Quarto-Minguante
Dia 1
O sol começava a raiar no horizonte, sinal de que a vigília de Moarã chegava ao fim. Estava exausta após turnos duplos – o Sopra-Sangue andava menos frequente nos últimos dias, o que significava forasteiros e piratas rondando com mais ousadia. Mesmo assim, só um grupo de passantes parou para água e comida, além de um vendedor de sucatas. Alguns possíveis encrenqueiros passaram longe, talvez cientes de que não fariam tremer os muros de madeira maciça de Valeã.
Moarã permanecia firme, atenta como uma coruja. Depois de mais de uma década na função, o que antes era desafiador tornara-se rotina. Passou anos praticando técnicas de combate, cura, confecção de artefatos e armaduras. Suas mãos calejadas carregavam sua história. Seu corpo esguio e definido equilibrava força e leveza, permitindo-lhe ser ágil sem perder a firmeza. Usava a armadura leve de fibras trançadas e couro escurecido pelo tempo, batizada com óleos protetores.
No horizonte, surgiu um grande veículo carregando um contêiner, avançando numa velocidade raramente vista, acompanhando a chegada do sol. Moarã reconheceu de imediato: eram os engomadinhos de Kohr, certamente tramando algo. A visita era esperada – pesquisadores de Valeã haviam sido convidados a Kohr há alguns ciclos, e agora era hora de Kohr conhecer Valeã. Não via muito sentido nessas trocas; Valeã havia se reerguido sozinha desde a grande guerra. Ainda assim, confiava na intuição dos anciãos.
O grande caminhão parou a cem metros do portão principal. Não precisava se aproximar mais – os estrangeiros sabiam: ninguém adentrava os muros de Valeã sem permissão. Moarã ajeitou seu arco nas costas e desceu da torre de vigia com a destreza de quem age sem precisar pensar.
Hoje, o mundo é muito diferente do que fora antes da última grande guerra. Animais, plantas, fungos, céu, rios, ar e terra: há os que resistiram sem nenhuma mudança, mas a maioria precisou de se adequar de alguma forma para sobreviver. A água pura, seja de rios ou da chuva, já não é mais potável – mas os Valeãnos há décadas se aprimoraram em técnicas de fermentação, infusão e compostos que neutralizavam sua toxicidade. Moarã se perguntava por que, então, fechar negócios com uma terra tão morta como Kohr. Apesar desses questionamentos, confiava na intuição dos anciãos.
Quando o contêiner metálico estacionou, o rangido ecoou como trovão seco pelas montanhas. A poeira avermelhada do chão subiu, formando um arco grotesco entre a terra viva e o ferro. O cheiro de cipó queimado da última defumação noturna ainda pairava no ar e, para Moarã, o cheiro dizia tudo: se havia passado gente, se havia sangue, se o vento trazia podridão ou limpeza. Agora, trazia metal.
Ela se aproximou do portão, abrindo-o com ajuda dos companheiros de vigília. O som do ranger era grave, como o ronco de um animal velho. Do outro lado, três figuras desceram. Dois deles trajavam roupas de corte limpo, tecidos escuros e botas engraxadas. A terceira chamou atenção imediatamente: menor, mais contida nos movimentos, cabelos raspados, sobretudo claro adaptado à poeira e à radiação. Seus olhos dourados avaliavam, frios e sem pressa, o novo ambiente que adentrava.
Moarã manteve a expressão impassível, mas sentiu. Um desconforto sutil, como quando um inseto pousa no pescoço e você não o vê, mas sabe que ele está lá. Aquela mulher a observava de volta.
– Sejam bem-vindos a Valeã – disse com voz firme, em postura quase militar, as mãos para trás, peito erguido, olhar irreverente.
A mulher deu um passo à frente. Os outros dois hesitaram, mas não a impediram. Parou diante do conselho, inclinando levemente o tronco.
– Viemos como foi acordado – disse. Sua voz era precisa, suave, mas sem rodeios. – Sou Naiovi Sareth de Kohr, Herdeira do Conselho Cinzento, Primeira da Linha de Ommar, Engenheira da Seca, Filha da Reconstrução, Diplomata das Fronteiras.
O silêncio que se seguiu parecia mais denso que o ar. Os anciãos que vieram recepcioná-los se entreolharam. Para os padrões de Valeã, onde nomes vinham com afeto e simplicidade, aquilo soava como desfile de vaidade. Por dentro, Moarã esboçou um riso debochado, que jamais deixaria transparecer. A observou de cima a baixo, deixando o silêncio pesar – queria ver se Naiovi aguentava. Queria sentir seu peso.
Foi então que Naiovi falou, lendo a reação de cada um, em voz firme e com um sotaque preciso demais, único de Kohr:
– Espero que os nomes não pesem mais que os gestos.
Adão, o ancião mais velho, arqueou a sobrancelha e respondeu devagar:
– Em Valeã, cada nome é uma semente. Só cresce se a terra e o tempo aceitarem.
Um murmúrio de aprovação ecoou. Moarã notou um leve movimento no rosto de Naiovi – talvez um sorriso.
– Eu sou Moarã – disse. – E, antes de entrarem, deixem claro o que procuram.
– Troca de saberes. Estudos sobre purificação de água. Avaliação de sistemas de cultivo resistentes à Red Drift.
Red Drift? Moarã revirou os pensamentos, mas deixou pra lá. Estava há quase 13 horas em serviço; sua última tarefa era guiar os forasteiros até a ágora, encerrar o turno e enfim descansar.
– Nos acompanhem. Iremos guiá-los – concluiu.
O caminho entre o portão e o centro político era curto, mas simbólico. Pela trilha de terra batida, ladeada por raízes expostas e esculturas de pedra e madeira, avançavam em silêncio. As crianças descalças equilibravam cestos; tendas secavam ervas; velhos martelavam cobre; mulheres com escarificações serviam chá em tigelas de barro.
O centro de reuniões não era um palácio, tampouco um edifício monumental. Era um círculo de pedras enraizadas em torno de uma construção alta, arejada, com paredes de fibras trançadas e barro escuro. O telhado, de folhas espessas e cipó, parecia feito pela própria floresta. Não havia portas: sempre aberto, mas sempre guardado.
Moarã parou antes de entrar. Retirou o arco das costas, fez uma reverência breve. Virou-se para os visitantes:
– Aqui as palavras valem mais que armas. Falem com verdade. A partir daqui, caminham sozinhos.
Naiovi assentiu. Entraram pisando com respeito. Ao centro, os cinco anciãos aguardavam. Adão ergueu-se, apoiado na bengala entalhada.
Moarã trocou um olhar com Adão, que indicou com o queixo: estava dispensada.
– Vai – disse ele. – Come algo sem pó. Paz ao que te habita.
– Força ao que te move – respondeu Moarã, antes de lançar um último olhar a Naiovi.
No interior, os forasteiros foram recebidos pelo ancião:
– Paz ao que te habita, gringa.
Ela hesitou, depois respondeu:
– E força ao que te move.
O silêncio que se seguiu foi honesto. Os anciãos inclinaram as cabeças em aprovação.
Adão continuou:
– Que tua boca diga com clareza. Que teu silêncio não esconda veneno.
– Trago mais sede que certezas – disse Naiovi. – Mas as mãos estão abertas.
Os olhos de Adão se estreitaram, como se enxergassem mais do que palavras, e sinalizou para que se sentassem em torno do círculo.
Moarã, já do lado de fora, entregou o posto e seguiu para casa. O corpo pedia descanso, mas a mente permanecia alerta. Passou pelo pátio de defumação, ouviu o som de crianças treinando. Sorriu, lembrando de algo antigo. Chegou em casa, retirou a couraça e guardou o arco. Seu lar, adaptado às tempestades tóxicas, era simples, mas funcional. Sobre a mesa, raízes secavam e uma cabaça guardava o colar cerimonial.
Livre da armadura, deitou-se no leito baixo, ouvindo o mundo lá fora. Ficou ali um tempo, apenas ouvindo. Parecia esperar por um som específico, embora não soubesse qual. Ouviu então a barriga gritar – e esse chamado, ao menos, ela sabia atender.
Quando acordou, o som da casaca anunciava a noite de quarto minguante. O orvalho já adentrava seus aposentos. Recarregada e instigada, Moarã se ergueu com vontade de festa. Após comer, mastigou uma pasta de aroeira e hortelã, tomou banho de balde e vestiu a regata escura de tecido rústico que deixava à mostra escarificações antigas, traços curvos que se ramificavam como raízes pelas costas e ombros. Enfeitou seus dreads com cilindros de madeira e fios de cobre. Uma espiral de fumaça subia lenta da bacia de barro: murta, resina doce, sementes amargas limpando e perfumando a pele. Passou a fumaça pelo corpo. Protegida por dentro, balsâmica por fora. Antes de sair, experimentou a bebida que fermentava no canto da sala, dentro de um pequeno barril de madeira.
No centro, a casaca já ecoava entre as casas, reverberando como batida antiga no peito do povo, chamando-os para a celebração. A notícia da lua minguante corria ligeira por telhados de palha, corredores de pedra, escadas de barro. Famílias inteiras moviam-se num compasso alegre. Crianças de rostos pintados corriam com folhas nas mãos; mulheres trançavam cabelos, homens ajeitavam tambores e cordões de frutas, jovens carregavam cestos com goiabas maduras, raízes assadas, potes de fermentado. Os mais velhos saíam devagar, amuletos ao pescoço, olhos atentos ao céu.
As tochas eram acesas uma a uma, espalhando uma corrente de luz morna pelos becos. O cheiro de lenha, especiarias e folhas queimadas anunciava que a celebração estava prestes a começar. Tudo em Valeã parecia inclinar-se para a festa, como se a própria terra respirasse ao ritmo da lua.
As festividades eram pontos fortes de Valeã: uniam o povo e fortaleciam os laços. Sempre bem adornadas, fartas em comida – especialmente frutas, frescas ou fermentadas em bebidas típicas.
Logo que Moarã chegou, os atabaques começaram a soar, uma batida que se sentia vibrar no peito. Avistou Ethel do outro lado da multidão, acenando como se fosse um sinalizador em carne e osso.
– Se balançar mais forte, vai sair voando! Cuidado! – gritou Moarã.
– Num me aborreça, soldada! – retrucou Ethel, sem parar de acenar. – Tô assim porque tenho novidade! Sabe a gringa que chegou mais cedo? Vai trabalhar comigo! Aquela caixona de metal que trouxeram? É um laboratório de ponta, nunca vi igual! Nem sei pra que precisam de tanto treco, sempre me virei bem sem aquilo tudo.
Moarã já não escutava cada palavra – algo ali não cheirava bem, e seu pensamento começou a se alinhar como quem arma uma linha de ataque. Só voltou a ouvir quando Ethel soltou um:
– Vish…
– Vish o quê, menina? – Moarã estreitou os olhos.
– A garota. É sabida demais. Mas cabeça dura igual. Quer fazer tudo sozinha, arruma os vidrinhos toda hora, organiza a bancada milimetricamente…
– E o que vieram fazer aqui? – perguntou Moarã, séria.
– Só ela ficou, o resto da comitiva foi embora no começo da tarde. Na reunião com os anciãos, falaram em “intercâmbio cultural e científico” – Ethel fez aspas no ar. – Trocar saberes, ensinar e aprender juntos.
Moarã assentiu devagar, mas seus olhos já varriam o entorno, atentos mesmo fora de serviço. Os atabaques batiam cada vez mais forte, como se a noite respirasse através deles.
– Intercâmbio, hm – murmurou, mais para si do que para Ethel.
A multidão começava a se mover em espiral, acompanhando as batidas. Um círculo se abria no centro da praça. Entre as tochas, Moarã viu a figura de Naiovi: parada, sozinha, o olhar vagando com atenção e estranhamento. As pessoas ao redor pareciam instintivamente manter distância – não parecia ser por medo, mas mais por não saberem como se aproximar. Mesmo assim, Naiovi de alguma forma não parecia deslocada.
– Ei! – chamou Ethel, cutucando Moarã com o cotovelo. – Tá me ouvindo?
– Tô.
– Mentira. Tá com a cara de quem tá tramando.
Moarã sorriu de canto.
– Quem, eu?
Ethel bufou, divertida.
– Se for implicar com a menina, espera ela me ajudar a organizar as coisas primeiro. Aquele laboratório tem coisa demais e não vou dar conta sozinha!
Moarã não respondeu. Seus olhos estavam cravados em Naiovi. O som dos tambores parecia mais alto a cada segundo, como se o ritmo aumentasse só para empurrá-la na direção daquela mulher. Então, pela primeira vez, Naiovi cruzou seu olhar. Os olhos de Naiovi tinham algo incomum: no castanho mel de sua íris, pequenas faíscas douradas se espalhavam como pepitas sob a terra. À luz mista das lamparinas e da fogueira ao centro, esses reflexos se tornavam dourados, quase ouro líquido. Um arrepio subiu pela espinha de Moarã.
Os tambores se tornaram trovões, as sombras dançavam nas paredes de barro, o mundo parecia em movimento, mas Naiovi estava imóvel, como se só ela permanecesse em silêncio enquanto tudo rodava. Moarã não desviou o olhar. Nem Naiovi. Havia ali um duelo, mudo e eletrizante, travado apenas com olhos.
Quando Moarã enfim virou o rosto – não por desistência, mas por estratégia, dizia a si mesma –, o som dos atabaques explodiu num crescendo. O ar se encheu do cheiro doce de frutas fermentadas e folhas queimando. Ao lado, Ethel já dançava com braços erguidos, esquecida de tudo, quase derrubando o líquido dos copos que segurava e ofereceu um à amiga.
Moarã tentou se perder também: no som, na dança, nos passos que conhecia desde menina. Mas, mesmo de costas, sentia o olhar de Naiovi gravado em sua pele, tão tátil quanto suas escarificações.
Naquela noite, dormiu mal. Sonhou com água parada. Olhos dentro da água. Olhos que não piscavam. Veneno.
*****
Fim do capítulo
Oi, gente! Primeira vez postando por aqui e escrevendo também. Tenho essa história matutando na cabeça há tempo, mas só agora consegui passar para o "papel" rs
Primeiro, deixe-me apresentar: Meu nome é Carol, aka Metttamorpho. Sou psicóloga, psicanalista e artista plástica: já me aventurei na xilo, tattoo, digital, esculturas, tintas... -- inclusive, pretendo fazer uma ilustração por capítulo, assim que possível (Ah, e deixo o convite para deixarem sugestões de qual cena gostariam que eu ilustrasse, ajudaria meu trabalho! Tenho vontade de ilustrar tudo, mas tudo é muita coisa! E também adoraria saber como a história está chegando a vcs).
Nessa narrativa, não achem que os desencontros são por acaso. A ambiguidade nas palavras é deliberada, marcando um abismo entre a linguagem de dois lugares que, apesar de falarem o mesmo idioma, a usam com significados e funções muito diferentes -- e, para entender outra língua, não basta apenas traduzir.
Espero que estejam curtindo! Vejo vocês no próximo capítulo!
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