Cítrico
Dia 11
A luz invadia aos poucos o quarto pelas frestas da janela, filtrada pelas folhas altas das árvores do lado de fora.
Naiovi abriu os olhos devagar. A cabeça pesava, o corpo doía de modo desigual – uma tensão nos ombros, um latejar insistente no quadril, as costas ardiam sob a camiseta limpa que Ethel deixara dobrada na noite anterior. Virou-se de lado, os olhos ainda meio turvos. O cheiro do bálsamo de ervas ainda pairava no ar, misturado ao da terra seca e… da laranja cortada no prato ao lado da cama?
E então a viu.
Moarã. Sentada na beira da cama, com o braço apoiado no joelho e comendo uma parte da laranja. O cabelo preso num coque frouxo e as marcas da queda ainda visíveis no corte do lábio. Mas os olhos... límpidos, atentos.
– O que você tá fazendo fora da cama? – a voz de Naiovi saiu grave, rouca, incrédula, carregando um susto mal disfarçado, sentando-se num pulo. – Você devia estar deitada. Repouso. Imobilização. Lembra?
Moarã franziu o cenho, mas não com raiva, com algo mais parecido com ironia.
– Se eu não levantar, fico maluca. E aí sim que desanda de vez.
Naiovi ia retrucar, mas Moarã se adiantou, como quem sabia que a outra estava prestes a despejar um sermão médico.
– Ethel saiu agora pouco. Foi buscar Dona Manturã. Disse que seria bom alguém com mais experiência dar um palpite sobre a continuidade do tratamento.
A engenheira piscou, o pensamento ainda se ajustava à realidade ao redor e a cabeça pendia entre o alívio e a teimosia.
– Dona Manturã? A anciã curandeira?
Moarã assentiu com a cabeça.
– A própria. Aquela que fala pouco, mas quando fala…
Por um instante, Naiovi não respondeu. A menção do nome – Manturã – tinha peso, algo reverente. Algo que mesmo ela, estrangeira, já ouvira sussurrado com respeito nas rodas da vila. E se aquela mulher vinha ver Moarã...
Ela suspirou. A tensão nos ombros cedeu um pouco.
– É uma boa ideia.
Moarã arqueou uma sobrancelha, surpresa com a falta de resistência.
– Eu sei.
– Se Manturã topar... – continuou Naiovi, sentando-se ao lado de Moarã na cama – talvez a gente possa fazer disso mais do que só uma recuperação. Talvez... um laço.
Moarã a encarou com atenção.
– Você fala de laços como quem escreve contratos.
– E você fala como quem nunca leu um.
As duas se entreolharam, quase sorriram.
O silêncio entre elas durou só mais um instante. Naiovi olhou para Moarã com mais atenção. Havia algo diferente nela naquela manhã, e não era só os machucados.
– Você não devia estar andando por aí. – disse Naiovi, mais baixo. – Como está se sentindo hoje?
– Melhor do que ontem, pior do que amanhã.
– Isso é… bom? – Naiovi murmurou, mais para si do que para Moarã, e se levantou ficando de frente para Moarã, que permanecia sentada na beirada da cama.
Se aproximou devagar e, com um gesto firme e delicado, empurrou os ombros da caçadora em direção ao colchão. Moarã deitou com certa relutância, o olhar acompanhando cada movimento da cientista com uma atenção que não era só de vigia.
– Preciso ver como está. – disse Naiovi, já mais próxima. O tom não deixava espaço para objeções.
Moarã soltou um suspiro curto, quase cômico.
– Você tem um jeito estranho de agradecer.
– Ainda tô aprendendo. – Naiovi respondeu, séria, enquanto os dedos de Moarã iam aos botões da camisa larga de linho que vestia.
Desabotoou devagar, apenas o necessário para expor o curativo, cobrindo parte do tórax e o flanco machucado. A pele ao redor estava marcada pelo impacto da queda: arroxeada, levemente inchada, com as bordas do adesivo já perdendo a aderência.
O cheiro de citriomila e gresilha-do-véu subia do curativo, misturado ao calor do corpo de Moarã. Naiovi se aproximou mais e passou os dedos ao redor da faixa, sem tocar a pele, observando os sinais de reação ao redor.
Moarã sentiu os pelos do braço arrepiarem e o corpo enrijecer, mesmo sem o toque direto. Observava Naiovi de cima, com os olhos semicerrados, mas não por dor.
Naiovi retirou o curativo com cuidado. A pele estava visivelmente menos inflamada do que no dia anterior. Os tecidos ao redor mostravam sinais claros de regeneração acelerada: havia uma cicatrização otimizada no ponto de impacto, vascularização reorganizada, e uma textura mais uniforme nas áreas que deveriam estar endurecidas ou sensíveis.
– A cicatrização está muito boa. – murmurou Naiovi, inclinando-se um pouco mais. – Não tem necrose, nem fibrose. O edema parece que reduziu quase pela metade, em menos de doze horas.
Passou o dedo indicador ao redor da área, desta vez encostando suavemente na pele ao redor da área machucada. A pele de Moarã estava quente, viva, firme. Segurou o ar sem perceber.
– Não era pra estar assim. Nem com esse composto. Mesmo considerando a citriomila... A pomada pode ter reagido com algo no seu organismo. Pode ser perfil genético, ou uma interação secundária que a gente não mapeou.
Ela se afastou um pouco, pensativa, já voltando a limpar e fechar o curativo com uma nova bandagem. Moarã soltou um suspiro discreto, como se só então tivesse liberado o próprio corpo da tensão.
– Vai querer me abrir no microscópio? – murmurou, só para quebrar o silêncio.
– Não hoje. – Naiovi respondeu com um meio sorriso, enquanto aplicava o novo curativo.
Moarã apenas observava em silêncio, como quem não gostava da ideia de ser estudada, mas sabia que não adiantava lutar contra.
– Não vai deixar um segundo sem relatório, é?
Naiovi sentou-se na beirada da cama e seu olhar demorou um segundo a mais no rosto da guarda antes de recuar por completo.
– Não, se fosse por mim. – respondeu com um leve arquejo no canto da boca. – Mas pelo menos agora eu tenho bons dados. E você... uma cicatriz que vai ficar quase invisível.
Por um instante, nenhuma das duas falou nada. Só o som do pano sendo reabotoado e o leve ranger da cama no pequeno deslocamento de Moarã.
– Você… se lembra de alguma coisa de ontem? – a pergunta saiu mais baixa do que Naiovi pretendia.
Do lado de fora, o som distante de passos anunciava o retorno de Ethel.
– Fragmentos. – Moarã respondeu, por fim.
A palavra veio sem pressa, como se tivesse atravessado camadas antes de emergir. Puxou o ar pelo nariz, os olhos ainda semicerrados, e deixou a cabeça encostar brevemente no travesseiro.
– Lembro da queda. A pancada… o som seco. Achei que tinha quebrado alguma coisa. – Fez uma pausa. – Depois... só flashes. A luz do céu, sua voz meio arrastada. Um gosto estranho na boca.
Naiovi inclinou levemente a cabeça. Não tomou notas.
Quando o silêncio voltou, ouviu-se um leve arrastar de sandálias no chão de terra batida. Alguém bateu levemente na porta. Três vezes.
Ethel entrou primeiro, ofegante.
– Ela veio. – disse, aparecendo no batente da porta do quarto de Naiovi.
Atrás de Ethel, apareceu Dona Manturã.
Velha como o tempo, dizia-se em Valeã – mas ninguém sabia dizer com certeza quantos anos ela tinha. Seu rosto era vincado como as margens de rio seco, e os olhos, de um castanho leitoso, pareciam enxergar dentro das coisas. Os cabelos eram como prata, longos e ondulados. Usava um lenço de tricô na cabeça, saia longa de tecidos diferentes costurados entre si, uma pequena sacola de couro presa ao ombro e uma cesta no antebraço, de onde escapavam aromas de raízes, ervas e fumaça.
Os olhos varreram o ambiente com atenção serena. Quando pararam sobre Naiovi e Moarã, vieram com lentidão, trazendo o peso da palavra antes mesmo de dizê-la.
Depois olhou Naiovi.
Longo e firme.
– Você.
Naiovi se levantou num pulo, alisou a barra da blusa com um gesto automático, enquanto observava a figura de Manturã como se estivesse diante de uma autoridade de alto escalão.
– Dona Manturã… É uma honra recebê-la.
A anciã inclinou a cabeça levemente, sem paciência para cortesias. Caminhou até Moarã e encostou a palma da mão em sua testa.
– Tá quente ainda. O corpo tá em luta.
– Eu tô bem. – respondeu como uma criança contrariada.
– Se estivesse, eu não tava aqui.
Ethel se encostou à parede com os braços cruzados, satisfeita. Moarã permanecia deitada, mas com o corpo já mais erguido, apoiando-se nos cotovelos.
– Está sentindo dor? – perguntou Dona Manturã.
– Um pouco. Mas está controlada.
– Então podemos começar.
Manturã colocou o cesto sobre a bancada e retirou folhas dobradas, raízes cortadas em espiral, potes pequenos com rótulos escritos à mão. Naiovi se aproximou, curiosa, e apontou para uma flor de coloração azulada.
– Isso é… Rosemary-heated?
– Aqui chamamos de Fulgurim.
Naiovi ergueu uma sobrancelha.
– E é usada pra...?
– Desbloquear o caminho da febre. Deixar o corpo suar onde ele teima em secar.
– Ah… Faz sentido.
– Ela sabe das plantas desde antes de você nascer. – comentou Ethel, lançando o olhar a Naiovi. – Se alguém pode ajudar com essa coisa, é ela.
Dona Manturã olhou em volta, observando o quarto de Naiovi: instrumentos de vidro, frascos, registros.
– Você organiza bem. Seu olhar é preciso.
Naiovi sorriu de leve. Manturã virou-se novamente para ela.
– Dizem que tens olhos pra dentro das plantas.
– Às vezes trabalho com o que elas oferecem, sim.
– E o que elas te contam?
– Que ainda têm muito a dizer, mas precisa de uma tradução que ainda não decodificamos.
Manturã olhou para Ethel, então para Moarã, e por fim para Naiovi de novo.
– Vamos ver se você aprende a entender não só com a cabeça.
Puxou uma banqueta e se sentou. Abriu sua sacola e começou a separar pequenas folhas secas, raízes escuras e sementes enroladas em pano.
– Quero ver os extratos. Os nomes que deram.
Naiovi hesitou, então assentiu.
– Eu tenho parte das anotações aqui, o resto está no laboratório.
– Então começa a me mostrar o que sabe. Depois a gente vê o que você ainda não sabe que não sabe.
Naiovi estendeu o pequeno caderno de anotações para Dona Manturã, com páginas amassadas, algumas manchadas pelo extrato de citriomila e café. A anciã não pegou, apenas olhou.
– Isso aí é pra quem tem olho de lupa. Eu tenho olho de tempo. Vai me falar com a boca.
Naiovi fechou o caderno devagar e respirou fundo.
– Começamos com a citriomila. Usamos a polpa e a casca interna, depois as folhas. Extração em solvente neutro, decantação a frio… Isolamos alguns compostos principais e depois combinamos com um extrato oleoso de gresilha-do-véu. A formulação gerou dois efeitos: diminuição da dor articular e uma aceleração incomum da cicatrização cutânea.
Dona Manturã ergueu a sobrancelha, coçando o queixo.
– Que mais?
– Observamos episódios rápidos de epilepsia e de estados alterados de consciência.
– Sonhos?
– Sim. E aparentemente uma amnésia posterior.
A velha pegou um punhado de folhas secas e começou a triturá-las lentamente.
– A gresilha pede silêncio pra trabalhar. E a citriomila tem gênio, ela quer mostrar serviço logo. Se misturar as duas, tem que ver quem manda. – Entregou a pasta triturada para Moarã tomar, junto a um copo com água.
– Cientificamente, buscamos um equilíbrio fitoquímico.
– E espiritualmente, provocaste duas plantas que não se bicam faz milênios.
Moarã tossiu, quase engasgando com a água que tomava.
– Milênios?
– As plantas também têm histórias. – disse a velha, sem olhar para ela. – Algumas se aliaram nas grandes secas, outras se traíram. Tem folha que guarda raiva, defesa. Tem raiz que só cresce onde já morreu muita coisa.
Naiovi tentou manter a postura, mas algo nela cedeu um pouco.
– Eu não sabia.
– Mas veio aprender? – Dona Manturã encarou.
– Sim.
Moarã, ainda deitada, observava as duas.
Manturã sorriu pela primeira vez.
– Nem tudo que reluz é ouro, minha filha. Nunca se esqueça disso. Mas… quem sabe isso aí não vira alguma coisa que preste. – Estendeu a mão. – Me leva ao teu laboratório. Vamos ver se essas plantas de Kohr sabem conversar com as minhas.
Naiovi fez que sim com a cabeça, segurando em seu peito um misto de entusiasmo e medo. Seus olhos voltaram brevemente para Moarã, como se marcassem um ponto de transição antes do novo ciclo.
– Vai lá, engenheira da seca. Eu fico de olho na muralha aqui. – disse Ethel, com um sorriso torto. – Só pra garantir que ela não decida levantar e construir uma casa nova ou sair caçando um javali com o buxo recém-colado.
Moarã apenas bufou, com a dignidade de quem sabia que teria feito exatamente isso se não estivesse sendo impedida.
– Não tem mais bolo enfeitiçado, infelizmente – comentou Ethel, lançando um olhar de cumplicidade a Dona Manturã. – Mas tem pão fresco e café.
A anciã não respondeu de imediato. Apenas sorriu leve e assentiu com um breve inclinar de queixo, enquanto seus olhos pousavam nas mãos de Naiovi que preparava a sua mochila – atentas, metódicas, ligeiramente tensas. Havia nelas um idioma que Manturã conhecia de outros tempos.
Naiovi fechou um embrulho com alimentos, ergueu a alça da bolsa com as amostras e seguiu até a porta. Antes de cruzá-la, lançou um último olhar para Moarã – mais demorado do que o necessário e menos técnico do que ela permitiria admitir.
– Paz ao que te habita. – disse, por fim, com a voz baixa e firme.
– Força ao que te move. – responderam Ethel e Moarã, em uníssono.
Sem mais palavras, Naiovi saiu junto a Manturã.
Assim que a porta se fechou atrás das duas, Ethel soltou um assobio longo, como quem acabara de assistir a algo raro – ou perigoso.
– É… – murmurou, cruzando os braços com um sorrisinho de canto. – Primeira vez que a gringa se despede direito.
Moarã ergueu uma sobrancelha, sem se mexer muito, ainda deitada.
– Antes era só aceno com a cabeça ou aquele “see you” meio atravessado. Às vezes nem isso. Hoje… – Ethel imitou com exagero o tom de Naiovi, cerrando os olhos como se saboreasse um vinho raro: – “Paz ao que te habita”.
Fez até silêncio depois, como se sentisse. Moarã desviou o olhar para o teto, mas não disse nada. Os dedos dela alisavam, quase imperceptivelmente, a costura da manta.
– Sentiu a diferença também, né? Não foi só pra parecer educada. – Ethel continuou.
– É engraçado ouvir você chamando alguém de gringo. – disse Moarã, olhando para o teto, como se falasse com ele.
– Eu não sou gringa.
Moarã lançou um olhar irônico para Ethel.
– Eu não sou gringa! Não sou de terra nenhuma, então sou de qualquer terra que eu escolher ficar.
– Se isso te conforta…
Ethel fez uma pausa. Observou Moarã com mais atenção – o corpo ainda esticado na cama, a manta puxada até a cintura. Olhou ao redor, para o quarto metódico da diplomata, depois de novo para a figura da vigia ali.
– Mas bem que cê gosta de uma gringa, né?
Moarã enrijeceu e imediatamente voltou a olhar para o teto.
– E então? – Ethel se aproximou, puxando uma cadeira ao contrário e sentando-se de frente para Moarã, com os braços apoiados no encosto. – Vai me dizer o que veio fazer aqui… ou prefere que eu fique só imaginando?
– Mal posso esperar para escutar suas ideias.
Assim que Ethel puxou o ar para falar, Moarã interrompeu:
– Acordei com sede e vim pegar uma laranja na cozinha. Não tô doente, Ethel. Já consigo levantar. Se não tivessem me amarrando, eu já tava de pé há muito tempo.
Ethel deu uma risadinha curta, um som entre descrença e deboche.
– Ah, entendi. Acordou com sede… e veio parar na cama de Naiovi, coberta com uma manta de mil fios egípcios de Kohr. Acontece. Eu mesma já fui parar em lugares bem mais esquisitos quando estava com sede.
Moarã apertou os lábios. Era mais fácil encarar o teto do que Ethel, principalmente quando ela usava aquele tom.
– E como tava a laranja? – continuou Ethel. – Doce? Madura? Amarga? Suculenta?
Moarã virou o rosto, mas não rápido o bastante pra esconder um leve rubor subir às orelhas.
– Que pergunta é essa?
– Uma que eu sei que você não vai responder. – Ethel sorriu de canto. – Mas eu gosto de ver como você fica quando falamos dela.
Moarã se endireitou um pouco, apoiando-se nos cotovelos discretamente. O gesto era defensivo, mas o corpo não obedecia à rigidez que ela queria fingir.
– Ethel… – disse, devagar. – Por que tá aqui? Não tem mais nada para fazer, não?
– Ah, eu vim vigiar a vigia mesmo. Conferir a pressão. Medir o pulso. Sentir o cheiro. Ver se a caçadora ainda é feita de carne e sangue ou se petrificou de vez nos lençóis estrangeiros.
Inclinou o tronco um pouco à frente, a cadeira rangeu sob o movimento. As palavras vieram mais suaves agora, como quem sussurra uma isca.
– Mas não vou mentir. Tô gostando da vista.
Moarã apertou os lábios, o rosto quase impassível. Engoliu seco.
– E se eu te dissesse que continuo igual?
– Eu diria que mente mal.
Ethel se levantou devagar. Deu a volta na cama sem pressa, até ficar ao lado de Moarã.
– Lembra quando você dizia que não ia se prender a ninguém?
Moarã não respondeu.
– “Não vou abrir porta pra gringo nenhum”, você dizia. – Ethel sorriu e sentou-se na beira da cama. – “Amor é fraqueza”.
– Isso já faz uns dez anos. Fui uma adolescente bem revoltada.
– E pudera. Com sua história, como não seria? Mas eu via quando cê voltava da ronda com cheiro de alguém na pele, uma postura diferente. Você nunca se fechou de fato, só fazia a pose. Eu cresci aprendendo a ler rastros, lembra?
Moarã inspirou fundo.
– E ainda sabe ler?
Ethel se inclinou um pouco mais, o bastante para que Moarã sentisse o cheiro das ervas que ela carregava no cabelo e algo mais, talvez fumo.
– Sei.
Elas ficaram assim por um instante. Moarã não se moveu, mas também não recuou. Os olhos de Ethel estavam ali, abertos, perigosos, atentos, leitores.
– Vai querer que eu fique por perto até alguém de Kohr voltar com um apetrecho super tecnológico?
Moarã encarou Ethel por longos segundos. Não respondeu. O coração batia rápido, mas a mão que antes puxava a manta agora estava quieta e discretamente mais próxima da beirada da cama.
– Hm. – Ethel sorriu, vitoriosa. – Já entendi.
E então se afastou com calma, buscou uma cabaça com chá morno e voltou sentando-se na cadeira ao lado, sem pressa.
– Descansa. Eu tô aqui. Não vou contar pra ninguém que a muralha aceitou cuidado.
Moarã tentou fechar os olhos mas, por dentro, tudo queimava.
– Não tô cansada, não vou conseguir dormir agora. Preciso fazer alguma coisa. Tenho que colocar algumas coisas em ordem.
– Esculpir?
– Não. Preciso de uma reunião com a guarda e organizar meu afastamento. Acha que vou ficar quanto tempo assim?
– Olha… Difícil dizer. – Deu uma conferida em Moarã – É um composto experimental, parece estar reagindo bem, mas pode ser que tome outro caminho.
– Tá, isso dá o que? Três dias já posso voltar?
Ethel riu, incrédula com a ingenuidade da amiga.
– Três dias? Nem se tivesse sangue de virgem, leite de unicórnio e a benção do papa. Pelo menos, estourando, se cuidar bem e só tiver reação boa, quinze dias.
– Tá doido, tudo isso?! Por favor, Ethel, sou sua amiga. Me ajuda aí. Meu limite é sete dias, mais do que isso já é querer que eu enlouqueça. Trocar uma avaria por outra ou duplicar o problema acho que não compensa, né?
– Vamos vendo. Se ajude também, isso é o mais importante.
– Ótimo. Vou dar cinco dias de afastamento.
– Você não tem jeito…
– Se precisar, depois tiro mais alguns. – Sentou-se na cama. – E preciso gastar minha energia.
– Agora não.
– Daqui a pouco.
– Nem daqui a pouco.
– Amanhã! Vou mandar Diana e Lúcio trazerem alguns equipamentos, é só eu não forçar o abdômen, certo?
Ethel respirou fundo. Estavam praticamente escrevendo um contrato.
– Certo. Um bom acordo é aquele que nenhum dos dois lados saem completamente satisfeitos, não é?
– E que os dois cedem um pouco. – Moarã sorriu.
– Não adianta fazer essa cara…
– Vamos fazer um acordo aqui agora: eu prometo ficar quieta hoje se você chamar meus aprendizes, Jota, Nicol e Sebastião pra uma reunião, preciso repassar algumas funções.
– Não sei se acredito nesse papo de malandro.
– Coloco aquele barril de fermetado como garantia – Moarã respondeu firme, abrindo um meio sorriso. – Tenho certeza que tá bem melhor do que aquela porcaria que você toma na taverna.
Ethel bufou, rindo com descrença.
– Você é terrível.
– É só planejamento estratégico. Não dá pra parar o fluxo das coisas só porque uma barriga arranhou.
A bióloga revirou os olhos, mas a expressão suavizou.
– Sabe que é por isso que o povo te segue, né?
– É o que tem pra hoje. – respondeu Moarã, voltando o olhar pro teto. – E você, vai me ajudar ou vai ficar só me estudando?
Ethel fingiu pensar, apoiando o queixo no punho.
– Hm. Tô decidindo ainda. Tem algo divertido em te ver tentando manter o controle deitada numa cama que nem é tua.
– Cuidado, Ethel. – o tom de Moarã era tranquilo, mas o olhar não. – Eu posso levantar antes do previsto.
– Eu adoraria ver isso. – sorriu, insolente. – Mas sabe que sou mais rápida.
Por um momento, ficaram se encarando, o ar entre elas vibrando de um jeito antigo, meio desafiador, meio cúmplice. O fogo lá fora estalava na cozinha, e o som parecia acompanhar o ritmo.
Moarã suspirou primeiro, cedendo o jogo invisível.
– Não quero perder aquele fermentado. É uma receita especial.
A proposta cativava Ethel. Moarã sabia preparar fermentados, chás, cervejas e cachaça como ninguém, mas era raríssimo fazer. Uma oportunidade.
– Tá bem. – Levantou-se, ajeitando o lenço na cabeça – Vou voltar tão rápido que nem vai dar tempo de você aprontar alguma coisa. – Caminhou até o batente da porta e completou – Pode guardar o barril por enquanto… essas coisas sempre acabam se abrindo em boa companhia. E Moarã… – Olhou por cima do ombro.
– O quê?
– Parece que a laranja tava docinha. – piscou, e saiu antes que Moarã pudesse responder.
O silêncio voltou ao quarto.
Moarã ficou olhando o teto por mais um tempo, o leve sorriso ainda preso no canto da boca. Depois, respirou fundo, fechou os olhos e murmurou pra si mesma:
– Maldita. Sempre um passo à frente.
**********
O caminho até o laboratório foi silencioso, mas a mente de Naiovi estava tão barulhenta que não permitia nem mesmo ouvir o som dos próprios passos ou dos pássaros ao entorno. A presença de Manturã, apesar de honrosa e leve, de alguma forma a oprimia.
Naiovi abriu a porta e entrou primeiro. Esperou. Manturã cruzou a entrada em seguida, seus olhos percorreram o espaço medindo tudo com mais precisão do que um scanner. Naiovi se aproximou da bancada, acendeu uma luz direta e retirou da gaveta o frasco do composto experimental. A cor âmbar estava mais densa.
– A nova fórmula estabilizou. – disse, quase em tom de relatório como estava habituada. – Apenas uma fina camada sobre a pele ferida de Moarã. A cicatrização começou em minutos e sua temperatura corporal subiu levemente, sem apresentar inflamação.
– E os sonhos? – perguntou novamente Manturã, com os olhos fixos no líquido.
– Falava enquanto dormia, às vezes parecia consciente na primeira noite, mas aparentemente sem lembrança alguma hoje.
– O corpo às vezes traduz o que a mente tenta calar.
Naiovi assentiu. Ter ciência disso – mesmo que com uma pontada de ceticismo – a incomodava em algum lugar distante de seu próprio corpo.
– Me falaram dessa mistura. – disse Manturã – Os efeitos são promissores.
– Sim, mas é instável. Tem respostas que só o tempo vai dar. O prognóstico é desconhecido… – Observou Manturã e sentiu como se estivesse falando errado – Preciso ficar de olho nela, mesmo depois de cicatrizar totalmente.
A anciã retirou um pequeno frasco do cesto e o ofereceu.
– Isso é uma seiva fermentada de Ramuá. Pode acalmar o sistema. Tenta misturar com a Citriomila, talvez te mostre onde ela morde. Mas usa pouco, Ramuá não é de excessos.
Naiovi pegou o frasco, examinando-o contra a luz. Pausou. Mudou de tom, mais leve, quase casual, mas ainda com um fundo de hesitação:
– Você já estudou os musgos da nascente norte?
Manturã ergueu os olhos devagar.
– Alguns.
– E os que crescem mesmo com variações extremas de umidade e calor? Os que criam microambientes estáveis?
– Os que respiram, mesmo onde não tem ar.
Naiovi precisou conter o impulso de anotar. Em vez disso, observou Manturã com atenção, medindo como poderia conduzir a conversa.
– Kohr ainda tem problemas com oxigenação? – perguntou a mestra, antes mesmo de Naiovi abrir a boca.
O pequeno frasco parou de girar entre os dedos de Naiovi.
– Como…?
Manturã a encarou, por fim, com seus olhos claros e opacos, como se refletissem algo debaixo d’água.
– Há coisas que crescem mesmo quando a gente não vê. – Fez uma pausa e completou: – E há raízes que seguem escutando, mesmo quando cortadas.
Silêncio. Manturã ajeitava alguns frascos e ervas em sua cesta, dispondo parte dos galhos e pequenos frascos em cima do balcão.
– Houve uma linhagem, sim. – disse, sem olhar diretamente para Naiovi. – Parecia resistente, mas dormia. Quando sentia calor, diminuía. Quando via a luz, desfiava-se. Não falava com qualquer um, precisa ser selvagem para brilhar.
Naiovi apertou os dedos em volta do frasco âmbar. Um frio subiu-lhe pela nuca.
– Isso foi estudado aqui?
– Em parte. – respondeu Manturã. – A linhagem veio com uma criança de fora. Trouxeram numa caixa quase seca, sem vida, mas o musgo tinha sonho. Deu flor uma vez, e nunca mais. Guardamos o que sobrou.
– O musgo que investigamos... cresce em cápsulas saturadas. Resiste ao calor, à radiação, e ainda assim oxigena. Quase como se produzisse o que falta.
– Ou como se soubesse do que falta – corrigiu Manturã, suave.
– Ele sobrevive em contenção, mas se comporta diferente em ambiente aberto.
– Sobrevive, mas não o é. Como água contaminada: está ali, mas sem vida.
Naiovi inclinou ligeiramente a cabeça.
– Isso é um padrão entre espécies bioadaptativas?
– É um padrão entre coisas vivas.
Naiovi não respondeu. Caminhou até a estufa, onde pequenas porções de musgo, isoladas em placas úmidas, brilhavam fracos em verde. Era como observar uma memória vegetal tentando se manter viva sob plástico e vidro.
– Isso não consta em nenhum dos relatórios botânicos que recebi. – murmurou Naiovi para si mesma.
Manturã sorriu de leve.
– Os relatórios de Kohr esquecem o que não entendem e queimam o que não controlam.
– Não temos tempo para fazer pesquisas a longo prazo… Precisamos de soluções rápidas para continuar sobrevivendo.
O silêncio caiu denso entre elas. Naiovi percebeu o peso de cada palavra e sentiu uma ponta do orgulho ferido arranhar sua garganta.
– Já esteve em Kohr? – Naiovi arriscou.
Manturã assentiu, ainda sem encará-la.
– Há muitos anos. Era só uma garota. Fiquei por três ciclos inteiros. Descobri o cheiro do concreto seco e o som dos portões que nunca descansam. Aprendi a ficar invisível nos corredores de metal... e a calar quando a sede virava castigo.
Naiovi piscou devagar, surpresa.
– Três ciclos inteiros…? Mas… ninguém de Kohr falou da senhora.
– Claro que não. – respondeu Manturã de pronto. – Plantas que não tem raiz não guardam o nome da terra em que pisaram. E eu era pequena demais. Pelo o que vi, parece que em Khor não acreditam no potencial dos pequenos.
– O que foi fazer lá?
– Meu povo trocava sementes por minerais. Muitas sementes não gostavam de Kohr, mas estavam dando um jeito de fazer vingar.
– Seu povo? Está falando de Valeã?
– Ah, criança… Parece que a papelada que te passaram não te serviu de muita coisa, não é mesmo? – Havia certo compadecimento no tom de Manturã. Puxou uma pequena caixa de madeira do fundo da cesta, trancada com um lacre de cera escura. Colocou-a sobre a bancada, com cuidado.
– Está dormente há anos, mas talvez reaja à sua mão ou ao seu dilema.
Naiovi se aproximou devagar. A caixa estava marcada por símbolos que não reconhecia, um padrão estrangeiro às rotinas de Kohr.
– Como você sabe de tudo isso… da oxigenação? Essas informações são confidenciais. – Perguntou enquanto passava a mão em cima da caixinha de madeira envelhecida, como se tentasse ler com os dedos o que estava cravado em sua superfície.
– Kohr não foi feito para viver. O problema com a água é antigo. Não sustenta as pessoas, as plantas rejeitam, animais são intrusos ou comida. – respirou fundo, acessando memórias antigas e decepcionantes – É uma terra morta, e o que está morto não respira. Podem até tentar esconder isso de vista, mas está lá para quem quiser e souber onde ver. E você, minha jovem… carrega a sede até no silêncio.
Naiovi escutava com atenção. Observou o objeto em sua frente: antigo, rústico, simples, preservado e não pode dizer se estava diante de uma chave ou de um espelho. Quando o silêncio se assentou, quebrou o lacre de cera com cuidado. Dentro, um tecido vegetal envolvia um frasco de vidro grosso, onde continha uma pasta gelatinosa, com tons que oscilavam entre o verde, o âmbar e o dourado, dependendo da luz. Abaixo, um pequeno pedaço de papel de fibras rugosas, escrito à mão:
“Se reviver, que não seja à força. Se levar de volta, que não seja sozinho.”
Naiovi franziu a testa. O texto parecia uma advertência, um enigma ou uma condição.
– Como isso foi cultivado? Como pode estar vivo? – perguntou baixo, quase para si mesma, com fascínio, sem tirar os olhos curiosos da substância.
A resposta veio calma:
– Água das madrugadas e leite de folha-mãe. Está vivo por uma promessa.
Naiovi apertou os dedos contra a borda da caixa.
– Promessa de quem?
– Nem sempre importa quem prometeu. Mas sim quem a mantém.
– De onde veio? – a voz de Naiovi oscilou entre reverência e urgência. – “Levar de volta”... pra onde?
Dona Manturã encarou-a com doçura.
– Veio de onde nada mais respirava. De onde as raízes esqueceram o gosto da água. E talvez seja para lá que queira voltar.
– Kohr.
– Talvez, pode ser. Quem vai dizer é a terra. Não eu, nem você.
Naiovi sentiu o peso simbólico daquilo em sua mão. Aquela substância não era apenas esperança, mas algo maior do que estava esperando encontrar.
– Acha que seria possível replicar? Estabilizar?
– Vai ter que convencer o que está vivo a se deixar multiplicar. Vai ter que conversar com ele e, principalmente, ouvir. Negociar. Ouvi dizer que és boa nisso.
– Pelo menos eu costumava ser. – Naiovi guardou o frasco como se selasse um trato silencioso. – Por que está me ajudando?
A velha demorou para responder, fitando Naiovi com seus olhos quase opacos, medindo seus movimentos e a tensão que Naiovi tentava conter. Até que a diplomata fazia um bom trabalho, mas não escapava da percepção aguçada de Manturã, que, apesar dos olhos embaçados, podia ler borrões com uma nitidez única.
– Sou companheira da vida, forasteira. E essa vida está pedindo socorro. Quando ela pode viver, tudo em sua volta prospera e atrai mais vida. É assim que se mede o que vale. Mas... isso que tem nas mãos, ainda não conseguimos fazer. Tentamos. Os aprendizes acreditam que não faz sentido continuar tentando. Pra ser honesta, talvez não tenha sentido mesmo. Não para a gente. – Respirou fundo, com a voz oscilando entre o desalento e a fé que renascia ao ver aquele pingo de esperança que vinha de Naiovi, e continuou – Mas você conhece a sede e o ferro, Naiovi. Sabe o que é negociar com a escassez, o que é fazer viver onde tudo grita por fim. Como esse musgo, a pena-de-anjo. Talvez tenham mais em comum do que pensa.
Pena-de-anjo. Então era assim que chamavam. Claro… muito mais digno do que “O-Musgo-Milagroso-Misterioso”, como era até então. E poético, certamente, como tudo que Valeã nomeava.
– Manturã… Não sei como posso retribuir isso.
A velha guardou de volta alguns frascos e raízes na cesta. Seu gesto era calmo, ritmado. Virou-se de leve, sem pressa:
– Sabe sim. Apenas faça o que já veio fazer. Mantenha a promessa viva. – Fechou a cesta e a pendurou no antebraço. – E lembre do seu passado. Ele faz parte da tua linguagem.
Lançou um olhar sereno e cortante para Naiovi, que se sentiu lida por inteiro.
– Agora me dê licença, querida. Já dei o que tinha por hoje e agora é a vez do tempo fazer o trabalho dele. Cuide bem de Moarã. Paz ao que te habita.
– Agradeço pelo voto de confiança, Manturã. Vou dar o meu melhor. Força ao que te move. – Reverenciou como os protocolos da diplomacia Kohrenses exigiam, de forma automática, num impulso que nem percebeu chegar.
A anciã fez um gesto com o queixo e saiu como entrou – em silêncio, mas deixando atrás de si uma nuvem que parecia preencher o espaço inteiro do laboratório.
Naiovi permaneceu ali, sozinha, cercada por papéis, vidros e fragmentos de algo muito mais antigo do que a sua ciência. O frasco de Pena-de-anjo estava quente do calor erradiado pela palma da sua mão. Ficou parada por alguns minutos, apenas pensando. O silêncio parecia mais denso depois das palavras da velha, carregado, feito de resquícios, como peças soltas e misturadas de um quebra-cabeça que ainda não revelava a figura, nem se elas se encaixavam ou se era possível completá-lo.
Olhou para a mesa diante de si. Os potes ainda abertos, o musgo delicado repousando sob a lâmina de vidro. Musgo não, pena-de-anjo. Era isso que tinha agora entre as mãos.
Sede e ferro. Aquelas palavras vinham voltando com insistência. Sede e ferro. Sede e ferro. Era isso o que conhecia. O que a moldara. Negociar com a escassez. Fazer viver onde tudo grita por fim. Não era uma metáfora para ela. Era memória. Era ofício. Era idioma.
“Lembre do seu passado”. Naiovi fechou os olhos por um momento. Não era uma ordem, mas um chamado. E o pior é que ela se lembrava sim: o som abafado das escotilhas em Kohr, as plantas que só cresciam sob vidro, o cabelo raspado como protesto… e da promessa feita quando era ainda criança: tornar a morte um pouco mais distante e a sede menos cruel.
Abriu os olhos de novo. Fitou o musgo. A pena-de-anjo parecia querer respirar.
Sentou-se com calma, como quem aceita algo maior do que pode saber. Pegou o caderno de anotações, mas não escreveu de imediato. Apenas ficou ali, ouvindo o som do próprio coração e o leve zumbido das ervas secando na estufa ao lado.
Musgo, composto, água, Moarã, composto, cura
ferro, pena-de-anjo, sede, oxigênio, terra, vida, deserto, veneno
cura, seca, metal, Moarã, pena-de-anjo, musgo, água, vida
deserto, deserto, deserto…
Uma enxurrada de palavras a inundou, sem conexão, ordem, lógica ou continuação de um raciocínio. Seu corpo doía e sua mente não conseguia pensar claramente. Sentia-se diante de um baú do tesouro, mas apenas com dois bolsos na calça para carregar algumas poucas moedas daquilo. Sua mente estava deserta e sentia como se seu corpo tivesse acabado de atravessar um.
Precisava descansar, mas não podia.
Precisava organizar seus próximos passos.
Tinha pressa.
Sede.
************
Chegou em casa ao cair da tarde, como de costume. Abriu a porta e encontrou Ethel e Moarã na sala.
Moarã estava sentada no chão, de costas, entre os joelhos de Ethel, que ocupava o sofá. Mexiam nos dreads de Moarã com delicadeza, entre risos baixos e silêncios cúmplices. As mãos de Ethel trabalhavam devagar nos locs de Moarã, enrolando a raiz com paciência, espalhando óleo, massageando o couro cabeludo com dedos calmos. Havia um pano estendido sobre o chão com pequenos potes abertos: cremes, óleos, água morna em uma cuia de barro. O ar estava denso e aromático, carregado de capim-santo, eucalipto e algum toque doce cítrico.
Naiovi parou na entrada, sem dizer nada. Por um instante, não soube se devia entrar ou voltar. A cena parecia um cuidado íntimo que não pedia testemunhas. Ainda assim, ela estava ali.
Moarã virou levemente o rosto, como se sentisse sua presença antes de vê-la e continuou quieta, mas sua postura mudou levemente. Ethel ergueu os olhos, sem pressa, e a viu. Não falou – apenas sorriu com leveza, como quem diz “entra”.
Naiovi tirou os sapatos e fechou a porta devagar. O cheiro da casa a envolveu e não soube se o que sentia era acolhimento ou intromissão.
– E como foi lá? – Ethel perguntou com entusiasmo.
– Esclarecedor... e confuso. – Jogou-se na cadeira próxima à mesa da cozinha, apoiando a têmpora com um punho e esticando as pernas na cadeira à frente. – Mas consegui traçar algumas rotas. E por aqui?
– Consegui domar a dona onça brab…
– Ei, eu estou aqui. – Moarã interrompeu, batendo no joelho de Ethel com o cotovelo.
Moarã bufou e inclinou um pouco mais a cabeça, deixando que Ethel retomasse os gestos com a mesma delicadeza de antes. A ponta dos dedos passeava devagar pelo couro cabeludo, com um carinho que sabia onde passava.
Naiovi observava de longe. Havia algo ali que ela não sabia decifrar. Não era apenas afeto. Sentiu uma pontada súbita – uma consciência aguda de estar de fora, como se tivesse tropeçado numa fresta de mundo.
– Quer chá? – perguntou Ethel, sem tirar os olhos do que fazia.
Naiovi levou um segundo para responder.
– Quero, sim. Se tiver de erva-limão.
– Sempre tem. – Ethel sorriu de novo e se inclinou para alcançar a chaleira na mesinha ao lado.
Moarã, de olhos fechados, parecia em paz. Mas quando Ethel se levantou para ir até a cozinha, abriu levemente os olhos e olhou na direção de Naiovi. Rápido, quase imperceptível. Naiovi sustentou o olhar por um instante, depois desviou.
No fundo, queria sentar ali também. No chão. Fechar os olhos e deixar que mãos calmas tocassem seus pensamentos até que eles parassem de girar. Ou então ocupar as mãos sentindo o calor na ponta de seus dedos, impregnando o cheiro cítrico e doce dos óleos e cremes. Mas não sabia como pedir isso. Nem se podia.
Quando Ethel voltou, trazia o chá fumegante numa cuia pequena decorada com riscos finos em vermelho. Entregou a Naiovi com uma das mãos e, com a outra, puxou um caderno grosso de capa manchada que estava debaixo do sofá.
– Teu relatório de hoje. Não tá super completo, mas tem o que importa. – Estendeu o caderno.
Naiovi pegou a cuia com uma mão e o caderno com a outra. Passou os olhos pelas anotações, algumas rabiscadas às pressas, outras com desenhos, datas e pequenas tabelas.
– Nossa, isso é… Diferente das suas anotações do laboratório. – Naiovi passeava os olhos pelos diagramas botânicos simples, mas bem feitos, que Ethel ilustrara.
– Esse é meu caderno pessoal, o do laboratório eu… esqueci no laboratório. Aí me sinto mais livre pra fazer qualquer bobice. – Ethel lançou uma piscadinha para Naiovi. – Já começou o relatório para enviar pra Kohr?
Naiovi largou o caderno em cima da mesa e deixou a cabeça cair para trás na cadeira, soltando um longo grunhido, com as mãos no rosto.
– Aaaahmm… Fuck! Eu me esqueci completamente disso… Fiquei tão focada nas pesquisas que me esqueci disso! Como…?
– Ótimo, ótimo que esqueceu! – Ethel sorriu como se confessasse um crime. – Preciso te falar uma coisa. Quando passei no laboratório ontem, fiz algumas… intervenções. Por precaução. Mudei uns nomes, apaguei outros…
Naiovi escutava Ethel com os olhos cansados, fundos, cínicos. Ela continuava falando, mas a diplomata estava longe, pensando nos papéis que sumiram e nos peculiares nomes novos que apareceram subitamente nas anotações, nomes que não se lembrava de terem dado. Chegou a pensar que podia estar no começo de uma psicose alucinatória desencadeada pelo estresse e sobrecarga… Mas era só Ethel.
– Ethel… Podemos conversar lá fora? Preciso tomar um ar.
Caminharam até a árvore no centro do pátio. A kohrriana ficou um tempo de costas até virar-se para Ethel.
– Você tem medo? – perguntou.
– Medo?
– Sim, medo. De Kohr, de mim.
– Não sei se medo… talvez só receio.
– E qual é a diferença?
Ethel coçou a nuca.
– Precisamos tomar cuidado para eles não crescerem muito os olhos pra cá. Quem tem fome arranja força para lutar até o fim.
– Você acha que Valeã tem esse potencial todo? Que canalizaríamos tanta energia nossa pra cá?
– Se tem, não sei exatamente. Mas não precisamos saber disso, só eles acreditarem que tem já seria o suficiente. E com certeza podemos ajudar Kohr numa coisa ou outra… Mas por quê? Por que ajudaríamos Kohr?
Naiovi arqueou as sobrancelhas enquanto Ethel falava e pôs as mãos na cintura.
– Sua fala é um tanto soberba para uma estrangeira que foi acolhida pelo local, não acha?
Ethel riu, sem graça, e deu de ombros. Era mesmo.
– Às vezes esqueço que você é de Kohr.
– É uma pena que isso pareça ser uma coisa boa.
Se encararam por breves instantes, Ethel cruzou os braços e abaixou o olhar antes de falar.
– Naiovi… Só quero proteger esse lugar.
– Então teme a interferência de Kohr.
– Cheguei aqui há mais de dez anos, fiz família, amigos, história, ciência aqui. A terra me acolheu e me nutriu. Criei raízes, mesmo sendo de uma espécie estrangeira. Não tem problema ter uma ou duas espécies exóticas no sistema, o problema é que pode se tornar um parasita se for crescendo e se espalhando de forma descontrolada e não sobrar o que é necessário pras espécies nativas prosperarem.
– Nossa… Daí para a eugenia é um pulo.
– Não! Que mané eugenia. É sobrevivência e competição por recursos. Kohr é de ferro, Valeã de madeira e pedra. Não vamos ser ingênuas, doutora: no fim, quem ganha?
Uma pontada atravessou Naiovi, como se Ethel tivesse a acertado em cheio. Kohr não faria isso, não era aquele vilão todo que pintavam por aí. Tudo bem, Kohr não era o lugar mais aconchegante e acolhedor do mundo, mas… isso? Como eles conhecem tão pouco Valeã, o oposto também deveria acontecer, certo? E claro, o desconhecido… sempre amedronta. Ela também estava amedrontada com Valeã, isso já não era nenhum segredo a esse ponto.
– Estou aqui para isso, Ethel. Não sou só pesquisadora, também sou diplomata, esqueceu? Mediação, negociação, trocas, propostas, resolução de conflitos. Espero que os dois ganhem no que tem de pouco.
– Acha que precisamos de alguma ajuda externa?
– Acho que podem gostar de algumas coisas. Não precisam, mas a vida não é só funcionalidade e se tem alguém que sabe bem disso é o próprio povo de Valeã.
Ethel assentiu com a cabeça, devagar, ponderando. Se encostou no tronco da árvore com os braços cruzados. Estava tensa, mas escutava.
– Precisa de ajuda com o relatório?
Naiovi suspirou, cruzou os braços, descruzou. Passou as mãos no rosto e nas laterais da cabeça raspada, como se tentasse espremer os pensamentos.
– Tá tudo… demais, Ethel. – A voz saiu baixa, mas firme. – O relatório, o musgo, o composto novo, os efeitos do acidente, o que Manturã me falou, a cicatrização de Moarã… Até mesmo essa questão diplomática que estamos discutindo agora. Vim pra cá com um objetivo. Só um. Pesquisar meios alternativos para purificação da água. Como vim parar aqui? Sinto que me distrai no caminho… E agora tenho que lidar com a consequência dos meus vacilos.
Ethel permaneceu em silêncio, os olhos semicerrados na direção do chão.
– Desde que Moarã se machucou, tudo desandou – continuou. – E você também não tem mais conseguido estar comigo no laboratório. Eu entendo. E eu sei que você acha que eu dou conta de tudo, mas...
– Por que não falou antes?
– Porque falar não resolve. Porque é perigoso parecer fraca. Porque eu sou de Kohr e sempre vão pensar que tenho segundas intenções. Se eu respiro errado, acham que tô espionando. Se eu me calo, acham que tô tramando. Se eu canso, vira pretexto.
– Eu nunca pensei isso de você.
– Mas pensa. Em algum nível, pensa sim. – A pausa foi longa, até que a voz de Naiovi voltou mais baixa. – E tem outra coisa. A tal da seiva de Ramuá… Manturã disse pra misturar com Citriomila. Que pode revelar o ponto certo da dor. Mas é instável. E a tal Pena-de-Anjo… o musgo… – ela balançou a cabeça, frustrada. – Ainda não entendi o mecanismo. Só sei que tem potencial pra reverter, neutralizar a toxicidade, mas mesmo assim não posso afirmar nada. Não com os dados que tenho. E Kohr já começou a pesar, a achar que tô escondendo coisas.
– Você tá escondendo coisa.
Naiovi riu sem humor.
– Sim. Mas não por mal. É por… prudência. Nem tudo que reluz é ouro, então não posso ser precipitada. Isso pode ser perda de tempo e energia tanto para Valeã quanto para Kohr. Podem ser falsas esperanças. Mas ao mesmo tempo, eu…
Ela não conseguiu terminar. Só sentou-se no banquinho ao lado da árvore e deixou o corpo inclinar-se para frente, cotovelos nos joelhos, mãos unidas, olhar baixo. Ficou assim um tempo, antes de sussurrar:
– Eu não tenho pra onde correr, Ethel. Nem como recuar.
Ethel se abaixou devagar ao lado dela, perto. Não disse nada de imediato. Ficaram apenas ouvindo os sons do quintal – algum passarinho, o estalar de galhos, um vento leve sacudindo as folhas. Depois suspirou e perguntou, com a voz suave:
– Você comeu hoje?
Naiovi não respondeu. Passou a mão pelo rosto de novo, como se a pergunta tivesse acionado um alarme no corpo.
– Acho que não – murmurou.
– Acha que não?
– Não comi.
– E dormiu?
– Mal.
– Banho?
– Rápido, ontem.
– Naiovi…
– Eu sei.
Ethel se levantou e estendeu a mão.
– Vem. A pesquisa pode esperar mais um pouco. A cicatrização de Moarã tá indo bem, eu mesma verifiquei agorinha. Kohr vai continuar cobrando mesmo que você desmaie em cima das anotações. E, honestamente, ninguém pensa direito de estômago vazio e cabeça fervendo.
Naiovi hesitou, mas aceitou a mão estendida.
– Às vezes esqueço como você é mandona.
– E que precisa ser cuidada de vez em quando.
– Isso é raro.
– Pois trate de se acostumar.
Naiovi deu uma risada curta e levantou-se de frente para Ethel com o olhar baixo.
– Tem uma torta de batata com lentilha que Guto entregou aqui hoje – disse Ethel. – E chá de cidreira com capim-limão. Vai te puxar de volta pro corpo.
– Parece amargo.
– Nem tanto, mas faz milagre. Igual certas conversas.
Ficaram em silêncio mais um pouco. Naiovi deixou Ethel guiar os passos de volta, andando logo atrás mais devagar do que o usual.
Quando voltaram para dentro de casa, a sala estava mais quieta do que deveria. A manta sobre o sofá já não tinha o peso do corpo. O prato com a infusão de ervas repousava vazio, como se tivesse sido deixado de lado no meio do caminho.
Ethel parou na porta, as sobrancelhas subindo devagar.
– Não acredito…
Naiovi fechou os olhos por um instante, inspirando fundo.
– Ela esperou a gente virar as costas.
– Óbvio que esperou – Ethel respondeu, a boca torcida entre irritação e respeito. – É a cara dela.
O silêncio seguinte não era de preocupação, mas de reconhecimento. Moarã estava onde queria estar: longe da vigilância, mesmo que com dor.
Naiovi apoiou as mãos na cintura, revisando mentalmente tudo o que ainda tinha que lidar: o relatório atrasado, o musgo que precisava analisar, o composto novo que não podia falhar, o processo de cura agora deixado à sorte – e, por cima de tudo, as dicas de Manturã ecoando como lembretes que ela não tinha tempo para seguir.
– Ótimo – murmurou. – Mais uma coisa pra minha lista impossível.
Ethel balançou a cabeça, cruzando os braços.
– Faz o que já ia fazer, Naiovi. Come, bebe alguma coisa e tenta descansar um pouco.
Naiovi arqueou a sobrancelha, quase rindo sem humor.
– Descansar?!
– É. Porque eu vou atrás dela – Ethel apontou para a porta, já ajeitando o casaco. – E trazer de volta nem que seja amarrada. Agora sim vou cobrar aquele barril!
– Você não está falando sério…
– Eu estou, sim. Se ela quer brincar de heroína, vai fazer isso debaixo de teto e com as costelas no lugar.
Ethel já tinha a mão na maçaneta quando a porta se abriu de fora para dentro. Moarã entrou como se nada estivesse acontecendo, equilibrando nos braços alguns pedaços de madeira maciça, de diferentes tamanhos e formatos, com o cheiro fresco de corte recente.
– Olha só quem deu as graças – Ethel disse, estreitando os olhos.
Moarã arqueou a sobrancelha, fingindo não notar o tom.
– Trouxe isso pra talhar. Pra não ficar parada. – Largou a madeira sobre a mesa com um baque seco, espanando a serragem da roupa. – O tédio é pior que a dor, e eu não vou ficar olhando pra parede.
Naiovi, ainda sentada, ergueu a cabeça lentamente, avaliando a cena.
– Então é isso? Sai de fininho e volta com… lenha?
– Não é lenha. – Moarã já começava a separar as peças, tocando a textura com os dedos. – É cedro. Bom de trabalhar.
Ethel cruzou os braços, o pé batendo no chão com impaciência.
– Tu sabe que eu estava prestes a ir te caçar, não sabe?
– Sei. – Moarã lançou um meio sorriso de canto. – Por isso voltei logo.
O silêncio que se seguiu não era de alívio, mas de um acordo silencioso: ninguém ali ia ganhar a discussão.
– Tá me devendo aquele fermentado.
– Podemos debater essa questão.
A madeira ficou de lado por enquanto. Moarã lavou as mãos no balde d’água e se sentou à mesa, onde Ethel começou a esquentar a torta. Naiovi, ainda com os ombros tensos, não resistiu à cerveja que Ethel serviu e empurrou para ela.
– Melhor que qualquer remédio de Kohr – Ethel disse, brindando no ar antes de tomar um gole.
Naiovi suspirou, deixando a espuma encostar no lábio antes de beber. Moarã apenas mastigava, sem pressa, mas com um olhar que indicava que estava ouvindo cada palavra. Conversaram sobre coisas simples – o clima, as notícias da praça, uma receita que deu errado – até que a noite se firmou, densa e silenciosa.
Ethel se levantou, esticando o corpo.
– Troca de turno – anunciou, divertida. – Agora é você quem vai ficar de olho nessa aí. – Fez um gesto com a cabeça em direção a Moarã.
– Algum manual específico que eu deva seguir?
– Come e bebe junto que dá certo. – Ethel pegou o casaco. – Amanhã cedo volto pra cá. Aí, sim, a gente fala dos novos rumos da pesquisa e distribui as funções sem essa bagunça de hoje.
Ao passar pela porta, se inclinou discretamente para Moarã e, num tom baixo que Naiovi não captou, murmurou:
– Ela tá exausta. Tenta colaborar, não dificulta.
Moarã, ainda com os braços cruzados sobre o peito, lançou um olhar curto, mas havia menos resistência naquela expressão do que de costume. Ela não respondeu, apenas acenou com a cabeça. O olhar rápido que lançou para Naiovi dizia que tinha entendido.
A guarda esperou o som dos passos de Ethel se perder na rua antes de se recostar na cadeira. Pegou um pedaço de pão, partiu ao meio e empurrou uma das metades para Naiovi.
– Como foi seu dia? – perguntou, olhando rápido, como se não quisesse parecer realmente curiosa.
– Longo… mas produtivo. E o seu?
Moarã soltou um sopro pelo nariz, algo entre riso e resmungo.
– Chato. Parado demais. – Encolheu os ombros. – Não nasci pra ficar sentada esperando o sol mudar de lugar. Me reuni com meus companheiros de guarda, repassei algumas funções, orientei… A burocracia acaba comigo. – Ela dizia tentando manter a postura, mas a mão ainda estava pousada instintivamente sobre o lado ferido, e a rigidez no corpo reclamava a dor.
– Reuniu? – perguntou, quase em tom de repreensão.
– Calma, eles vieram aqui. Pedi pra Ethel chamar.
– E ela foi?! – Naiovi se endireitou, o olhar desperto de novo.
Moarã apenas levantou um canto da boca, divertindo-se com a indignação.
– Já viu a distância daqui até o posto mais próximo? – respondeu Moarã, com um meio sorriso. – Não é tão longe quanto você pensa. Na verdade… é bem perto.
Naiovi estreitou os olhos, captando o subtexto.
– Ah.
– Estratégico. Pra quem precisa agir rápido, o ideal é que os olhos e os braços do posto estejam sempre a menos de cinco minutos de distância. Ethel só foi dar o recado e, quando voltei a piscar, já tinha trazido metade da guarda junto.
– Metade da guarda? – Naiovi ergueu uma sobrancelha. – E como foi essa reunião tão… rápida?
– Não foi metade da guarda, mas a metade dos que confio. – Moarã mastigou, pensativa. – Foi direta. Como sempre. – Bebeu um gole e começou a listar com naturalidade, sem perceber o quanto Naiovi observava cada palavra. – Jota veio primeiro. É o mais ansioso, já queria reorganizar toda a ronda noturna por conta própria. Tive que lembrá-lo que ferida ou não, quem comanda ainda sou eu. Diana chegou com aquele jeito dela. Já trouxe uma lista de suprimentos e um plano alternativo de vigia. Inteligente, mas às vezes esquece que nem tudo se resolve com eficiência. Lúcio ficou quieto o tempo todo, só observando. No fim, fez duas perguntas que ninguém tinha pensado. É o que mais presta atenção no que não é dito. Nicol atrasou, de novo. Disse que ficou preso nos fundos da taberna por causa de uma briga de aposta. – Ela riu. – Eu deixei passar. Ele é bom com gente, e o povo gosta dele. Sebastião trouxe mapas. E esse pão de mandioca. Disse que é pra garantir que eu “não morra de fome enquanto mando nos outros deitada”.
Naiovi ouviu tudo em silêncio, um pouco surpresa pelo tom quase carinhoso com que Moarã descrevia o grupo.
– Você fala deles como se fossem filhos. – comentou, não resistindo à provocação.
Moarã arqueou uma sobrancelha, divertida.
– Filhos não, camaradas. Diana e Lúcio são meus aprendizes diretos. Diana é cabeça fria, precisa aprender a ouvir. Lúcio é todo instinto, precisa aprender a esperar. Juntos, talvez virem gente.
– Tipo estagiários.
Moarã bufou, inclinando-se para trás na cadeira.
– Coloquei eles sob a responsabilidade de Jota. Ele segura a barra, ensina limites e já fez o trajeto de Guará. Se não, Diana e Lúcio me cobram, eles não deixam passar nada.
Naiovi repousou o copo sobre a mesa, o olhar se fixando em Moarã com atenção genuína.
– Jota, Nicol, Sebastião… Soa como um pequeno conselho.
Moarã soltou um riso baixo, curto.
– Talvez seja. – respondeu, apoiando os cotovelos sobre a mesa. – Jota não é o mais habilidoso, mas é confiável. Segura o posto quando eu não posso. Já aguentou mais bomba e sopra-sangue do que muita gente velha.
– E Nicol?
– Nick amedronta, mas o povo escuta ele. Tem jeito pra acalmar as coisas.
– Sebastião é antigo, quase uma lenda viva. Quando eu era aprendiz, ele já cuidava das fronteiras. Agora fica mais pelos mapas e pelos conselhos, é como se fosse a cabeça da guarda. Quando quer, se senta à roda dos anciãos.
– Quando quer?
– Ninguém aqui lidera a força. E imagina, ficar velha e ainda ser obrigada a fazer alguma coisa, tomar decisões…
– Mas ele é um ancião?
– Se tudo der certo, todo mundo aqui vai ser um dia. – Moarã riu da própria piada.
Naiovi coçou a cabeça, confusa.
– Espera… Achava que os anciãos representavam um grupo político.
– E não é, também?
– Mas qualquer um pode ser, é só ficar velho?
Moarã cruzou os braços, encostando-se para trás na cadeira, um sorriso torto escapando.
– Depende do que você chama de “qualquer um”. Aqui, ancião é quem sabe mais, quem já passou por suficiente pra poder guiar. Não é cadeira marcada, é respeito que se conquista, é história reconhecida.
Naiovi franziu o cenho, absorvendo cada palavra.
– Então… Não tem hierarquia?
– Hierarquia existe – respondeu Moarã, firme – mas não é linear. É mais como… círculos. Cada camada tem seu peso, mas ninguém manda sozinho. O poder se mostra quando você precisa dele, não quando quer ostentar.
Naiovi escutava em silêncio, fascinada. Moarã recostou-se, soltando um riso baixo, o olhar fixo em Naiovi.
– Falando nisso, Manturã deu as honras. – constatou, curiosa. – O que achou?
Naiovi inclinou-se um pouco para frente.
– Manturã me passou umas orientações. – A voz soava mais baixa, quase confidencial. – Vamos aplicar o composto uma vez ao dia, mas em dose mais leve, a noite. Nada tão concentrado quanto o que usamos na hora da queda.
Moarã a encarou, avaliando.
– Desde que não me deixe mole igual daquela vez.
– A ideia é justamente evitar isso. – O canto da boca de Naiovi ameaçou um sorriso cansado. – Mas vai precisar de paciência.
– Ótimo. Mais paciência… era exatamente o que me faltava – resmungou, mordendo o pão. Apoiou o cotovelo no encosto da cadeira, o corpo curvado para frente como quem procura uma posição menos incômoda.
Observava Naiovi de soslaio – não do jeito desconfiado de antes, mas com um reconhecimento silencioso. Havia algo no jeito da kohrriana ajeitar os talheres na mesa, um cuidado mecânico e preciso, que naquela hora parecia mais esforço do que hábito.
– Tá se arrastando – disse Moarã, fingindo estar distraída ao brincar com um pedaço de pão, mas o olhar não saiu dela.
– Não estou – Naiovi respondeu, voz baixa, sem convicção. – Só... Dia cansativo.
Moarã ergueu uma sobrancelha, semicerrando os olhos.
– Dia cansativo é quando você precisa correr atrás de um bezerro no brejo. Isso aí é mais pra “correu atrás de um bezerro no brejo e ainda levou um sacode dele”.
Naiovi soltou um riso curto, exausto.
– E amanhã tem mais.
– Amanhã tem mais – Moarã repetiu, mas com uma nota quase cúmplice.
Houve um silêncio breve, quebrado apenas pelo som distante do vento batendo na madeira da varanda. Moarã recostou-se, fechando os olhos por um instante.
– Passa aqui o tal desse composto leve, então. Antes que você desmaie aí.
Naiovi levantou-se e pegou o pequeno pote âmbar. Ao tocar a pele, os dedos estavam firmes, mas o ritmo era mais lento do que o habitual. Retocou o curativo, piscando devagar como se as pálpebras pesassem mais a cada segundo. Moarã, por outro lado, parecia ter tomado fôlego com a noite – ombros relaxados, voz firme, um leve sorriso de quem ainda podia passar horas acordada.
– Vai deitar – disse Moarã, sem rodeio.
– Hm. – Naiovi demorou a responder, olhando de esguelha. – Se eu dormir... você vai perambular por aí.
– Vou esculpir – respondeu como se fosse óbvio.
– Esculpir? – a voz dela arrastou um pouco.
– Sim. Sem fugir, sem sumir, sem pôr fogo em nada. – Moarã levantou as mãos num gesto quase teatral, jurando inocência. – É promessa.
Naiovi hesitou, ainda sentada, como se precisasse de uma prova maior. Moarã puxou um dos pedaços de madeira que trouxera mais cedo e sentou-se recostada no sofá, tirando da bainha um pequeno canivete afiado.
– E o que você faz com... isso?
Moarã encostou a lâmina, cortando a primeira lasca.
– Faço pra criança brincar, pra aniversários, cerimônias de união… alguns totens pra ritos, às vezes como encomendas se eu quiser e tiver tempo. Figuras, animais, gente… Às vezes só rabisco na madeira até não sobrar nada de reto. – disse, com um sorriso que parecia um misto de orgulho e diversão. – Então acho que faço para lembrar. Lembranças, lembrançonas e lembrancinhas.
Ela soltou uma risada curta, meio rouca, enquanto dava mais um golpe na madeira.
Naiovi esboçou um sorriso tímido, olhando para as pequenas esculturas espalhadas pela casa.
– Cerimônias de união? Casamentos?
– É... algo como o que vocês chamariam de casamento. – Sorriu e continuou: – Mas casamento é coisa dos tempos antigos, cheio de regras, papéis, igreja, governo no meio. Aqui não tem isso. Cerimônia de união é mais direto: é união, só isso. Uma promessa que cada um faz com o outro, do jeito que quiser e do jeito que pode cumprir. Sem ritual fixo, no ritmo de gente, na maré do momento. Leve, mais vivo, fluído. Pode durar um verão ou toda uma vida.
Naiovi sorriu de canto, sem energia para formular teorias. Moarã apenas continuou talhando, sem pressa. E a kohrriana percebia que aprendia mais sobre Valeã ali, ouvindo e vendo, vivendo, sem precisar de grandes esforços ou montes de livros e teorias. Fluído, como Moarã dissera que podia ser. Mais uma vez se viu aprendendo sem querer – quer dizer, não sem querer, mas sem a intenção de. Na verdade, queria sim, e adorava quando isso acontecia. E acontecia bastante quando estava com Moarã.
O silêncio que veio depois era tenro, quase confortável. Naiovi levantou-se e permaneceu parada, hesitando em ir para seu quarto.
– Se eu acordar e você tiver aprontado... – murmurou, já meio perdida no sono.
– Vou estar aqui. – Moarã cortou mais uma lasca, firme, sem pressa, com foco. – Esculpindo.
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Fim do capítulo
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