• Home
  • Recentes
  • Finalizadas
  • Cadastro
  • Publicar história
Logo
Login
Cadastrar
  • Home
  • Histórias
    • Recentes
    • Finalizadas
    • Top Listas - Rankings
    • Desafios
    • Degustações
  • Comunidade
    • Autores
    • Membros
  • Promoções
  • Sobre o Lettera
    • Regras do site
    • Ajuda
    • Quem Somos
    • Revista Léssica
    • Wallpapers
    • Notícias
  • Como doar
  • Loja
  • Livros
  • Finalizadas
  • Contato
  • Home
  • Histórias
  • Legado de Metal e Sangue
  • Renascidos do veneno

Info

Membros ativos: 9525
Membros inativos: 1634
Histórias: 1969
Capítulos: 20,495
Palavras: 51,977,381
Autores: 780
Comentários: 106,291
Comentaristas: 2559
Membro recente: Azra

Saiba como ajudar o Lettera

Ajude o Lettera

Notícias

  • 10 anos de Lettera
    Em 15/09/2025
  • Livro 2121 já à venda
    Em 30/07/2025

Categorias

  • Romances (855)
  • Contos (471)
  • Poemas (236)
  • Cronicas (224)
  • Desafios (182)
  • Degustações (29)
  • Natal (7)
  • Resenhas (1)

Recentes

  • Entrelinhas da Diferença
    Entrelinhas da Diferença
    Por MalluBlues
  • A CUIDADORA
    A CUIDADORA
    Por Solitudine

Redes Sociais

  • Página do Lettera

  • Grupo do Lettera

  • Site Schwinden

Finalizadas

  • Linha Dubia
    Linha Dubia
    Por Nathy_milk
  • Caso na Quarentena
    Caso na Quarentena
    Por millah

Saiba como ajudar o Lettera

Ajude o Lettera

Categorias

  • Romances (855)
  • Contos (471)
  • Poemas (236)
  • Cronicas (224)
  • Desafios (182)
  • Degustações (29)
  • Natal (7)
  • Resenhas (1)

Legado de Metal e Sangue por mtttm

Ver comentários: 0

Ver lista de capítulos

Palavras: 9883
Acessos: 312   |  Postado em: 07/07/2025

Renascidos do veneno

Dia 2

O céu ainda estava pálido quando bateram na porta de seu aposento. Três toques secos, breves. Moarã já estava acordada – ou melhor, ainda não havia conseguido dormir direito. Sentou-se no leito, com os olhos ainda pesados do sonho estranho.

Reconheceu a silhueta do jovem mensageiro de Manturã, um dos aprendizes da ágora. Tinha os olhos abaixados e a fala contida, como exigia a formalidade do recado.

– Os anciões pedem tua presença. Agora cedo. 

Moarã assentiu em silêncio, dispensando palavras. Vestiu-se rápido, amarrou seus dreads com uma tira de tecido tingido de azul e jogou sobre os ombros um manto leve. Quando chegou à ágora, o dia ainda bocejava entre os troncos das árvores que contornavam o centro da vila.

Lá estavam três dos anciãos, sentados nas pedras em semicírculo, envoltos por fumaça e em silêncio. A mais velha, Dona Manturã, ergueu os olhos com lentidão.

– A lua minguante trouxe consigo uma visitante que não é comum – disse. –  Meio-a-meio no céu. Há dentro dela coisas que não foram ditas. Coisas que talvez nem ela saiba carregar. 

Um breve silêncio permitiu ouvir o estalar da fogueira, ao centro.

– A lua nova se aproxima. Sinal de ciclo novo, vindo da escuridão. A terra sente sua presença. Durante a Lua nova, as marés estremecem. Preamares mais altas, baixa-mares mais baixas. Marés vivas. O Sol, a Terra e a Lua se alinham e a força que os atravessa amplifica tudo. – ouvia as palavras tentando aprender o que diziam, mas com certa inquietação. Onde queriam chegar?

Outro ancião, Venâncio, de olhos quase fechados, completou:

– Tu foi a escolhida para estar por perto da cientista. Há olhos que enxergam à frente do corpo. E tu tens desses, Moarã. Desde pequena, tua forma de ver era diferente, sabia ver o movimento da floresta como quem lê um mapa escondido. Carregava força, sim, mas também pressa. Quando voltou do rito, já não era Moara, aquela que ajuda a nascer. Teu nome ganhou o selo que protege: tornaste-te Moarã. 

Outro ancião, Adão, com voz mais grave, completou:

– O ‘ã’ veio com a visão. Com as marcas. O que vê de dentro. O ‘-a’ pode encerrar. Mas o ‘-ã’ abre. É proteção. Quando o teu nome mudou, foi porque te tornaste território sagrado. Teu caminho entre os caçadores sempre foi firme. Moarã é nome de quem escuta antes de atacar. De quem fareja a mudança antes da trilha se formar. É a que ajuda a nascer. Não vê com os olhos, mas com o peso das estações, com o faro da fera e a escuta do silêncio. – deu uma longa respiração e continuou – E essa estrangeira... carrega um traço que ainda não entendemos. 

Moarã manteve-se impassível, mas a mandíbula voltou a se contrair. O enigma parecia uma daquelas redes que prendem, mas não mostram onde estão os nós. Não era de questionar os sábios, mas seu trabalho na muralha era fundamental e não queria deixar Valeã desprotegida para ser babá de gringa. Permaneceu imóvel, mas o silêncio dela já falava. Aquilo que os anciãos propunham não era pouca coisa. Um passo dado por dentro da névoa. Por fim, sua voz soou firme, baixa, mas irretocável:

– Eu obedeço. Mas a muralha anda inquieta. A terra range à noite. Os ventos sopram torto. Se algo vier do norte enquanto meus olhos estiverem longe?

A anciã mais velha inclinou levemente a cabeça, sem surpresa. Sabia que a guerreira não se curvaria sem levantar antes as bordas da decisão.

– A proteção do povo é tua raiz, Moarã. O que cresce além da fronteira também importa. Às vezes, o que parece uma ameaça, é semente. E às vezes, é preciso deixar o facão descansar pra ouvir o que o vento cochicha.

O ancião de olhos fechados completou:

– Não é vigiar. Nem guardar. É estar por perto. Sentir antes de saber. Os caminhos que vêm do desconhecido nem sempre são retos, mas cruzam os nossos por um motivo.

Moarã assentiu, mas seus olhos já estavam longe, fitando um ponto em que a floresta se encontrava com a muralha. Era difícil baixar a guarda. Ainda mais por ordem de palavras que diziam tanto e tão pouco. Dentro dela, porém, o ‘ã’ ressoava. O sopro que recebeu no rito não era só seu, mas também da terra que a pariu. E proteger podia ter outras formas.

– Com todo respeito… mas quem vai ocupar meu posto na muralha? Há dois ciclos que não recebemos reforço das vigílias do sul. O Sopra-Sangue anda diferente, percebi nos últimos ventos, mas ainda não consegui entender o porquê. Os suprimentos das guardas precisam ser confeccionados e testados antes da próxima ronda. As cordas novas não chegaram e metade dos arcos ainda estão sem verniz. Se eu me afasto agora... quem segura?

Os três anciãos não a interromperam. Ouviram. O estalar das folhas queimando no centro da ágora parecia acentuar ainda mais o peso do silêncio.

– Não falo por vaidade de cargo – continuou, com voz firme, sem arrogância – Falo porque sinto. E o que sinto não é leve.

A anciã mais velha respirou devagar. Seus olhos, escuros como café queimado, fitaram Moarã com algo entre orgulho e ponderação.

– Justamente por sentir, tu foste escolhida. Quem carrega o ‘ã’ no nome não fala só por si. Fala pela gente. Nós também sentimos, filha. E sentimos que tua presença junto dela é o que precisa ser feito agora.

O ancião de voz grave completou, pausado:

– Não pedimos que te ausentes. Só que estejas por perto. Com o corpo, com os olhos, com o instinto. A muralha ainda é tua, mas há outras fronteiras que só tu podes perceber.

Moarã apertou os lábios, contida. Não gostava da ideia. Mas compreendia o peso do pedido. E ainda mais – compreendia o tipo de pressentimento que os mais velhos não verbalizavam à toa.

Então baixou a cabeça, como quem acolhe, mas não cede.

– Que assim seja. Mas se algo balançar do lado de fora…

– ...talvez esteja apenas ecoando o que balança por dentro – interrompeu o ancião de olhos quase fechados, com a voz rouca de quem fala devagar para que o mundo escute. – Às vezes, é o chão que treme. Outras, é só o corpo avisando que o tempo virou.

Um fiapo de fumaça atravessou o círculo entre eles. Algo no ar parecia assentir, como se as palavras dissessem mais do que pareciam. Moarã não respondeu. Fez apenas um leve aceno com o queixo, pedindo permissão para se retirar. 

– Paz ao que te habita, criança.

– E força ao que os move.

Saiu com o mesmo passo com que entrara – firme, desconfiado, e agora... carregando mais do que esperava.

Uma lembrança ecoou sem ser chamada. A voz do velho Atunã, no dia em que saíra da tenda com as escarificações recém feitas, ainda ardendo e sangrando: "Abertura é importante. Pra poder respirar. E arejar.". Na época, secretamente odiou aquela frase. Sentiu raiva. Não entendia se era lição, brincadeira ou ironia. Hoje... ainda não sabia ao certo. Mas aprendeu, com o tempo que, em Valeã, as verdades não vinham em linha reta. E nem toda resposta queria mesmo ser encontrada.


********


A luz da manhã filtrava-se em feixes finos pelas frestas da janela de madeira. A casa onde haviam instalado Naiovi era simples, comum, mas impecavelmente organizada – graças a ela, não à arrumação local. Cada objeto estava no lugar exato onde decidira que deveria estar: uma pequena mesa com uma caixa de ferramentas, três cadernos empilhados por ordem de espessura, dois frascos lacrados de vidro âmbar e uma caixinha metálica redonda ao lado da cama.

Sentou-se no centro do espaço, em silêncio, apenas observando, ainda sem vestir os trajes do dia. A pulseira com sensores ajustou-se sozinha ao pulso, pulsando um tom azul suave. Respirou fundo e passou a mão pela cabeça. Os fios já cresciam rente, formando uma leve camada castanha que captava a luz da manhã. O cabelo sempre fora um código em Kohr – raspado por disciplina, por economia, por negação do supérfluo. Crescer era quase uma desobediência.

Caminhou até a bancada e pegou a lâmina fina de manutenção, usada normalmente para cortes em fibra vegetal. Com certo costume, traçou um risco delicado na lateral esquerda da cabeça. Um só. Limpo. Quase imperceptível – mas seu. Fazia tempo que não se permitia tal gesto. Não era vaidade, mas um lembrete: havia coisas em si que não pertenciam ao Conselho Cinzento. Partes que, para funcionar, precisavam respirar fora da doutrina.

Pousou a lâmina com cuidado e ajustou o colar com o selo de Kohr no centro do peito. Depois, checou o ambiente, certificando-se de que tudo estava pronto para o início das análises. Levantou-se e vestiu o macacão de trabalho. Abriu a janela. Sentiu o cheiro de lenha ainda suspenso no ar da noite anterior. No canto oposto da vila, avistou uma silhueta conhecida subindo pelo vale. Reconheceu Moarã pelo porte, pela forma como andava, como se o chão não pudesse afundar sob seus pés. Os ombros pesados, a postura firme. Por um instante, Naiovi não desviou o olhar – e teve a sensação de que, se Moarã a visse, também não desviaria.

A caçadora não confiava nela. E estava certa em não confiar. Mas Naiovi também não confiava em Moarã. Nem em Ethel, nem nos anciãos. Confiava nos números, nos padrões, nas estruturas que reconhecia com facilidade. Abaixou o olhar e fechou a janela. Hoje, começaria de fato o trabalho. E não podia se dar ao luxo de errar.

Na bancada, organizou frascos e placas numa ordem que só ela compreendia. Umidade, temperatura, reação à luz – todas variáveis anotadas em seu caderno com símbolos curtos, traços angulosos, eficientes. Passou os olhos sobre uma das amostras que colhera na chegada e franziu levemente o cenho.

– Hm. Curva de sedimentação alterada. Coesão molecular incompatível com o padrão de dispersão hídrica. Pode estar indicando presença de ferro bioativado ou algum composto estabilizante anômalo...

Fez uma pausa. Percebeu que estava falando sozinha. Suspirou. Depois, murmurou:

– A água que coletei ontem tá “estranha”. Como se alguém tivesse mexido nela pra ela durar mais. Ou para esconder alguma coisa.

Fez um traço novo no caderno.

– Se for só ferro, ok. Mas se for intencional... aí muda tudo.

Virou-se para a centrífuga portátil e iniciou a sequência de análises. Seus movimentos eram rápidos, mas calmos – de quem conhecia cada engrenagem. A lâmina do cabelo raspado refletia a luz da manhã. O risquinho recém-cortado agora parecia um marcador.  Sorriu de lado, sozinha.

– Good morning, Valeã.

A lâmina da centrífuga ainda girava quando ouviu três batidas na porta e ela abrindo rangendo, devagar. Moarã entrou com o passo firme, contido, como quem mede o chão antes de pisar. Manteve-se de pé junto à porta, sem avançar mais do que o necessário.

– Herdeira de Kohr? – A voz era neutra, mas rígida. Nenhuma reverência, apenas constatação.

– Herdeira de q-…? – pensou alto num murmúrio, franzindo o cenho. Naiovi ergueu os olhos. – Negativo. Naiovi Sareth de Kohr. Engenheira de Kohr e Herdeira do Conselho Cinzento. Sim.

Um breve silêncio se formou. Moarã assentiu, como quem confirma para si mesma algo que já suspeitava.

– Meu nome é Moarã. Me designaram para acompanhar sua permanência. Supervisão de deslocamentos e acesso a áreas de risco.

– Uma sentinela, então – disse Naiovi, já se voltando para a bancada. – Esperado. A diplomacia por aqui é menos escrita, mais... encarnada.

Moarã franziu levemente a testa, sem responder à provocação sutil.

– Imagino que os anciãos tenham receios compreensíveis. A abertura de dados em ambientes de alta ancestralidade costuma gerar atritos. – Naiovi continuou, concentrada.

Moarã franziu o cenho, confusa.

– Hã?

– Só quer dizer que não pretendo invadir nada.

– Aham. Bom saber. Mas se for mexer com alguma coisa, primeiro pergunta. Nem tudo aqui gosta de ser analisado. Minhas instruções são claras. 

– Entendido.

O silêncio voltou, seco. Moarã ficou apoiada na parede oposta, braços cruzados, vigiando cada movimento sem pressa. O som da centrífuga havia cessado, mas o ar ainda zumbia com resquícios do giro. Naiovi organizava rótulos numa sequência que só ela compreendia. O silêncio era tenso, mas não hostil – era o tipo de silêncio que pesa quando ninguém sabe qual movimento vai romper o equilíbrio. Notou o risco recém feito na lateral da cabeça de Naiovi, mas não comentou.

Naiovi pegou um frasco, moveu uma lâmina, arrastou uma caixa metálica alguns milímetros. Moarã acompanhava tudo, sem mexer um músculo. A engenheira digitou algo no visor da pulseira; o sensor brilhou brevemente. Um leve som de confirmação cortou o ar.

– bip.

Moarã desviou o olhar, só por um instante. Naiovi notou de imediato.

Ela se deslocou até a janela e abriu uma fresta. A luz da manhã voltou a entrar, alongando sombras no chão. Um raio atravessou exatamente a bancada onde estavam os frascos mais claros, e Naiovi os reposicionou – talvez por motivos óticos, ou apenas porque preferia assim.

Moarã permaneceu imóvel. A engenheira se agachou, retirou da mochila um pequeno scanner de mão e começou a passar o feixe sobre amostras de solo que havia armazenado no dia anterior. O som do scanner era quase imperceptível, mas constante.

– zzzt.

Moarã pigarreou levemente. Naiovi continuou, como se aquilo fizesse parte do ambiente. A soldada descruzou os braços, apoiou uma das mãos na lateral da porta, como quem não tinha intenção de sair, mas também sem parecer disposta a ficar ali por muito tempo. Quando Naiovi esbarrou acidentalmente em uma das vasilhas e girou sobre si mesma, Moarã deu um passo à frente, num reflexo. Não houve queda, apenas o ruído seco do metal sobre madeira.

As duas se entreolharam por um segundo, como se o ar se tornasse mais denso entre elas. Naiovi foi a primeira a desviar o olhar, apertando os lábios em silêncio.

De repente, do lado de fora, ouviu-se um burburinho abafado e uma voz conhecida:

– Oi? É aqui?

A porta rangeu e entrou Ethel, equilibrando uma tigela de barro em cada mão, com um pano grosso sobre os antebraços. O cheiro de milho tostado misturado a raízes e caldo de folha seca invadiu o ambiente. Ela sorriu, como quem tentava parecer natural.

– Trouxe o mesmo que vou comer. Achei justo. A gente vai trabalhar juntas, né?

Naiovi ergueu uma sobrancelha. Ethel olhou de relance para Moarã, que continuava imóvel junto à porta. O clima parecia pesado demais para ser apenas uma visita casual.

Com um meio sorriso, Ethel comentou:

– Uau. Achei que vinha trazer comida... mas parece que interrompi alguma coisa.

Naiovi ergueu os olhos, sem sorrir.

– Interrompeu sim. Mas trouxe comida, então tem crédito.

Moarã não respondeu. Apenas voltou a encostar-se à parede com o mesmo silêncio firme de antes. Naiovi pegou uma das tigelas e examinou o conteúdo com cuidado clínico. Depois assentiu:

– Obrigada. Reconheço o esforço de adaptação.

– Não é esforço – disse Ethel, sentando-se num canto. – É só... gentileza mesmo.

– Gentileza é uma variável cultural. Em Kohr, às vezes ela mascara tentativa de influência.

Ethel arregalou os olhos, ofendida, mas não surpresa, e colocou as mãos na cintura:

– Uau. E em Valeã, às vezes, as pessoas só oferecem comida.

Silêncio.

Moarã inspirou pelo nariz, como quem segurava um comentário, mas não completamente.

Ethel lançou um olhar irritado para ela:

– Vai rir ou vai dizer alguma coisa?

Moarã levantou uma sobrancelha, quase imperceptível.

– Eu tô aqui só supervisionando. Se quiserem brigar com as palavras, peçam permissão primeiro. Pode ser que isso também precise de autorização.

O clima oscilou entre tenso e cômico por alguns instantes. Ethel, tentando desanuviar o ambiente, cutucou:

– E essa presença toda aí? – indicou Moarã com um gesto do queixo. – Guarda-costas, ou você está sendo… auditada?

Moarã a olhou de lado. Naiovi respondeu com calma, pousando a tigela:

– Vigília. Acompanhamento preventivo. Protocolar, imagino.

– Ah. – Ethel assentiu lentamente, semicerrando os olhos. – Então a sombra não é só sua. É minha também.

Naiovi ajeitou-se e se virou para Moarã, sua voz voltando a ser formal:

– Preciso acessar uma área úmida nos limites da trilha norte. Há indícios de que a água ali sofre alteração física antes do fluxo principal. Pode indicar algum tipo de filtragem... ou interferência.

Moarã a encarou, sem demonstrar surpresa.

– Trilha norte? Aquela região é área proibida. Só entra acompanhado e com aprovação de alguma liderança.

Naiovi respirou fundo, encarando-a:

– Então preciso da autorização. E da sua companhia.

Moarã demorou antes de responder:

– É. Parece que vai ser um dia longo.

Estava prestes a sair quando completou, sem emoção:

– Paz ao que te habita.

Naiovi respondeu, mais automática do que sincera:

– E força ao que te move.

A porta se fechou com um leve estalo. O som da madeira voltou a ser apenas madeira. O silêncio se instalou por alguns segundos. Naiovi expirou devagar e, sem que Ethel percebesse, anotou em seu caderno pessoal:

Moarã: Acompanhará tudo. Vigília de fronteira. Disciplinada. Provavelmente hostil. Evitar confrontos diretos por ora.

Pensou. Riscou a palavra “hostil” e escreveu no lugar:

Cautelosa. 

Naiovi fechou o caderno com cuidado, como quem sela um pensamento perigoso. Só então ergueu os olhos para Ethel, que a observava com a testa franzida, como se tentasse ler nas entrelinhas do silêncio.

– Você vai comigo, Ethel? – perguntou Naiovi com a voz calma, mas o olhar tão fixo que parecia atravessar a sala.

Ethel piscou, hesitando, depois inflou o peito, inflamada pela curiosidade e pelo desafio que Naiovi despertava.

– Vou. Alguém tem que impedir vocês duas de se matarem – disse, bufando. – E também quero ver essa tal de água “suspeita”. Se for só lodo, vou esfregar na sua cara, diplomata.

Um canto da boca de Naiovi se curvou num quase sorriso. Recolheu os equipamentos, guardou-os em uma mochila compacta e ajustou o colar com o selo de Kohr sobre o macacão.

Ethel ainda estava sentada, uma mão apoiada na tigela já morna, a outra tamborilando no joelho, como se ponderasse se ainda era bem-vinda ali. Naiovi não a olhou de imediato; terminou uma última anotação, ajustou a tampa de um frasco com exatidão quase ritual. O silêncio que se seguiu não era frio, mas tampouco confortável. Ethel pigarreou.

– Ela sempre é assim ou só quando tem forasteiros por perto? – Naiovi perguntou, sem se desviar de suas tarefas.

– Moarã? Suponho que seja treinada para não ser muito. Nem de menos, nem de mais. Equilíbrio funcional. 

– Bonito jeito de dizer que ela é uma muralha com pernas. – Naiovi soltou um riso curto, quase cínico, e voltou-se para Ethel, como se estivesse avaliando uma peça experimental nova. Falou com calma:

– E você, Ethel. Costuma entrar nos lugares assim? Sem bater?

– Costumo entrar onde me convidam. E onde vejo que a comida pode evitar o pior. Talvez tenha salvado a vida de Moarã agorinha. Seu olhar estava apedrejando ela. Não se cutuca quem tá com fome.

Naiovi inclinou levemente a cabeça.

– Você chegou rápido. Antes do segundo chamado.

– Ah, desculpa. Tinha fila? – ironizou Ethel, erguendo uma sobrancelha.

Naiovi não reagiu. Apenas continuou:

– Comida quente, tempo preciso… Você tem faro para boas oportunidades.

Ethel sorriu, meio de lado.

 – Ou só fome.

Naiovi manteve o olhar no aparelho, sem alterar o tom:

– Claro. As duas coisas não se excluem.

Ethel se aproximou, abaixando o tom, como quem confidencia algo:

– Então… isso é um obrigado?

– Ainda estou decidindo do que se trata.

– Uau – Ethel arqueou as sobrancelhas com fingida surpresa. – Normalmente demora mais pra chegarem nessa fase. – respondeu Ethel, erguendo os ombros com falsa modéstia.

– Que fase?

– A da negação charmosa.

Naiovi respirou fundo, sem desviar os olhos. Ethel sorriu, satisfeita, e completou:

– Tudo bem. Pode demorar. Eu sou paciente. E já trouxe a parte mais importante – disse, dando dois toques na tigela – Tô indo pra caixona ligar os aparelhos. Vou te esperar e mandar avisar Moarã que que a gente tá indo pra lá. Até logo, princesa!

A resposta veio rápida, antes mesmo que a porta se fechasse:

– Eu não sou princesa. Kohr não é uma monarquia.

Ethel apenas riu baixo e puxou a porta, deixando a madeira ranger e uma fresta semiaberta atrás de si.

Sozinha outra vez, Naiovi permaneceu de pé com os olhos fixos na tigela ainda morna sobre a mesa. O vapor tênue que escapava parecia medir o tempo. A madeira, o barro, o silêncio. 

Essas pessoas… Não respondiam como os outros. Não reagiam aos mesmos códigos. Nenhuma deferência automática, nenhuma previsibilidade. Não eram como os diplomatas do sul, nem como os engenheiros de cúpula acostumados à troca calculada. Os de Valeã falavam pouco, mas riam por dentro. Jogavam outro jogo – e ela não tinha as peças certas. Sentia-se fora de compasso, observada. E isso a incomodava mais do que admitiria.

Abriu o caderno, anotando em traços mais tensos que o habitual:

Estratégia inadequada. Rever abordagem.

Leu. Pensou em riscar. Não riscou. Pensou em acrescentar. Parou. A ponta da caneta repousou no papel, mas recuou. Nem tudo precisava ser registrado.

Deixou os dedos repousarem sobre o caderno, lembrando as luzes da noite anterior, o cheiro amadeirado da festa, as danças.  Lembrou de tê-las visto juntas: Moarã e Ethel.  A primeira como sempre – firme, olhos em tudo, mas arrumada e descontraída. A segunda rindo alto de algo que ninguém mais parecia entender.

Lembrava também de ter encarado Moarã por um instante. Longo demais para ser casual, mas breve demais para ser confronto. A muralha devolveu o olhar. Mas não o sustentou, desviou. E dançou. 

E a outra. A que viu de relance, entre um gole e outro… Ethel. Era outra questão. Uma bioquímica excelente, com memória precisa e formulações ousadas – e nenhuma disciplina. Nada de hierarquia, nada de contenção. Uma piromaníaca social. Perigosa. Charmosa. Uma distração. Ou uma aliada, se souber como virar a chave. Impossível prever suas reações. Oscilava entre o improviso e a precisão científica, como se ambos fossem partes do mesmo jogo. Agia com familiaridade demais. Falava com desrespeito suficiente para ser lida como insolente. E ainda assim... parecia ser escutada.

Naiovi apertou os lábios. Ainda não sabia o que havia ali. Mas havia algo.

Pegou o caderno de novo. Anotou:

Valeã opera por outras linguagens. Humor, ritmo, gesto. Contato indireto parece ser preferível.

Fechou o caderno, ajustou a tigela vazia milimetricamente ao centro da mesa – gesto automático, inútil, mas reconfortante que servia para lembrar a si mesma que ainda havia ordem em algum lugar. E saiu, deixando o ambiente como se quisesse que parecesse intocado.

Mas não estava.


*****


O trio deixou o vilarejo logo após o almoço, cruzando as ruas em silêncio. Valeã se abria em suas múltiplas camadas. O povoado era simples, mas exalava riqueza.As casas de madeira exibiam tetos cobertos de musgo e raízes pendentes; crianças corriam entre varais de panos tingidos; uma senhora idosa afinava um instrumento de cordas com a calma de quem costura o próprio tempo. O ar carregava um cheiro agridoce de fermento misturado à fumaça suave de ervas queimadas.

Naiovi caminhava devagar, absorvendo tudo com uma lentidão calculada. Seus olhos percorriam os talismãs de sementes pendendo nas portas, os tecidos que dançavam ao vento, os sons de vozes sobrepondo-se ao canto agudo de pássaros escondidos nas copas.

Foi então que avistou um grupo de crianças sentadas em semicírculo no chão, sob a copa generosa de uma árvore de tronco retorcido. Elas variavam em tamanho e idade – dos que mal paravam quietos aos que já quase alcançavam a altura dos adultos. No centro, um homem de cabelos curtos e bigode prateado falava baixo, sorrindo contido. Ora desenhava símbolos no chão com os dedos, ora narrava histórias apenas com a voz.

Não havia voz mandando silêncio. Mesmo assim, a atenção pairava: olhos fixos, uns fascinados, outros semicerrados, mas todos ligados. Uma menina brincava com folhas sem perder o enredo; um menino cochichava e ria, logo silenciado por um olhar sério, não do tutor, mas de outra criança mais velha. Naiovi parou, surpresa. Não havia autoridade rígida – havia cuidado espalhado. Já lera sobre isso, mas achava impossível fora dos livros. Achava uma ideologia linda, porém fora da realidade.


Moarã seguiu andando, mas Ethel parou por um instante e olhou com um meio sorriso.

– Eles tão aprendendo sobre os ciclos do chão. Como a terra volta a ser gente e gente volta a ser terra. – explicou, sem ser perguntada.

– Não têm cadernos? Nem livros?

– Têm memória. E têm cada um ao outro. Aqui ninguém cresce sozinho. Criança é de todos.

Naiovi observou por mais um instante. Não havia hierarquia rígida, nem filas, nem uniformes. E, ainda assim – ou talvez por isso – tudo parecia profundamente ordenado. Orgânico. Seguiram adiante, mas as palavras do velho ainda pareciam vibrar no fundo da mente de Naiovi, mesmo sem que ela tivesse entendido o idioma direito.

Naiovi andava com passos contidos, o estojo preso ao peito, atenta, como se quisesse guardar tudo. Parou diante de uma estrutura com colunas talhadas. Símbolos que não reconhecia. Perguntou:

– Esse prédio... é algum tipo de templo?

Moarã olhou sem parar de andar.

– É o lugar das decisões. Conselho, encontros, cerimônias.

– E os símbolos?

Ethel deu uma risada baixa.

– Você quer o dicionário ou a versão pra diplomatas?

– A versão que me contemple.

– Hm. Então... esse aqui é o símbolo de acolhimento. Aquele ali é de escuta profunda. E o em forma de espiral... de renúncia.

– Renúncia ao quê?

– Ao que te serve apenas – disse Moarã, como quem repete um provérbio velho.

Naiovi ficou em silêncio, e seguiu com elas. Saindo do povoado, a trilha se estreitava ao norte. Não era estrada, era caminho. Os contornos da mata pareciam esculpidos, mas sem qualquer intervenção visível. Sombras dançavam nas folhas grossas. A luz do sol filtrava em feixes quase líquidos.

– Onde vocês cultivam os alimentos? Não vi nenhum campo de agricultura e nem linhas de produção. – perguntou Naiovi, franzindo a testa

Moarã parou, abismada com a pergunta. Olhou para ela, depois ao redor.

– Tudo isso aqui é cultivo.

Ethel esticou o pescoço atrás de Moarã, com um sorriso torto:

– Você tá zoando, né? – perguntou a Naiovi. Mas logo viu o rosto dela: sério. Atento.

– Não. Só estou perguntando o que não conheço.

Moarã apontou para um arbusto de folhas largas.

– Cacau. E ali, entre as árvores: maracujá e caju. Mais adiante, milho. Nas clareiras, tomate, couve, abóbora rasteira. Tudo cresce junto.

Naiovi parou, observando o caminho em volta. A trilha se abria entre árvores densas, mas com pequenos clareamentos onde a luz escorria entre as folhas. E ali estavam: pés de cacau carregados, misturados com frutíferas de várias espécies. Tomates discretos entre folhagens largas, bananeiras, couve enroscada em meio aos arbustos, pés de caju, genipapo, milhos de colorações intensas. Estava tudo ali, em harmonia, completamente espalhado, indistinto do resto da floresta.

– Mas... com os animais aqui? – perguntou Naiovi, apontando para um grupo de araras barulhentas pousadas numa árvore próxima, bicando uma fruta madura. – Eles não... roubam? Eles não atrapalham a produção?

Moarã franziu levemente a testa, sem entender de imediato. Mas foi Ethel quem respondeu primeiro.

– Roubar? – Ela soltou um riso breve, meio engasgado. – Eles comem. Como a gente. A diferença é que não guardam, não estocam e nem vendem. 

– Eles ajudam. – completou Moarã, com tom sereno. – Polinizam, fertilizam. Dispersam sementes. Espantam as pragas e avisam quando o Sopra-Sangue ou algum intruso vem vindo.

Nesse momento, um grupo de pequenos macacos passou correndo por uma copa, jogando cascas de frutas no chão. Pequenos pássaros pulavam entre os ramos, e o zumbido constante de insetos acompanhava o ritmo da caminhada.

– Sopra-Sangue? – repetiu Naiovi, o olhar afiado.

Moarã respondeu sem hesitar:

– A nuvem quente, vermelha. Que queima a pele e racha o pulmão.

Naiovi sentiu o nome ricochetear dentro dela. Sopra-Sangue. Não era apenas poético. Era exato. Nomeava o que a tecnologia de Kohr tentava conter sem jamais compreender.

– Ah, o Red Drift. Vocês... vivem perto disso?

– Vivemos com isso. – Moarã pisou num tronco caído e seguiu como se a frase explicasse tudo.

O caminho subia e as copas se tornavam mais altas, o chão mais úmido, e pequenos sinais de água apareciam entre pedras. 

– Vocês anotam as espécies? Catalogam?

– A gente conhece pelo cheiro e pela cor – disse Ethel, erguendo um punhado de terra úmida entre os dedos – E, quando precisa de número, eu anoto. – Guardou um pouco da terra em um frasquinho lacrado.

– Sem satélites, sem mapeamento, sensores? – Naiovi perguntou, mais para si do que para as outras.

– E sem distração – completou Moarã, secamente.

Naiovi assentiu devagar. Não estava convencida – estava encantada.

O som da água se tornou mais nítido. Adiante, a trilha terminava numa clareira viva. Uma fina nascente escorria entre pedras cobertas de musgo branco. Ao redor, árvores de raízes largas formavam um círculo natural. Era um lugar sagrado. Dava para sentir isso no ar – mesmo quem nunca acreditou em nada, sentiria.

Ethel jogou a mochila no chão com cuidado. Moarã se ajoelhou, tocando a terra, pedindo licença. Naiovi não disse nada. Apenas se aproximou com cuidado, como quem entra num lugar onde não se deve falar alto. O trabalho começaria. Mas primeiro, havia o espanto.

A água corria fina entre as pedras. Ethel já estava ajoelhada, tirando pequenos frascos de dentro da mochila. Abriu um estojo com tampas coloridas e organizou ferramentas com gestos precisos. O sol filtrado pelas copas se movia devagar, marcando o tempo com sombras sobre sua pele bronzeada.

Moarã ficou de pé, ainda silenciosa, os olhos varrendo a clareira como quem reconhece uma velha amiga. Tocou uma das árvores do círculo com a palma aberta. Esperou. Depois assentiu para si mesma, como se houvesse recebido uma resposta que só ela podia escutar.

Naiovi se abaixou perto da nascente. Olhava em volta com um cuidado que beirava o reverente – não por fé, mas por atenção absoluta. Abriu o compartimento de seu estojo, retirando um pequeno cilindro de metal e um visor estreito. Inseriu o tubo na água devagar, com cuidado para não tocá-la. O visor piscou em silêncio, enquanto seus olhos escaneavam o entorno.

– Essa nascente que alimenta o povoado? – perguntou, sem erguer a voz.

Moarã respondeu sem olhar:

– Alimenta. Protege. E fala também.

– Fala? – Naiovi ergueu os olhos.

Moarã apenas indicou a floresta com o queixo:

– Quando a água muda de cor, de gosto ou de cheiro, a mata inteira muda com ela.

Ethel interrompeu, mexendo em uma das amostras:

– Um dia, uma planta que só dava no sul brotou aqui. No mesmo ciclo, a nascente ficou mais fria. A gente soube que o vento tinha virado antes das aves mudarem a rota.

Naiovi franziu o cenho, mas não duvidava. Anotou, discretamente.

– Vocês não precisam medir isso com precisão? Comparar com dados passados?

– Precisão – repetiu Moarã, com a voz baixa – É diferente de controle.

O silêncio se instalou. Naiovi guardou o cilindro, mas permaneceu ajoelhada. As mãos repousavam sobre os joelhos, a coluna reta. Ia falar – talvez perguntar algo técnico, talvez repetir uma fórmula de Kohr –, mas não disse nada. Era como se, pela primeira vez, o gesto de calar fosse mais informativo que qualquer cálculo. 

Ficou alguns instantes assim, apenas contemplando aquele pequeno pedaço de paraíso, sentindo o vento acariciar o seu rosto com um ar puro que há tempos não sentia. Ficou ali, apenas. Era como se o Red Drift, por algum motivo, jamais tivesse passado por ali. Como se aquele recorte do mundo resistisse ao tempo e à ferrugem. Quebrou o silêncio, observando a água que saia cristalina, perguntando quase em sussurro: 

– A água é potável?

Moarã não respondeu de imediato. Observou a superfície que escorria límpida entre as pedras, depois voltou os olhos para Naiovi.

– Depende do que a nascente está dizendo, mas é melhor não arriscar. A gente prefere purificar.

Fez-se uma pausa. Moarã acrescentou, com um olhar enviesado:

– Você chegou a beber água pura desde que pisou aqui?

Naiovi pensou por um instante. Chá escuro no conselho e cerveja na festa. Sucos, infusões, caldos. Hidratação havia, mas água, propriamente dita?

– Não. – admitiu, surpresa com a própria resposta.

– Damos um jeito. – comentou Moarã.

Naiovi inclinou o corpo levemente para frente. Seus olhos focaram no musgo que contornava as pedras. Um branco quase translúcido, com filamentos que pareciam vibrar suavemente ao toque do ar. Não lembrava de já ter visto algo parecido. Era como se aquele organismo estivesse entre um vegetal e uma pele viva.

Ela se moveu para mais perto, retirando um pequeno tubo de coleta. Quando esticou o braço, com precisão treinada, a voz de Moarã atravessou o espaço com firmeza:

– Tome cuidado.

Naiovi congelou no gesto.

– Não perturbe muito. Ele... sente.

A engenheira virou levemente a cabeça. Moarã agora estava em pé, seus ombros  ligeiramente erguidos, como se um instinto de defesa tivesse sido acionado, como se o ato de recolher esse musgo fosse mais grave do que Naiovi supunha. 

Com respeito, Naiovi recolheu-se alguns centímetros e moveu-se até uma borda lateral, onde um pequeno tufo se separava do conjunto principal. Recolheu uma amostra mínima, com um instrumento de ponta arredondada. Nada invasivo.

– Curioso... – murmurou.

Moarã não respondeu, mas sua expressão relaxou apenas o suficiente para que ela notasse o gesto. Ethel se levantou e se espreguiçou, como se espantasse a rigidez do corpo.

– Esse musgo aí já salvou gente envenenada. Já fechou corte fundo e acalmou febre da febre-salgada. Só cresce quando a água tá viva de verdade. Às vezes desaparece sem aviso. Quando ele volta, a gente sabe que pode confiar.

– Bioluminescência fraca... talvez atividade fúngica simbiótica – murmurou Naiovi, mais para si do que para as outras. – Talvez eu consiga identificar a matriz. Comparar com bancos genéticos. Ainda que seja uma variante, pode haver algum vestígio de origem. Se esse musgo é tão importante assim, por que nunca tentaram cultivá-lo?

Moarã franziu o cenho, como se a pergunta fosse tão estranha quanto inevitável.

– Cultivar? – repetiu, mais como quem mastiga a ideia do que como quem busca confirmação – Já tentaram. Algumas vezes.

Ethel assentiu com a cabeça, o olhar perdido por um segundo, e completou:

– Tentaram, sim. Num tempo em que tudo precisava caber numa caixa. Colheram, levaram, secaram, trituraram... – deu de ombros, com um meio sorriso sem graça – nunca cresceu em lugar nenhum.

– Só volta quando quer – completou Moarã – e só onde a nascente permite.

Naiovi manteve o olhar fixo no tubo com a amostra. Não havia ironia em sua expressão, mas também não havia rendição. Só pensamento.

– E mesmo assim vocês continuam usando? Mesmo sem saber quando ou por quê ele retorna?

– A gente escuta – respondeu Moarã – Quando ele aparece, é porque alguma coisa mudou. É sinal. Remédio, aviso ou ambos, mas sempre um alívio, um bom presságio. Sorte sua vir aqui justamente quando o musgo está vivo e forte.

Ethel se abaixou de novo, agora com as mãos cruzadas sobre os joelhos.

– Se você tentar cultivar, talvez ele morra no processo.

– Ou talvez eu descubra uma forma de preservá-lo quando ele desaparecer de novo – disse Naiovi, com firmeza.

Moarã virou-se, caminhando devagar até a margem da clareira. Parou, como se pensasse se valia a pena continuar o diálogo.

– Preservar não é o mesmo que aprisionar, Naiovi de Kohr.

O nome completo, dito ali, com aquele tom neutro, soou quase como uma oferenda e um alerta ao mesmo tempo. Silêncio.

Ethel pigarreou levemente, tentando dissipar a densidade do ar.

– Bom... vocês duas ainda não se mataram. Isso é um avanço. Que tal beber alguma coisa que não seja água sagrada ou cálculo estatístico?

E, sem esperar resposta, puxou do cinturão um cantil de metal escuro, sacudiu com um gesto breve e destampou. O cheiro era levemente ácido, fresco, quase herbal. Estendeu na direção das duas.

Naiovi franziu o nariz antes mesmo de aceitar.

– Álcool em campo? – arqueou as sobrancelhas. – Isso não compromete seus sentidos?

Ethel riu.

– Isso aqui mal tem álcool. É fermentação leve. Dois dias no máximo. – Balançou o cantil – A fermentação ajuda a purificar a água e ainda engana o corpo com um gosto mais simpático. Melhor do que arriscar numa diarreia.

Moarã pegou o cantil, bebeu um gole curto e o devolveu.

– Em Valeã, banho com chá ou com cerveja é mais seguro do que com água pura.

– Às vezes é a pureza que envenena – completou Ethel.

Naiovi ainda hesitava, mas não comentou. Em vez disso, levou a mão ao bolso interno da camiseta. Desenrolou um pequeno embrulho de tecido escuro, retirnando um objeto fino e bem dobrado: um tapa-olho de material sintético, com uma micro costura dourada e uma borda acolchoada.

Colocou-o sobre o olho direito, ajustando a tira por trás da cabeça. Os outros dois pares de olhos pousaram sobre ela imediatamente.

– Ué. – disse Ethel, semicerrando os olhos – Vai dormir agora?

Moarã inclinou a cabeça, desconfiada.

– Costume de Kohr?

– Vista cansada. – respondeu Naiovi, sem desviar os olhos do visor. 

Ethel trocou um olhar com Moarã, que deu de ombros com uma sobrancelha levemente arqueada.

– Vai ver a cabeça dela precisa de sombra pra pensar.

– Ou ela tá querendo parecer uma caçadora de lendas. Falta só a capa preta.

Naiovi não reagiu – já inclinada sobre as amostras, focada, mal ouviu os comentários. Seus dedos moviam-se com fluidez, o caderno sobre as pernas aberto, o visor lateral encaixado. Com o olho esquerdo, observava o comportamento do musgo ainda úmido e anotava rápido, em silêncio, aproveitando o frescor da coleta. O musgo parecia vibrar mais intensamente sob a luz filtrada pelas árvores – como se o contato com o ar o animasse. Naiovi encostou levemente uma das lâminas de análise sobre a borda externa da amostra e observou a reação.

– Está vivo. Muito mais do que eu esperava. – Falou para si mesma. – Não é só musgo... é um sistema. Uma fusão. Talvez líquen, talvez algo que ainda não foi isolado.

Moarã observava de longe. Seus olhos não buscavam entender a linguagem técnica, mas escutava o modo como Naiovi falava. Havia algo ali, talvez um fascínio. Um outro tipo de respeito.

Ethel, sentada novamente sobre uma pedra, girava o cantil entre as mãos.

– Se conseguir fazer esse musgo crescer numa garrafa, talvez eu comece a te admirar, Engenheira da Seca.

– Não é pra crescer numa garrafa. – respondeu Naiovi, sem levantar os olhos.

– Então é pra quê?

– Para não desaparecer.

Silêncio. O som da água continuava correndo fina entre as pedras.

As anotações de Naiovi se alongaram por mais algum tempo, interrompidas apenas por respirações mais fundas e um murmúrio ocasional quando os dados surpreendiam. Ethel cochilou por breves minutos com o rosto voltado pro céu, entrecortados pelas perguntas que Naiovi ocasionalmente fazia, sem tirar os olhos das anotações. Moarã se manteve em silêncio, já acostumada com aquele tipo de espera. Já conheciam aquele lugar como a palma de suas mãos.

A luz começou a cair com suavidade, e a floresta mudou de tom – do verde saturado para uma penumbra dourada, pontuada por pequenos brilhos tênues, como se alguns líquens, sementes ou insetos tivessem decidido brilhar no crepúsculo. Naiovi continuava com o caderno apoiado nos joelhos, com os dedos manchados de terra e grafite, anotando com precisão quase obsessiva de quem não queria perder nenhum detalhe. A luz fraca do entardecer exigia ainda mais concentração, mas ela parecia não se dar conta da passagem do tempo – o olho esquerdo, exposto, se movia com velocidade, alternando entre as páginas e as amostras, enquanto o direito seguia coberto pelo tecido escuro do tapa-olho. 

De repente, parou. Ergueu a cabeça. Um dos pontos de luz piscou bem perto do solo, quase ao alcance da mão. Não era inseto. Não parecia líquen. Era... diferente. Não sentia medo – sabia que era seguro. Estreitou o olho tentando decifrar a fonte daquele brilho. Mas, quanto mais observava, menos certezas tinha. Havia algo ali que escapava às classificações. 

Tirou o tapa-olho com um gesto lento, como se, para entender aquele lugar, precisasse olhar com tudo o que tinha. Queria enxergar integralmente.  Ela não apenas se sentiu – mas soube que era – estrangeira. Novamente, se sentia uma amadora naquele lugar. Todo o conhecimento acumulado em décadas de estudo pareceu, de súbito, inadequado. Incompleto. Quase nada. 

De fato, Kohr era uma terra distante, árida – sua cidade, majoritariamente subterrânea, protegida da Red Drift, onde tudo precisava ser previsto e controlado. E onde não havia registros consistentes sobre Valeã. Talvez, pensou, seu povo tenha subestimado demais, reduzido demais, simplificado demais. Colocado Valeã num quadro de exotismo e utilidade, sem jamais enxergar sua complexidade real. Acreditavam que era um lugar à parte – talvez atrasado ou folclórico – mas sempre distante. E não apenas geograficamente. Talvez, sob o verniz da diplomacia, Kohr jamais tenha considerado Valeã como deveria, mas como um reservatório de recursos e tradições excêntricas.

Moarã, imóvel até então, percebeu o peso daquele momento. A rigidez súbita no corpo de Naiovi. A dúvida que transbordava, mesmo sob a contenção meticulosa da postura. Os olhos focados, arregalados, como se visse algo sagrado pela primeira vez. E falou baixo, como quem não queria espantar o que nascia ali:

– É agora que tudo acende.

A frase pairou no ar como um sussurro ancestral, familiar à floresta. 

– Sinal de que devemos partir. – Completou.

O caminho de volta foi quase silencioso. Apenas o som dos passos, da água e dos pequenos estalos do mato acompanhavam o grupo. Quando a muralha viva do povoado começou a surgir ao longe, a última luz do dia tingia os contornos do monte com um violeta profundo.


*****


A casa temporária estava mais escura do que Naiovi lembrava. Talvez fosse o cansaço – ou o corpo que ainda oscilava entre o terreno instável da floresta e o chão firme da vila. Ao entrar, largou a mochila no chão com mais força do que pretendia. O som abafado ecoou no espaço modesto. Estava pronta para se render ao silêncio.

O vapor ainda morno do banho subia de sua pele. O líquido usado – uma infusão escura e perfumada, com notas de gengibre queimado e raiz terrosa – deixava uma leve ardência nos ombros, como se a pele tivesse sido despertada. Vestia roupas limpas, finas e claras, retiradas de uma das bolsas lacradas de Kohr. Tecidos respiráveis, com costuras precisas e uma leveza funcional que contrastava com a rusticidade da casa. A pele dos braços e do pescoço carregavam traços sutis da floresta: um arranhão, uma picada de inseto, o perfume ácido persistente de alguma seiva.

Os dados estavam todos em repouso – analisadores rodando, incubadoras em progresso. Já havia separado as amostras, finalizado os protocolos, feito as anotações. Agora, não havia nada a fazer a não ser esperar. E dormir. Dormir profundamente.

Então vieram as batidas. Três, firmes, no padrão firme dos guardas de Valeã.

Naiovi franziu o cenho. Foi até a porta com um suspiro e a abriu devagar. Moarã estava ali, imóvel como um poste, envolta em um manto escuro que a camuflava quase completamente na noite.

–  Devo te acompanhar de perto – disse, sem preâmbulo.

– Mais perto?! – Naiovi piscou, tentando recuperar o raciocínio – Isso é uma metáfora para alguma coisa?

– Não. – Moarã desviou os olhos por um segundo, depois voltou a encará-la – Recebi instruções para te realocar. Junte os seus pertences pessoais, amanhã mais gente vem pra ajudar a levar o restante das coisas.

Houve um silêncio. A informação ficou no ar como uma partícula radioativa – pequena, mas impossível de ignorar.

– Você chama isso de diplomacia? Ou cárcere leve?

– Chamo de vigília – respondeu Moarã. 

Naiovi arqueou uma sobrancelha. Sentiu o impulso de protestar, de exigir explicações, mas algo na postura de Moarã a impediu. Havia uma rigidez ali que não era hostilidade. Nem controle. Era... dever? Era ridículo pensar isso. Mas, de forma desconcertante, ela se sentia segura perto dela. Vigiada, sim – como se cada gesto fosse pesado e julgado por olhos atentos. Mas também segurança. Cuidado. Havia precisão demais em Moarã para que fosse só vigilância. Bufou.

– Não costumo dividir moradia. – Naiovi murmurou, cruzando os braços.

– E eu não costumo ter que cuidar de diplomatas dentro da vila. – Moarã deu de ombros, e por um instante, quase sorriu. Quase.

Ouvir Moarã dizer “cuidar” gerou um leve frio na espinha de Naiovi – parecia que Moarã podia ler seus pensamentos. Mas o sentido que esse “cuidar” estava sendo falado… Naiovi suspirou, cansada demais para continuar o embate.

– Está bem. Mas espero que pelo menos nesse novo alojamento tenha uma cadeira que não entorte quando eu me sento.

Caminharam por alguns minutos até o novo local. Ficava no meio do caminho entre a entrada principal da cidade e o centro. A estrutura era simples, mas nitidamente mais ampla e estável que o aposento anterior. Tinha paredes de taipa reforçada, cobertura com folhas entrelaçadas alternadas com telhado antigo e um pequeno pátio com vasos de ervas e uma árvore no centro. Moarã abriu a porta e o interior guardava o básico, mas com organização – ou uma bagunça bem pensada.

– A cozinha é compartilhada. Lenha já cortada fica aqui. Banheiro lá fora. Teu quarto é o da mesa.

Naiovi passou os olhos pelo ambiente. Era rústico, mas havia um aconchego. Na cozinha, Moarã já havia acendido o forno. O cheiro de lenha misturava-se a algo levemente tostado, talvez mandioca. A casa era simples, mas bem cuidada: prateleiras com utensílios de cerâmica, cordões de sementes secando acima da janela, bancos de madeira encostados sob a mesa. Havia silêncio, exceto pelo som constante do fogo.

Naiovi ficou parada na entrada por um instante com o olhar percorrendo os detalhes, segurando sua mochila com uma mão. Era diferente do alojamento onde estava antes: ali havia marcas de permanência. O chão, ainda que limpo, tinha marcas de uso antigo. Os talheres de madeira estavam gastos nas pontas. Havia uma escultura minúscula feita de cipó no canto de uma prateleira que não parecia estar ali por acaso.

Franziu levemente o cenho.

– Que lugar é esse? – perguntou, não com desconfiança, mas com uma curiosidade genuína – Não parece uma casa de passagem.

Moarã empurrou mais lenha para dentro do forno com a ponta de um bastão curto. 

– Não é.

Naiovi se aproximou da bancada, passou os dedos por uma pequena fenda na madeira. Ali, alguma lâmina antiga havia deixado marcas repetidas no mesmo ponto – talvez alguém que cortasse sempre no mesmo ritmo, no mesmo ângulo.

– Mas foi feita pra receber gente de fora?

Moarã ergueu os olhos, como se a pergunta não fizesse muito sentido.

– Foi feita pra resistir – respondeu, após uma pausa – E depois disso, ficou para receber quem estiver dentro dela.

Naiovi assentiu devagar, sem entender completamente, mas sem vontade de forçar o sentido. Sentia-se estranhamente intrusa ali, como se houvesse entrado num diário escrito com gestos. Havia coisas que não pareciam para ela – não no sentido de proibidas, mas no de não terem sido pensadas para serem vistas. 

Sentou-se no banco mais próximo da mesa, onde a luz da lamparina era mais forte. Estável. Finalmente.

– Pelo menos a cadeira passa no teste – murmurou.

Moarã sorriu, de leve.

– Vai ter que se acostumar com outras provações mais difíceis por aqui.

– Isso é uma ameaça?

– É um aviso.

O fogo estalou.

No espaço entre uma frase e outra, os sons de Valeã preenchiam o fundo: passos distantes sobre folhas secas, uma voz feminina chamando por alguém, o estalo súbito de uma fruta caindo de uma árvore alta. Naiovi olhou mais uma vez ao redor, como se registrasse aquele espaço de forma mais profunda agora. Pensou em perguntar há quanto tempo aquela casa existia, mas algo no silêncio de Moarã a fez calar. Em vez disso, apenas disse:

– Se for pra ficar, preciso reorganizar o quarto. Instalar umas prateleiras. E uma superfície para reagentes.

– Já tem mesa.

– Preciso de mais que uma mesa.

– A casa aguenta.

Foi o mais próximo que tiveram de um acordo.

Moarã virou-se de volta ao forno. Naiovi, pela primeira vez desde que chegara a Valeã, recostou-se de verdade, sem o medo de cair para trás. O corpo ainda trazia o peso da trilha, das decisões, do exílio voluntário. Mas ali, por breves segundos, a rigidez pareceu ceder. 

– Onde é aqui? – ousou perguntar, depois de um longo silêncio.

– É onde eu vivo. – respondeu Moarã, pousando o bastão ao lado do forno com um gesto firme, como quem fecha um capítulo – E tem espaço...

– Espera – Naiovi inclinou-se um pouco à frente – Aqui é a sua casa?

Moarã soltou uma gargalhada seca, que não era zombaria, mas surpresa genuína diante da lógica que Naiovi aplicava.

– Minha? Como isso seria meu? – respondeu, ainda sorrindo, como se a pergunta fosse um eco de outro mundo – Eu vou morrer. Posso ir embora amanhã. Depois de mim, outros vão ocupar. Como se tem algo assim?

Havia ali uma filosofia inteira condensada na frase, e algo nela deslocou Naiovi por dentro. Engoliu em seco. Era uma nova perspectiva, outra linguagem – de pertencimento sem posse, de permanência sem fixação. Ficou parada por um instante com os dedos ainda pousados sobre a mesa.

Moarã caminhou em direção ao quarto, retirando o manto oficial da vigília que usava, descansando-o em um cabideiro. Foi quando Naiovi notou com mais nitidez as costas desenhadas pelas cicatrizes na vigilante. A regata simples que ela usava – de tecido cru, ajustado ao corpo pelo uso – deixava à mostra parte dos ombros e das costas, onde cicatrizes espessas atravessavam a pele em traços rituais. Eram simétricas, mas não perfeitamente. 

A luz da lamparina acentuava o relevo das escarificações, fazendo-as brilhar por instantes como se a pele contivesse suas próprias pedras preciosas. Naiovi, sem perceber, inclinou levemente a cabeça para ver melhor. Seu olhar deslizou por aquelas marcas com uma atenção que ela mesma não esperava. 

Quis entender os padrões. Quis saber onde começavam, onde terminavam. Quis estender a mão e sentir a textura com as pontas dos dedos. Não por impulso, ela se disse, mas por... interesse antropológico. Científico. Ela piscou e desviou o olhar. Não podia se distrair. Não ali. Não com Moarã. Mas havia algo nas marcas que chamava, como se tivessem sido feitas não apenas para marcar a pele. E ela sabia, com uma certeza incômoda, que as veria de novo. 

Saiu do transe e observou Moarã organizando alguns pedaços de madeira no canto do cômodo, liberando espaço.

– E você? Onde fica? – perguntou, agora de pé.

– No outro quarto. Com minhas armas.

Naiovi arqueou uma sobrancelha, meio rindo, e assentiu, como se aquilo fosse a resposta mais óbvia do mundo. E, de certo modo, era. Claro que Moarã dormia com suas armas. Era o tipo de pessoa que nascia com o instinto de vigília costurado à espinha. 

– Companhia reconfortante.

– São silenciosas. Não roncam.

– Justo. – Naiovi assentiu, recostando-se um pouco mais no banco. – Imagino que também não fazem perguntas demais.

Moarã empilhou as madeiras e, quando passou novamente perto da luz, as escarificações desenharam novos ângulos. Dessa vez, Naiovi manteve o olhar firme. Não desviou, não acompanhou com os olhos, não se deixou prender. Era como vencer uma queda de braço consigo mesma. Ainda assim, sentia a presença como quem sente calor mesmo depois que o fogo apaga. Já tinha visto essas cicatrizes antes – de longe, no festival – mas agora, ali em sua frente, pareciam saltar.

Ela cruzou os braços, como para conter algo.

– Vou precisar ajustar a ventilação no quarto. Os reagentes precisam de circulação estável.

– Faça como precisar. Só não mexa nas paredes do lado norte.

– Por quê?

– Costumam segurar as tempestades.

Naiovi ficou em silêncio por um instante. Havia respostas ali que não se diziam com palavras, então não entendia o que era. Respirou fundo, ergueu os olhos para o teto e disse, quase num tom de rendição:

– Vai ser interessante. Estar aqui.

Moarã terminou de empilhar as madeiras e encostou-se à parede por um instante, observando o fogo com o semblante calmo. O estalo das chamas preenchia o espaço entre as duas. Não sorriu, mas havia uma suavidade discreta quando respondeu, ainda olhando para o fogo:

– Tem seus dias.


*****


Foi o cheiro que veio primeiro. Naiovi ainda arrumava seus pertences no quarto quando o aroma, leve e tostado, escapou pela fresta da porta – doce, mas não muito familiar. Ao empurrá-la com o ombro, encontrou o cômodo aquecido pela presença de algo no forno. A luz suave da lamparina realçava o brilho do suor recente na testa de Moarã, que, inclinada, ajustava a lenha com a precisão de quem conhece o fogo.

A diplomata cruzou o limiar sem anunciar a entrada. A presença dela se fez notar apenas quando a madeira rangeu sob seu pé. Moarã não virou imediatamente, mas falou como se já soubesse.

– Está faminta? – a voz saía baixa, mas clara, com o timbre que parecia sempre conter algo por dizer.

Naiovi inspirou fundo. O cheiro vinha da mandioca sendo lentamente assada com ervas. Aquilo despertava uma fome súbita, quase infantil.

– Não sabia que cozinhava. – comentou, sentando-se no banco da mesa – Achei que só vigiava, andava em silêncio e dormia com armas.

Moarã virou-se devagar. Trazia uma pequena travessa feita de cerâmica artesanal, com pedaços de mandioca dourada salpicados com folhas secas e alguma pasta escura por cima – talvez feijão. Nada que Naiovi conseguisse decifrar por completo, mas o aroma era irresistível.

– E vigiar de estômago vazio te parece prudente? – retrucou, pousando a travessa no centro da mesa.

Naiovi arqueou uma sobrancelha, pegando um pedaço com os dedos, olhando atenta.

– É comida. Ficar olhando não melhora o sabor.

O primeiro pedaço surpreendeu. Estava quente, crocante por fora, macio por dentro, com um leve amargor que equilibrava o adocicado da mandioca. Por um instante, só se ouviu o som da mastigação lenta, o crepitar discreto do forno e o vento empurrando as folhas lá fora. Havia algo íntimo e deslocado naquele momento. Como se tivessem esbarrado, sem querer, numa espécie de paz provisória.

– Tem gosto de terra. – disse Naiovi, por fim, lambendo os dedos – Mas de um jeito bom.

– É feita de terra. Cresceu aqui perto. Tostada na casca. – Moarã olhou para a travessa, depois para Naiovi – Vocês em Kohr não comem o que vem da terra?

– Comemos. Às vezes. – Naiovi mordeu outro pedaço, pensativa – ...geralmente tem gosto amargo. Nossa comida vem toda de estufas subterrâneas e, dependendo, de laboratórios. O lado exterior é hostil.

Moarã observou-a por alguns segundos, sem responder. Depois, levantou-se para buscar suco. Serviu um copo para Naiovi, que o aceitou sem dizer nada. A diplomata bebeu devagar. O suco era fresco. Sentiu algo estranho – como se beber daquele suco e comer daquela mandioca, estivesse, de algum modo, estabelecendo um laço. Um gesto banal, mas carregado demais.

– Você cozinha isso sempre? – perguntou, num tom quase distraído.

Moarã se encostou à parede com o copo entre as mãos. A luz lateral da lamparina realçava as cicatrizes de seus ombros, que agora pareciam menos ameaçadoras e mais... presentes. Como árvores antigas.

– Quando posso. Quando volto inteira. Quando lembro.

– Então hoje você lembrou? – ela arriscou. 

Moarã não respondeu de imediato. Observou a chama oscilando dentro do forno, depois passou os olhos pela sala, como se procurasse alguma resposta ali, entre as sombras.

– Às vezes. Às vezes só sigo o gesto. A mão aprende primeiro que o pensamento.

– Memória muscular.

– Ahn?

– É o nome disso que você falou. A mão aprende primeiro que o pensamento, se chama memória muscular. Quando algo não é consciente, racional, mas que sabe fazer. Só não sabe que sabe, mas sabe.

O silêncio retornou, mas, dessa vez, confortável. Moarã parecia processar uma informação nova. Ou tentava. Às vezes Naiovi falava difícil.

Naiovi, ainda sentada, deixou-se inclinar para trás no banco, observando Moarã como quem tenta resolver um enigma. De novo. Sabia que não conseguiria. E, estranhamente, isso não a incomodava tanto quanto deveria.

– Obrigada. – disse, por fim, sincera – E você, não vai comer?

Moarã assentiu, sem formalidade.

– Já comi. Te cuida com o calor. Aqui fica sempre bem frio à noite.

Naiovi olhou para a janela, onde o reflexo do fogo projetava sombras dançantes.

– Eu sei.

Ela não sabia.

Mas aprenderia.


*****


O fogo no forno virara brasas. As sombras da sala, antes dançantes, agora se espalhavam como se quisessem ocupar todo o espaço. O silêncio era tão denso que se ouvia o estalar ocasional da madeira se rendendo ao frio.

Moarã deitava-se sobre uma esteira com couro macio, envolta em um cobertor grosso de pele grossa. Não dormia. O corpo permanecia imóvel, mas os olhos, abertos, seguiam algo invisível no teto. Um fio de vento entrou por uma fresta da parede, fazendo a lamparina oscilar levemente. Ela não a apagou. Queria luz. Pelo menos um pouco. O cansaço não bastava. O peso dos músculos dizia sono, mas a mente recusava. Havia algo no ar. Um desassossego antigo, que não vinha exatamente da presença de Naiovi, nem da missão, nem do dia longo – mas talvez de tudo isso junto. Misturado. Denso demais para nomear.

Fechou os olhos por instinto. Tentou se render.

Veio então um vulto.

Um campo queimado. O cheiro de carne de caça esquecida no fumeiro. Uma criança correndo entre galhos espessos. Uma fogueira que ardeu demais. Alguém gritando seu nome, ou o nome que teve antes – já não sabia distinguir. Voz de mulher. Ou de vento.

De repente, estava sentada, ofegante. Mãos no chão. Suor frio. Não sabia se havia dormido ou não.

A brasa ainda brilhava, teimosa. As paredes quietas. O som do vento voltava a soprar com mais força, agora do norte. A direção das tempestades. Moarã ficou ali, agachada, sentindo o chão sob os dedos como se quisesse confirmar que ainda estava acordada. E, talvez, que ainda estava ali. No quarto ao lado, silêncio absoluto. Moarã se levantou devagar, sem pressa. Bebeu um gole da bebida que ela mesma estava fermentando. Depois outro. Voltou a se deitar. Desta vez, sem lamparina.

A escuridão completa a envolveu. E nela, tentou encontrar algum descanso.

 

*********

Fim do capítulo


Comentar este capítulo:
[Faça o login para poder comentar]
  • Capítulo anterior
  • Próximo capítulo

Comentários para 2 - Renascidos do veneno:

Sem comentários

Informar violação das regras

Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:

Logo

Lettera é um projeto de Cristiane Schwinden

E-mail: contato@projetolettera.com.br

Todas as histórias deste site e os comentários dos leitores sao de inteira responsabilidade de seus autores.

Sua conta

  • Login
  • Esqueci a senha
  • Cadastre-se
  • Logout

Navegue

  • Home
  • Recentes
  • Finalizadas
  • Ranking
  • Autores
  • Membros
  • Promoções
  • Regras
  • Ajuda
  • Quem Somos
  • Como doar
  • Loja / Livros
  • Notícias
  • Fale Conosco
© Desenvolvido por Cristiane Schwinden - Porttal Web