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Legado de Metal e Sangue por mtttm

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Palavras: 9995
Acessos: 276   |  Postado em: 07/07/2025

Paz ao que te habita

Dia 3

Ainda era noite quando Naiovi despertou. Não havia sons óbvios, apenas aquele ruído tênue que só existe entre a vigília e o sono: o ranger do próprio corpo, o eco do sangue nas têmporas, um estalo seco vindo de alguma parte da estrutura da casa. Ela abriu os olhos com a precisão de quem já dorme leve por hábito ou por necessidade.

Ficou um instante parada, escutando.

Foi quando ouviu de novo. Um arrasto breve, como de passos contidos no chão de terra. Depois, o som sutil de algo se fechando. Uma porta? Deslizou para fora da esteira sem acender nada. Os olhos já se acostumavam com a penumbra. Se aproximou da janela, onde uma fresta na cortina permitia ver a área externa.

Lá fora, quase invisível na escuridão azulada do pré-alvorecer, Moarã atravessava o pátio. Não usava armadura e os pés estavam descalços. Carregava apenas um manto leve, e mesmo esse parecia incomodá-la, como se fosse um fardo. Naiovi não se moveu. Apenas observou.

Moarã parou diante de uma árvore antiga, cujos galhos inclinavam-se para o chão como em gesto de recolhimento. A vigilante ajoelhou-se ali, em silêncio, e permaneceu imóvel por um longo tempo. Não parecia rezar, nem vigiar. Estava... presente. Como se escutasse algo que Naiovi não podia ouvir.

A diplomata permaneceu onde estava. Algo naquele gesto exigia distância. Não por segredo, mas por respeito. Depois de um tempo – que Naiovi não soube medir – Moarã se levantou, recolheu uma pequena tigela que repousava sob a árvore, talvez deixada ali horas antes, e voltou em silêncio, como havia ido.

Naiovi se afastou da janela sem ser vista. Deitou-se de novo, mas não voltou a dormir. Ficou olhando para o teto, tentando entender que tipo de vigília era aquela que Moarã fazia mesmo quando ninguém a via. E por que, ao contrário do que pensava, isso a tocava.


*****

 

A casa estava mergulhada em silêncio. Moarã, no entanto, permanecia inquieta. Lá fora o céu mudou primeiro. Sentiu: o calor no peito, o tremor leve na terra. Umidade repentina no ar. A brisa que antes era fresca tornava-se densa, abafada, carregada de eletricidade e poeira invisível. Um cheiro metálico, pesado, começava a atravessar a vegetação. 

Precisava falar urgentemente com os anciãos e com os colegas da vigília. Disparou em direção à ala dos anciões, cortando as trilhas estreitas entre as casas. Não precisou bater: um dos velhos já a aguardava na soleira, olhos fundos, como se soubesse.

– Veio da terra? – Adão perguntou, sem formalidade.

– Da terra e dos ancestrais. Agora. Tem pouco tempo, vem vindo rápido.

O ancião assentiu, voltou-se para dentro, sumindo na sombra. Um segundo depois, a concha-berrante soou – um som grave, profundo, que parecia sair do fundo do vale. Logo outros o seguiram, tocando em coro. Assobios foram escutados e jovens da vigília não demoraram para galopar pelos caminhos de terra batida, braços erguidos, berrantes entre os lábios, bandeiras marcadas com pigmento vermelho. Os cavalos cortavam o chão como se rasgassem o ar.

Dentro de casa, Naiovi despertou num susto frio. O coração batia forte, descompassado.

O som era como um animal grande, rouco e impaciente. Uma vibração que atravessava madeira, estômago e pulmões. Depois o som de cascos, muitos cascos. Vozes. Passos correndo. Saltou do leito e abriu a porta de súbito. Viu a rua se acender em movimento. Gritos curtos, coordenados. Lá fora, figuras passavam a galope, berrantes ainda presos aos lábios, olhos atentos varrendo os telhados. Eram jovens – alguns mal passavam dos vinte – montando animais que Naiovi sequer sabia que existiam ali. Cavalos. Reais. Com músculos e crinas.

– O que…?

Não teve tempo.

Moarã apareceu correndo pela trilha, já sem capa, o corpo riscado de suor e barro. Os olhos tinham uma nitidez que Naiovi ainda não tinha visto – como lâminas molhadas.

– Rápido! Pra dentro! Precisa blindar a entrada!

Entrou sem pedir, empurrando Naiovi para dentro. Abriu os compartimentos inferiores da parede, puxou as placas de pedra leve que ficavam escondidas ali, que Naiovi sequer tinha notado. Em segundos, vedava as janelas com precisão treinada.

– Você precisa me ouvir com atenção. – disse, se movendo pela sala – Agora.

– O que está acontecendo?

– O Sopra-Sangue está vindo. Tem horas, talvez menos. O vento já começou – Moarã olhava em volta, avaliando a estrutura da casa. – Vai ventar primeiro – dizia Moarã, entre uma ação e outra – Depois vem o vermelho. Fecha essa fresta.

– O vermelho?

– A poeira ácida. Arde a pele, mata planta. O chão fica vermelho por três dias. Anda!

Naiovi não discutiu. Tentou imitar os gestos. Escorregou com uma tábua, deixou cair uma das peças, que Moarã pegou com uma mão só, rápida.

– Aqui não tem tempo pra tropeço, Kohr.

– Não estou tropeçando, estou aprendendo!

– Tropeçando no aprendizado, então.

Apesar do tom, havia algo de contido na voz de Moarã – um foco que não permitia sarcasmo pleno.

– Queima se respira. Machuca os olhos, a pele. – falou enquanto se abaixava, tirando parte do assoalho para alcançar um compartimento escondido – Não tem protocolos em Kohr?

– Tem. Mas usamos estruturas herméticas, filtros de pressão. Nada com madeira, ou cavalos, ou... berrantes.

Moarã sorriu de canto, quase zombando, mas sem tempo para isso.

– Bem-vinda ao chão vivo. – Jogou-lhe uma das mantas dispostas em um baú perto da cozinha – Você vai usar isso na entrada de ar da sua janela. Prega com esses pinos. Aqui.

Enquanto falava, prendia outra manta sobre o batente da porta, usando pequenas cunhas para vedar as frestas. 

Naiovi acompanhava os gestos, tentando absorver tudo com rapidez. Os dedos dela, embora ágeis, tremiam.

– Isso acontece com frequência?

– Duas vezes por ciclo. Às vezes menos. Às vezes mais. Mas desta vez... – Moarã olhou pela janela – ...veio sem aviso. Só sonho.

– Você sonhou com isso?

Ela não respondeu. Quando a última fresta foi vedada, restou o silêncio abafado da casa selada. Naiovi respirava fundo, ainda com a respiração acelerada.

– Eu nem tinha percebido que vocês usavam… cavalos. 

– Eles sentem a tempestade antes da terra tremer. 

Silêncio. Lá fora, o som do vento aumentava. Não era mais o sussurro da noite. Era um assobio largo, ondulante, como se o próprio mundo respirasse em descompasso.

Naiovi olhou para a porta selada. Depois para Moarã, ainda ofegante, de pé, com as mãos na cintura, conferindo a estrutura.

– Você teve uma visão, não foi?

Moarã não respondeu. Mas também não negou. Fitou Naiovi por cima do ombro com atenção renovada.

– Agora... você escuta. Se escutar o vento cantando fino, você se abaixa. Se o teto ranger, cuidado com o pó que pode cair. Se ouvir estalos... – parou. Não precisava terminar.

Naiovi assentiu. Estava séria agora. Aquilo não era mais uma missão. Era sobrevivência. A casa mergulhou num quase silêncio. Até o medo parecia conter a respiração. Do lado de fora, o ar começava a mudar de cor. Tão rápido quanto foi a chegada dos cavalos, foi também sua retirada. Todos estavam em casa, ninguém na rua – apenas a ventania, aumentando sua intensidade a cada segundo.

Em Kohr, tudo era diferente. As ameaças vinham de gráficos, alarmes, sensores acoplados ao solo. Nada acontecia sem aviso. Nenhuma tempestade nascia de um sonho. E ainda assim, ali estava ela – tapando madeira com mantas, em uma casa de barro, seguindo instruções de uma mulher que parecia ter lido o mundo com o corpo. A casa, agora selada, era uma cápsula à espera do que viria.

O primeiro grão de poeira riscou a parede com um sopro agudo.

O Sopra-Sangue havia chegado.

A luz da lamparina oscilava no meio da sala, presa ao gancho torto no teto. A madeira estalava em pontos distintos, como se a casa respirasse devagar, no esforço de manter-se inteira. Lá fora, o Sopra-Sangue lambia as paredes com seu assovio irregular, riscando, às vezes, como unha contra argila.

Naiovi estava sentada ao lado da porta do quarto, em frente à cozinha, com o pano sobre o rosto já úmido pela respiração. Moarã se agachara mais adiante, braços cruzados sobre os joelhos, olhos baixos.

– Isso é normal? – Naiovi perguntou, a voz mais baixa do que o habitual.

– O quê?

– Essa sensação… de que tudo está meio… longe. Como se a cabeça estivesse atrasada no tempo. E... o chão parece balançar?

Moarã ergueu o olhar, avaliando-a por um instante.

– Entrou um pouco do ar. A vedação segura o grosso, mas... não tudo. O corpo reage. Às vezes o tempo se estica, às vezes encolhe.

– É como um calor por dentro – Naiovi tocou o peito – Mas não é febre.

Moarã sorriu, mas era um sorriso cansado.

– Tem quem chame isso de a visita. Dizem que o Sopra-Sangue carrega memórias enterradas. Traz coisa que ficou mal digerida no corpo.

– Isso é assustador.

Um momento passou em silêncio, apenas com o som da ventania que vinha do norte.

– Você sonhou mesmo com isso, né? – insistiu Naiovi, mais suave.

Moarã não respondeu de imediato. Estava olhando para a lamparina. A luz dançava em reflexos âmbar sobre seu rosto.

– Vi minha avó. – disse, enfim – Ela já partiu há ciclos. Mas me olhava com olhos de agora. Disse “corre”.

Naiovi ficou quieta.

– Você acredita nisso?

– Em sonhos?

– Em sinais. Em mortos que avisam. Em cavalos que sentem poeira antes da poeira existir.

– Acredito no que me mantém viva. E… bem, funcionou até agora. Devo estar acreditando certo – Moarã virou-se para ela – E você? Acredita só em números?

Naiovi hesitou. O calor em seu corpo aumentava, como se o sangue vibrasse.

– Às vezes os números mentem. Ou mentem pra eles mesmos. Mas... eles não sonham comigo.

As duas se olharam. Longamente.

Uma pausa.

– Você tá vendo coisa? – Moarã perguntou, mais baixo, com certa diversão.

Naiovi franziu o cenho.

– Tô vendo você... com o cabelo solto.

Moarã riu, abafado.

– Alucinação precoce. Acontece com quem não tá acostumado.

– Faz sentido.

Mais um tempo em silêncio.

A lamparina vacilou.

– Quando isso passar – disse Naiovi – me leva pra ver os cavalos?

– Se a terra ainda estiver bem, levo.

Era uma tempestade das fortes. Moarã sabia bem o que significava: talvez não iria durar muito, mas traria efeitos. O que Naiovi começava a sentir era apenas o começo. Já Moarã permanecia firme, estava acostumada. 

Primeiro, vem as alterações no ar. Um leve zunido no ouvido, quase como um chiado de fundo. Depois, a percepção de tempo amolece: tudo parece acontecer com um segundo de atraso – o estalo da madeira, o tremor no chão, o próprio piscar de olhos. 

Moarã percebia os sinais com clareza. Sentou-se no chão, encostada ao pilar. Respirava ritmada, como quem conhece o desconforto de uma febre controlada. Começava a suar, mas serena. 

Naiovi demorou a perceber. Sentiu primeiro nas mãos – um formigamento leve. Depois, na visão. A chama da lamparina parecia dançar em espirais lentas demais.

– Você sente? – perguntou. Sua voz saiu arrastada.

Moarã assentiu. Os olhos semicerrados. O tempo ali dentro não era mais confiável.

O barulho do vento se afastava e voltava como uma maré inquieta. A lamparina pendurada balançava sem ser tocada. As sombras nas paredes criavam formas indecisas – ora galhos, ora mãos, ora linhas ondulantes que não pertenciam a nenhum objeto do cômodo. Naiovi piscava mais vezes do que o normal, tentando manter o foco. A luz parecia se mover num ritmo diferente da respiração. Olhou para Moarã. O contorno de seu corpo parecia duplicar-se por um instante, como se houvesse outra Moarã, ligeiramente deslocada, sentada dentro dela – mais nova, talvez, ou mais ferida.

– Você está... tremendo? – perguntou Naiovi, a voz rouca.

– Estamos entre o tempo. Ainda dá pra ficar acordada aqui. Mas não se apega demais ao que pensa que vê.

– Por quê?

– Porque começa suave. Depois vem a inversão.

Naiovi encostou-se à parede. A madeira estava morna. O pano úmido no rosto incomodava. Retirou-o por um instante e respirou devagar. O ar tinha gosto: um amargor metálico que se fixava no fundo da garganta.

– Como você aprendeu a lidar com isso?

– Escutando. Apanhando. Errando. Perdendo gente. – disse Moarã, sem rodeios.

Silêncio. Só o vento continuava – agora mais irregular, com notas agudas, quase musicais. Naiovi fechou os olhos por um instante. Sentia-se flutuar dentro do próprio corpo. E viu.

Não foi uma visão completa – foi uma sequência de lampejos.

Um corredor estreito, de paredes brancas demais. Vozes sussurrando fórmulas, como preces. Um tanque cheio d’água com seu próprio reflexo nu flutuando.

Abriu os olhos, ofegante.

Moarã percebeu.

– Já começou?

– Eu vi... um lugar. Um laboratório? Mas não como o meu. Era branco. Frio. Tinha... versões minhas. Me olhando.

– Não briga com a visão. Deixa passar por dentro.

– Eu não quero que passe.

– Não é escolha sua.

Moarã se levantou e foi até Naiovi. Ajoelhou-se à sua frente, entregando uma pequena infusão escura viscosa.

– Bebe. Vai retardar o que falta entrar. 

– O que tem aqui?

– Raízes, poejo, amargo-do-vale. E carvão.

– Isso é simbólico?

– Isso é medicina.

Naiovi obedeceu. O líquido desceu quente e forte, quase picante. Tossiu uma vez.

– Obrigada.

– Ainda não terminou.

As duas ficaram ali, próximas, no chão. Moarã observava Naiovi como quem decifrava um texto escrito em um idioma antigo.

– Em Kohr, você tem gente? – perguntou.

– Gente?

– Pessoas. Que te esperam.

Naiovi hesitou.

– Talvez. Não sei mais. Me afastei de quase tudo quando aceitei o exílio.

– Então não tem certeza se tem pra onde voltar?

– Eu vou voltar. Mas... talvez não como fui.

Moarã assentiu devagar e disse:

– O Sopra-Sangue não transforma só folha e pele. Às vezes ele revela também. 

Um novo estalo na madeira fez ambas olharem para o teto. Nada cedeu. Mas a tensão ficou.

– E você? – Naiovi perguntou – Tem alguém?

Moarã demorou para responder.

– Nós de Valeã temos uns aos outros.

Aquela resposta pareceu vaga demais para Naiovi. De novo. Nenhuma resposta sólida. Não conseguiu conter sua expressão de insatisfação, abrindo mão de um semblante tenso e febril. Moarã percebeu e completou a resposta:

– Tive. Antes de entrar pra guarda. Antes de... silenciar. 

– Silenciar?

– Há coisas que só se ouve quando a boca se cala. – ela respondeu, enigmática.

A lamparina agora oscilava de maneira diferente. Como se o ar estivesse mais denso e menos agitado.

– Estamos quase no fim? – Naiovi perguntou.

– Está enfraquecendo. Se não vier o segundo vento, passa logo.

Naiovi encostou a cabeça na parede, respirou fundo. Estava exausta.

– Quando passar… – disse – quero entender como você vê o mundo.

Moarã riu de leve. Depois, devolveu:

– Quando passar... talvez você já entenda.

– E quero ver os cavalos.

E ali ficaram.

– Eu... – Naiovi começou, sem saber por quê – ...eu queria ter crescido em um lugar assim.

Moarã arqueou uma sobrancelha.

– Assim como?

– Onde a terra fala. Onde alguém ouve. Em Kohr, a gente só escuta o que já foi traduzido.

– Está falando isso por causa do Sopra-Sangue. Chegou em Valeã não faz nem um ciclo completo.

A tempestade do lado de fora, o silêncio do lado de dentro, e entre ambos, uma cápsula feita de barro, madeira, poeira – e duas mulheres, até então opostas, unidas pela fragilidade do que resiste. Moarã inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, os olhos atentos sobre Naiovi, agora mais pálida que o normal sob a luz da lamparina. A voz dela saiu baixa, como se estivesse tentando ancorar a outra.

– O Sopra-Sangue vai vasculhar tudo. O que tá vivo, o que tá guardado. Não adianta apertar os olhos. Só respira.

Naiovi levou a mão ao rosto. O pano voltava a pesar, o gosto metálico reaparecendo a cada inspiração. As imagens ainda vinham, embora fragmentadas: uma porta que se abria para lugar nenhum, um homem de voz mansa que ela não reconhecia, um tubo de vidro onde havia uma flor... e depois nada. Escuridão entre as cenas. Como se alguém editasse sua memória sem pedir permissão.

– Eles me testaram... – sussurrou quase inaudível – Não era só treinamento... não era só diplomacia...

– Vai devagar. Segue o fio, não tenta puxar tudo de uma vez.

Moarã se aproximou com cuidado, sentando-se ao lado dela. As sombras brincavam nos olhos de ambas agora.

– O que é a inversão? – perguntou Naiovi, ainda entre um tremor e outro.

– Quando o dentro vira fora. Quando a lembrança toma forma e tenta te convencer que o mundo era aquilo.

– Isso... acontece com todo mundo?

– Depende da pessoa, depende da intensidade do vento. Nem todos voltam iguais. Nem todos voltam. Mas você vai voltar. Porque tá perguntando. E também está respirando uma quantidade pouca de vento, que já está passando.

Naiovi fechou os olhos de novo, pressionando a testa contra o joelho. O calor subia pelo corpo como uma febre sem febre. A presença de Moarã era a única âncora. A mão da vigia se aproximou, pousando no ombro dela – firme, quente, sem invadir.

– Fica comigo aqui. No agora. A gente já fechou tudo, lembra? A casa está segura. Isso vai passar.

A diplomata assentiu, sem abrir os olhos. O vento do lado de fora começava a mudar de tom. A lamparina cessou seu tremor. As sombras aquietaram-se.

Minutos passaram. Ou horas. Era impossível saber.

Até que Naiovi ergueu a cabeça, os olhos acobreados úmidos, mas mais claros.

– Você vai me levar pra ver os cavalos, certo?

Moarã sorriu, cansada, mas sincera.

– Se a terra permitir, levo. Você já tá voltando.

– Eu não sei o que vi. 

– Não esquece. Só não tenta entender tudo agora.

Ficaram assim, em silêncio, respirando fundo, como se tivessem cruzado um rio invisível a nado. Do lado de fora, o Sopra-Sangue ainda sussurrava fraco entre as árvores caladas. Mas ali dentro, seladas entre madeira, mantas e lampejos de memória, Moarã e Naiovi haviam sobrevivido à primeira travessia.

– Quando o Sopra-Sangue vem forte assim – disse Moarã, em tom mais baixo – o que aparece quer ser visto. Não vai embora só porque você vira o rosto.

– Mas e se for só... delírio? – Naiovi perguntou com os olhos fixos em algum ponto indefinido da parede – Algo que meu cérebro inventa pra tentar dar sentido ao medo?

Moarã inclinou levemente a cabeça.

– E se for? Ainda assim é o que mora em você. O que te forma. O que te falta.

Naiovi fechou os olhos de novo. Agora sem muita resistência.

O som lá fora engrossava. As imagens voltaram – mais nítidas.

Correntes de metal. Uma mesa de dissecação. As próprias mãos, cobertas por luvas, segurando um frasco com um líquido azul que cintilava em pulsos. Ela se viu menor, mais nova. Sozinha. Observada. Acordou num sobressalto. As imagens se dissolveram como fumaça.

Moarã ainda estava ali. Firme. Observando.

– O que foi dessa vez? – perguntou, sem urgência.

Naiovi demorou a responder.

– Eu estava presa. Mas... não com medo. Era como se aquilo tivesse sido rotina. Natural. Mas algo em mim... resistia.

Moarã assentiu.

– Então tá começando a lembrar.

– De quê?

– De quem você era antes de ser quem esperavam que você fosse.

Naiovi franziu a testa, prendeu a respiração… e disse, numa tentativa de segurar algo que estava reivindicando sair:

– Damn, não tô legal…

Mesmo sem compreender, Moarã entendeu e correu para buscar um balde e entregar para Naiovi. Lá pôde despejar tudo que tinha dentro dela. Lacrimejando, Naiovi respirou fundo, tentando encontrar o chão dentro de si e por fora. Mas o chão não era estável. 

– Ah, esses novatos…  – Moarã disse num sussurro meio riso, meio lamento, como quem se lembra da própria estreia – É o veneno saindo – completou, referindo-se tanto ao vômito quanto ao que vinha antes dele – O chão nunca foi estável, Naiovi. Aqui a gente aprende a pisar no que treme mesmo.

Sentou-se ao lado, sem pressa, observando as costas de Naiovi subirem e descerem como marés desreguladas. O balde entre as pernas de Naiovi era só um pretexto. Limpou sua boca com o antebraço, o olhar ainda úmido, mas mais firme.

– Em Kohr, esperam que a gente não trema.

Moarã assentiu com um leve inclinar de queixo. Ficou ali, observando sem cobrar. 

– E esperam de você muito, né? – disse, sem ironia, apenas constatação.

– Esperam que eu salve o que não é mais possível salvar – Naiovi respondeu, a voz rouca de sal e esforço.

– Então salva o que dá. Primeiro o corpo. Depois o que sobra.

Naiovi olhou para ela, não como quem agradece, mas como quem registra uma presença inesperada no meio do colapso.

Moarã levantou, buscou uma cabaça d’água e uma folha dobrada com pó escuro no centro.

– Bebe um pouco, você soltou o veneno, mas também a cura. Depois mastiga isso devagar. Vai acalmar a parte de dentro.

– Vai me fazer ver coisas?

– Vai te fazer ficar. No corpo, no agora. O resto é contigo.

Naiovi aceitou. A água era morna, o pó amargo. Ainda havia gosto de sal e ácido na boca, mas aos poucos o mundo foi parando de girar. A tempestade finalmente havia passado.

– Tente descansar. Preciso patrulhar a cidade, ver se alguém precisa de ajuda, se está tudo bem. Não faça esforços, se hidrate e tente comer alguma coisa.

– Essa água– 

– Ela é pura, pode beber.

E bebeu com vontade. Que saudades estava de uma água pura! Parecia mais saborosa do que o  vinho mais caro que já tomara em Kohr. Água pura era como ouro – em Valeã, purificá-la era muito mais simples e prático fermentar, infusionar. Filtrá-la exigia um sistema que não dava conta da demanda de toda a população. O líquido descia como se lavasse não apenas a garganta, mas os cantos abafados da mente. Quase sentiu vergonha de ter esquecido como era – um recurso que já foi tão banal em Kohr.

Moarã já se preparava para sair, retirando as barricadas que protegiam a residência. Naiovi falou, num tom quase de sono:

– Vocês vivem com pouco… Mas têm tanto.

Moarã parou. Não virou o rosto, apenas respondeu, já à porta:

– A gente vive com o que ficou. E aprende a cuidar. – Colocou sua farda por cima das roupas que usava e lançou um olhar preocupado à Naiovi – Paz ao que te habita.

O som de seus passos sumiu do lado de fora. Naiovi ficou ali, sem conseguir responder, sozinha com a água, o gosto ainda na boca, o corpo em processo de retorno. “Cuidar”... de novo essa palavra. A saudação começava a ter algum sentido agora. 

“E força ao que te move”, pensou, respondendo em silêncio. Sentia, enfim, o agora. Pela primeira vez desde que deixara Kohr, não pensava no Conselho, nem nos cálculos, nem na simulação que havia ensaiado para cada rosto que encontrasse. Pensava apenas no próximo gole. Na próxima respiração. No espaço entre uma coisa e outra.


*****


Moarã fechou a porta devagar, como quem ainda carregava um pouco da fragilidade alheia nos ombros. O ar fora estava mais limpo que horas atrás, mas ainda tinha aquele fundo metálico, como se o Sopra-Sangue deixasse rastros invisíveis nas bordas das coisas. Ajustou o tecido sobre o rosto e seguiu pela viela de terra escura, pisando firme com suas sandálias de couro e a sujando de vermelho vivo, mantendo os olhos atentos.

Os telhados de palha e placas metálicas de Valeã cintilavam sob o sol filtrado pelas nuvens de poeira. As pessoas começavam a sair de suas casas, ainda desconfiadas de que a tormenta realmente tivesse passado. Crianças atravessavam as ruas em passos apressados, rindo baixo, como se temessem chamar de volta a tempestade. Um casal varria a fuligem acumulada na entrada de casa.

Moarã caminhava em silêncio, cumprimentando com acenos curtos. Seus olhos varriam cada canto, buscando sinais: um poste tombado, um duto aberto, alguém ferido. Foi quando virou a curva da praça principal, perto da estrutura abandonada da antiga central de troca, que viu Ethel. Sentada sobre uma escada de ferro enferrujado, perna cruzada, um cigarro torto preso no canto da boca e uma cumbuca de frutas no colo.

Ethel tinha aquela postura de quem nunca pediu licença para ocupar espaço, mas ainda assim sabia ler os silêncios ao redor. Os cabelos, pretos, volumosos e ondulados, estavam presos de modo prático, mas algumas mechas teimavam em cair ao redor do rosto de traços marcantes – sobrancelhas firmes, nariz aquilino, lábios cheios e olhos esverdeados que pareciam sondar até as rachaduras do chão, onde a ironia e a empatia dançavam em equilíbrio sutilo. A pele dourada pelo sol contrastava com a camisa branca aberta no antebraço, suja de fuligem e tempo. Observava tudo como se nada escapasse – nem mesmo a aproximação contida de Moarã.

– ‘Tá viva, então – Ethel disse, sem levantar o rosto – E sem sinais de sangramento interno, pelo visto.

Moarã bufou de leve, deixando escapar um meio sorriso.

– Não posso dizer o mesmo de quem come fruta no meio do metal.

– O veneno já tá no mundo, Moarã. Pelo menos esse aqui tem gosto. Quer uma? Ou prefere um cigarrinho? – ofereceu uma fruta enrugada, roxa por dentro.

– Tô de patrulha.

– Tô vendo. – apontou para o uniforme – Sempre está. Você e essa sua mania de carregar o mundo nesse seu costão largo.

Moarã encostou na mureta, olhando a praça adiante.

– Te vi rondando a casa ontem à noite – disse, sem encará-la diretamente.

Ethel arqueou uma sobrancelha, surpresa.

– Curiosa, não desconfiada. Queria saber quem era a ilustre visitante. Fazia tempo que não vinham diplomatas. A última foi aquela tal de Óten, lembra?

– A que desmaiou por causa do cheiro da cozinha?

– Aquela mesma. Chorou porque a sopa "gritava". – riu, fazendo aspas com os dedos – Coitada, não durou um ciclo. Foi embora antes mesmo de aprender a cagar na fossa.

Moarã soltou um som seco, quase um riso. Olhou de novo para Ethel.

– Pois é. Essa galera que vive no subsolo é sensível demais. E vê que Óten nem de Kohr era. Pelo menos não precisei escoltar aquela lá. – deu uma pausa – E essa de agora? Impressões?

– Hm… metida. Inteligente. E bonita, se você não tiver problema com gente que fala como se estivesse dando ordem até pra nuvem.

– É. Mas treme como qualquer um. E vomita também.

– Vomitou?! – Ethel quase derrubou a cumbuca no colo – Já?! Achei que fosse aguentar uns quatro dias antes de colapsar!

– Foi cedo. Mas não resistiu ao sopro. Nem ao chá.

– Ah, você deu o chá. – Ethel riu, mordendo a fruta – Pronto. Já foi longe demais. Se ela voltar a andar depois disso, é milagre ou teimosia.

Moarã balançou a cabeça.

– Ela precisa de tempo. 

– Ah, claro. Porque o tempo cura tudo. Intoxicação espiritual, vômito e exaustão política… E tu, o que tá achando dela?

– O mesmo que você.

– Não tem como. Sou colega de laboratório dela, você é a sombra. E também não te falei tudo o que achei dela…

Silêncio breve. Um vento morno passou entre elas. Lá ao fundo, alguém gritava o nome de um cão sumido. Moarã lançou um olhar de lado, o cenho semicerrado. Ethel mordeu mais um pedaço da fruta, mastigando devagar, olhos fixos na praça como se não fosse ela mesma quem tinha deixado no ar a provocação.

– Você fala muito, mas nunca fala tudo de uma vez – disse Moarã, meio cansada, meio curiosa.

– É que eu gosto de guardar as partes boas. Vai que servem depois, num momento mais... dramático. – Ethel piscou, jogando o caroço da fruta longe com a ponta dos dedos – Além disso, acho que ela ainda não mostrou quem é. Nem pra você e nem pra ela mesma.

Moarã ficou em silêncio. Os olhos foram até uma das passagens de barro onde crianças agora chutavam um pedaço de madeira como se fosse bola. O rastro da tempestade estava ali, nas rachaduras, na poeira suspensa, no cansaço que pairava no ar, na noite mal dormida.

– Tem gente que só mostra quem é quando começa a perder – disse, enfim.

Ethel virou o rosto para ela.

– E tem gente que só aprende a ficar quando para de fugir.

Um silêncio pesado. Mas não desconfortável. Moarã ergueu o corpo da mureta com um impulso lento, os ombros voltando à rigidez da patrulha. Ethel olhou de lado, meio provocativa:

– E você? Vai fingir que não reparou?

– No quê?

– No jeito que ela te olha quando tenta não olhar. Ou no jeito que você não olha, pra fingir que não sentiu.

Moarã não respondeu de imediato. Apenas se afastou e retomou o passo.

– Toma conta da tua vida, Ethel.

– Eu tô. Você que anda dentro dela mais do que imagina.

Moarã não virou, mas ergueu a mão num gesto vago de despedida.

– Se alguém te perguntar, eu te dei bronca.

– Se alguém me perguntar, eu digo que você me pediu fruta e chorou porque tava com fome.

Moarã bufou, mas dessa vez, foi quase um riso de verdade.

– Paz ao que te habita, Ethel.

– Força ao que te move, Moarã. Ah, e avise a gringa que logo menos tô indo pro laboratório.

Moarã não respondeu. Só puxou o tecido sobre o rosto de novo e voltou a andar. Atrás dela, o sol começava a sair um pouco mais inteiro por entre as nuvens e a raiar no meio do céu. 

A patrulha foi tranquila, apenas algumas ocorrências de acidentes pequenos, nada demais. Conseguiu avisar todos a tempo de evitar que algo pior acontecesse. Ajudou alguns moradores a reconstruir algumas estruturas e voltou para seu alojamento.

Chegando lá, encontrou Naiovi finalmente dormindo. Acendeu o fogão e preparou uma comida forte, nutritiva, que despertou a forasteira. Seus olhos abriam devagar, como que voltando ao corpo. De repente, levantou-se em um pulo:

– Holy shit! – olhou o bracelete com a tela brilhante ao lado de seu leito – Estou atrasada! Muito atrasada! – tentou andar, suas pernas titubearam, a traindo. Caiu de joelhos. Naiovi ofegava no chão, os joelhos na madeira ressecada do piso. Piscou várias vezes, como se estivesse tentando resetar o próprio corpo. A tela do bracelete ainda pulsava notificações em laranja, mas ela não conseguia focar nos símbolos. 

A voz de Moarã, sem pressa, cortou o pânico.

– Calma aí, gringa. Coma algo antes de sair. Saco vazio não fica em pé.

– Você não entende, eu tenho que... eu devia estar medindo os níveis de dispersão! – protestou, tentando se levantar novamente, mas seus braços falharam.

Moarã se aproximou com uma tigela fumegante nas mãos. Colocou-a no chão, perto dela, e cruzou os braços.

– Você acha que tá em Kohr ainda, que pode mandar em protocolo com o corpo no avesso e com a cabeça presa em neblina. Aqui, se você cair, não tem corredor com filtro automático nem, sei lá, cápsula de reidratação. Tem chão. E poeira. Se não comer comida agora, é isso que vai ser sua próxima refeição.

Naiovi fechou os olhos por um segundo, ofegante. Depois os abriu e encarou a tigela. O cheiro era forte, vegetal, com um fundo de fumaça e sal. Engoliu seco.

– Ah, sua amiga pediu pra avisar que já estava a caminho do laboratório.

– Ethel? Hm. – ouvir Moarã se referir a ela como “sua amiga” a pegou de surpresa. Não confiava muito em Ethel… Mas, na condição que estava, era melhor do que nada. – O que tem aí?

– Raiz de macadê, gordura de bicho que você preferia não saber qual, pimenta do tipo que levanta defunto. E um restinho de sopa da noite passada que ainda servia. Melhor do que parece.

Naiovi hesitou, depois se sentou com esforço e pegou a tigela com mãos trêmulas. Bebeu o caldo devagar. O calor parecia abrir espaço dentro dela. Moarã se afastou, voltou ao fogão, fingindo ocupação com panelas que nem estavam no fogo. Naiovi baixou os olhos para a tigela. Soprava devagar, o vapor desenhando formas efêmeras diante de si. Depois de um tempo, disse:

– Vocês têm uma forma estranha de cuidar das pessoas aqui.

Moarã não virou. A resposta veio seca, mas não fria:

– A gente cuida de quem tem chance de ficar em pé.

Naiovi engoliu mais um gole. A pimenta começou a chegar, fazendo os olhos lacrimejarem levemente, avermelhando seu rosto.

– Isso quer dizer que passei no teste?

– Quer dizer que não te enterrei hoje. Ainda. Já é alguma coisa.

Dessa vez, Naiovi riu. Um som breve, surpreendido, que saiu mesmo contra sua vontade. Moarã fingiu que não ouviu, mas seus ombros perderam um pouco da rigidez. O silêncio que veio depois foi quase confortável. E durou até o estômago de Naiovi fazer um som alto de aprovação.

– Ok. Admito. Isso aqui tá melhor do que qualquer ração proteica da cúpula.

Moarã se virou só o suficiente para lançar um olhar enviesado:

– Cúpula. Nome tão chique pra dizer bunker.

– É o nome oficial.

– Aqui a gente chama de buraco com gente nervosa.

Naiovi riu de novo. A comida já fazia efeito. E o corpo, embora ainda cansado, parecia começar a lembrar que estava vivo.

– Preciso me arrumar… estou me sentindo suja.

– Lá fora tem um quartinho de banho. Não tem tela, não tem sensor de temperatura. Se quiser banho quente, tem que esquentar na lenha. Se quiser privacidade, fecha bem a porta com a trava de bambu.

Naiovi se levantou com dificuldade, mas agora o corpo cooperava. O caldo já dava sinais de milagre. Pegou um pano meticulosamente dobrado que estava sobre a beirada da esteira, uma muda de roupas e limpou o rosto e os braços com movimentos lentos. Ainda sentia como se carregasse areia por dentro dos ossos, mas estava, aos poucos, voltando ao eixo.

– Se eu não voltar em dez minutos, manda alguém com uma pá – disse, ao sair pela porta.

– Se não voltar em dez minutos, Ethel assume teu posto. E ela adora enfeitar as coisas, heim – respondeu Moarã, agora com um tom quase zombeteiro.

Naiovi soltou um suspiro longo, exasperado, mas com um certo gosto. Alimentada, se retirou para o quintal pela primeira vez. Era uma área capinada, de chão firme e avermelhado, com uma grande árvore no centro – robusta, de galhos espessos, que pareciam resistir ao tempo e à poeira. Havia também alguns vegetais baixos, de folhas largas, ainda manchadas por traços ocres da tempestade. Mais ao fundo, a fossa: um espaço reservado, discreto, cercado por uma parede de barro cru e coberto por um teto de palha grossa, bem trançada. 

A luz do dia do lado de fora queimava suave, filtrada pelas nuvens. Essa sensação do calor do sol tocando a pele era uma sensação nova, gostosa, que ainda não havia se acostumado. Ao se afastar para o tal quartinho de banho, pensava nas coisas mais urgentes: analisar o solo coletado, confirmar a integridade das lentes, verificar os registros da Red Drift, entender o comportamento das partículas suspensas – mas também, por algum motivo, pensava no gosto do caldo de Moarã, na frase sobre enterrar ou não, no som das sandálias ritmadas saindo ao amanhecer. Ali, no fim do mundo, alguém tinha feito sopa e esperado que ela acordasse viva. O chá do banho era fria como a superfície de Kohr nas noites de falta de energia. Mas, ainda assim, lavava.


*****


O caminho até o laboratório não era longo, mas Naiovi o percorreu lentamente analisando os arredores pós-tempestade. A caixona se erguia como um tumor metálico entre os abrigos de madeira e palha, sua superfície manchada de sol e lembranças de Kohr. Ao se aproximar, notou que a porta estava entreaberta. Entrou sem fazer barulho. O laboratório improvisado pulsava uma vida própria àquela hora. Placas solares no teto captavam os raios do meio-dia com voracidade. O interior cheirava a metal quente, solventes e o início de alguma combustão química em progresso.

Ethel já estava lá, absorta em sua própria lógica caótica de organização: frascos abertos, dados piscando em três painéis distintos, uma centrífuga zumbindo num canto, duas telas ligadas em esquemas sobrepostos, códigos saltando em laranja e azul. Os cabelos desgrenhados presos por um grampo improvisado com fio de cobre. Estava cantarolando baixo, num ritmo irregular, enquanto agitava um tubo com mais força do que o necessário. Parecia se divertir. 

Naiovi observou por longos segundos, calada. O laboratório parecia diferente sob a presença de Ethel – mais caótico. As fórmulas estavam certas, mas anotadas do jeito dela, com setas e comentários sarcásticos desenhados à mão. A organização era uma anarquia funcional. Ethel dançava entre frascos e interfaces como quem conhecia as rotas de cor. A técnica era errática, mas surpreendentemente eficaz – ela havia adiantado leituras importantes dos níveis pós-tempestade, organizado os isolados por temperatura, e até marcado inconsistências no traço iônico das partículas mais densas. Um caos funcional. “Ela trabalha como se estivesse disputando com alguém”, pensou.

Naiovi se aproximou em silêncio, cruzando os braços, até estar quase ao lado da outra. Se encostou na mesa e murmurou, com a voz ainda rouca do pós-tempestade:

– Parece que alguém está se divertindo sem mim.

Ethel deu um pulo, derrubando um dos bastões de vidro. Pegou-o no ar com reflexo afiado antes que tocasse o chão, depois virou-se com olhos arregalados.

– Porr*! – levou a mão ao peito – Parece que não sou só eu que não bate na porta!

Naiovi arqueou uma sobrancelha, se aproximando devagar.

– Tive que aprender com alguém. E a porta estava aberta. Não queria atrapalhar seu feitiço.

Ethel bufou, ainda tentando controlar o susto, e apontou com o queixo para a bancada.

– Feitiço quebrado. Pode agradecer depois. Já processei metade dos resíduos da tempestade e achei uma leitura esquisita aqui, então entra com cuidado, porque a alma tá meio de ressaca ainda. – Ethel abriu um sorriso enviesado, mas seus olhos ainda analisavam Naiovi, como quem media os estragos da manhã tempestuosa. – Conseguiu dormir ou desmaiou de vez?

– Sobrevivi – Ela se abaixou para pegar um pedaço de papel dobrado no chão e o examinou. – Você adiantou a análise de dispersão?

– Claro. Achei que fosse me deixar na mão, então já comecei. Tem coisa interessante aqui, viu. As partículas do Sopra-Sangue estão reagindo com o solo local de um jeito que... bom, depois você olha.

Naiovi assentiu com os olhos ainda correndo pelas anotações.

– Deixa eu adivinhar. Você usou o reator portátil de novo sem verificar a calibragem?

Ethel estalou a língua.

– Detalhes técnicos. O importante é que funcionou. E que você apareceu. Finalmente.

Naiovi abriu um sorriso torto.

– Achei que se divertisse mais sem mim.

– Me divirto, sim. Mas fico sem com quem discutir.

– Talvez. – Naiovi se aproximou da bancada e observou os frascos com interesse. – Já analisou as amostras da tempestade?!

– Claro. Achei que você fosse morrer de insolação ou sei lá, então fiz alguma coisa útil enquanto isso.

– Agradeço o voto de confiança.

– De nada. Achei uns traços incomuns, dê uma olhada.

– Hm. – Naiovi examinou a câmara. – Você documentou isso?

– Tá tudo no tablet. No meu jeito.

Naiovi pegou o aparelho, navegou brevemente pelos registros e soltou um som baixo, quase imperceptível de aprovação.

– Bagunçado... mas entendível.

– O mais próximo de um elogio que eu já ouvi da sua boca até hoje.

– Não se acostuma. 

– Confiança, Naiovi. Aqui tudo se entende. É uma questão de ecossistema.

Naiovi riu pelo nariz, quase um suspiro.

– “Ecossistema” bonito. Só tenta não explodir nada antes do anoitecer.

– Sem promessas.

Ethel correu os olhos pelo laboratório, procurando algo.

– Cadê a sua muralha ambulante pessoal? 

Naiovi não respondeu de imediato. Fechou o tablet e o pousou de leve sobre a bancada.

– Moarã não é minha guarda pessoal. – disse, sem olhar diretamente para Ethel. – Está fazendo o que os de Valeã fazem: observando. Avaliando.

– Hm. – Ethel encostou-se na bancada e cruzou os braços. – Então ela ainda não decidiu se você é confiável?

– Nem eu decidi se eles são.

– Ah, que fofo. Diplomacia de mão dupla.

Naiovi lançou um olhar breve, cortante.

– Você fala demais.

– E você fala de pouco. Deve ser por isso que dá certo. 

Por um instante, o zumbido da centrífuga preencheu o espaço entre elas. Ethel se afastou da bancada e deu alguns passos lentos, circulando Naiovi como se examinasse um artefato raro. Parou perto demais – os ombros quase se tocando – e estendeu a mão sobre a mesa para alcançar um frasco atrás de Naiovi, sem pedir licença.

– Não explodiu nada. Ainda. – murmurou ao passar, o braço roçando de leve nas costas da diplomata.

Naiovi não se moveu. Nem cedeu espaço. O toque foi leve, mas o suficiente para acionar algo em seu corpo já alerta.

– Você costuma trabalhar assim com todos os seus colegas? – perguntou, num tom seco, mas controlado.

Ethel deu um sorrisinho enviesado, sem tirar os olhos do tubo agora em suas mãos.

– Não sei se já percebeu, mas esse negócio de laboratório não é o forte de Valeã. 

– Não estou falando do laboratório.

– Eu sei. – Ethel girou o tubo nas mãos, observando a reação do líquido sob a luz que filtrava pelas frestas do teto metálico. – Mas se eu dissesse que sim, que trabalho assim com todos, ia perder a graça, não ia?

– Não tenho tempo pra jogos.

– Claro que tem.

Naiovi se moveu, desta vez, com lentidão deliberada. Deu a volta pela bancada até o terminal onde Ethel havia deixado os gráficos de leitura do solo.

– Isso aqui... – ela indicou um pico anômalo na curva de dispersão. – Você cruzou com o mapa de umidade ou só isolou por densidade?

Ethel bufou, desapontada com a quebra do clima, mas ao mesmo tempo satisfeita por vê-la mergulhar no trabalho.

– Claro que cruzei. O pico não bate com nada nos registros anteriores. É coisa nova. Ou coisa velha que ainda não tinha sido registrada assim.

– Hm. A composição lembra traços metálicos... mas tem resíduos orgânicos demais. Como se algo estivesse se misturando ao solo com intenção.

Ethel virou-se lentamente, inclinando a cabeça.

– Intenção?

– Sim. Nada disso parece casual. Nem o padrão da tempestade, nem a reação. Como se o próprio Red Drift tivesse aprendido a reagir com o que encontra.

– Você acha que ele está se adaptando?

– Estou dizendo que pode não ser só um fenômeno passivo. 

Silêncio. Até a centrífuga pareceu hesitar por um instante.

Ethel se aproximou devagar, apoiando os dedos na borda do monitor, bem ao lado dos de Naiovi.

– Isso muda tudo.

– Muda. – Naiovi respondeu sem desviar os olhos. – Mas muda mais ainda se estivermos sendo observadas por ele também.

Ethel soltou uma risada baixa, nervosa.

– Ótimo. Além de radioativo e corrosivo, agora também é voyeur.

– Não estou brincando. – o comentário de Ethel tinha feito Naiovi corar.

– Eu sei. É isso que torna tão divertido trabalhar com você.

Dessa vez, Naiovi olhou para ela. O olhar foi mais longo do que o habitual. Analisador, mas não frio. Como quem tenta decifrar uma equação que insiste em fugir do papel. A luz refletida nos olhos de Ethel trazia uma curiosidade crua, um desafio constante. Sentiu o corpo responder primeiro: um pequeno enrijecer nos ombros, a respiração quase imperceptivelmente mais curta. A proximidade, o tom entre a piada e o risco, o toque ligeiro no monitor. Um reconhecimento involuntário de território invadido, mas também algo que não sabia nomear – curiosidade, talvez? Mas não cedeu. Não recuou. 

– Ativa a microssonda. Quero uma leitura fina dessa camada.

– Entendido, capitã! – Ethel fez uma saudação debochada antes de se afastar, mas com um brilho atento nos olhos, como se dissesse: vi mais do que você queria mostrar.

O crepúsculo começava a tomar forma do lado de fora do laboratório. Lá dentro, iluminado pelas luzes artificiais brancas, a tela piscou duas vezes em azul antes de estabilizar num verde profundo.

– Pronto. – murmurou Ethel, se espreguiçando na cadeira, os olhos ainda fixos nos dados que se desenrolavam. – A leitura está pronta.

Naiovi se inclinou sobre a bancada. Os gráficos que preenchiam a interface traziam padrões instáveis de dispersão mineral, picos de temperatura fora do esperado, além de uma curva de crescimento bioluminescente que ainda não fazia sentido.

– A atividade do musgo triplicou nas áreas que passaram mais tempo sob o Red Drift. Mas não há marca de combustão, nem alteração no tecido arbóreo. – murmurou Naiovi, os dedos percorrendo os dados. – Como diabos essa floresta ainda está de pé?

– É o que eu me pergunto desde que cheguei. – Ethel puxou uma garrafa de vidro e bebeu um gole do chá forte que costumava preparar – Era pra estar tudo em cinzas. Mas não. Os musgos brilham, os bichos continuam lá, vivos. Adaptados? Mutados? Vai saber.

Naiovi não respondeu. Apenas fixou os olhos nos dados. Algo se agitava por trás da lógica – algo que ainda não tomava forma. Como se a floresta estivesse... respondendo.

Foi quando a porta do laboratório se abriu, após três batidas firmes. Moarã entrou sem dizer nada, com os passos firmes e as mãos sujas de barro seco. Trazia o olhar de quem já sabia que algo estava para acontecer.

– Vocês ainda estão vivas. É um bom sinal. – disse, sem expressão.

Ethel virou-se no banco, sorrindo como quem acaba de acender um fósforo numa sala cheia de pólvora.

– Olha só, a sombra chegou.

Moarã não respondeu. Apenas olhou de Naiovi para Ethel, depois para a tela ao lado delas.

– Chegou bem na hora! Os dados foram confirmados. Precisamos voltar à trilha norte o quanto antes. – disse Naiovi, apontando com entusiasmo para a fileira de telas mostrando dados e gráficos à sua frente.

– Já está anoitecendo. – comentou Moarã, sem desviar os olhos da tela – Posso tentar uma autorização para amanhã cedo.

– E arriscar que o terreno mude de novo? – rebateu Naiovi, se levantando, ficando de frente para Moarã e colocando uma mão na cintura – precisamos de dados frescos. O Red Drift foi hoje, amanhã já haverá uma perda significativa de informações. Precisamos ir o mais rápido possível.

– O mais rápido possível é amanhã ao amanhecer.

As três se entreolharam por um instante. O silêncio que se seguiu foi denso como o ar que precedia a tempestade. Naiovi manteve-se firme diante de Moarã, com os olhos dourados acesos por trás da serenidade estudada. A mão na cintura agora apertava levemente o tecido do casaco, como se aquele gesto fosse o único controle que lhe restava.

– Não podemos perder o momento. Se esperarmos, os dados vão se diluir, o solo já terá se recomposto. A umidade, a luz, o tempo, chuva... tudo altera a composição. Perdemos dados a cada segundo que estamos aqui – insistiu, a voz ainda controlada, mas mais cortante.

Moarã não piscou. 

– Eu entendi. Mas aqui o que se considera momento certo não é decidido por um querer ou por pressa.

– Isso não é pressa, é precisão. – Naiovi avançou um passo, o corpo quase em tensão. – O Red Drift afetou a composição do musgo, a taxa de luminosidade está instável. Você viu os gráficos.

– E vi também a luz lá fora. – respondeu Moarã, sem mover um músculo. – Amanhece em menos de dez horas, estamos no verão. Você quer atravessar floresta viva à noite com terreno instável, partículas ainda suspensas e zero vigia disponível? Você não tem mapa noturno daquela trilha. Nem permissão.

– Eu tenho preparo. Você é minha vigia e deve ter um mapa. Sou Naiovi, herdeira do conselho cinzento de Kohr e exijo falar diretamente com uma liderança. – disse sem a intenção de soar arrogante, mas com firmeza e certa formalidade.

Moarã cruzou os braços. Inclinou-se levemente, levando seu rosto na altura do rosto de Naiovi, que era pouco menor que Moarã, e disse, suavemente, como quem educa uma criança teimosa:

– E eu sou Moarã, liderança da muralha e das fronteiras. Você está em Valeã, Naiovi. Aqui você observa. Constrói laços. Espera o momento certo. Respeita e não exige.

O golpe foi silencioso, mas certeiro. Engoliu seco. Não sabia que Moarã era líder. A palavra não exige caiu entre elas como pedra em água parada. Naiovi respirou fundo, forçando-se a desviar os olhos, mesmo que só por um instante. O orgulho latej*v* sob sua pele – junto com o claro lembrete frustrante de que, em Valeã, títulos não abriam caminho. Nem mesmo os dela.

– Voc– liderança?! – falou baixo, piscou rápido os olhos e se recompôs. – Não estou exigindo. – disse por fim, com o rosto voltado agora para a tela ao lado. – Estou propondo uma exceção estratégica. 

– Então proponha de novo amanhã. – Moarã voltou à sua postura aprumada, com as mãos para trás – E venha preparada para escutar um "não".

Ethel observava tudo com o queixo apoiado numa das mãos, os olhos alternando entre as duas como quem assistia a um espetáculo. Girou lentamente no banco, como se quebrasse o gelo com a ponta de uma colher:

– Diplomacia realmente é uma arte.

Moarã desviou os olhos para as telas por alguns segundos, averiguando os dados que pouco compreendia, e lançou-lhe um olhar seco, suficiente para silenciar qualquer comentário seguinte – mas não o sorriso contido que ainda tentava se desenhar nos lábios de Ethel, que tentava parecer séria.

Naiovi permaneceu onde estava, com as mãos agora apoiadas na borda da bancada metálica. A respiração já voltava ao ritmo, mas por dentro, ainda fervia. Tinha aprendido a negociar com ministros, conselheiros, engenheiros – mas aqui, a rigidez vinha das árvores, das regras orgânicas que não cederiam a palavras bem escolhidas. Sentiu-se, como nunca antes, impotente. Refém. Não do local, nem de Moarã, mas pela falta de liberdade... ou de privilégios.

– Dez horas. – repetiu Moarã, já voltando à porta. – Estejam prontas. Nada além do essencial. A trilha muda quando quer, e não vamos refazer caminho com peso morto.

A porta se fechou atrás dela, com um clique que soou mais definitivo do que talvez fosse.

Ethel soltou um assobio baixo.

– Dorme, herdeira. Amanhã tem floresta viva e mais uma dose de silêncio com gosto amargo de pinga. Você deu uma bola fora feia, heim!

Naiovi se virou para ela, um relance de exaustão nos ombros.

– Ainda acho que deveríamos ter saído agora.

– E eu ainda acho que você devia me deixar colocar um pouco daquele musgo na infusão. Vai que abre sua mente. – Ethel disse com sarcasmo, apontando para sua própria cabeça. – E acho também que posso trazer pipoca da próxima vez.

Naiovi não respondeu. Apenas sentou-se devagar, apoiando o queixo com a mão com os olhos voltando aos dados ainda pulsando na tela. As curvas, as luzes, os padrões que pareciam vivos – vivos demais. Precisava aprender a esperar. E ela aprenderia. Mesmo que à força.

– Ela não entende o que está em jogo. – bufou Naiovi.

– Ah, ela entende. Só não tem pressa de morrer por isso.

Naiovi virou o rosto lentamente, como se algo em Ethel finalmente tivesse atravessado a blindagem.

– Você já viu o Red Drift de verdade? No auge?

Ethel cruzou os braços atrás da cabeça, reclinando-se, mudando sua feição.

– Já. E também já perdi gente importante por conta disso. Não estou dizendo pra ignorar o que você viu. Só estou dizendo que, aqui, as coisas têm outra lógica. E nem sempre a lógica dela combina com a dessa daqui. – apontou para os aparelhos na sala.

– A lógica não combina com nada! – Naiovi sussurrou, frustrada. – Esse musgo está reagindo a estímulos que deveriam matá-lo. Há uma curva de retroalimentação nos compostos, como se estivesse se adaptando à toxina em tempo real. Crescendo com ela. Usando ela. 

Ethel soltou um som baixo, pensativo:

– Tipo planta-cólera. Mas sem a parte em que morre.

– Exato. E isso não é só estranho. É perigoso. É poderoso. Se aprendermos como funciona...

– ...podemos usar. – completou Ethel, sem ironia dessa vez.

O olhar de Naiovi se ergueu, mais firme. Por um instante, Ethel apenas assentiu. Depois, ergueu-se lentamente, pegando sua mochila e seu casaco leve de algodão cru.

– Amanhã cedo, então. Leve o essencial. E nada de tentar ganhar discussão com a floresta. Ela sempre tem a última palavra.

– Desde quando você virou a voz da razão?

– Oxe, mas eu não sou a mata! – soltou um sorriso – Mas, já que acha isso… Desde que entendi que só os vivos têm tempo pra teimosia.

Saiu com passos calmos, deixando a porta entreaberta.

Naiovi permaneceu no laboratório por mais alguns minutos. Sozinha, os dados à sua frente pareciam agora um idioma antigo, palpitando em silêncio. Por trás dos números, algo a chamava – algo que escapava da razão. Talvez não bastasse saber decifrar. Talvez precisasse... 

Desligou lentamente a luz principal, deixando apenas o brilho verde dos monitores acesos. Na penumbra, o reflexo do próprio rosto na tela preta misturava-se aos gráficos do musgo. A noite só começava.


*****


O ar ainda carregava o cheiro das últimas infusões quando Naiovi empurrou a porta da casa. Carregava a mochila nas costas – ajustada, pronta – e os olhos um pouco mais baixos do que o usual. Nenhuma palavra. Só o ranger suave da madeira sob seus passos.

No centro da varanda, Moarã trabalhava sentada sobre um pano de fibras trançadas, cercada por pedaços de madeira já curvados, tiras secas, pedras afiadas, resinas e cordas. A lâmina em sua mão deslizava com uma leveza quase ofensiva, como se moldar uma lança fosse um gesto tão simples quanto cortar um pedaço de fruta madura. Um arco já pronto repousava ao lado, de cor escura e superfície lustrosa. Ao lado dele, flechas em diferentes estágios de confecção – todas milimetricamente alinhadas.

Naiovi parou por um instante, observando. A madeira cedia como manteiga aquecida nas mãos de Moarã, que não levantou os olhos de imediato. Apenas quando terminou a curva de uma das lanças e amarrou a ponta com um nó firme, ergueu o olhar.

Naiovi correspondeu com um leve gesto de cabeça.

Moarã assentiu, sem sorrir, e voltou à tarefa seguinte. O som da lâmina voltou a preencher o espaço – seco, preciso, quase ritmado.

Naiovi entrou e passou devagar pelo cômodo principal até seu quarto. Tirou os equipamentos da mochila e começou a organizá-los sobre o tecido: canivete dobrável, recipientes de coleta, um kit de análise portátil, um caderno grosso com capa emborrachada com páginas parcialmente preenchidas com anotações, uma pequena caixinha redonda metálica... 

Por um instante, tudo pareceu quieto demais. A lâmina lá fora continuava sua dança paciente. Dentro do quarto, só o leve atrito das embalagens e a respiração contida de quem queria pensar algo, mas ainda não encontrava a forma certa. Naiovi parou por um momento, segurando uma pequena seringa de extração. Cerrou os lábios. Olhou para a parede. Depois para a mochila. Depois... para o nada. E ficou ali, imóvel, como se esperasse que a resposta viesse de algum lugar. 

Sentou-se por um instante na cadeira rente à mesa que havia ao lado da esteira, riscando seu pequeno caderno de rascunhos – às vezes, isso a ajudava a pensar. As mãos repousaram sobre o papel, mas o olhar... vagueava. Parou na lona dobrada no canto, na estrutura de madeira que sustentava a cobertura da casa. 

O pensamento voltou – inevitável – para aquela manhã. O Red Drift arranhava as paredes, e, por um momento, as duas tinham parado. Não como sentinela e estrangeira. Nem como vigia e diplomata. Só... pararam. Será que Moarã não tinha sentido o mesmo? Para Naiovi, aquilo tinha sido o primeiro instante real. Uma espécie de abertura, vulnerabilidade. Não exatamente intimidade – ainda não – mas algo próximo de reconhecimento. E agora... aquilo parecia ter evaporado como poeira fina no ar seco. 

Lá fora, os sons cessaram. Um momento depois, uma sombra recortou o vão da porta. Moarã estava ali – segurando um dos arcos recém-talhados, a curva da madeira ainda reluzente sob a luz amarelada do lampião.

– Fez as contas? – perguntou, com um tom neutro. – Sabe quanto peso vai levar?

Naiovi ergueu os olhos devagar. Moarã não esperava resposta imediata. Apenas se aproximou e depositou o arco ao lado da mochila. Era leve. Forte. Belo. Afiado nos pontos certos.

– Pode ficar com esse. – disse apenas, indicando com a mão – Tem boa tensão para iniciantes. Vai servir.

Naiovi ergueu os olhos, sem sorrir. Havia cansaço neles, mas também inquietação e agora… ela não sabia o quê ainda, mas era contraditório aos demais.

– Você é liderança, Moarã? – soltou com certa solidez.

Ela assentiu, sem grande ênfase.

– Já há umas boas estações.

– Então por que disse que precisava pedir permissão?

Moarã se aproximou sentando-se na cadeira encostada à parede.

– Porque aqui, liderança não é quem manda. É quem escuta. E assim, pode servir. Quem dá a permissão é a própria mata.

Naiovi franziu o cenho. 

– Escuta o quê, exatamente? 

– A terra. Os ciclos. Os sinais que nem todo mundo consegue perceber. Ou suportar.

Naiovi encarou-a, tentando atravessar aquela camada de solenidade com sua lógica.

– E o que você faz como liderança, além de negar acesso?

Moarã não pareceu se incomodar.

– Ensinei os jovens do último ciclo. Fiz armas, remendei redes, preparei comida pra rituais. Cacei quando foi preciso. Cuidei da terra que pediu cuidado. Tudo o que envolve a muralha e seus arredores passa por mim. E, até você chegar, vigiava as noites com olhos bem abertos.

Naiovi arqueou uma sobrancelha.

– Vigiar o quê? – disse com frieza, mais baixo, mais duro, gesticulando com as mãos – O que há pra vigiar nessa terra no meio do nada? – Surpreendeu-se com o que tinha acabado de sair da sua boca.

A pergunta caiu como uma lâmina sobre a quietude da sala. Moarã não respondeu de imediato. O rosto permaneceu sereno, mas algo em seu silêncio endureceu. O que antes era paciência virou muro. Uma tensão acentuada preencheu o espaço entre elas.

Moarã se levantou, foi até o canto da sala e pegou o arco que deixara ali – um arco firme, recém-polido – e entregou a Naiovi com um gesto comedido, cerimonioso.

– Que seja só um peso. Que não precise usar.

Naiovi esticou as mãos para pegar o arco, quase sem pensar. Quando seus dedos tocaram a madeira, algo nela cedeu. Quente ainda do trabalho de Moarã. Como se tivesse sido feito para ela. A lógica se desarmou. Não foi visível, mas foi real. O protesto se dissolveu logo após nascer.

Moarã não disse mais nada e retirou-se em silêncio.

A porta se fechou atrás dela com a leveza de um fim contido. Naiovi ficou sozinha, com o arco no colo e uma sensação incômoda – como se aquela terra no meio do nada, de repente, estivesse a julgando também.

 

**********

Fim do capítulo


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