Cicatrizes Visíveis, Fissuras Silenciosas - Parte I
O centro de runas da cidade estava mais silencioso do que o habitual. O cheiro de terra molhada e folhas antigas pairava no ar. Lia, de joelhos no solo de pedra, rodeada por grimórios abertos e ingredientes místicos, tentava feitiços de localização um após o outro. Os dedos manchados de tinta de runas e sangue seco tremiam de exaustão.
Quando uma voz cortou o ar atrás dela, o corpo inteiro da Fênix enrijeceu.
— O que você faz tão concentrada? — Era Calíope.
O sangue de Lia ferveu, mas ela respirou fundo antes de se levantar.
— Procurando por você. — Disse, com calma forçada, fechando um grimório com um estalo.
Calíope caminhou alguns passos, os olhos brilhando de deboche.
— Por mim? Mas por quê? — A criatura fingia inocência, mas o sorriso torto denunciava o jogo.
— Onde você levou elas, Calíope? E por quê?
— Elas quem? Aah… então foi isso? — Ela soltou um riso baixo. — Achei que estava me procurando por saudades.
— Para com isso… — Lia se aproximou, o olhar firme. — Nós não precisamos fazer disso uma guerra. Só traz elas de volta.
O tom de Calíope mudou num piscar de olhos.
— Você realmente não sabe que tudo isso é por sua culpa?
— Como assim? — Lia perguntou, sentindo o estômago gelar.
— Você realmente achou que podia brincar comigo… e depois correr de volta pra vadia alada?
Lia estava perplexa, a relação dela com a Calíope sempre foi carnal, elas nunca trocaram palavras de afeto. Pelo contrário, Calíope costumava deixar claro o quanto menosprezava os humanos e que havia se envolvido daquela forma com Lia por curiosidade, para saber o que a Juma havia visto nela.
— Calíope… o que nós tivemos foi claro. Você nunca quis nada além daquilo e eu nunca prometi nada.
— Não? Eu te pedi pra morar comigo, Lia. Ou você esqueceu?
— Não. Você me pediu pra me juntar ao seu plano de dominação multiespécies… morar na sua nave, vi
rar sua aliada de guerra. Se queria outra coisa… devia ter dito.
Calíope riu, mas agora havia mágoa no fundo da voz.
— Eu vim aqui só te dar um recado Lia, eu não queria que você ficasse no escuro sem saber o porquê disso tudo.… — Ela se aproximou de Lia e tocou o rosto dela de leve, o toque breve, mas carregado de energia. — Sua irresponsabilidade amorosa mata. Já matou a Juma. Agora pode matar a Elisa… e os outros dois lixos que eu levei junto por acidente.
Lia sentiu o peso das palavras da outra.
— Calíope...— Lia pegou a mão dela e a encarou, olho no olho — Eu não tinha a intenção de magoar ou usar você, eu acreditava de verdade que estava sendo clara quanto às minhas intenções. Nós não precisamos derramar sangue para resolver isso. A Elisa, a Petúnia e a Patrícia não têm nada a ver com isso tudo.— Lia concluiu com ternura enquanto disfarçadamente, sem que Calíope percebesse, com aquele toque de mãos, a bruxa capturava um pouco da energia e aura de Calíope.
— Você partiu o meu coração e mulheres machucadas podem ser perigosas. — Calíope respondeu — Eu sei que a Elisa não é a única mulher na sua vida... Então vou te dar um conselho. Com as outras, não use elas como fez comigo. — Calíope concluiu desvencilhando-se do toque da outra e sumindo em uma luz branca.
Lia não tentou impedir, o toque, o toque tinha sido suficiente para Lia capturar o traço energético de que precisava.
Lia não perdeu tempo. Correu para casa, desceu até o porão, um gigantesco galpão subterrâneo, revestido de pedra negra e com um chão que brilhava como obsidiana polida. Estantes lotadas de grimórios, frascos, ossos e metais raros rodeavam o espaço. O cheiro de enxofre e magia crua era forte.
Lá ela ficou trabalhando em feitiços de rastreio, usando o que absorveu de Calíope e seu conhecimento mágico. Lia conseguiu fazer um mapa multiversal dos lugares que Calíope havia passado e conseguiu destacar três possíveis lugares para onde Elisa e as outras pudessem ter sido levadas, mas esse tipo de magia não era pura, usava sangue, ossos, e a energia que capturou de Calíope. A cada ritual, a sala parecia escurecer ainda mais. O tempo passou sem que ela percebesse, como se estivesse a parte do resto do mundo. Se fosse preciso, ficaria ali quantas horas fossem necessárias para localizar Elisa.
****
Dias passaram sem que Lia percebesse. Só foi interrompida quando o celular, largado no chão, vibrou insistente. Tinha lembrado que o celular existia há algumas horas. Tinha muitas mensagens e ligações, mas quem a ligava insistentemente naquele momento era Ariel.
— Oi Ariel. — Lia atendeu seca
— Faz três dias que você não dá notícias e me atende assim?! — A voz da amiga soava mais alívio do que raiva assim que a Lia atendeu a ligação.
— Três dias? Eu… não tinha percebido. Desculpa.
— Ninguém consegue falar com você! Onde você está? Ninguém consegue te encontrar nem entrar na sua casa. Eu estava começando a achar que você tinha sido levada também. — Ariel tinha um tom preocupado
— Desculpa mesmo Ariel, eu estou em casa… Eu reforcei a proteção com feitiços, ninguém consegue entrar além de mim ou sem minha autorização.— Lia disse
— Pois me autorize porque estou indo praí — Ariel mandou, encerrando a ligação.
Pouco depois, Ariel chegou, e a barreira mágica que antes impedia a entrada se abriu. A casa estava mergulhada em uma aura pesada.
Ariel entrou procurando Lia pelos cômodos, mas não achou, então ligou.
— Onde você está?
—No porão, a entrada é nos fundos ao lado do armário de vassouras. — Lia explicou
Ariel foi até lá, até o momento, mesmo já tendo ido aquela casa milhares de vezes Ariel não sabia da existência desse cômodo que era ridiculamente gigante, parecia um galpão de avião com um piso brilhoso preto, ao mesmo tempo que parecia um museu de itens mágicos.
Ariel entrou ficando deslumbrada com aquele espaço, mas logo avistou Lia que parecia eufórica olhando algo que pareciam hologramas do sistema solar, mas eram diferentes do que ela havia aprendido na escola.
— Eu consegui mapear os lugares onde a Calíope esteve nos últimos dias — Lia falou assim que Ariel se aproximou.
Tomou o restante do sangue grosso da taça, o que fez Ariel a encarar com uma preocupação genuína.
Lia sabia que Ariel desaprovava aquilo, ela mesma não aprovava, mas Elisa estava em risco, então ela não se importou em se justificar e seguiu explicando para Ariel o que tinha feito e o que conseguiu de direção até ali.
— Eu consegui identificar três para onde a Calíope pode ter levado elas…
Lia estava elétrica, aflita, então Ariel a parou segurando nos seus ombros
— E você pretendia ir sozinha para esses lugares Lia?
— Eu não posso colocar mais pessoas em risco, Ariel, eu não quero correr o risco de levar vocês pra outra prisão interdimensional. — Lia falou sentindo o peso e a culpa do que Calíope havia lhe dito antes.
— Lia, nós nunca deixaríamos você se arriscar sozinha e nos também queremos que elas voltem pra casa, então a gente tá nisso junto. — Ariel falou com carinho — Eu já liguei para Ísis e ela está vindo pra cá, então antes de a gente fazer qualquer coisa você vai tomar um banho, comer e descansar algumas horas e de manhã a gente vai nesses lugares que você achou. — Concluiu
— A gente não pode perder tempo… — Lia tentou argumentar, mas foi interrompida
— É madrugada, Lia, e você não dorme nem come desde que saiu lá de casa no sábado, então você vai fazer exatamente o que eu falei. — Ariel disse firme já guiando a amiga para saída daquele cômodo.
****
Enquanto Lia tomava um banho longo e necessário, Ísis chegou. Estava claramente recém banhada, o cheiro de limpeza entrou junto com ela, fazendo Ariel respirar o ar profundamente. Apenas sorriu brevemente e disse que Lia estava no banho, preferia evitar qualquer tipo de situação no momento, então evitava olhar Ísis nos olhos.
Ariel explicou a situação, o plano e falou que ia cozinhar algo, mas não tinha nada sustancioso na despensa, apenas besteiras. Ísis aproveitou o momento e deu uma aula para Ariel sobre culinária mágica. Enquanto fazia, explicou que era muito difícil criar comidas saborosas com magia, pois transformar uma coisa em outra, era basicamente manipulação de átomos e não bastava, somente, manipular os átomos para se transformarem no prato final. Era necessário saber quais eram os temperos e ingredientes que se uniriam para virar aquele prato.
Ariel observava encantada um amontoado de biscoitos recheados virar uma refeição completa e saborosa.
****
Lia terminou o banho e sentiu todo o peso de não ter descansado nos últimos dias, desceu as escadas sentindo o cheiro de comida na cozinha. Chegou quando Ísis terminava de transformar a janta.
— Nossa! Eu adoro a sua comida Ísis — Lia falou ao perceber que a outra havia feito.
Ísis se dirigiu até Lia, a abraçou amigavelmente e beijou sua cabeça.
Ísis não perguntou se a amiga estava bem por que era evidente que não, as olheiras e o rosto pálido de Lia gritavam que não.
— Vai dar tudo certo. — Disse Ísis. - Nós vamos encontrar elas.
As três jantaram juntas, tentando manter a conversa em assuntos leves. Ariel e Ísis decidiram passar a noite ali.
Lia subiu para o quarto e, pela primeira vez em dias, conseguiu dormir.
Enquanto isso, Ariel e Ísis ficaram na sala, conversando baixinho. Falaram sobre Eduarda, sobre o sítio que Ariel tinha emprestado. Sobre a Lia. No entanto, em algum momento, o assunto se voltou para elas. Ariel não conseguiu segurar a vontade de dizer que estava com saudade, mesmo que isso ferisse seu ego.
Em determinado momento elas se beijaram, primeiro um selinho roubado por Ariel, mas ao perceber que Ariel não continuaria, Ísis a puxou para um beijo longo, quente e íntimo, mas permaneceram apenas nisso e dormiram agarradas no sofá mesmo.
****
A luz da manhã invadia o quarto de Lia, que acordou se sentindo mais revigorada.
Ariel apareceu na porta com um sorriso cansado.
— Bom dia… coloca um casaco. Pode ser frio lá onde a gente vai.
Lia sorriu de volta e seguiu o conselho.
Na cozinha, Ísis e Ariel já tomavam café. Lia tomou um café enquanto revisavam o plano.
— Então a gente só… vai? Sem armas, sem um plano melhor? — Ísis perguntou.
— O plano é simples. Entrar, encontrar elas e sair. — Lia respondeu.
— Sério? Pensei que tínhamos realmente um plano. A gente deveria levar uma arma! — Ísis retrucou
— Desde quando você precisa de armas? — Lia perguntou
— Não preciso, mas armas são intimidadoras. — Ísis respondeu divertida
— Ok. Leve uma arma, então! Só não sei se será útil — Lia respondeu e elas riram. — Não temos tempo para elaborar mais que isso. Qualquer segundo que passamos sem fazer nada pode ser o que a Calíope precisa para foder com tudo!
— Certo, Lia! Faremos tudo que for preciso, mas lembra que estamos com você. Vamos ficar juntas até tudo isso acabar. — Ariel segurou na mão de Lia, olhando no fundo dos olhos da amiga. Ficou assustada quando Lia a deixou no escuro e desapareceu, dias atrás. Sabia que ela tinha essa mania de individualizar tudo quando está passando por problemas e tudo que não queria era que ela se isolasse em outra dimensão.
— Eu vou só ligar pra Hope antes de irmos, pra saber se ela conseguiu alguma coisa. — Lia concluiu.
— Oi, Lia… eu já ia te ligar também. — A voz cansada da garota atendeu.
— Oi, Hope, bom dia, desculpa está te pressionando com isso. — Lia respondeu
— Tudo bem, Lia, é importante! E eu tive uma visão, a Penélope conseguiu usar um aparelho mágico ou tecnológico, às vezes não dá pra diferenciar, mas enfim, em resumo ela conseguiu converter minha visão em vídeo e eu te mandei por mensagem. Toma cuidado, tá bom? — Hope explicou.
— Obrigada, Hope. Vou ver agora. — Lia disse e encerrou a ligação, voltando sua atenção de volta para Isis e Ariel. — Bom, nós temos a visão da Hope em vídeo, vou transmitir para TV. — Lia informou.
As três sentaram no sofá para assistir.
A imagem começou escura, somente com sons inteligíveis. Depois, havia um caminho; flashs de pessoas que elas não conheciam fazendo coisas aleatórias; flashs do rosto de Elisa; um foco em um beijo de Lia e Elisa.
As imagens eram como ver através dos olhos de Hope. Ela olhava ao redor como se procurasse algo, via uma luz cegante, mas depois havia novos flashs de Calíope, de Calíope e Lia juntas intimamente, um flash mais longo da visão que a Hope havia tido de Lia antes, o sangue, as maçãs os gemidos de dor e vida. Sobreposto a essa imagem, Hope agora parecia estar em uma colina, olhando uma cidade de cima. Ao fundo, um choro de criança que parecia resquícios da visão anterior. Por alguns segundos a tela ficou preta, como se Hope tivesse fechado os olhos, quando ela voltou a abrir surgiu novamente a vista da cidade. Tudo parecia muito prateado e iluminado, mas um lugar ao centro se destacava tanto pelo tamanho quanto pela quantidade de luz que saia de lá. Os olhos de Hope focaram naquele lugar, como se estivesse dando um zoom e em meio a isso, apareciam flashs dos momentos íntimos de Ísis e Lia na tarde antes da fatídica noite de jogos. Hope focou sua atenção e agora a imagem era apenas uma luz muito branca e intensa. No meio da luz tinha uma sombra; era Elisa!
Ao tentar focar mais, os flashs voltaram para Lia e Elisa, Calíope e Lia e por fim uma visão de Ísis deslisando a mão para dentro da roupa de Lia. E num súbito o vídeo havia sido encerrado.
Elas ainda não haviam falado para Ariel sobre aquela tarde, e as três se mantiveram em silêncio por alguns segundos, até que Ariel quebrou o silêncio.
— Isso que ela viu de vocês, ainda vai acontecer ou já aconteceu? — Ariel perguntou.
— Na verdade, Ariel, aconteceu na tarde da noite de jogos. — Ísis respondeu com sinceridade. — Íamos te contar… Mas não encontramos espaço.
Novamente o silêncio se fez presente, até que Ariel, magoada, se levantou.
— Eu vou tomar um ar.
Lia e Ísis se entreolharam.
— Eu vou falar com ela. — Lia disse.
E saiu atrás de Ariel para a varanda.
Lia encontrou Ariel na varanda, encostada no parapeito, tragando um cigarro de maconha que parecia aceso mais pela ansiedade do que pelo hábito.
Com o olhar carregado de mágoa, Ariel falou antes mesmo que Lia pudesse se aproximar.
— Eu não gosto de fumar com canalhas.
A frase bateu em Lia como uma bofetada. Ela respirou fundo, sabendo que aquele momento tinha chegado.
— A gente ia te contar, Ariel… Eu prometi que falaria se algo acontecesse entre a gente de novo. Mas… com tudo o que aconteceu, eu não tive espaço pra isso.
— Lia… Você é minha amiga. Você sabia o que eu sentia! — A voz de Ariel tremeu. — Pra começar… você não deveria nem ter feito! A Ísis… tudo bem… ela nunca me prometeu nada… Mas você? Você é minha amiga! E agora… Eu tô me sentindo uma otária.
— Eu sei que eu fui egoísta. Não pensei em como você se sentiria. — Lia abaixou o olhar, consciente da culpa que carregava. — Mas foi um encerramento… pra gente poder seguir. Eu e ela… a gente precisava desse fechamento.
— Uma delícia de encerramento, né? Espero que tenha valido o orgasmo! — Ariel cuspiu com sarcasmo, o veneno misturado ao choro contido.
Antes que Lia pudesse responder, Ísis apareceu na porta.
— Acho melhor irmos logo.
Ariel respirou fundo e recuou um passo.
— Alguém precisa ficar aqui… no caso de dar merd* e vocês não voltarem. Eu fico. — Ela cruzou os braços, o tom mais ríspido que nunca. — Até porque, eu não quero estar com nenhuma de vocês duas agora.
Lia e Ísis concordaram. Fazia sentido.
Mas antes de partir, Lia se aproximou de Ariel.
— Ariel… eu sei que você tá com raiva… mas… estando em outra dimensão, eu não vou poder te ajudar se… se as runas começarem a reagir de novo. Então, por favor… mesmo com tudo isso… tenta se manter calma. O colar vai te ajudar.
— Dois dos meus problemas estão indo pra outra dimensão agora. Então vai ficar tudo bem. — Ariel respondeu, seca.
— Bom, o lugar da visão da Hope parece muito com um dos pontos que eu marquei, então nós vamos lá primeiro.— Lia falou ignorando a ofensa e abrindo um portal, por onde ela e Ísis passaram esperando que estivessem indo para o lugar correto.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: