moara certa vez, enquanto Ethel queimava a mão ao tocar em uma seiva tóxica que ignorara por ansiedade.
– E você não vai entender o que vivi se continuar me olhando como inimiga! – retrucou Ethel, com a voz trêmula, mas firme.
A resposta surpreendeu Moara. Pela primeira vez, ela não rebateu.
O tempo foi amolecendo as arestas. A persistência de Ethel, unida ao jeito observador que tinha desde menina, começou a conquistar até os mais desconfiados. As pessoas a viam trabalhar em silêncio, dormir pouco, ajudar velhos a carregar água. Mesmo aqueles que, de início, a chamavam de “caminhante perdida” passaram a saudá-la nas manhãs.
Numa noite de lua crescente, Kauã a encontrou sozinha na muralha com o olhar perdido nas luzes distantes do Véu, ruminando memórias e culpa.
– Você se lembra do som do rádio? – perguntou ele, de repente.
Ethel levou um susto, mas assentiu.
– Então guarde esse som. Vai precisar dele. Mas não pra voltar… mas pra lembrar quem você foi, e entender quem quer ser aqui.
Quando Moara começou a confiar nela de verdade, sob a luz da lua cheia entregou-lhe um facão com a lâmina limpa, como quem entrega uma chance.
– Para você – disse, com simplicidade. – Aqui, só damos armas a quem queremos que lute ao nosso lado.
Ethel segurou o cabo, sentindo o peso.
– Obrigada… – sussurrou, a voz embargada.
Naquele momento, mesmo sem perceber, Valeã deixava de ser apenas um refúgio e passava a ser lar.
O primeiro grande feito de Ethel em Valeã aconteceu meses depois de sua chegada. As chuvas ácidas de uma tempestade mais intensa do que o previsto tinham arrasado a plantação de raízes, deixando a maior parte dos estoques comprometida. A tensão se espalhou como mofo: famílias discutiam, alguns propunham sair em busca de trocas, outros queriam organizar expedições arriscadas. E, no meio da comoção, Ethel apareceu na praça principal com uma sacola cheia de tubérculos estranhamente inchados – alguns chamavam de “batatas-do-vento” – colhidas em um brejo que, até então, ninguém se arriscava a explorar.
– Se não podemos comer daqui, vamos comer de onde a tempestade não espera que a gente coma – disse Ethel, os cabelos desgrenhados e o rosto manchado de lama.
Quando Kauã abriu um dos tubérculos na frente de todos e provou, fechou os olhos, sorriu e anunciou que era seguro. A praça explodiu em aplausos. Foi o primeiro momento em que Ethel se permitiu erguer a cabeça, deixando que vissem seu sorriso aberto, quase infantil. Moara, parada ao fundo, soltou um grunhido que poderia ser aprovação ou orgulho.
Nos dias que se seguiram, Ethel ensinou os moradores a preparar aquelas batatas de formas diferentes – cozidas, amassadas, defumadas – e fez piadas enquanto cozinhava, envolvendo todos em gargalhadas. O riso ecoava pelos corredores do vilarejo como cura. Pela primeira vez, Ethel percebeu que não precisava esconder sua alegria, nem o humor que tanto incomodara sua mãe quando criança. Valeã era naturalmente barulhenta, como ela.
– Não é errado rir quando o mundo cai – dissera Moara certa noite, ao encontrá-la sentada sozinha perto da muralha, rindo baixinho com um pedaço de batata tostada na mão. – Só quem vive esquece que também vai morrer. Mas quem já morreu em vida esquece como é viver.
Ethel guardou aquela frase como quem guarda um tesouro. Com o tempo, aprendeu a transformar a dor em graça: fazia piadas sobre os ratos que invadiam os estoques, sobre os urubus que brigavam com as corujas de três olhos, sobre o jeito de Moara bufar como boi quando estava brava. Suas gargalhadas viraram trilha sonora do cotidiano de Valeã. E, em cada piada, enterrava um pouco da culpa que a corroía desde o dia em que perdera seu povo para o Véu Cinzento.
Ethel nunca esqueceu os símbolos gravados em sua pele e nem do chiado do rádio. Mas, em Valeã, descobriu que sobreviver não era o mesmo que viver – e que a vida, quando bem-vivida, não precisava carregar a morte como companhia constante.
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Fim do capítulo
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