Segundo Encontro
Praça Dom José Gaspar — 15h37
O som das travas ainda vibrava no ar quando Verena se sobressaltou. O corpo inteiro reagiu como se tivesse levado um soco: a coluna rígida, a respiração presa, os olhos varrendo os vidros laterais em busca da origem. Um instinto antigo, moldado por anos de exposição pública, gritou dentro dela: alguém tinha visto.
Valentina encolheu-se no banco, o rosto escondido nas próprias mãos, como uma criança flagrada em algo proibido. O perfume doce ainda pairava entre as duas, misturado ao couro quente do carro e à eletricidade do beijo interrompido.
— Merda… — Verena murmurou, baixo, sem perceber. A voz saiu rouca, carregada de fúria e pavor.
Girou-se para trás, apoiando uma das mãos no encosto do banco, o peito arfando. O olhar encontrou Carol, a poucos metros, estática como uma testemunha que não deveria existir. O sangue subiu rápido demais à cabeça, as têmporas latej*v*m.
Do lado, Valentina soluçava, a respiração curta, o corpo encolhido no banco como se pudesse desaparecer dentro do tecido. O choro vinha sem som, mas encharcava o ar.
— Mas que merd*, Valentina… — a voz saiu tensa, mais áspera do que queria. — Não começa a chorar de novo agora.
A menina ergueu os olhos marejados, surpresa pela dureza. A dor no rosto era quase física, como se cada lágrima fosse uma acusação.
Verena passou as mãos pelos cabelos com violência, empurrando-os para trás, como se precisasse abrir espaço na própria cabeça para pensar. O coração disparava como em plenário, quando uma votação podia ruir em segundos, mas aquilo era infinitamente pior. Ali, não havia estratégia, nem blindagem, nem advogado que pudesse reverter. Havia apenas três pessoas. Três. E já era gente demais.
Olhou de novo para fora. Carol permanecia plantada na frente do carro, os olhos arregalados, o controle ainda na mão, como se tivesse congelado no instante do disparo do alarme. O tempo parecia se arrastar entre elas, e cada segundo era uma corda se apertando no pescoço da deputada.
Verena apertou o volante com força, como se a textura do couro pudesse devolver algum controle. Olhou para Valentina e o tom, mesmo baixo, soou como um golpe:
— Agora já era.
A frase caiu pesada, sem espaço para consolo. Era um diagnóstico cru, seco, o mais próximo que Verena conseguia chegar da verdade sem despencar de vez.
Praça Dom José Gaspar — 15h43
O silêncio era tão espesso que parecia ocupar cada centímetro do carro. Verena fechou os olhos por um instante, respirou fundo e, com um gesto calculado, abaixou o vidro do lado dela. O ar da praça entrou carregado de poeira, o cheiro de gasolina misturado ao das árvores próximas.
Carol deu um pequeno sobressalto quando o vidro deslizou. Os olhos estavam arregalados, o controle ainda firme entre os dedos trêmulos.
— A chave. — disse Verena, a voz firme, sem levantar um tom.
Não houve hesitação. A jovem estendeu a mão, depositando as chaves sobre a palma que se projetava para fora da janela. Não ousou falar nada. A respiração curta denunciava que o choque ainda lhe apertava o peito.
Verena fechou os dedos sobre o metal, trazendo-o para dentro como se trancasse junto a própria vergonha. Ajustou os óculos no rosto, uma barreira improvisada contra a vulnerabilidade que ameaçava escapar pelos olhos.
Virou-se de volta para Valentina. A menina estava imóvel, o rosto ainda marcado pelo choro, os dedos entrelaçados no tecido da calça. Sentiu a pureza daquele gesto infantil esmagar seu coração mais do que qualquer manchete poderia.
— Entra — disse, baixo, quase suave, mas sem margem para discussão. —Eu levo vocês pra casa.
Carol desviou o olhar por um segundo, como se buscasse coragem no chão rachado da praça. O coração ainda batia no ritmo do que tinha visto — um beijo, que nunca deveria ter acontecido. Mas abriu a porta de trás e deslizou para dentro. O banco de couro cedeu sob o peso seu peso leve, o som discreto ecoando no interior fechado.
Verena engatou a primeira marcha devagar. Na frente, Valentina permanecia curvada, os olhos vermelhos, a respiração curta, as mãos espremidas contra o colo. Verena, ao lado, ajeitou novamente os óculos escuros, como se quisesse esconder não apenas os olhos, mas toda a desordem que pulsava por trás deles.
O motor voltou a ronronar, grave, uniforme. O carro avançou lentamente pela rua, mas lá dentro, ninguém parecia respirar direito. Três silêncios diferentes preenchiam o veículo: o de Valentina, carregado de culpa e desejo, o de Carol, duro, vigilante, e o de Verena, denso, sufocado, como se uma mulher inteira tentasse se sustentar sobre as ruínas de um segredo.
Audi A4 — 15h50
O carro avançava devagar pela Rua da Consolação, mas dentro dele o ar parecia parado. O ronco baixo do motor era o único som contínuo, preenchendo um silêncio que ninguém ousava quebrar.
Valentina mantinha os olhos fixos nos próprios joelhos, as mãos espremidas contra a calça gasta e amassada, os dedos entrelaçados com força até ficarem brancos. O coração batia tão rápido que parecia tremer no pescoço. Cada semáforo fechado prolongava a agonia: a sensação de estar exposta, de que a qualquer instante o mundo inteiro poderia adivinhar o que tinha acabado de acontecer.
Carol, no banco de trás, olhava pela janela, mas seus olhos não viam nada da cidade que passava. A mente rodava, em alerta, ensaiando frases que não dizia: isso é loucura, isso vai destruir você, isso não pode continuar. O corpo rígido denunciava sua função naquele momento — guardiã improvisada, atenta a cada gesto da amiga.
Verena mantinha as mãos firmes no volante, mas os nós dos dedos estavam tensos demais. O rosto, parcialmente coberto pelas lentes escuras, escondia pouco: a mandíbula contraída, a respiração pesada. Tentava manter o carro num ritmo uniforme, como se a estabilidade da máquina pudesse impor estabilidade às três. Mas cada segundo era um peso esmagando o peito.
E então, o silêncio foi quebrado pelo corpo de Valentina.
Primeiro, um suspiro mais longo, quase um gemido contido. Depois, o rosto pálido, os lábios entreabertos. A menina levou uma das mãos ao estômago, como se buscasse apoio, mas logo em seguida soltou um sussurro frágil:
— Eu… tô meio tonta.
Verena virou o rosto num reflexo rápido, os óculos deslizando um pouco pelo nariz.
— Como assim, tonta? — a voz saiu firme, mas o tom denunciava pânico.
Valentina não conseguiu responder de imediato. Encostou a cabeça no vidro da janela, os olhos semicerrados.
— Valen… — Carol se inclinou para frente no mesmo instante, o cinto de segurança esticado. — O que foi? Olha pra mim.
O semáforo fechou. Verena bateu a mão no volante, impaciente, e acelerou o pensamento mais do que o motor. Estendeu o braço e tocou de leve o ombro da menina, sentindo o corpo trêmulo sob a ponta dos dedos.
— Valentina, fala comigo. — exigiu, agora sem máscara de controle.
O rosto da garota estava pálido, um suor frio despontando na testa. O coração da deputada com uma consciência brutal: não era mais uma questão de segredo, ou de desejo, ou de política. Era uma adolescente ao seu lado, à beira de desmaiar — e se isso acontecesse ali, dentro, nada no mundo conseguiria apagar a cena da memória de quem estivesse presente.
Audi A4 — Rua da Consolação — 15h55
O corpo de Valentina pendeu contra o vidro, os olhos semicerrados, os lábios trêmulos. O suspiro não parecia mais ansiedade, era fraqueza. Verena percebeu no mesmo instante.
— Droga… — murmurou, e girou o volante para a direita com precisão brusca.
O Audi atravessou a faixa e encostou rente à calçada, sob a sombra curta de uma árvore. O motor ainda vibrava quando Verena puxou o freio de mão, destravou o próprio cinto com impaciência e se inclinou de imediato para o lado da menina.
— Respira fundo. — pediu, com a voz grave, mas firme, quase como uma ordem. — Olha pra mim.
Valentina tentou erguer o rosto, mas os olhos marejados desfocavam tudo. Um suor frio escorria pela têmpora, e as mãos tremiam desajeitadas sobre o colo.
— Ela vai desmaiar! — Carol gritou de trás, já sem filtro, o corpo projetado pra frente, o cinto esticado ao máximo. — Faz alguma coisa!
Verena puxou o cinto de segurança da menina e destravou com um clique seco. Apoiou a mão na nuca dela, firme, erguendo-a de leve. O coração batia descompassado, mas o rosto mantinha uma máscara de comando.
— Abre a janela, Carol. — ordenou, sem olhar pra trás. — Agora.
O ar abafado da rua entrou de imediato, carregado de poeira e fumaça. Verena usou a outra mão para segurar a da garota, quente e trêmula.
— Você vai ficar bem, ok? — disse, a voz baixa, mas incisiva, próxima ao ouvido dela. — Fica comigo, respira.
Valentina puxou o ar em soluços curtos, quase um choro. A cabeça caiu contra o ombro de Verena, que a sustentou sem hesitar. A camisa polo clara ficou úmida de lágrimas e suor.
— Isso, isso… — Verena murmurava, como quem conduzisse alguém de volta do abismo. — Continua. Respira.
Carol, do banco de trás, tremia de raiva e medo. — Eu sabia que isso ia acontecer! — explodiu. — Ela não tá aguentando, Verena!
— Cala a boca e ajuda. — Verena devolveu, seca, sem perder o ritmo das carícias na nuca da menina. — Tem água com você?
Carol abriu o zíper às pressas, jogando a pequena garrafa de água pela brecha entre os bancos. Verena pegou, girou a tampa com os dentes e encostou o bico gelado nos lábios de Valentina.
— Um gole só. — pediu, quase sussurrando. — Vai devagar.
A menina obedeceu com dificuldade, a garganta se movendo num esforço mínimo. A água escorreu pelo canto da boca, molhando o queixo. Verena limpou com o polegar, num gesto tão íntimo que fez Carol cerrar os punhos no banco de trás.
Valentina respirou de novo. Mais fundo, mais lento. O peito subia e descia ainda rápido, mas já havia sinal de que o corpo resistia.
Verena encostou a testa de leve no cabelo úmido da menina, fechando os olhos por um instante. A máscara de comando cedeu, e pela primeira vez o rosto se revelou no que realmente era: medo puro.
Audi A4 — Rua da Consolação — 16h20
O corpo de Valentina parecia ter perdido peso. Encostada no ombro de Verena, deixava-se sustentar como quem cede ao próprio esgotamento. A respiração vinha aos poucos, cada vez mais profunda, embora irregular, marcada por soluços.
— Assim… isso. — Verena murmurava, a boca próxima demais ao ouvido dela. — Continua. Respira comigo.
Verena mantinha o carinho com o polegar, fazendo círculos lentos na nuca da menina, tentando acalmá-la. O gesto era tão instintivo quanto perigoso. Carol observava com um nó na garganta, os punhos cerrados, sem saber se queria puxar a amiga dali ou simplesmente acreditar que ela voltaria a si.
— Eu… tô melhor. — Valentina murmurou, ainda fraca, a voz falhando no meio da frase.
Verena inclinou-se para olhá-la de frente. O rosto estava pálido, mas os olhos já não estavam tão vidrados. A gota de suor na têmpora havia secado no tecido da própria camisa. A deputada soltou um suspiro que misturava alívio e exaustão.
— Graças a Deus… — escapou, baixo, quase inaudível.
Ainda ofereceu mais um gole de água, e Valentina bebeu devagar, apertando a garrafa com mãos ainda trêmulas. Carol esticou o corpo para frente, segurou a mão da amiga e a manteve firme por alguns segundos.
— Você quase apagou. — disse, num tom grave, sem disfarçar a raiva. — Você tá melhor mesmo Valen?
Verena não respondeu. A mandíbula contraída revelava que ela pensava o mesmo, mas em outro registro: não como amiga ou guardiã, e sim como adulta que sabia o tamanho da catástrofe se o pior tivesse acontecido.
Silêncio. Só os três corações batendo rápido no mesmo espaço confinado.
Verena respirou fundo, ajeitou Valentina contra o banco e esticou o braço para alcançar o volante. A marcha engatada fez o carro avançar com suavidade, retomando a vida da cidade à volta delas: buzinas distantes, semáforos alternando, pedestres atravessando a rua sem imaginar o que se passava dentro daquele Audi.
Mas lá dentro, o silêncio era quase palpável. Carol olhava pela janela, os olhos fixos, como quem vigia o mundo externo para manter a mente longe do que tinha visto. Valentina, ainda frágil, apoiava a testa no vidro frio, sentindo o corpo se recompor devagar, mas o coração continuar em disparada.
Verena mantinha as duas mãos no volante, os olhos fixos na rua à frente. Os óculos escuros já não escondiam a tensão do maxilar, nem a veia saltada no pescoço. Cada metro percorrido era uma vitória contra o caos — mas também a confirmação de que nada voltaria a ser igual depois daquela tarde.
Audi A4 — 16h42
O GPS anunciava cada curva com a voz metálica e indiferente, como se não soubesse que dentro do carro o mundo tinha desabado. Verena seguia as instruções mecanicamente, os olhos fixos na avenida, mas a mente presa ao banco do passageiro. Valentina respirava melhor agora, embora ainda pálida, a testa encostada no vidro gelado. Carol, mantinha-se em silêncio absoluto, mas com o olhar cortante no retrovisor, vigiando cada gesto da deputada.
Pouco depois, entraram numa rua estreita, ladeada por casas simples e muros pintados de cores gastas. Verena reduziu a velocidade e estacionou diante da casa de Carol. Colocou o carro em ponto morto, ajustou os óculos, tentando parecer no controle.
— Chegamos. — anunciou, num tom controlado demais para soar natural.
Carol soltou o cinto, abriu a porta traseira e saiu primeiro. Deu a volta pelo carro, parou ao lado da janela do passageiro e chamou:
— Vamos, Valen. — disse, a voz firme, mas doce. — Vem comigo.
O coração de Verena disparou. Não. Ainda não. Os minutos que restavam eram preciosos, necessários. A garganta secou.
— Espera… — tentou, a mão ainda firme no volante. — Eu pensei em levar a Valentina até em casa. Assim eu fico tranquila de que ela tá bem.
Carol arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços. O olhar não era de desafio aberto, mas de desconfiança silenciosa.
Valentina, confusa, olhou da amiga para Verena, os olhos grandes, vulneráveis. O corpo hesitando entre sair e ficar, como se qualquer movimento pudesse ter consequências irreversíveis.
Verena inclinou-se levemente para frente, tentando não parecer ansiosa demais. Mas a voz traiu a urgência:
— São só alguns minutos a mais. — disse, baixo, como se fosse uma súplica escondida sob a razão.
O silêncio pairou. Carol apoiou a mão no ombro da amiga, num gesto protetor.
— Agradeço a senhora, mas já tínhamos combinado dela ficar aqui em casa.— insistiu.
Verena sentiu o estômago se contrair. E agora? O plano improvisado desmoronava, e ela, acostumada a virar votações inteiras em plenário com um único argumento, não encontrava uma saída convincente para duas adolescentes.
Os olhos verdes, escondidos atrás das lentes escuras, voltaram-se para Valentina. E pela primeira vez, não era ela quem tinha o poder.
Rua da Casa da Carol — 16h47
Carol se inclinou, abriu a porta do passageiro e, sem pedir licença, estendeu a mão para a amiga.
— Vamos, Valen. — disse, sem espaço para negociação.
Valentina demorou a reagir, os dedos presos ao fecho do cinto de segurança como se pesassem toneladas. Seus olhos buscaram os de Verena por um instante — olhos verdes escondidos atrás dos óculos escuros, mas que ardiam numa súplica muda.
Verena sentiu a garganta fechar. Quis dizer algo, qualquer coisa. Quis pedir mais dois minutos, mais um respiro ao lado dela. Mas as palavras não vieram. E quando vieram, eram frágeis demais para sair.
Carol não esperou. Com delicadeza firme, destravou o cinto, tocou o braço da amiga, puxando-a para fora. Valentina obedeceu quase em transe, deixando-se guiar.
Verena observou em silêncio, os dedos crispados no volante, a boca entreaberta num desespero contido. O som da porta batendo pareceu definitivo, como o martelo de um juiz encerrando um processo.
Carol passou o braço em volta da amiga e a conduziu em direção ao portão. Valentina olhou para trás, só uma vez. Um olhar rápido, culpado, desesperado, mas suficiente para atravessar Verena como uma lâmina.
Sozinha atrás do vidro fumê, a deputada sentiu o peito pesar. Não havia estratégia, argumento ou voto capaz de virar aquele resultado. Tinha perdido a batalha — e sabia.
Rua da Casa da Carol — 16h52
O portão de ferro rangeu quando Carol empurrou, conduzindo Valentina para dentro da casa simples de fachada pintada em um tom apagado de verde. As duas logo entraram na casa, e o som do trinco se fechando chegou até Verena como o estalo de um tiro.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. O motor do Audi ainda pulsava, grave, e o som abafado de um vendedor de picolé passando pela rua contrastava com o caos dentro dela.
Verena soltou o volante de repente, as palmas úmidas, e bateu com força no couro, uma, duas vezes, três vezes.
— Merda! Merda! Merda! — o grito ecoou no habitáculo fechado, rouco, quase irreconhecível.
Jogou o corpo para trás no banco, respirando como quem tivesse corrido quilômetros. Tirou os óculos, atirou-os sobre o painel, e massageou o rosto com as duas mãos. Os dedos tremiam.
O reflexo no retrovisor devolveu-lhe uma imagem que odiava reconhecer: a mulher poderosa, controlada, estava desfeita. Os olhos marejados, o maxilar travado, a boca carregando o gosto de um beijo tão curto, mas tão potente. Um retrato de derrota.
Ela riu. Um riso curto, sem graça, nervoso, que logo virou um suspiro engasgado.
— O que você tá fazendo, Verena? — murmurou para si mesma, a voz baixa, ferida.
No peito, o coração ainda batia no ritmo descompassado de quem tinha sido arrancado do lugar. Na pele, o cheiro doce da menina ainda parecia grudado.
Por um instante, deixou a cabeça cair contra o volante. O couro gelado encostando na testa, os olhos fechados, o corpo inteiro latejando entre desejo e culpa.
Lá fora, o mundo seguia indiferente. Um cachorro latiu na esquina. Um ônibus passou com o barulho metálico dos freios.
Dentro do carro, porém, Verena Castilho se permitia ruir.
Casa da Carol — 16h54
A porta ainda não tinha terminado de fechar e Valentina já despencava no sofá antigo da sala, o corpo em convulsões de choro. O cabelo colava no rosto molhado, a mochila escorregou do ombro e caiu no chão com um baque seco.
— Valen! — Carol ajoelhou-se à frente dela, tentando segurar-lhe o rosto. — Ei, olha pra mim… tá tudo bem, você tá aqui comigo.
Mas Valentina não conseguia. O peito arfava, as mãos pressionavam os olhos como se quisesse arrancar de dentro deles a cena que acabara de viver. A respiração era curta, descompassada, quase um soluço contínuo.
Carol respirou fundo, tentando manter a própria calma. Segurou as mãos da amiga, afastando-as do rosto. O coração acelerado não era só pelo medo — era também pela dimensão que a situação tinha tomado.
— O que foi que aconteceu lá dentro? — a voz saiu trêmula, mas firme. — Ela… fez alguma coisa com você?
Valentina sacudiu a cabeça em negação, lágrimas escorrendo pelo queixo. Tentou falar, mas a voz não saía. Apenas um sussurro quebrado:
— Eu não consigo… eu não consigo…
Carol puxou-a para um abraço forte, sentando-se ao lado dela. A sala cheirava a desinfetante barato e o som cotidiano da vizinhança — panela batendo, uma criança gritando no quintal — parecia vir de outro planeta.
— Shhh, calma. Respira comigo. — Carol apertava o abraço, como se quisesse conter o choro da amiga dentro do próprio peito. — Um, dois, três… devagar. Você tá segura, ouviu?
Valentina tentou acompanhar, mas soluçava. Seguiu um, dois ciclos de respiração, até conseguir murmurar, num fio quase inaudível:
— Eu deixei… eu deixei acontecer.
Carol afastou-se só o suficiente para encará-la. O olhar firme, duro, mas cheio de ternura.
— Não. Você não deixou nada. Você só tá… envolvida. É diferente.
Mas Valentina balançava a cabeça, insistindo no peso da culpa.
— Eu senti… eu senti coisas. — apertou o punho contra o peito. — Não era pra eu sentir. Deus sabe que não era.
Carol engoliu em seco, sem saber por onde começar. O rosto da amiga, vermelho e molhado, parecia o de uma criança quebrada. A sensação de impotência doía.
Ela então puxou Valentina de novo para o colo, acariciando-lhe os cabelos, murmurando baixinho:
— Você não tá sozinha, Valen. Eu tô aqui. E a gente vai achar um jeito. Nem que eu tenha que ficar colada em você vinte e quatro horas por dia.
Valentina soluçou contra o ombro dela, agarrando o tecido da camiseta como se fosse a última tábua no mar revolto.
Naquele instante, Carol sabia: Valentina não estava só confusa. Estava em queda livre. E ela seria a única rede possível — mesmo que não tivesse ideia de como segurá-la.
Apartamento no Jardins — 18h10
O portão eletrônico subiu devagar, rangendo no fim do curso, e o Audi deslizou para dentro da garagem. Verena deixou o motor desligar sozinho, os faróis ainda acesos por alguns segundos antes de apagarem. Ficou sentada no banco do motorista, as mãos paradas no volante. O silêncio ali dentro parecia mais cruel do que o barulho do trânsito que tinha atravessado até chegar.
O peito ainda carregava o perfume doce de Valentina, misturado ao couro do carro. Um veneno lento, que ela aspirava sem querer. Apertou a ponte do nariz, tentando expulsar o cheiro, a lembrança, a imagem do beijo interrompido.
Respirou fundo. Endireitou a postura. O reflexo no espelho interno devolvia uma mulher impecável: cabelos novamente alinhados, camisa sem um amasso, mas os olhos… os olhos denunciavam o cansaço e o desespero.
O corredor do nono andar estava silencioso quando Verena saiu do elevador com as mãos ocupadas. De um lado, o buquê de lírios brancos — flores que Silvia sempre dizia que perfumavam a casa sem exagero. Do outro, uma sacola pequena de uma loja infantil no Paraíso, onde havia parado no caminho de volta. Dentro, embrulhado em papel fino, estava um par minúsculo de sapatinhos de tricô na cor creme.
Era um gesto desesperado de quem não sabia mais como costurar o que tinha rasgado. E, ainda assim, o estômago de Verena revirava ao lembrar do beijo, do carro, de Valentina. A cada passo, o peso da culpa parecia maior do que qualquer mentira que já sustentara em toda a vida.
Girou a chave, entrou. O apartamento estava iluminado apenas pela luz amarelada da sala. Silvia estava sentada na poltrona de couro clara, um livro aberto no colo, óculos de leitura escorregando no nariz. Não parecia ter lido uma linha sequer.
Verena parou na porta, apoiando-se no batente.
— Cheguei. — disse, num tom que misturava anúncio e pedido de desculpa.
Silvia, ao ouvir a porta, ergueu o olhar por cima das lentes.
Verena fechou-a com calma, forçando o corpo a manter uma naturalidade que não sentia. Depositou o buquê sobre a mesinha de centro, ao lado do processo aberto da esposa. O perfume dos lírios espalhou-se no ar como uma tentativa de disfarce.
O silêncio durou mais do que deveria.
— Flores? — Silvia perguntou, como quem constata um detalhe incômodo, não como quem agradece.
Verena tentou sustentar a naturalidade, mas a própria voz saiu baixa:
— São pra você.
Silvia não agradeceu de imediato. Olhou os lírios como quem olha uma pista de algo maior, sem saber se queria decifrar.
— E a caixa? — perguntou, notando o embrulho na mão da esposa.
Verena hesitou. O coração batia tão forte que parecia querer denunciar cada passo em falso. Entregou o pequeno pacote. Silvia recebeu, desconfiada. Abriu devagar.
Dentro, um par minúsculo de sapatinhos de tricô.
O ar mudou.
Silvia parou, encarando-os como se fossem um objeto de outra vida. Um nó subiu pela garganta. A primeira reação foi o silêncio, pesado, absoluto. Depois, ergueu os olhos claros, marejados para Verena.
— O que é isso? — A voz dela estava firme, mas não escondia a vulnerabilidade que tremia no fundo.
Verena engoliu seco. — Eu… achei que… depois da consulta… Depois de... tudo, talvez fosse um jeito de mostrar que eu ainda quero isso com você.
Silvia fechou a caixa com cuidado excessivo, quase como se tivesse medo de quebrar os sapatinhos. O choque ainda estampado no rosto, a raiva surgindo por trás do olhar vulnerável.
— Palavras, Verena. Você é especialista nelas. — Deixou o objeto de volta na mesa, ajeitando-o como quem devolve algo emprestado. — Mas eu já aprendi a não acreditar só no que você diz.
Verena aproximou-se, o impulso quase desesperado de segurar-lhe a mão, de pedir mais uma chance estampado no rosto.
— Eu vou provar. — insistiu, a voz embargada pela própria urgência. — Eu vou te mostrar que é sério.
Silvia não recuou, mas também não cedeu. Apenas ajeitou a postura, cruzou os braços e virou o rosto para a janela.
— Então comece provando com presença. Sem desculpas. — fez uma pausa curta, controlada. — Porque eu não tenho mais energia pra discursos.
Silvia inspirou fundo, fechando os olhos por um momento. Quando abriu de novo, havia lágrimas represadas, mas não derramadas.
— Eu só quero paz, Verena. — disse, a voz baixa, sincera. — Só isso.
Verena, sem pensar, ajoelhou-se diante da esposa. Segurou-lhe as mãos com firmeza, como se nelas estivesse a última âncora que restava.
— Então me deixa tentar te devolver essa paz. — pediu, quase num sussurro. — Nem que eu precise reconstruir cada pedaço nosso, um por um.
Silvia ficou imóvel, respirando fundo, o olhar perdido nas mãos presas entre as da esposa. Não disse sim. Não disse não. Apenas deixou que o silêncio respondesse por ela e, mais uma vez, sentindo-se traída pelo próprio coração, consumida por um amor que a cada dia, sentia manter sozinha.
Verena ficou parada, sentindo o peso das palavras. As flores e os sapatinhos sobre a mesa. Símbolos de um futuro que ela queria desesperadamente salvar, mesmo que dentro dela ainda ecoasse um sentimento proibido.
E naquele contraste brutal — Silvia, fria, e Valentina ainda quente na memória — Verena percebeu que estava prestes a enfrentar a maior batalha de sua vida.
Apartamento Verena e Silvia — 21h28
O quarto estava mergulhado em penumbra, iluminado apenas pelo abajur da mesa de cabeceira, cuja luz amarelada projetava sombras suaves na parede bege. O silêncio da cidade alta chegava abafado pelas vidraças duplas, interrompido apenas pelo ruído distante de um carro na avenida lá embaixo.
Silvia estava deitada de lado, costas voltadas para a esposa, o lençol leve marcando o contorno de seu corpo esguio. Os cabelos castanhos claros, soltos, espalhavam-se pelo travesseiro como uma moldura suave, e o ombro nu denunciava que ela havia dispensado o pijama em favor apenas de uma camisola fina de cetim azul-claro. Respirava fundo, mas não de sono — mas sim um esforço para manter a calma, para não dizer o que ainda queimava na garganta.
Verena demorou alguns segundos antes de se deitar. Colocou o celular no criado, retirou os óculos e passou a mão pelos cabelos soltos, gesto que denunciava o nervosismo. O corpo parecia pedir descanso, mas a mente permanecia em turbulência. Aproximou-se devagar, deitando-se ao lado da esposa com uma camisa branca, marcando o contorno dos seios, os movimentos contidos como se pisasse em território minado.
O colchão afundou ligeiramente e Silvia se encolheu um pouco mais, quase imperceptível. Verena notou. Sentiu a distância não em metros, mas em camadas de silêncio.
Virou-se para o lado dela, apoiando o cotovelo no travesseiro, observando a curva delicada das costas. Estendeu a mão com hesitação, parando a poucos centímetros. Respirou fundo e, vencendo a própria resistência, pousou a ponta dos dedos no braço exposto da esposa.
Silvia não se moveu. Nem recuou, nem correspondeu. Apenas permaneceu imóvel, como se testasse até onde Verena iria.
— Sil… — a voz de Verena saiu mais baixa do que pretendia, grave, quase um sussurro. — Eu não quero terminar o dia assim com você.
O silêncio prolongado parecia mais duro que qualquer palavra. Só depois de alguns instantes Silvia respondeu, sem virar o rosto:
— Eu também não queria. Mas não dá pra simplesmente apagar tudo o que aconteceu Verena.
A frase cortou o ar. Verena fechou os olhos, buscando forças para não se defender de imediato. Moveu a mão devagar, deslizando os dedos pelo braço de Silvia até encontrar sua mão. Tocou de leve, numa tentativa tímida de entrelaçar os dedos.
— Eu errei. — disse, firme, mas com o timbre quebrado pela confissão. — Mas tô aqui. Tô tentando.
Silvia soltou o ar devagar, como quem segurava há horas. Não retirou a mão, mas também não apertou a de Verena. O peso da mágoa ainda estava ali, denso, respirável.
— Às vezes parece que você só se lembra de mim quando sente medo de me perder. — murmurou, agora com a voz embargada.
Verena sentiu o estômago revirar. Não tinha resposta. Apenas se inclinou, roçando o rosto nos cabelos da esposa, aspirando o perfume suave de lavanda que vinha da pele dela. Fechou os olhos, como se pudesse pedir perdão naquele gesto silencioso.
Silvia, ainda rígida, deixou escapar um mínimo estremecer, como se a barreira tivesse uma rachadura. Mas não se virou. Não ainda.
E assim ficaram: duas mulheres na mesma cama, unidas pelo toque frágil das mãos, mas separadas por tudo aquilo que não conseguiam dizer em voz alta.
Casa da família Moraes — 22h14
A televisão velha chiava baixinho na sala, transmitindo um jornal local que ninguém prestava atenção. O sofá gasto, coberto por uma manta florida, abrigava Carlos em camiseta surrada, pernas esticadas, o braço apoiado no encosto. Ele mexia no celular, sem pressa, enquanto Ana Paula recolhia as últimas canecas da pia. O cheiro de café requentado ainda impregnava o ar, misturado ao da comida do jantar.
— Você reparou? — disse ele, sem levantar os olhos. — A Valentina não para mais em casa. Todo santo dia na rua.
Ana Paula enxugou as mãos no pano de prato e suspirou, tentando não demonstrar irritação.
— Ela tá com a Carol. Melhor amiga dela desde pequena. É só isso, Carlos.
— Só isso nada. — Ele ergueu o rosto, franzindo a testa. — Se fosse de vez em quando, vá lá. Mas todo dia? E volta sempre de cara fechada. Parece que tá escondendo alguma coisa.
Ana Paula se recostou no batente da porta da cozinha, cansada.
— Adolescente, Carlos. Você já esqueceu como é? São os hormônios, é amizade grudada, é querer ficar fora. Pelo menos não tá na rua com qualquer um. Tá com a Carol, que é uma boa menina.
Carlos resmungou, voltando o olhar pro celular. Não estava convencido.
Ele ergueu os olhos, ainda desconfiado.
— Mas não te incomoda? Essa idade, essa fase… Eu não sei, parece que ela tá escondendo alguma coisa.
— Adolescente é assim mesmo. — respondeu, tentando soar firme. — Eu prefiro que seja com a Carol. A menina é direita. É melhor assim do que ficar sozinha trancada no quarto.
O silêncio da sala foi preenchido pelo barulho da geladeira fazendo um estalo metálico. Ana Paula aproveitou a pausa para largar o pano de prato e se sentar ao lado do marido. Os dois ficaram ali alguns segundos, olhando a televisão sem enxergar nada, cada um preso aos próprios pensamentos.
— O aluguel vai subir mês que vem. — comentou o homem, a voz baixa, quase derrotada. — Se continuar assim, a gente vai ter que apertar um pouco.
Ana Paula apertou os lábios, passando a mão pelos cabelos presos num coque frouxo. O coração disparou, não sabia se deveria falar. Mas o peso dentro dela não permitia mais silêncio.
— Carlos… — começou, hesitante. O tom da voz já denunciava a angústia.
Ele virou o rosto de imediato, preocupado.
— O que foi?
Ela respirou fundo, a mão tremendo no colo.
— Minha menstruação… tá muito atrasada.
O ar pareceu sumir da sala. Carlos piscou, como se não tivesse ouvido direito.
— Atrasada quanto?
— Quase dois meses. — respondeu, num fio de voz. — Eu achei que era nervoso, estresse… mas já tá demais.
O corpo do marido se projetou pra frente. As mãos foram direto ao cabelo, puxando-o com força.
— Dois meses, Ana Paula? Meu Deus… Você parou com o remédio?
— Eu nunca fui de tomar certinho, você sabe… — murmurou, envergonhada. — Mas sempre veio depois. Agora, nada.
— Você fez algum teste? — perguntou ele, rápido, quase ríspido.
Ela balançou a cabeça.
— Ainda não. Eu fiquei com medo até de comprar. Parece que se eu trouxer o teste pra dentro de casa… já tô confirmando.
Carlos respirou fundo, o peito subindo e descendo pesado. Os olhos percorreram a sala pequena, os móveis gastos, o calendário da padaria pendurado na parede com contas presas por um prego.
—Uma criança agora… Nessa altura do campeonato Ana Paula...— murmurou, a voz embargada.
Ana Paula apertou os olhos, deixando as lágrimas escaparem.
— Eu sei, Carlos. Eu sei. A gente sempre confiou que Deus dá força, mas eu tô com medo. Eu não sei se a gente aguenta começar tudo de novo.
Ele ficou alguns segundos sem conseguir responder. Por fim, pegou a mão da esposa e a segurou com firmeza.
— Tá tudo bem. Eu te amo... — disse, a voz embargada, mas firme, dando um beijo na cabeça da esposa — Se for isso mesmo, a gente vai dar um jeito. Só que… eu confesso, me assusta começar todo o processo de novo, as meninas já crescidas.
Ana Paula encostou a testa no ombro dele, deixando o choro vir baixo, abafado. O braço do esposo a envolveu num aperto forte. Ficaram assim, abraçados, enquanto a TV continuava a falar sozinha.
Naquele silêncio cheio de medo, amor e incerteza, os dois entenderam: o futuro podia mudar de repente, e eles não tinham escolha a não ser enfrentar juntos.
Apartamento Verena e Silvia — 07h52
A luz da manhã entrava filtrada pelas cortinas claras da sala de jantar, tingindo de dourado a mesa posta às pressas. O cheiro de café fresco misturava-se ao da manteiga derretida, ainda quente nas fatias de pão. Verena, de camisa social clara e sem blazer, ajeitava as xícaras no lugar com um zelo quase ensaiado, como quem tentava transformar cada detalhe num pedido de desculpas.
Silvia surgiu do corredor, os cabelos ainda úmidos do banho, presos num coque simples. Vestia um vestido leve, azul marinho, que lhe dava um ar ainda mais delicado. Tinha nos olhos aquela névoa discreta que denunciava uma noite mal dormida.
— Você levantou cedo hoje… — comentou, sentando-se. A voz não era dura, mas carregava surpresa.
Verena serviu o café com mãos firmes, mas os olhos a traíam — buscavam qualquer sinal de brecha.
— Eu quis preparar a mesa. — respondeu, num tom quase casual. — Senti falta disso.
Silvia segurou a xícara, mas não bebeu de imediato. Observava a esposa com atenção, como se tentasse decifrar se aquilo era verdadeiro ou apenas mais uma encenação da mulher política que conhecia tão bem.
Verena, percebendo o silêncio, buscou o gesto certo. Estendeu a manteigueira em direção a ela, num movimento simples, mas carregado de intenção.
— Quer que eu passe pra você?
Silvia hesitou. Depois pousou o pão no prato e empurrou discretamente para o lado de Verena.
— Se quiser.
As mãos de Verena deslizaram pela mesa com precisão contida. Espalhou a manteiga com cuidado, como se aquele ato banal tivesse um peso desproporcional. Quando devolveu o pão, os olhos das duas se encontraram por um segundo — e, por um instante, Silvia se lembrou dos anos em que o gesto era rotina, quando ainda riam sem pressa diante de um café simples na mesma mesa.
— Posso te buscar no escritório mais tarde. — disse Verena, baixo, como quem não queria parecer insistente. — Evita o trânsito pra você.
Silvia ergueu os olhos, avaliando. A xícara pousada na mesa fez um leve som de porcelana.
— Não sei a hora que vou sair.
— Eu espero. — respondeu Verena, sem hesitar. — O tempo que for.
O olhar de Silvia se suavizou, por menor que fosse. Não era perdão. Não era esquecimento. Mas era impossível não sentir o coração puxado por aquela versão mais simples, quase romântica, da mulher que amava. Um lampejo dos primeiros anos, quando ainda acreditava que nada poderia se interpor entre elas.
Silêncio. Só o som dos talheres, do café mexido, da cidade acordando lá fora. Mas entre cada gole e cada gesto, pairava algo novo — frágil, tênue, mas real: a tentativa de reconstrução.
Marginal Pinheiros — 09h27
O trânsito da manhã arrastava os carros em fileiras lentas, um mosaico de buzinas e motores quentes. Dentro do Audi, o ar-condicionado mantinha a temperatura baixa demais, mas Verena sentia a pele úmida nas mãos que tamborilavam contra o volante.
O rádio estava ligado, notícias sobre a sessão plenária do dia, mas cada palavra parecia distante, dissolvida no ruído da própria consciência. A imagem de Silvia diante dela, mais cedo, ainda estava fresca: os olhos cautelosos, a xícara de café entre os dedos. Pequenos gestos de reconciliação que exigiam dela uma força que parecia já não possuir.
Porque, ao mesmo tempo, outra lembrança insistia em ocupar cada espaço da mente: os olhos marejados de Valentina, a pele quente sob seu toque, o beijo que já se tornara cicatriz e vício.
Verena mordeu o lábio inferior com força, como se a dor pudesse devolver o controle. Mas não devolveu.
Pegou o celular sobre o banco do passageiro. A tela acendeu e refletiu seu rosto tenso, os óculos escuros disfarçando a exaustão. Por um instante, pensou em largar o aparelho de volta, como tantas vezes fizera. Mas não largou.
Seus dedos deslizaram rápidos, antes que a razão pudesse intervir:
Bom dia. Você está bem?
O coração deu um salto. O carro à frente andou dois metros, e Verena quase não percebeu. Avançou no reflexo, o olhar voltando ao celular apoiado sobre o colo.
Era tarde demais para apagar.
Suspirou fundo, apoiando a nuca contra o encosto de couro. Cada mensagem era uma corda lançada num abismo. Mas já não tinha forças para remar contra a corrente. Se Valentina era a maré, talvez a única saída fosse entregar-se a ela.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — 09h43
O ventilador no teto da sala girava devagar, empurrando um ar morno que não refrescava ninguém. O professor de História falava sobre a Revolução Francesa, andando de um lado para o outro diante do quadro cheio de datas e nomes. Valentina estava na terceira fileira, caderno aberto, mas a caneta parada sobre a mesma linha fazia minutos.
O celular, escondido sob a mesa, vibrou uma vez. Quase imperceptível. Mas para ela foi como se tivesse ecoado pela sala inteira.
Olhou em volta: todos distraídos, alguns cochichando, outros rabiscando, ninguém notava. O coração disparou enquanto a mão tremia discretamente para desbloquear a tela.
"Bom dia. Você está bem?"
Os olhos dela fixaram as palavras. O resto do mundo perdeu nitidez. O professor, a lousa, o barulho dos colegas — tudo se dissolveu. Só aquelas cinco palavras piscando na tela, vindas do nome que ela não tinha coragem nem de dizer em voz alta.
O estômago se contraiu como se tivesse dado um salto no ar. Um calor subiu pelo pescoço, queimando as bochechas. Ao mesmo tempo, uma fraqueza tomou as pernas, mesmo estando sentada.
Cobriu a boca com a mão, tentando conter o riso nervoso que explodia junto da vontade de chorar. O peito apertado, a respiração curta, como se cada batida do coração fosse alta demais, escandalosa demais.
Carol, ao lado, percebeu. Cutucou-a com o cotovelo, sussurrando:
— O que foi? Tá passando mal?
Valentina não respondeu. Empurrou o celular para o colo, quase escondendo de si mesma. Mas não conseguiu deixar de olhar de novo. A tela brilhava como um segredo proibido, mas irresistível.
A pergunta era banal. Quase ingênua. Mas para ela carregava um peso impossível. O corpo inteiro parecia responder em silêncio: não, não estou bem, desde o beijo não consigo pensar em outra coisa, desde o beijo eu não sou mais a mesma.
Engoliu em seco, tentando se recompor. O professor chamou a atenção da sala, uma gargalhada ao fundo abafou seu suspiro, mas nada mudava dentro dela.
Carol insistiu, agora mais séria:
— Valen, fala comigo.
Valentina ergueu os olhos, marejados, mas não disse nada. Apertou o celular entre as mãos, como se fosse um relicário, incapaz de soltar.
O mundo adolescente em volta seguia normal: alguém pedindo para ir ao banheiro, o professor reclamando da bagunça. Mas para ela, tudo tinha parado.
A vida inteira cabia agora numa tela pequena, em uma única frase.
Pátio da Escola — 10h21
O recreio deixava o pátio em caos: fila enorme na cantina, meninos jogando bola com gritos e palavrões, grupos espalhados em roda, gargalhadas ecoando. Valentina e Carol se sentaram num banco de cimento perto de uma pilastra maior, onde a sombra ainda ajudava a respirar no calor.
Carol abriu o suco de caixinha com pressa, mas os olhos não desgrudavam da amiga.
— Agora me fala, Valen. — disse direto. — O que aconteceu na sala? Você ficou branca.
Valentina hesitou. Tirou o celular do bolso devagar, como quem manuseia algo perigoso. Virou a tela para a amiga.
Carol leu rápido.
"Bom dia. Você está bem?"
O maxilar travou.
— Não acredito. — murmurou. — Essa mulher tem coragem mesmo.
Valentina abaixou a cabeça, nervosa, como se estivesse sendo pega em flagrante.
— Eu… eu não sabia se respondia.
— Claro que não responde! — Carol retrucou, a voz baixa mas firme. —Tá maluca?
— Mas, Carol… — Valentina engoliu seco, quase suplicando. — É só um bom dia.
— Não é só um bom dia. — a amiga cortou. — É ela puxando assunto, é ela te puxando pra perto.
Valentina respirou fundo, os dedos apertando o celular com força.
— Eu não consigo… não consigo ignorar.
Carol a encarou, o rosto sério, os olhos arregalados de indignação e medo.
— Você entende onde tá se metendo? Ela é casada, Valen. E ela... ela te beijou. Se alguém descobre isso, não é só ela que se complica. É você também.
Valentina piscou rápido, como se quisesse evitar as lágrimas.
— Eu sei. Mas eu não consigo. — admitiu, a voz falhando. — Quando eu vi a mensagem… parecia que o mundo inteiro tinha mudado.
Carol jogou o suco de lado, sem paciência.
— Você vai acabar se machucando. E eu não vou conseguir te proteger de tudo.
O sinal tocou alto, chamando de volta às salas. Valentina ficou parada, celular ainda na mão, olhando para a tela apagada. O coração batia rápido demais.
Carol puxou a mochila do chão e colocou no ombro.
— Me promete uma coisa. — disse, séria, quase dura. — Não responde nada sem falar comigo antes. Promete.
Valentina assentiu devagar, sem olhar para ela. Mas por dentro, sabia: a promessa já era frágil demais para resistir ao próximo “bom dia”.
Gabinete 312 — 11h07
O corredor fervilhava, mas na sala principal o barulho era outro: impressoras cuspindo relatórios, telefones tocando em sequência, assessores indo e voltando com pilhas de documentos. A porta do gabinete da deputada Verena Castilho permanecia fechada, mas a tensão atravessava até a madeira.
Ela estava na mesa, óculos escorregando pelo nariz, corpo inclinado sobre uma pasta aberta que não lia. O celular repousava ao lado, com a tela virada para cima. Cada vez que vibrava, o coração disparava. Mas não era Valentina. Eram e-mails, mensagens de Rafaela, lembretes de reunião.
Verena ajeitou a postura, puxou a pasta de volta, respirou fundo. Tentou se concentrar no parecer jurídico. Não conseguiu. A cabeça voltava sempre ao mesmo ponto: a última mensagem enviada. Visualizada. Nenhuma resposta.
O silêncio do telefone parecia zombar dela.
A porta se abriu sem aviso. Rafaela entrou com uma pasta azul na mão.
— Precisa assinar isso ainda hoje. — disse, seca.
Verena mal ergueu os olhos.
— Deixa aí.
Rafaela pousou a pasta, mas não saiu.
— O jurídico pediu retorno. Não dá pra ficar adiando.
O celular vibrou. Verena olhou rápido, o sangue gelando. Não era Valentina. Era um lembrete da agenda. A decepção foi tão brutal que, sem querer, bateu a pasta com força sobre a mesa, fazendo Rafaela recuar um passo.
— Eu já disse pra deixar aí! — a voz saiu alta demais, cortante, carregada de uma raiva que não tinha nada a ver com o trabalho.
Rafaela apertou os lábios, respirou fundo.
— Tá. — respondeu, seca, virando-se para sair.
A porta fechou com um estrondo. Verena se jogou para trás na cadeira, passando as duas mãos pelos cabelos, frustrada. O peito ardia. Não conseguia acreditar que estava deixando uma adolescente abalar tanto sua estrutura, desmontar o autocontrole que cultivara em anos de vida pública.
Olhou o celular outra vez. Nada.
Corredor da Alesp — 11h11
A porta do gabinete bateu atrás de Rafaela, que saiu com o maxilar travado. O salto riscando o piso de porcelanato no corredor parecia mais alto do que o normal. Inspirou fundo, como se o ar da sala tivesse contaminado seus pulmões com fumaça tóxica.
Parou diante da máquina de café, apertou o botão sem olhar. O líquido escorreu devagar, o cheiro amargo subindo junto com a lembrança da última frase de Verena. “Eu já disse pra deixar aí!” O tom ecoava dentro dela como uma humilhação pública, ainda que não houvesse plateia.
— Alguém acordou mal-humorada. — A voz veio às costas, suave, carregada de ironia.
Rafaela fechou os olhos por um segundo. Virou-se. Jéssica estava ali, blazer alinhado, pastinha preta na mão, olhar fixo, o mesmo sorriso que não revelava nada — mas insinuava tudo.
— Não é da sua conta. — Rafaela devolveu, seca, pegando o copinho de plástico.
— Talvez não. — Jéssica deu de ombros, aproximando-se com calma. — Mas quando uma pessoa atravessa o corredor cuspindo fogo, fica difícil não notar.
Rafaela bebeu um gole, quente demais, quase queimando a boca.
— Trabalho demais. Só isso.
Jéssica inclinou a cabeça, estudando-a como quem avalia um inimigo e uma oportunidade ao mesmo tempo.
— Curioso… porque não parece só trabalho.
Rafaela sentiu o estômago revirar. Queria retrucar, mas sabia que qualquer palavra poderia dar munição. Ficou em silêncio, mexendo o café.
Jéssica deu mais um passo, baixando o tom da voz, quase confidencial:
— Se quiser conversar com alguém que entende como ela funciona… eu tô por aqui.
Rafaela riu sem humor, um som curto.
— Jéssica, não preciso de conselhos pra saber como lidar com a Verena.
— Não foi uma oferta de conselho. — Jéssica segurou o olhar por um instante a mais. — Foi uma oferta de companhia.
O silêncio entre as duas se estendeu. O corredor seguia seu fluxo normal — servidores passando, papéis nas mãos, telefones tocando dentro das salas — mas entre elas, o tempo parecia desacelerar.
Rafaela respirou fundo, desviou o olhar.
— Eu tenho que ir. — disse, quase como um corte cirúrgico, antes de virar as costas.
Mas enquanto se afastava, sentia a nuca queimar. Não precisava olhar para saber: Jéssica ainda estava parada ali, sorrindo.
Gabinete 312 — 15h07
A sala estava em silêncio. Os papéis espalhados sobre a mesa pareciam inúteis, como se as letras impressas não formassem mais palavras. Verena estava sentada na poltrona de couro, um copo de água intocado ao lado, os óculos empurrados para o alto da cabeça. Diante dela, a tela do celular acesa iluminava seu rosto.
A última mensagem ainda estava lá. Visualizada. Nenhuma resposta.
Respirou fundo, apoiando os cotovelos na mesa e cobrindo o rosto com as mãos. A lógica gritava dentro dela: silêncio era um não, silêncio era um limite, silêncio era a chance de recuar antes de perder tudo. Mas o coração — esse maldito coração — batia como um tambor dentro do peito, cada batida empurrando-a mais fundo na obsessão.
Pegou o celular, largou, pegou de novo. Levantou-se, caminhou de um lado ao outro da sala. Até que parou diante da janela, São Paulo se estendendo lá fora como um abismo de luzes e riscos. A mão tremeu quando abriu de novo a conversa.
Digitou. Apagou. Reescreveu. Apagou. O estômago revirava como se estivesse em campanha outra vez, mas era pior. Não havia adversário ali fora. O inimigo estava dentro de si própria.
Por fim, deixou os dedos correrem sem filtro:
“Eu não consigo parar de pensar em você.”
O texto ficou na tela. Curto. Cru. Um risco calculado e, ao mesmo tempo, sem cálculo algum. Verena prendeu a respiração, leu e releu. Cada letra parecia expô-la mais do que qualquer manchete poderia fazer.
Por um instante, pensou em apagar. Guardar o celular, trancar a porta, enterrar aquele desejo no fundo do peito. Mas então lembrou-se do beijo. Da pele quente, do olhar assustado e doce. Do gosto que ainda sentia como se tivesse acabado de acontecer.
Apertou “enviar”.
A tela piscou. Mensagem enviada.
Verena largou o celular sobre a mesa com força, como se fosse uma arma disparada que já não podia ser controlada. Passou as mãos pelos cabelos, puxando-os para trás. Sentia o coração quase saltar do peito, como se tivesse acabado de cometer um crime.
E, de certa forma, tinha.
Quarto da Valentina — 15h35
A luz fraca 1ue vinha da rua mal iluminava o quarto de Valentina. O uniforme, já trocado por um pijama simples, agora repousava dobrado numa cadeira velha ao lado da cama, mas o corpo continuava em alerta, incapaz de relaxar. Deitada de lado na cama, celular nas mãos, o estômago revirava como se estivesse vazio há dias.
Ela abriu a conversa. Primeiro, o “bom dia” não respondido. Logo abaixo, a nova mensagem:
“Eu não consigo parar de pensar em você.”
Sentiu as mãos gelarem. Antes que pudesse raciocinar, tirou um print e enviou para Carol no WhatsApp.
Dois minutos depois, o celular vibrou: ligação.
—O que é isso, Valen? Que merd* de mensagem é essa?
Valentina tentou começar, mas a voz não saía. Só respirava fundo, arfando, os olhos marejados.
— Ela mandou. Agora há pouco. Eu… eu não consigo nem segurar o celular direito. Eu… eu não sei o que fazer — conseguiu dizer, baixinho.
Do outro lado, silêncio. Carol lia novamente o print que já tinha visto.
— Meu Deus… — murmurou, quase para si mesma. —Valen, isso é sério demais.
Valentina apertou o travesseiro contra o peito, como se quisesse se proteger de si mesma. Já não ouvia direito. O corpo inteiro tomado por um calor que não sabia nomear. A lembrança do beijo voltava como uma febre: o toque, a voz grave, o perfume que impregnava. Ela queria mais. Não importava o preço.
— Eu quero ver ela de novo. — A frase saiu num fio de voz, com culpa, mas também com uma força desesperada.
Carol ficou imóvel. Não era só o medo do escândalo, nem da política, nem da esposa de Verena. Era a amiga ali, entregue a um sentimento que a consumia por dentro. E ela, por mais que tentasse, não sabia se teria força para ser a muralha que a seguraria.
— Valen, você tá me ouvindo? Entende a gravidade do que tá rolando entre vocês? E não, não tem nada a ver com ela ser mulher, amiga. Você tá se jogando num buraco sem fundo — disse, firme, mas com a voz embargada. — E eu não sei se consigo te puxar de volta sozinha.
Valentina ergueu os olhos marejados. Havia culpa, sim. Havia medo. Mas, acima de tudo, havia desejo. Uma vontade que esmagava tudo o que a igreja ensinara, tudo o que os pais esperavam dela.
E Carol percebeu, com um aperto no peito, que talvez estivesse diante do começo de algo que nenhuma das duas conseguiria parar.
Quarto da Valentina — 16h00
A respiração ainda estava acelerada quando Carol quebrou o silêncio do outro lado da linha.
— Valen, escuta… eu preciso desligar agora, minha mãe tá me chamando — a voz vinha urgente, quase em sussurros para não ser ouvida em casa. — Mas, por favor, promete uma coisa.
Valentina apertou o celular contra o ouvido, lágrimas secas manchando o rosto.
— O quê?
— Não responde. Não agora. Não importa o que ela escreveu, não importa a vontade que você tenha. Espera. Me promete.
Um silêncio denso se espalhou entre elas. Valentina fechou os olhos, mordendo o lábio até sentir o gosto metálico do sangue.
— Eu… eu não sei se vou conseguir.
— Então eu vou insistir até você dizer que sim. — Carol respirou fundo, como quem implora de verdade. — Me promete, Valen. Só hoje. Até amanhã, nada.
A garota ficou quieta por longos segundos, olhando para a tela, onde ainda brilhava o print das mensagens. O coração gritava por resposta, mas a voz saiu em frangalhos:
— Tá… eu prometo.
Carol suspirou, aliviada.
— Obrigada. Eu preciso ir agora. Mas segura firme. Não estraga tudo essa noite.
E antes que Valentina pudesse responder, a ligação caiu.
O quarto mergulhou de novo no silêncio. Só o som abafado da respiração dela preenchia o espaço. O celular continuava quente na mão, vibrando como se estivesse vivo, lembrando-a a cada segundo de que a promessa feita a amiga estava em guerra com o desejo que pulsava em cada veia do corpo.
Quarto da Valentina — 16h15
Valentina permaneceu imóvel. Deitou o aparelho devagar sobre a coberta, ao lado do travesseiro, mas a mão continuou tremendo. O quarto estava em meia-luz, iluminado apenas pelo abajur simples da escrivaninha, que espalhava uma claridade amarelada pelas paredes. O crucifixo preso acima da cabeceira lançava uma sombra fina, projetada pela lâmpada, e essa sombra parecia observá-la como um lembrete severo do peso que carregava.
Valentina respirou fundo, tentando se acalmar. O peito subia e descia rápido demais, como se tivesse corrido quilômetros sem sair do lugar. O estômago doía, uma mistura de ansiedade e fome esquecida. As pernas estavam pesadas, e ainda assim ela sentia como se fossem ceder a qualquer instante.
O celular vibrou com uma notificação banal, não da pessoa que a consumia, mas mesmo assim ela quase pulou. Olhou para o aparelho com olhos arregalados, depois desviou o rosto, como se o simples ato de encarar pudesse quebrar a promessa feita a Carol.
A promessa. Fechou os olhos com força, lembrando-se da voz da amiga:
“não responde, não agora, promete.”
Havia prometido. Mas cada fibra do corpo clamava pelo contrário.
Virou de lado na cama, abraçando o travesseiro com tanta força que o tecido amarrotado quase rasgava. Do outro lado, encostada no mesmo travesseiro, estava a caneta prateada que Verena lhe dera. A mesma que ela passara a deixar ali todas as noites, como um segredo cúmplice. Valentina deslizou os dedos pela superfície fria do metal. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Era como tocar um pedaço da própria mulher.
As lágrimas voltaram, silenciosas, ardendo nas pálpebras. O desejo de responder era maior do que qualquer coisa que já tivesse sentido — maior até que o medo do pecado, maior que a culpa que corroía sua fé. Queria ouvir aquela voz de novo, sentir aquela presença de novo, mesmo que fosse só em letras digitadas na tela.
Mas a promessa a prendia. A amizade a segurava pela mão, ainda que de longe.
Valentina ficou assim por minutos longos demais, o rosto enterrado no travesseiro, a mão agarrada à caneta, o celular a poucos centímetros, iluminando a cama como uma tentação viva.
Entre a fé e a paixão, havia um campo de batalha. E, naquela noite, ela não sabia se sairia inteira.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — 07h14
O portão da escola fervilhava de vozes adolescentes, mochilas coloridas se esbarrando, passos apressados e risadas espalhadas pelo ar ainda frio da manhã. Valentina chegou devagar, com o uniforme impecável demais para o olhar perdido que carregava. Os cabelos, presos de qualquer jeito num rabo baixo, escapavam em mechas que ela não se importara em ajeitar.
Foi quando os olhos, contra sua própria vontade, encontraram Carol.
Ela estava alguns metros à frente, encostada na grade lateral, o sol pálido batendo no rosto. Mas não estava sozinha. Um menino alto, de sorriso fácil e camiseta amassada, inclinava-se sobre ela. Os dois riam de alguma piada privada, o som leve e cúmplice que cortava Valentina por dentro como lâmina. O beijo veio logo depois, despretensioso, desajeitado, mas carregado da naturalidade cruel de quem não tem nada a esconder.
Valentina parou. O ar preso na garganta, o coração aos solavancos. Doía. Não era só ciúme, era uma dor funda, aguda, quase física. O contraste era insuportável: Carol, vivendo sem medo, sem culpa, sem segredo algum. Ela, ao contrário, presa num amor proibido que a esmagava um pouco mais a cada dia.
Os olhos marejaram. Não era inveja apenas — era o desespero de quem queria poder sentir algo tão simples sem a sensação constante de estar à beira do abismo.
Com raiva do próprio coração, desviou o rosto. Abaixou a cabeça, apressou o passo, escondendo-se atrás de um grupo de meninas que chegava falando alto, como se a algazarra pudesse camuflar sua dor. Não queria que a amiga a visse assim, não queria que ninguém visse.
Entrou pelo portão sem olhar para trás, a respiração curta, as mãos tremendo. E antes mesmo de chegar ao pátio, puxou o celular do bolso. Os dedos deslizaram pela tela quase por instinto, como se não fosse mais ela quem decidia. A conversa com Verena ainda estava aberta. A mensagem aguardava.
Valentina digitou sem pensar, as lágrimas borrando o olhar:
"Quero te ver."
Apertou enviar.
O celular vibrou em suas mãos, confirmando o envio com um som suave que pareceu ecoar mais alto que todo o barulho da escola. Ela encostou-se na parede fria do corredor vazio e fechou os olhos.
O mundo podia rir, beijar e viver em paz. Mas não o seu.
Porém, pela primeira vez, a culpa parecia menor do que a própria necessidade.
Apartamento Verena e Silvia — 07h26
O quarto ainda guardava o silêncio pesado da noite mal dormida. O despertador já tinha soado há quase uma hora, mas Verena só agora terminava de abotoar a camisa social branca diante do espelho do closet. O cabelo, solto, estava preso atrás da orelha de um jeito prático demais para a mulher que, em dias normais, gostava de exibir elegância impecável. Mas não era um dia normal.
Na mesa de cabeceira, o celular vibrava de tempos em tempos com notificações da Alesp. Pauta do dia, lembrete da equipe, um lembrete insistente sobre a votação importante marcada para logo mais. Verena passava a mão pelo rosto, respirando fundo, tentando focar no que viria. Mas o esforço soava inútil.
Silvia entrou no quarto em silêncio, já pronta para sair. Vestia um tailleur claro, o cabelo perfeitamente alinhado, e a expressão fechada que, nos últimos dias, parecia ter se tornado parte do figurino. Colocou um anel no dedo com a calma de quem tenta disfarçar o cansaço, e só então olhou para a esposa.
— Não esquece de passar no banco— A voz saiu baixa, seca, mas ainda assim carregada de uma ternura difícil de apagar por completo.
Verena assentiu. — Eu não vou esquecer.
Silvia apenas ajeitou a bolsa no ombro e caminhou até a porta. Houve um momento, rápido, em que pareceu hesitar, como se fosse dizer algo mais. Mas desistiu. O som do salto ecoou pelo corredor até desaparecer.
Verena ficou imóvel, olhando o vazio da porta fechada. Uma fisgada atravessou o peito. Estava se esforçando, tentando recuperar o que haviam perdido, mas as rachaduras eram muitas. E havia coisas que Silvia não sabia. Não poderia saber.
Pegou o celular, já pronta para encarar a enxurrada de mensagens da equipe. E então, viu.
"Quero te ver."
Três palavras na tela.
O coração deu um salto tão forte que a respiração falhou. Verena deixou-se cair na poltrona ao lado da cama, os olhos fixos no brilho da tela. A mão tremeu.
Todo o peso da votação, da tensão no casamento, das cobranças políticas… sumiram. Evaporaram como se nunca tivessem existido. E restou só ela. Valentina.
A mulher de 29 anos, calculista, fria, treinada para os enfrentamentos duros, sentiu-se desarmada de um jeito quase infantil. Riu de nervoso, abafado, levando a mão à boca para conter o som. Olhou de relance para o corredor, como se Silvia ainda pudesse ouvir. Mas ela já tinha ido.
Sozinha, Verena encostou a testa no punho fechado, tentando recuperar o fôlego. Mas o estômago se revirava, a pele ardia, e uma certeza queimava: não havia mais retorno.
A tela do celular seguia acesa, implacável, repetindo as três palavras.
"Quero te ver."
Verena fechou os olhos. R naquele momento, o mundo inteiro podia esperar.
Apartamento Verena e Silvia — 07h34
O celular ainda pesava nas mãos de Verena como se tivesse o dobro do tamanho. O próprio reflexo no vidro mostrava uma mulher que deveria estar pensando em discursos, estratégias e alianças, mas que agora só conseguia ler e reler aquelas três palavras.
Apoiou o cotovelo no braço da poltrona, a mão na testa, tentando raciocinar. Havia a votação, havia Silvia, havia o risco absurdo de qualquer movimento fora do lugar. Tudo gritava para que não respondesse.
Mas o coração gritava mais alto.
Passou a língua pelos lábios secos, riu de nervoso outra vez, quase um soluço, e começou a digitar. Apagou. Digitou de novo. Levantou-se, caminhou até a janela, abriu um pouco a cortina. O sol entrava forte, mas o corpo estava frio.
— Eu não posso… — murmurou, sem perceber que falava sozinha.
Mas os dedos já corriam pelo teclado.
"Hoje não consigo. Mas amanhã… é só me dizer onde e quando”.
Parou. O polegar suspenso sobre a tela, como se aquele simples toque fosse decidir não só o dia, mas toda a vida que vinha tentando segurar pelas bordas. Respirou fundo. Pensou em Silvia, no futuro que estava em risco ao lado da mulher com quem dividiu a vida até ali.
E apertou enviar.
O som seco da mensagem partindo foi mais alto que tudo. Verena deixou o corpo cair de costas na poltrona, os olhos fechados, o peito arfando. A camisa grudava na pele pelo suor frio.
Sabia que tinha acabado de atravessar uma linha da qual não poderia mais voltar.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — 08h52
A sala estava mergulhada num silêncio denso, característico em dias de prova, quebrado apenas pelo arrastar de canetas, tosses discretas e o ranger das cadeiras quando alguém mudava de posição. Na lousa, em letras grandes e caprichadas, lia-se: Prova de História — 2º ano C.
Valentina segurava a caneta com força, os dedos quase dormentes. O enunciado diante dela pedia uma análise sobre o período da redemocratização no Brasil e a atuação do Congresso na década de 1980. As palavras dançavam, borravam-se, escapavam do seu controle.
Piscou, respirou fundo, mas a cada tentativa de voltar ao texto, era engolida por outra lembrança: o banco de couro quente do carro, o perfume de Verena impregnado em suas roupas, a voz grave sussurrando tão perto “tá tudo bem”, o toque firme e ao mesmo tempo delicado em sua pele. O beijo. O segundo beijo. Mais real, mais proibido, mais impossível de esquecer.
A ponta da caneta tremia sobre o papel. Em vez de escrever sobre constituintes e articulações políticas, rabiscou a mesma palavra duas vezes, quase sem perceber: Verena. Rapidamente riscou, corada, olhou em volta, mas ninguém parecia ter notado.
A nuca suava. O coração batia contra as costelas, como se o corpo quisesse denunciar a todo instante o segredo que ardia por dentro.
Ainda não tinha visto o celular. Estava desligado, guardado no fundo da mochila, como mandava a regra da escola em dias de prova. Mas o aparelho já vibrava em silêncio, há mais de meia hora, repousando junto dos cadernos. Uma mensagem nova esperava.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro — Terça-feira, 10h12
O corredor cheirava a giz, suor e desinfetante barato. As portas das salas batiam em sequência, alunos saíam rindo alto, alguns chutando mochilas, outros correndo atrás da bola que alguém sempre trazia escondida. Valentina saiu por último, arrastando os pés, o caderno contra o peito como se fosse um escudo. A prova de História ainda queimava na memória: duas questões em branco, a sensação amarga de fracasso agarrada à boca do estômago.
Suspirou. A cada passo, a frustração parecia mais pesada. Até que abriu a mochila, tirando celular.
Parou no meio do corredor. As mãos, frias, se moveram hesitantes. Desbloqueou a tela, e então a respiração prendeu no mesmo instante.
“Hoje não consigo. Mas amanhã… é só me dizer onde e quando.”
A frase acendeu diante de si como fogo. As letras pareciam maiores do que eram, como se gritassem apenas para os seus olhos. O coração disparou, tão forte que doeu. As pernas fraquejaram, por um segundo, temeu cair ali mesmo, no chão imundo.
Guardou o celular às pressas, como se esconder aquela mensagem fosse a única maneira de continuar respirando. Mas já era tarde: o corpo inteiro ardia. A lembrança do beijo, do toque quente na cintura, da voz grave roçando sua boca, voltou em ondas violentas, quase sufocantes.
E então, como uma lâmina inesperada, a imagem de mais cedo a atravessou: Carol, na entrada da escola, abraçada a um garoto. Os dois rindo, trocando beijos sem pudor, como se nada no mundo pudesse feri-los. Uma cena simples, banal. Mas para Valentina foi devastadora.
Sentiu o peito comprimir. Enquanto a amiga vivia com leveza, descobrindo os primeiros namoros, ela se afundava numa paixão impossível, escondida, perigosa. Por que o coração dela não podia ser simples assim também?
O corredor esvaziava depressa. Valentina caminhou em silêncio, cada passo mais pesado. Não tinha coragem de procurar Carol. Não depois daquela cena. E não depois da mensagem que ardia como brasa em seu bolso.
Sentou-se sozinha na beira da arquibancada do pátio, o sol estourando alto lá fora, mas por dentro só havia sombra. Os olhos marejaram sem que pudesse impedir. Queria dividir o peso, correr até a amiga e confessar. Mas a mágoa a travava, e a lembrança de do beijo sem culpa era como um muro.
Valentina abraçou os joelhos. Pela primeira vez, soube com clareza: esse segredo, ao menos por enquanto, seria só dela.
Gabinete 312 - Alesp, fim da tarde
O gabinete estava silencioso depois da votação. As pastas empilhadas na mesa eram só cenário, Verena passava os olhos pelos papéis sem absorver uma linha. O peso da sessão ainda latej*v* nos ombros, mas nada comparado à espera muda que carregava na mente.
O celular vibrou. Um tremor seco, curto.
Verena esticou a mão como quem teme tocar fogo. A tela acendeu.
“Amanhã… na biblioteca Mário de Andrade. Podemos nos ver lá.”
Simples. Curto. Mas para alguém como Valentina, aquela frase era um salto no escuro.
Verena deixou o corpo cair contra a cadeira. O coração disparou, tão forte que parecia vibrar o próprio vidro da janela. A biblioteca Mário de Andrade. Uma das mais antigas da cidade, no centro. Gente demais circulando, mas também um lugar em que dois rostos podiam passar despercebidos se quisessem. O impulso tímido, mas ao mesmo tempo decidido, tinha a assinatura da menina.
Ela riu sozinha. Um riso nervoso, quase sem ar. De todos os lugares, logo ali. Fechou os olhos por um instante, respirando fundo. Era um convite que não trazia apenas a ansiedade do risco. Era também um lembrete cruel: a garota estava disposta a vê-la de novo. Disposta a arriscar.
Por dentro, Verena oscilava entre dois extremos: a parlamentar fria que conhecia cada passo do xadrez político, e a mulher que mal conseguia segurar as mãos quando lia aquelas mensagens.
Ela digitou uma resposta curta, mas demorou longos minutos para pressionar o enviar. Cada palavra parecia um selo no destino:
“Estarei lá. 15h.”
Quando a tela apagou, Verena percebeu que estava sorrindo sozinha, um sorriso que doía. Porque, no fundo, sabia que o que tinha acabado de confirmar não era apenas um encontro. Era a sentença de um caminho sem volta.
Casa dos Moraes — Quarta-feira, 19h12
Valentina estava deitada de bruços na cama, o celular escondido sob o travesseiro como se fosse uma prova de um crime. Já tinha lido a resposta de Verena dezenas de vezes. “Estarei lá. 15h.” As palavras piscavam em sua memória como um neon impossível de desligar.
O peito subia e descia rápido, e não era por causa da lição de casa esquecida sobre a escrivaninha. Era pela certeza de que precisaria convencer a mãe a deixá-la sair no dia seguinte. E como?
Ana Paula apareceu na porta, secando as mãos no pano de prato.
— Valen, já tomou banho?
— Já vou, mãe. — a voz saiu baixa, quase mecânica.
A mulher não insistiu, apenas fechou a porta. O som dos passos se afastando deu a Valentina a coragem para puxar o celular de novo. Na tela, várias notificações: três ligações perdidas de Carol, sete mensagens.
Ela não abriu nenhuma. A raiva ainda queimava por dentro — raiva da cena da amiga aos beijos com o garoto, raiva de se sentir sozinha justo agora. Mas, mais que raiva, havia orgulho ferido. Não queria ouvir sermão. Não queria conselhos.
Preferia o silêncio.
Quando Ana Paula voltou, meia hora depois, foi direto ao assunto:
— Amanhã você tem aula normal, né?
Valentina respirou fundo. Era a chance.
— Então, mãe… é que depois da escola vai ter um trabalho em grupo, na biblioteca. A gente combinou de ir amanhã à tarde, porque sexta tem prova.
A mentira atravessou a boca com um gosto amargo. Ana Paula a olhou rápido, desconfiada.
— Trabalho em grupo? Quem vai?
— Eu, a Júlia… e mais umas duas meninas. — improvisou, mexendo na barra da camiseta para disfarçar o nervosismo. — É na Mário de Andrade, mãe. Perto do centro.
Ana Paula franziu o cenho.
— Centro, filha? A essa hora?
Valentina apressou-se, quase tropeçando nas próprias palavras:
— É cedo, mãe. Às três. Eu volto direto.
O silêncio que seguiu pareceu uma eternidade. Ana Paula suspirou, cansada, e assentiu devagar.
— Só toma cuidado. E me manda mensagem quando chegar.
Valentina abraçou a mãe de repente, forte demais, como se quisesse pedir perdão sem dizer nada.
— Pode deixar.
Quando voltou pro quarto, encostou a cabeça no travesseiro e deixou um sorriso escapar, mas os olhos arderam. A mistura era insuportável: felicidade, medo, culpa. E, por trás de tudo, a lembrança de Carol ignorada, as mensagens não lidas piscando como acusação.
Apagou a tela, virou de lado, e ficou ali, imóvel. O coração disparado já parecia ensaiar para o dia seguinte.
Apartamento nos Jardins — Noite
O vapor já embaçava o espelho do banheiro quando Verena apoiou a perna na beira da banheira, lâmina em mãos. Era um gesto repetido há anos, parte da rotina que ela cumpria quase sem pensar: deslizar devagar, enxaguar, repetir. O barulho da água caindo abafava o resto da casa, criando a ilusão de que o mundo lá fora não existia. Mas a cabeça não obedecia.
Enquanto raspava a lâmina rente à pele, afastando os pelos curtos e finos da região íntima, o pensamento se desviava para a tarde seguinte. O horário marcado, o rosto da menina. O coração acelerava só de imaginar.
Foi nesse desvio, nesse segundo em que deixou o olhar escapar para o azulejo branco e a mente se perder em lembranças, que a lâmina escorregou além da conta. Um arranhão súbito, pequeno, mas suficiente para fazê-la prender a respiração. O corte ardeu, quente, e um filete vermelho misturou-se à água que escorria.
— Droga… — murmurou, levando a mão ao local.
Nada grave, mas o susto foi maior que a dor. Por um instante, o corpo a obrigou a voltar ao presente. Lavou a área com cuidado, pressionou com os dedos. Observou a mancha tênue que escoria sobre a pele e respirou fundo, quase rindo da ironia.
“Distraída demais.”
Era isso. Um corte simples, banal, mas que dizia mais do que parecia: quando a mente se deixa levar pelo impulso, o corpo paga o preço.
Enxugou-se com calma, vestiu o roupão e, diante do espelho embaçado, viu mais que a pele recém-cuidada. Viu a mulher que amanhã precisaria estar impecável no plenário, firme no voto, fria no discurso. E, ao mesmo tempo, a mulher que, às 15h, estaria esperando uma garota que não saía do pensamento.
Olhou a lâmina sobre a pia e sorriu de leve, amarga. Pequenos cortes fecham rápido. Outros, nem sempre.
Apartamento nos Jardins — Manhã
Verena abriu o armário como quem abre uma trincheira. Camisas alinhadas em tons neutros, calças bem passadas, blazers impecáveis. O uniforme da parlamentar. Normalmente, a escolha era automática: uma peça clara, outra escura, sapato social e pronto. Mas naquela manhã, o gesto mecânico travou.
Os dedos percorreram cabides, puxaram tecidos, hesitaram. Azul marinho? Preto? Bege? A cada cor, imaginava o reflexo nos olhos de alguém que não devia ocupar tanto espaço em sua mente. Soltou um suspiro impaciente, afastando uma blusa para o lado. Não era vaidade — era nervosismo.
— Tá difícil hoje, hein? — a voz de Silvia surgiu leve, atrás dela.
Verena virou-se, o cabide ainda suspenso. A esposa estava apoiada na porta, com uma xícara de café nas mãos. Tinha o olhar curioso, quase divertido.
— Votação importante — Verena respondeu rápido, tentando se proteger com a desculpa.
Silvia arqueou uma sobrancelha. Não era raro ver a companheira preocupada, mas indecisa diante de roupas? Isso era novo. Sorriu de canto, sem comentar nada. Apenas deixou a xícara sobre o criado-mudo e se afastou.
Verena, sozinha de novo, respirou fundo. Escolheu uma camisa branca engomada demais para uma terça qualquer e um blazer que não usava havia semanas. Passou a mão pelo tecido, testando no espelho. Não sabia explicar, mas queria estar… irrepreensível. Para todos, claro. Mas principalmente para alguém.
Saída da Escola — 12h30
O sol do meio-dia batia forte no pátio, refletindo no piso de cimento gasto. Os alunos saíam em grupos ruidosos, chutando garrafas vazias, rindo alto, empurrando-se em brincadeiras. Valentina caminhava entre eles como quem atravessa uma tempestade: o corpo presente, mas a mente a quilômetros de distância.
A mochila parecia mais pesada que o normal. As mãos suavam, escorregando nas alças, e a cada passo o estômago se revirava, numa mistura de fome e enjoo. O coração batia tão forte que ela tinha a impressão de que qualquer um ao redor poderia ouvir.
— Valen! — Carol apareceu do lado, puxando-a pelo braço. — Espera aí, menina, tá me ignorando desde cedo?
Valentina forçou um sorriso, sem conseguir sustentar. — Eu só tô cansada.
Carol a observou em silêncio por alguns segundos. Já conhecia bem a amiga para saber quando ela mentia. O olhar perdido, o jeito de morder a parte de dentro da bochecha, a respiração curta… Valentina estava escondendo algo.
Quando chegaram ao portão, o movimento de gente indo embora aumentou. Carol aproveitou o momento em que pararam para esperar os carros passarem e perguntou baixo:
— Você respondeu a Verena?
A pergunta caiu como um soco no estômago de Valentina. O silêncio da amiga durou apenas dois segundos, mas foi suficiente. O rubor subindo pelo rosto, a respiração presa, os olhos desviados para o chão — tudo respondeu por ela.
Carol sentiu a preocupação crescer no mesmo instante. A mão que segurava a alça da própria mochila apertou com força, como se aquilo pudesse segurar também a amiga.
— Valen… — a voz saiu firme, mas baixa. — O que foi que você fez?
Valentina engoliu seco, tentando não desmoronar ali mesmo. O nervosismo no corpo era tão evidente que chegou a balançar de leve as pernas, como quem precisa se mover para não explodir.
Carol olhou em volta, garantindo que ninguém prestava atenção, e repetiu:
— Você respondeu, né?
O silêncio da amiga, mais uma vez, disse tudo.
Valentina apertou as alças da mochila contra o peito, como se fosse um escudo. O barulho da rua — buzinas, vozes de vendedores, o motor de um ônibus arrancando — parecia distante demais. O que pesava era o olhar de Carol cravado nela, exigindo respostas que ela não queria dar.
— Eu… — a voz saiu fraca, quase engolida pelo som ao redor.
Carol deu um passo à frente, encostando o ombro no dela, firme. — Valen, fala logo. Você respondeu?
Valentina hesitou, a garganta seca. O coração batia tão rápido que doía. Tentou inventar algo, qualquer coisa que distraísse a amiga. — Eu só… só dei bom dia.
Carol arqueou as sobrancelhas, descrente. — Mentira. — A palavra saiu baixa, mas cortante. — Tá na sua cara.
Valentina mordeu o lábio inferior, os olhos marejados. Sentia-se encurralada. O silêncio se alongou até que, de repente, ela soltou num sussurro quase irreconhecível:
— Eu pedi pra ver ela.
Carol piscou devagar, como se não tivesse ouvido direito. — O quê?
— Eu pedi… eu pedi pra ver a Verena. — Valentina baixou os olhos, o rosto ardendo de vergonha e medo.
Carol levou a mão à testa, incrédula. — Você tá de brincadeira comigo. — A raiva e a preocupação se misturavam na voz. — E quando?
Valentina respirou fundo, a confissão saindo em pedaços: — Hoje… às três.
Carol ficou imóvel por um instante, como se o chão tivesse desaparecido debaixo dos pés. Depois, passou a mão pelos cabelos e soltou um palavrão abafado. — Caralh*, Valen…
A amiga encolheu os ombros, como quem pede desculpas sem palavras. O peso da escolha, finalmente exposto, parecia esmagá-la ainda mais.
Carol a segurou pelos braços, obrigando-a a levantar os olhos. — Você tem noção do que tá fazendo? Do perigo que é?
Valentina, sem conseguir falar, apenas assentiu devagar, mas o brilho nos olhos a traía. Não era medo. Era desejo.
Carol percebeu, e aquilo doeu ainda mais do que a revelação.
— Eu vou com você. — disse, firme, como se fosse uma sentença.
Valentina arregalou os olhos, o coração disparando ainda mais. — Não. — A palavra saiu seca, quase num susto.
— Como assim, “não”? — Carol cruzou os braços, inclinando-se pra frente. — Você acha mesmo que eu vou deixar você sozinha com ela?
Valentina respirou fundo, tentando segurar a coragem que mal sabia de onde vinha. — É exatamente isso que eu quero. Ficar sozinha.
O silêncio entre as duas ficou pesado. Carol encarava a amiga, atônita. Valentina, sempre a mais recatada, a que pedia desculpa por existir, agora dizia aquilo olhando para o chão, mas sem recuar.
— Valen… — Carol tentou suavizar, o tom mais baixo. — Ela é casada. Deputada. Se alguém ver vocês duas juntas, pode acabar com a vida dela. E com a sua também.
— Eu sei. — respondeu Valentina, quase num sussurro. A voz embargada, mas determinada. — Mas mesmo assim… eu preciso ver ela.
Carol apertou os lábios, o coração em disparada. Tentava encontrar o argumento que derrubasse aquela teimosia. Mas a amiga estava diferente. Havia uma faísca no olhar úmido de Valentina, uma convicção que a assustava.
— Você tá com raiva de mim, não tá? — Carol arriscou, num tom quase ferido.
Valentina desviou o olhar, o rosto ruborizado. Não respondeu de imediato, mas o silêncio dizia mais do que palavras.
— Por causa do Eduardo? — Carol insistiu, incrédula.
— Eu não quero falar disso. — cortou Valentina, rápida, a voz trêmula.
Carol respirou fundo, frustrada. — Então me diz uma coisa: o que você espera desse encontro? Que ela te assuma? Que largue a esposa?
Valentina fechou os olhos por um segundo, como se a pergunta fosse um golpe. Quando os abriu, lágrimas já ameaçavam cair. — Eu só quero… eu só quero ela.
Carol ficou sem resposta. O peso daquela confissão, nua e crua, caiu entre elas como uma bomba. Passou a mão pelos cabelos, nervosa. A respiração saía curta, como se tivesse corrido uma maratona sem sair do lugar.
— Tá bom… — disse enfim, mas a voz estava rouca, quase falhando. — Eu não vou discutir mais. Se é isso que você quer… eu vou deixar.
Valentina piscou rápido, surpresa com a rendição. O peito doendo de culpa, mas ao mesmo tempo uma onda de alívio percorreu o corpo, como se finalmente tivesse conquistado algo que não sabia pedir.
— Obrigada. — murmurou, a voz embargada, tímida.
Mas Carol não sorriu. Aproximou-se devagar, colocando as mãos nos ombros da amiga, como se quisesse fincar raízes ali, segurar Valentina no mundo real.
— Escuta uma coisa. — O olhar dela estava sério, duro. — Eu posso até não entrar na biblioteca com você, mas eu vou estar lá fora. Esperando. Se alguma coisa acontecer, se eu sentir que você tá correndo perigo, eu entro sem pensar duas vezes.
Valentina abaixou o rosto, incapaz de sustentar aquele olhar. — Você não precisa…
— Preciso sim. — Carol cortou, firme, sem dar espaço para discussão. — Porque eu não confio nela. Não é pessoal, é… instinto. E porque eu te amo como minha melhor amiga, e não vou ficar de braços cruzados enquanto você se joga no escuro.
Valentina mordeu o lábio, emocionada. As lágrimas vieram de novo, mas dessa vez ela segurou, respirando fundo.
— Eu só quero que você confie em mim… — sussurrou.
— Eu confio em você, Valen. — Carol respondeu, mais suave, acariciando o braço da amiga. — Mas não confio nela. Por isso vou ficar lá, mesmo que você não queira.
Valentina assentiu com a cabeça, devagar, sem coragem de discutir. E no fundo, embora sentisse a dor da vigilância, uma parte dela se agarrava ao alívio silencioso de saber que não estaria completamente sozinha.
Gabinete da Alesp — 14h17
O gabinete estava em relativo silêncio, quebrado apenas pelo barulho distante dos elevadores e pelo tilintar dos teclados dos assessores que se revezavam entre telefonemas e relatórios. Na sala principal, a porta fechada mantinha Verena em sua própria bolha.
Ela ajeitou o colarinho da camisa social pela terceira vez, mesmo que já estivesse perfeitamente alinhado. Passou a mão pelos cabelos soltos, puxando a mecha da lateral como se testasse se caía bem sobre o ombro. O reflexo no vidro da estante devolvia uma imagem elegante, impecável — mas havia algo no olhar que denunciava ansiedade.
Pegou a pasta com as anotações da sessão da manhã, abriu, fechou de novo. Não conseguia ler uma linha sequer. O estômago se apertava numa sensação estranha, mistura de nervosismo político e… outra coisa.
Foi até o banheiro privativo do gabinete. Ligou a torneira, molhou o rosto e, sem pensar, escovou os dentes de novo, embora já tivesse feito poucos minutos antes. O frescor da pasta de menta lhe dava a ilusão de se recompor, de apagar qualquer rastro da noite mal dormida e da manhã turbulenta.
Enquanto enxaguava a boca, fitou-se no espelho. O coração acelerou, sem motivo racional. Suspirou fundo, apoiando as mãos na pia, a postura da mulher que sabia discursar diante de centenas, mas que agora se via inquieta como uma iniciante.
De volta à mesa, respirou fundo, abriu a gaveta e pegou discretamente um vidro de perfume. Uma borrifada rápida no pulso, outra no pescoço. O gesto foi automático, quase vergonhoso. Como se o corpo pressentisse um reencontro que a mente ainda tentava negar.
Rafaela bateu à porta, avisando sobre as próximas sessões. Verena respondeu com um "ok" seco, sem se virar. Fechou os olhos por um instante.
Não havia como confessar em voz alta, mas sabia: não era a tribuna que a deixava nervosa. Era o relógio. A aproximação da hora marcada.
E, de algum jeito, a certeza muda de que não sairia daquela biblioteca como a mesma mulher que havia entrado.
Biblioteca Mário de Andrade — 14h56
O hall da Biblioteca Mário de Andrade estava em um vai e vem de estudantes, turistas e curiosos. O ar cheirava a papel envelhecido e café recém-passado do quiosque na esquina. O relógio marcava menos de cinco minutos para as três da tarde quando Carol e Valentina atravessaram as portas de vidro.
Carol vinha dois passos atrás, bufando de indignação, a mochila jogada em um ombro só. Usava jeans surrado, camiseta larga dos Beatles, o cabelo preso de qualquer jeito em um coque malfeito. A expressão carregava uma mistura de raiva e preocupação.
— Eu ainda não acredito que você respondeu aquela mensagem — resmungou, baixando o tom para não atrair olhares. — Valen, você tá maluca.
Valentina não respondeu. O coração batia tão forte que ela sentia no pescoço. A calça azul-marinho do uniforme parecia mais justa naquele dia, talvez porque o corpo estivesse rígido, tenso. A blusa branca de mangas curtas estava impecavelmente passada — esforço da mãe, que notara o cuidado repentino da filha. A mochila pendia frouxa do ombro, mas os dedos agarravam firme a alça, como se fosse um porto de segurança.
Seus olhos se moviam rápido, ora encarando o chão de mármore, ora espiando o movimento dentro da biblioteca. O estômago doía, uma mistura de ansiedade e desejo que ela não sabia nomear.
— Você tem noção do que tá fazendo? — Carol insistiu, agora mais perto, sussurrando junto ao ouvido da amiga. — Isso não é paquera de escola, Valen. É uma deputada e você tá indo pra um encontro com ela como se fosse… sei lá, como se fosse normal.
Valentina engoliu em seco. Queria responder, queria justificar, mas as palavras morriam antes de sair. O silêncio dela só aumentava o desespero da amiga.
Pararam no balcão de informações. Valentina, nervosa, olhou em volta — estantes imensas, luz filtrada pelos vitrais, mesas ocupadas por jovens estudando. A sensação de clandestinidade era sufocante e excitante ao mesmo tempo.
Carol cruzou os braços, impaciente.
— Sério, Valen. Você não parece nem você mesma. Tá pálida, tá tremendo. — Ela suspirou, mais branda. — Eu sei que você tá apaixonada, mas não sei se consigo ver isso sem querer te arrastar pra fora daqui.
Valentina mordeu o lábio. O coração gritava, mas a voz saiu baixa, quase infantil:
— Eu precisava vir.
Carol fechou os olhos, como se buscasse forças. E, ainda que não dissesse em voz alta, já sabia: não importava quantos avisos desse, a amiga já tinha atravessado a linha.
Biblioteca Mário de Andrade — 15h02
As portas de vidro se abriram de novo, e Valentina sentiu o ar rarear. O som do salto baixo — discreto, mas preciso — ecoou pelo mármore, denunciando uma presença que não precisava de apresentações.
Verena Castilho entrou com a mesma elegância de sempre, mesmo sem estar de terninho. Usava calça de alfaiataria bege, camisa polo azul-marinho e um blazer leve sobre os ombros, como se fosse um acessório e não uma necessidade. O cabelo solto caía em ondas calculadas, uma mecha escura projetada sobre o rosto, suavemente contida atrás da orelha. Nos olhos, os óculos escuros que tirou apenas depois de dar dois passos para dentro, revelando o verde cortante que parecia iluminar o ambiente.
Na mão direita, o celular ainda aceso com a tela da última mensagem enviada. Passou os olhos pelo saguão com a calma de quem já estava acostumada a ser observada — e, inevitavelmente, foi. Dois estudantes na fila do balcão trocaram cochichos, uma senhora interrompeu a leitura para encará-la discretamente. Verena, no entanto, não ofereceu nada além de uma postura sóbria, quase diplomática.
Mas dentro dela, nada estava sóbrio. O estômago revirava, o coração disparado como se fosse uma novata ao invés de uma parlamentar calejada. Não era medo de ser reconhecida. Era o peso de estar ali por uma única pessoa.
Valentina.
A menina estava a poucos metros, quase escondida ao lado de Carol. Segurava a alça da mochila com tanta força que os nós dos dedos pareciam brancos. Os olhos — grandes, aflitos, ansiosos — a procuravam como se o mundo tivesse parado naquela chegada.
Verena respirou fundo, forçando a compostura. Endireitou o blazer, passou os dedos pelo cabelo em um gesto rápido, automático, e caminhou. Cada passo era calculado, mas dentro dela tudo se dissolvia em descontrole.
Carol, por outro lado, sentiu o peito arder. Reconhecer Verena na televisão era uma coisa, vê-la surgir assim, diante da amiga, era outra. A postura impecável, o magnetismo inevitável — e o olhar fixo demais em Valentina.
Valentina baixou o rosto, incapaz de sustentar. O corpo inteiro tremia, e ainda assim havia uma parte dela que vibrava de desejo, como se tivesse esperado por esse momento desde o último beijo interrompido.
Verena parou a poucos passos. O silêncio ao redor pareceu se intensificar, como se a biblioteca tivesse entendido que algo, ali, estava prestes a acontecer.
— Valentina. — A voz grave quebrou o ar, baixa, contida, mas carregada de tudo o que não podia ser dito.
Carol engoliu em seco. Aquilo não era mais uma aventura adolescente. Era uma loucra perigosa demais pra ser cúmplice.
Biblioteca Mário de Andrade — 15h07
O silêncio parecia pesar mais do que os livros alinhados em centenas de estantes. Carol mantinha o braço colado ao de Valentina, como se pudesse blindá-la só com a proximidade. Já Verena, de pé diante delas, sustentava o olhar com firmeza, embora por dentro lutasse contra o próprio coração.
— Aqui não é o melhor lugar. — disse, baixo, mas com a autoridade natural que sua voz carregava. Os olhos se moveram rapidamente pelo entorno: mesas ocupadas, gente entrando e saindo, o risco óbvio de ser reconhecida. — Tem uma sala de estudo no andar de cima. Mais reservada.
Valentina não respondeu de imediato. Sentia o corpo todo formigar, como se tivesse sido pega em flagrante sem ter cometido crime algum. O simples fato de Verena dizer seu nome, de propor algo, era como um convite proibido que acendia nela tanto o medo quanto o desejo.
Carol respirou fundo, ergueu o queixo e encarou a deputada por um instante. A desconfiança era explícita.
— Sala reservada… — murmurou, quase para si mesma, mas em tom crítico. — Claro.
Verena percebeu o sarcasmo, mas não devolveu. Apenas se inclinou ligeiramente para Valentina, sem quebrar o tom firme:
— Eu só quero conversar.
O coração da menina deu um salto. Só. A frase era pequena demais para o peso que carregava.
Carol, vendo a hesitação da amiga, se lembrou da promessa feita — que ficaria por perto, mas que deixaria as duas a sós se fosse necessário. Engoliu em seco.
— Valen… — chamou, baixo, apertando o braço dela. — Você tem certeza?
Valentina levantou os olhos, por um momento apenas. Encontrou os de Verena, que não desviaram. E foi nesse olhar que sentiu o chão escapar. Não havia resposta possível além de um aceno leve, quase imperceptível.
— Tenho. — murmurou, sem reconhecer a própria voz.
Carol suspirou, derrotada. Fechou os olhos por um instante, antes de largar o braço da amiga. — Tudo bem. Mas eu vou esperar na sala do lado.
Verena sustentou o olhar sério, mas dentro de si um alívio quase culpado a atravessava. Não queria causar medo em Valentina — nunca quis. Mas precisava daquele momento.
— Obrigada. — disse, não para Carol, mas para a menina. E estendeu a mão, convidando-a a caminhar.
Valentina se moveu devagar, os joelhos vacilando. A mão dela encontrou a da mulher, quente, firme, e por um instante tudo ao redor deixou de existir.
Carol, um pouco atrás, de braços cruzados, mantinha os olhos fixos nas duas. Sentia-se como quem entregava a amiga a um abismo.
Verena conduziu Valentina pelo corredor em silêncio, até o elevador. Passaram por mesas, olhares curiosos, portas fechadas. Cada passo era um desafio à razão.
E quando alcançaram a porta de vidro fosco da sala de estudos, Verena abriu-a com a segurança de quem não podia demonstrar o próprio nervosismo.
— Depois de você. — disse, num tom baixo, quase íntimo.
Valentina entrou, sentindo a respiração falhar. O som da porta se fechando atrás delas foi como um selo.
E ali, finalmente sozinhas, o mundo inteiro parecia caber entre quatro paredes de silêncio.
Biblioteca Mário de Andrade — Sala de Estudos, 15h15
A sala era simples: mesa retangular de madeira clara, quatro cadeiras, uma lousa branca encostada na parede. A luz fria das lâmpadas se refletia no piso encerado, tornando o espaço mais impessoal do que aconchegante.
Valentina ficou parada perto da mesa, a mochila ainda agarrada ao ombro como se fosse escudo. Os olhos buscavam qualquer lugar para repousar, menos o rosto da mulher que a trouxera até ali. O coração batia tão rápido que sentia a própria garganta latejar.
Verena, a poucos passos, observava em silêncio. Estava acostumada a dominar ambientes — gabinetes, plenários, entrevistas — mas ali dentro, diante daquela menina de ombros estreitos e mãos trêmulas, sentia a armadura inteira vacilar. Passou a língua pelos lábios, ajeitou a manga da camisa, como quem precisa de qualquer gesto para controlar a ansiedade.
— Você quer se sentar? — perguntou, a voz baixa, quase delicada.
Valentina demorou a reagir. O impulso era recusar, continuar em pé, pronta para fugir. Mas as pernas não obedeciam. Ela apenas assentiu, devagar, e puxou uma das cadeiras, sentando-se na beirada, o corpo rígido.
Verena ficou de pé por mais alguns segundos, olhando-a como se buscasse coragem em detalhes banais: os fios de cabelo soltos sobre a testa, o jeito nervoso de apertar o zíper da mochila, os olhos marejados que se escondiam no chão. Cada pequeno gesto a atravessava de um jeito que não admitiria em voz alta.
Por fim, sentou-se ao lado, mas não de frente. Quis estar perto, talvez perto demais.
O silêncio se instalou, denso, pesado. Valentina respirava rápido, sem conseguir articular qualquer palavra. Verena, por sua vez, sentia o corpo inteiro clamar por quebrar aquela distância, por encostar, por provar que o que acontecera não era fruto da sua imaginação.
— Valentina… — começou, com a voz rouca, o corpo inclinado de leve para o lado dela. — Eu não sei nem por onde começar.
A menina fechou os olhos por um instante, tentando conter as lágrimas. Não queria chorar de novo, não diante dela. Mas a proximidade da deputada, o perfume que parecia mais forte naquele espaço fechado, a voz grave sussurrando seu nome… tudo fazia a resistência ruir.
Verena percebeu. E, sem conseguir evitar, moveu o braço sobre o encosto da cadeira, deixando-o atrás da garota. O gesto não chegou a tocá-la, mas bastou para Valentina sentir um arrepio subir pela espinha, a pele quente, o corpo inteiro reagindo a uma presença que a confundia.
Verena apertou os dedos contra a madeira, como se fosse possível conter o impulso de puxá-la para si. Por dentro, o coração batia tão descontrolado quanto o dela.
— Você não precisa ter medo. — disse, firme, embora cada palavra fosse um pedido desesperado a si mesma também.
Valentina engoliu em seco. Tentou responder, mas a voz não saiu. Ficou ali, olhando para o próprio colo, com a respiração curta.
E Verena, quase à beira de perder o controle, fechou os olhos por um instante, tentando recuperar a racionalidade que sempre a definira. Mas bastava abri-los de novo e ver aquele rosto tímido, aquela inocência misturada ao desejo, para sentir a razão se dissolver.
A sala era pequena demais para tanto silêncio.
Biblioteca Mário de Andrade — Sala de Estudos, 15h19
O silêncio parecia um terceiro corpo entre elas. Valentina mantinha os olhos baixos, mexendo nos próprios dedos, como quem procura uma saída que não existe. Verena observava, sentindo o estômago revirar de ansiedade e culpa, mas, acima de tudo, de um desejo que só crescia.
Ela apoiou o cotovelo na mesa, o rosto voltado para a menina, e deixou escapar um suspiro mais longo do que pretendia.
— Eu devia ter sido mais clara antes — começou, a voz rouca, mas controlada. — Não era pra ter acontecido… nenhuma daquelas vezes.
Valentina ergueu os olhos, rápido, como se as palavras fossem um choque. O olhar marejado, assustado, mas também com uma chama que Verena reconhecia. Era a mesma que via no espelho quando lembrava do toque suave, da boca tímida que a deixava sem ar.
Verena passou a mão pelos cabelos, nervosa, e completou:
— Só que… quanto mais eu tento convencer a mim mesma de que acabou, mais eu me pego lembrando.
As últimas palavras saíram mais baixas, quase um segredo.
Valentina engoliu em seco, e só esse gesto já foi suficiente para que Verena perdesse a última camada de controle. Ela se inclinou um pouco mais, o braço ainda no encosto da cadeira, e deixou os dedos tocarem de leve os cabelos da menina, afastando-os da testa úmida.
— Eu não quero que você tenha medo de mim — disse, olhando-a nos olhos pela primeira vez desde que entraram. — Mas eu também não consigo fingir que não sinto nada.
Valentina respirava rápido, os lábios entreabertos, incapaz de formular qualquer resposta. Cada centímetro da proximidade de Verena era uma mistura insuportável de calor e vertigem.
Verena fechou os olhos por um instante, como quem busca fôlego, e quando voltou a olhar para a garota, já não havia mais o escudo da racionalidade. Apenas a mulher, entregue, sem defesas.
— Se você me pedir pra parar, eu paro. — disse, a voz quase um sussurro. — Mas se não pedir… eu não sei até onde consigo me segurar.
Valentina estremeceu. E naquele segundo, Verena percebeu: não havia mais volta.
Biblioteca Mário de Andrade — Sala de Estudos, 15h27
O silêncio era tão denso que parecia vibrar dentro das paredes. A respiração acelerada de Valentina ecoava como um segredo impossível de esconder. Verena inclinou-se mais, até que seus olhos ficaram a poucos centímetros dos dela. O perfume discreto da menina — sabonete misturado ao suor tímido do nervosismo — subiu como uma vertigem.
A mão de Verena, trêmula apesar da força que costumava carregar em plenário, subiu devagar pelo braço de Valentina até alcançar o rosto. O polegar roçou de leve a pele quente e úmida pela ansiedade. Ela fechou os olhos por um instante, respirou fundo, e quando falou, a voz saiu baixa, grave, carregada de um desespero contido:
— Me pede pra parar… por favor.
Valentina piscou rápido, como se aquela súplica fosse uma lâmina atravessando o ar. Mas não conseguiu falar. Os olhos se encheram d’água, o peito arfava, e em vez de recuar, ela deixou o rosto pender levemente contra o toque, como se implorasse pelo contrário.
Verena mordeu o próprio lábio, lutando contra a razão. Estava à beira de perder o controle.
— Você não entende… — murmurou, colando a testa à dela. — Se você não disser agora… eu não vou mais conseguir.
A respiração quente se misturou entre as duas. Valentina fechou os olhos, sentindo a boca secar, mas o corpo inteiro pedir o que a voz não tinha coragem de dizer. O coração batia tão alto que parecia trincar seus ossos.
Então, com um gesto tímido, quase imperceptível, Valentina apertou de leve a mão de Verena contra o próprio rosto.
Esse sinal bastou.
Verena a beijou.
Não foi urgente. Não foi voraz. Foi um selinho longo, firme, carregado de um cuidado que parecia o oposto do incêndio que a queimava por dentro. Os lábios se tocaram num choque elétrico, e Valentina soltou um gemido baixo, sem perceber.
Verena recuou um segundo, ainda tão perto que os lábios roçavam ao falar:
— Você me enlouquece. Essa boca…
E antes que a menina pudesse responder, tomou-a de novo, agora mais forte, os olhos fechados, como se aquele instante fosse o único lugar seguro do mundo.
O beijo se prolongava, mas era desigual. Os lábios de Valentina tremiam, às vezes firmes, às vezes duros demais, outras cedendo rápido demais. Verena, entregue, respirava fundo, controlando o impulso de devorá-la inteira.
O beijo se aprofundou. Não com violência, mas com firmeza. Verena deixou a ponta da língua explorar mais, tocando os lábios da menina, pedindo passagem. A garota recuou de imediato. Os olhos se abriram, assustados, como se tivesse sido pega em flagrante pelo próprio corpo. O ar entrou em soluços rápidos, o peito subia e descia sem ritmo. Ela levou a mão ao rosto, como se quisesse esconder-se.
— Eu… eu não… — a voz saiu trêmula, quase inaudível.
Verena parou. As mãos ficaram suspensas por um segundo no ar, a respiração presa. O coração batia como um martelo contra as costelas. Ela inclinou-se mais, buscando os olhos da menina, mas sem invadir. Aproximou-se devagar, o rosto colado ao dela, o perfume ainda mais intenso, a boca quase tocando, sem beijar.
— Valentina… — sussurrou, num fio grave que tremia. — Olha pra mim.
A menina obedeceu, hesitante. O olhar estava molhado, confuso, uma mistura cruel de medo e paixão. Era como se cada célula gritasse em direções opostas: fugir e ficar.
Verena estendeu a mão, tocando de leve a bochecha quente. O polegar deslizou com carinho pela pele, tentando acalmar, mas o gesto apenas acentuou o arrepio que percorreu Valentina.
— Não precisa ter medo… — disse, quase implorando. — Eu não vou te machucar.
O silêncio entre elas era denso, cortado apenas pela respiração falha das duas. Valentina fechou os olhos um instante, tentando se recompor. Mas o corpo a traía: os dedos apertavam o braço de Verena como se pedissem para ela não se afastar.
Verena mordeu o lábio inferior, lutando contra si mesma. A proximidade era uma tortura. O calor da menina tão perto, o tremor do corpo dela encostando ao seu, tudo parecia arrastá-la para um ponto sem retorno.
— Se você quiser que eu pare… só precisa dizer. — A voz saiu rouca, carregada de desespero.
Biblioteca Mário de Andrade — Sala de Estudos, 15h47
Verena percebeu a rigidez no corpo da menina. Os ombros tensos, os lábios comprimidos, o olhar que implorava e resistia ao mesmo tempo. Entendeu que forçar aquele caminho seria quebrá-la. E não queria isso.
Com a calma de quem sabia jogar em várias frentes, mudou a tática. Aproximou-se devagar, o nariz roçando a pele fina da bochecha, deslizando até a curva do ouvido. Valentina estremeceu, o ar preso na garganta.
— Você é tão linda… — Verena murmurou baixo, a voz grave e quente, mais respiração do que palavra.
Antes que a menina pudesse reagir, a deputada deixou os lábios tocarem a orelha. Um beijo leve, depois outro, e então a mordida — suave, precisa, quase uma provocação.
Valentina se encolheu inteira, o corpo enrijecendo e, em seguida, cedendo como se as forças a abandonassem. Um suspiro escapou, alto demais para a biblioteca, mas abafado pelo silêncio da sala.
Verena sorriu. Um sorriso pequeno, malicioso, satisfeito com a reação.
— Você não faz ideia do que causa em mim… — sussurrou, mordiscando mais uma vez. O timbre saiu grave, arrastado, feito para incendiar. — Só de estar assim… tão perto.
A respiração de Valentina acelerou. A menina levou a mão ao braço da cadeira, como se precisasse de algo sólido para não desmoronar. O rosto queimava, as pernas pareciam feitas de algodão.
Verena continuou o assalto delicado, alternando beijos e palavras:
— Sua pele… macia.
Um beijo.
— Esse cheiro… tão seu.
Outra mordida, mais leve.
— Você me deixa sem razão, Valentina.
A cada frase, a menina sentia o corpo derreter um pouco mais. O coração disparava, o estômago se revirava, mas não era medo — era um calor que crescia e a consumia inteira.
Verena, atenta, recuou apenas o suficiente para observar o efeito. Os olhos verdes brilhavam, satisfeitos com a visão da menina trêmula, mordendo o lábio para não gem*r.
E, como quem selava o momento, encostou a boca outra vez na orelha dela, sussurrando num sopro quente que fez Valentina quase desfalecer:
— Fala comigo, meu bem… diz que você sente também.
Biblioteca Mário de Andrade — Sala de Estudos, 15h58
Valentina não conseguiu responder. A garganta fechada, a boca seca demais para formar qualquer palavra. Mas, sem perceber, a mão que antes se agarrava ao metal frio, escorregou para o braço de Verena. Um toque hesitante, quase um pedido de desculpa, mas que denunciava mais do que qualquer frase: ela não queria que terminasse.
Verena prendeu a respiração. O estômago revirou, as pernas pareceram ceder por um instante. Aquilo — aquele gesto minúsculo, quase infantil — era a permissão que ela não ousava pedir.
Os olhos verdes a fitaram, duros de tensão e ao mesmo tempo derretidos de desejo. A mão subiu, firme, até prender de leve o queixo da menina, obrigando-a a erguer o rosto.
— Você… não sabe o que faz comigo. — murmurou, com a voz grave, rouca de contenção.
Valentina fechou os olhos, incapaz de sustentar o olhar. O corpo inteiro tremia, mas não recuava.
Verena aproximou-se devagar, o hálito quente tocando os lábios trêmulos da garota. Por um segundo pareceu hesitar, mas então se entregou: primeiro um selinho demorado, cheio de contenção, depois outro, mais profundo, mais faminto.
O gesto tímido de Valentina evoluiu para algo maior: os dedos apertaram com força o braço de Verena, como se aquele contato fosse a única âncora contra o próprio colapso.
Verena perdeu o controle. A mão deslizou para a nuca da menina, puxando-a para mais perto, moldando o beijo que agora já não era só cuidado — era fome. O contraste era brutal: a inexperiência de Valentina, dura, trêmula, e a experiência madura de Verena, guiando, ensinando, roubando cada centímetro do que podia.
A boca da jovem abriu por instinto, e Verena, incapaz de resistir, deixou a língua escapar, tocando de leve o canto dos lábios. Valentina soltou um suspiro, mais gemido que respiração.
Verena recuou só um instante, o rosto ainda colado, os olhos semicerrados, ardendo.
— Se quiser que eu pare… diz agora. — a voz saiu grave, desesperada, quase uma súplica.
Mas Valentina apenas mordeu o próprio lábio, os olhos marejados, o corpo pedindo mais.
O gesto bastou.
Verena voltou a beijá-la, sentindo o autocontrole ruir.
O beijo, já quente pelo peso da espera, começou a tropeçar nos desencontros da própria inexperiência. Valentina, rígida no início, respirava errado, arfando pelo nariz como se faltasse ar. Os lábios se abriam e fechavam em movimentos incertos, sem saber se acompanhavam ou recuavam.
Verena percebeu, mas não se afastou. Ao contrário, sorriu contra a boca da menina, achando aquela hesitação encantadora. A mão sustentando-a com firmeza, como quem diz sem palavras: confia em mim.
— Devagar… — murmurou, a voz grave, tão próxima que parecia vibrar dentro da pele dela. — Só respira comigo.
Valentina tentou. Soltou o ar pela boca, o peito subindo em soluços nervosos, até que Verena aproveitou a brecha para aprofundar de leve o beijo. A língua roçou os lábios dela, pedindo passagem. Valentina hesitou, mordeu sem querer, o gesto atrapalhado arrancando um gemido surpreso da própria deputada.
— Isso… — Verena riu baixinho, sem ironia, apenas encantada.
Guiando o movimento, alternou selinhos lentos com beijos mais longos, deixando tempo para que Valentina entendesse o ritmo. A cada nova tentativa, a menina se entregava mais, agarrando a manga da blusa de Verena como se tivesse medo de cair. O coração batia tão forte que a deputada sentia vibrar contra o próprio corpo.
— Abre um pouquinho mais… assim… — pediu, entre sussurros.
Valentina obedeceu, sem pensar, e o beijo finalmente ganhou corpo. Ainda desajeitado, mas tão carregado de desejo que a inexperiência se transformava em pureza. Verena perdeu o fôlego, sentiu a excitação crescer, o corpo reagindo de um jeito que mal conseguia controlar.
O beijo se desfez devagar, os lábios ainda roçando como se nenhum dos dois tivesse coragem de decretar o fim. Verena deixou a respiração escapar quente sobre a boca da menina antes de deslizar, lenta, até o canto do queixo. Sentiu a pele arrepiada sob o toque. Seguiu a linha do rosto, alcançando a curva da orelha. A mordida foi suave, só um roçar de dentes, mas suficiente para fazer Valentina se encolher inteira, como se o corpo não soubesse lidar com aquela onda que a atravessava.
— Você é tão linda… — Verena murmurou, a voz grave embebida de ternura e perigo. — Não precisa ter medo de mim.
Valentina fechou os olhos com força, o coração disparado. As mãos tremiam, presas ao tecido amassado, até que Verena, num gesto natural, tomou uma delas e a levou devagar contra o próprio peito.
— Sente? — sussurrou, encostando a testa na dela. — É você que me deixa assim.
O gesto, simples e devastador, arrancou de Valentina um suspiro. Sem perceber, a menina inclinou-se mais, como se fosse sugada pela presença daquela mulher. Verena aproveitou, a mão firme em sua cintura, puxando-a alguns centímetros para mais perto, quase para cima de si.
— Eu quero você... — escapou, baixo, carregado de calor. — Você me deixa louca.
Valentina abriu os olhos, assustada e entregue ao mesmo tempo, vendo o sorriso pequeno de Verena, o olhar que não a deixava respirar. Não havia manual para aquele momento, nem experiência prévia. Só o corpo clamando, sem saber como parar.
Verena, paciente e febril, voltou à boca dela num beijo doce, mas agora mais profundo, explorando devagar, ensinando sem pressa, enquanto os braços cercavam a menina como se o mundo inteiro coubesse ali.
Biblioteca Municipal Mário de Andrade — Sala de Estudos, 16h10
A porta se abriu de repente, sem aviso.
Carol entrou apressada, ainda com o celular na mão, o cenho franzido. Mas a expressão se desfez num segundo. O que viu a paralisou.
Valentina estava sentada na beira da cadeira, o corpo inclinado para frente, os olhos fechados. Verena, muito perto, uma das mãos em sua cintura, a outra pousada no rosto da menina. As bocas coladas num beijo que, a olhos nus, não deixava espaço para interpretação.
Carol prendeu a respiração. O sangue sumiu das pernas.
— Meu Deus… — escapou, num sussurro rouco que mal parecia a própria voz.
O mundo parou.
Verena se afastou num rompante. O corpo reagiu antes do cérebro: puxou-se para trás tão bruscamente que a cadeira em que Valentina estava arranhou o piso com um guincho metálico. Os olhos verdes faiscavam, duros, mas também em pânico.
— Você não bate na porta? — a voz saiu ríspida, quase um grito contido.
Carol recuou meio passo, sem conseguir desgrudar os olhos da cena recém-dissolvida. As mãos tremiam. O celular quase escorregou de seus dedos.
Valentina, ao contrário, encolheu-se na cadeira, o rosto virado para baixo. Os cabelos caíram como cortina, escondendo-lhe os olhos. Ela pressionou as palmas contra as coxas, o corpo rígido, como se quisesse desaparecer ali mesmo. O rubor das bochechas se misturava ao medo e à vergonha.
O silêncio era tão pesado que parecia ocupar todo o ar da sala.
Verena passou a mão pelos cabelos com violência, jogando-os para trás, respirando fundo, tentando retomar o controle. O coração ainda batia em disparada, o gosto de Valentina preso nos lábios. Mas agora, a adrenalina era outra: a do perigo, da exposição, da catástrofe iminente.
— Carol… — tentou dizer, mas a voz falhou. Endireitou a postura, cruzou os braços para esconder o tremor nas mãos. — Isso não é o que você pensa.
Carol arregalou os olhos, uma risada nervosa escapando, sem humor algum.
— Não é o que eu penso? — A voz dela ecoou mais alto do que pretendia, rachada pela indignação. — Eu acabei de ver!
Verena sentiu o estômago despencar. A reação foi instantânea, quase automática, mais defesa do que consciência:
— Fala baixo, porr*! — estourou, num sussurro áspero, que ecoou mais do que pretendia.
Valentina levou as mãos ao rosto, os ombros tremendo. O choro começou baixo, sufocado, mas era impossível esconder.
O silêncio que se seguiu foi devastador. O olhar de Carol, arregalado de horror, fez Verena perceber a gravidade do que tinha acabado de dizer. Vira-se ali, pedindo para uma adolescente “falar baixo” como se fosse cúmplice de um crime.
A vergonha a atingiu como uma pancada.
Carol correu até a amiga e abraçou Valentina com força, como se pudesse blindá-la. A menina soluçava sem ar, os dedos agarrados ao tecido da amiga, tentando se esconder.
Verena olhou para ela e o coração apertou. Vê-la assim, desmoronando, era uma punhalada. Quis se aproximar, tocar, consolar — mas o olhar acusador de Carol a mantinha presa no lugar.
— Não começa também Valentina — disse, mais dura do que queria, tentando soar firme. Mas por dentro, a frase lhe soou cruel.
Carol arregalou ainda mais os olhos.
— O que você fez com ela? — disparou, encarando Verena com fúria.
A mulher passou a mão pelos cabelos, nervosa, empurrando-os para trás, os óculos escuros ainda esquecidos no decote da blusa. Caminhou dois passos, sem saber o que fazer, o coração martelando como um tambor de guerra.
— Eu… eu não fiz nada contra a vontade dela. — A voz saiu baixa, embargada, sem o tom de autoridade que costumava usar. — Não me olha assim.
— Como você quer que eu olhe? — rebateu a jovem, a voz subindo de novo. — Você tem idade pra ser mãe dela! É casada! E tá aqui… destruindo ela!
Cada palavra atravessava Verena como faca. A parte mais dolorosa era que não havia mentira nenhuma ali.
Ela abriu a boca, mas fechou de novo. Não havia justificativa. Não havia defesa possível. Apenas aquela mistura tóxica de desejo e culpa que a consumia inteira.
Olhou para Valentina. A menina tremia nos braços da amiga, o rosto escondido, mas Verena podia sentir o peso da dor dela — e era insuportável. Quis se ajoelhar, pedir perdão, prometer que nunca mais chegaria perto. Mas não tinha forças nem para se aproximar.
O silêncio voltou a dominar a sala, quebrado apenas pelo soluço irregular de Valentina.
Verena então inspirou fundo, tentando recuperar o mínimo de controle. O instinto político, a frieza de bastidor, voltou em lampejos.
— Vamos embora daqui. — disse, firme, mas sem gritar.
Carol a encarou como se quisesse cuspir um insulto.
— A gente não vai a lugar nenhum com você.
A frase cortou o ar. Valentina levantou o rosto por um instante, os olhos marejados encontrando os de Verena. O peito da deputada se contraiu. Ali, naquele olhar perdido, havia tudo: medo, amor, culpa, desejo, confusão.
E foi isso que quebrou o último resquício de defesa de Verena.
Ela desviou os olhos, sentindo a garganta arder, e percebeu que não havia mais como controlar nada. Nem a situação. Nem o coração.
Mas encarou a garota encarou com firmeza, os olhos frios, a mandíbula trincada.
— Não foi uma pergunta.
O silêncio que seguiu foi brutal. Valentina prendeu a respiração, encolhida entre as duas. Carol se ergueu um pouco, ainda segurando a amiga, como se não aceitasse ceder um centímetro sequer.
— Você não manda nela. — cuspiu, sem medo.
A frase atravessou Verena como uma lâmina. A resposta veio rápida, automática, quase um reflexo de sobrevivência. Inclinou-se ligeiramente para a frente, como quem mede cada palavra antes de soltá-la. Os olhos verdes ardiam de impaciência, a voz saiu baixa, grave, mas cortante o suficiente para atravessar o ar pesado.
— Eu não preciso mandar nela, garota. — disse, pausada. — Ela mesma já decidiu estar aqui.
Carol arregalou os olhos de novo, o coração disparando, mas não recuou. Apertou Valentina contra si como se pudesse blindá-la daquela presença.
Verena, sem se mover, deixou escapar um riso curto, sem humor, carregado de ironia.
— O problema é que você acha que pode decidir por ela. — os olhos cravaram em Carol, afiados. — Mas você não é mãe dela. Não é nada dela.
Valentina estremeceu entre as duas, o rosto ainda enterrado no ombro da amiga, o choro contido em soluços rápidos. Carol engoliu em seco, ferida pela dureza das palavras, mas não soltou a amiga.
Verena suspirou, exasperada, passando a mão pelos cabelos e jogando-os para trás. A máscara de calma quase se rompia.
— Agora… — disse, mais dura, cada sílaba como um estalo seco — vocês duas vão levantar. Vão sair dessa sala. E ninguém aqui dentro vai levantar a voz outra vez.
O tom não deixava espaço para réplica. Carol a encarava, queimada de raiva, mas percebeu na hora: aquele não era um jogo que pudesse ganhar ali.
Valentina, encolhida, apenas assentiu com a cabeça, incapaz de emitir um som.
Biblioteca Mário de Andrade — 16h25
O ranger discreto da porta ecoou mais do que deveria, como se o silêncio pesado amplificasse cada som. Verena foi a primeira a se mover. Endireitou a postura com a elegância automática de quem estava acostumada a encarar plateias hostis, mas por dentro a respiração ainda vinha curta, carregada. Passou os dedos pela gola da polo, ajeitando-a como se o gesto fosse suficiente para recompor a compostura.
Atrás dela, Valentina hesitava. Os olhos ainda vermelhos, o rosto quente das lágrimas mal disfarçadas. Sentia o corpo mole, como se tivesse perdido toda a energia. Os dedos agarravam o braço da amiga como se fosse escudo, mas a verdade é que ela tremia dos pés à cabeça.
Carol manteve-se firme, o braço passado pelas costas da amiga, sustentando o peso de Valentina mesmo que não admitisse. O olhar dela estava cravado na deputada, duro, sem se permitir piscar. Era raiva, mas também medo — medo de que cada passo em direção à porta fosse mais um erro irreversível.
Verena parou à frente da porta, abriu-a com a mão firme e lançou um olhar rápido para trás. O verde dos olhos brilhava sob a luz que entrava pelo corredor, um brilho frio, calculado.
— Vamos. — disse, a voz baixa, mas carregada de comando.
Carol sentiu o estômago revirar. Não respondeu. Apenas puxou Valentina pelo ombro, guiando-a para fora.
O corredor estava vazio, exceto pelo som distante de páginas sendo viradas e o tilintar de copos na cafeteria ao fundo. Mas para as três, cada ruído parecia amplificado. Os passos de Carol e Valentina soavam irregulares, apressados, os de Verena, firmes e controlados, como se cada batida de salto no piso encerasse sua autoridade.
Quando chegaram à porta principal da biblioteca, Carol inclinou-se para a amiga e sussurrou, mas alto o bastante para ecoar no ar carregado:
— A gente vai embora agora.
Valentina apenas assentiu, os olhos baixos, evitando encarar qualquer um dos lados.
Verena permaneceu imóvel por um instante, observando as duas. O maxilar contraído denunciava a tensão, mas o rosto não cedia. Apenas respirou fundo, como quem travava a própria fúria, e seguiu atrás delas.
O sol das quatro da tarde invadiu o átrio, cegando por um segundo. A praça lá fora continuava viva — estudantes rindo, senhores caminhando, carros cruzando a rua. Mas para as três, era como se o mundo tivesse encolhido ao tamanho do silêncio que as separava.
O Audi as aguardava à sombra de uma árvore. O carro parecia um refúgio, mas também uma armadilha. Quando Verena apontou a chave, o bip das travas ecoou alto demais, arrancando Valentina de seu torpor.
Carol abriu a porta de trás primeiro, quase enfiando a amiga lá dentro sem lhe dar chance de hesitar. Valentina entrou, encolhendo-se contra o canto do banco, a mochila ainda apertada contra o peito.
Verena contornou o carro, abriu a porta do motorista e, sem conseguir conter o ímpeto, bateu-a com força. O estampido metálico reverberou pelo estacionamento, chamando a atenção de dois rapazes que passavam. Ela mesma se assustou com o som, como se tivesse ouvido sua raiva explodir para fora.
Respirou fundo. Por um instante, fechou os olhos, tentando se recompor. Não era assim que costumava reagir. Nunca tinha sido. O autocontrole sempre fora sua marca, sua armadura. Mas ali, diante daquelas duas adolescentes — uma que lhe arrancava o chão, outra que lhe devolvia os espelhos quebrados — não se reconhecia.
As mãos ainda estavam no volante, rígidas, quando percebeu os olhos de Carol fixos no retrovisor. O olhar acusador, protetor, como se dissesse em silêncio que qualquer gesto errado não passaria impune.
Verena desviou, encarando o vidro diante de si. O reflexo mostrava uma mulher que parecia prestes a se despedaçar e, ainda assim, tão perigosamente viva.
Virou a chave na ignição. O ronco do motor preencheu o silêncio.
— Apertem os cintos. — disse, seca, mas a voz embargou no fim.
E partiu.
Avenida da Consolação — 16h37
O carro avançava aos solavancos, preso no mar de buzinas que se formava com rapidez. O céu, até então azul lavado, foi tomado por nuvens pesadas, escuras, que se aglomeravam como se quisessem soterrar a cidade. Uma trovoada forte ribombou ao longe, fazendo os vidros tremerem.
Verena apertou o volante com força, os nós dos dedos ficando brancos. Cada centímetro parado na avenida parecia uma afronta pessoal. Olhou pelo retrovisor. Carol mantinha o braço em torno de Valentina, os olhos fixos na amiga como quem vigia um cristal prestes a se despedaçar. Valentina, pálida, encostava a testa contra o vidro lateral, respirando fundo, numa tentativa inútil de controlar a onda de mal-estar.
A deputada engoliu seco. Aquilo só podia ser uma ironia cruel do destino: desejara tanto alguns minutos a mais sozinha com Valentina, e agora os tinha — mas no pior cenário possível.
O ar dentro do carro estava pesado, um misto de couro, perfume e a respiração nervosa das três. Verena baixou um pouco o vidro, tentando renovar o ar, mas a chuva começou a cair grossa, pingos que estalavam como pedras contra a lataria.
— Merda… — sussurrou, mais para si mesma, batendo levemente no volante.
Valentina se mexeu no banco, os ombros tensos, e fechou os olhos. A cor tinha fugido do rosto por completo. Carol a sacudiu de leve.
— Valen? — chamou, a voz já tomada pelo pânico. — Tá me ouvindo?
Verena esticou o pescoço, alarmada. Viu a menina empalidecer ainda mais, os lábios entreabertos numa respiração curta. O coração da parlamentar disparou.
O trânsito estava parado, buzinas soavam de forma intermitente, e a chuva castigava o carro sem piedade. Verena lançou um olhar rápido ao redor — prédios, marquises, motoristas irritados presos na mesma armadilha. Não havia espaço para ambulância, não havia tempo para esperar.
Destravou o cinto num gesto brusco e girou o corpo. Estendeu a mão até o banco de trás, tocando o ombro gelado de Valentina.
— Escuta a minha voz. Respira comigo. — disse, aproximando-se — Agora, Valentina. Inspira… segura… solta devagar.
Os cílios da menina tremeram, mas ela não abriu os olhos. O peito arfava em ritmo quebrado.
Verena esticou ainda mais o braço, apoiando a mão na nuca dela, firme, como quem sustenta uma estrutura prestes a ruir.
— Você não vai desmaiar aqui. Olha pra mim. Vamos. Respira.
Carol chorava, tentando ajudar, mas sua aflição só deixava o ar mais denso.
— Ela não tá reagindo! — soluçou, agarrada à mão da amiga.
Verena fechou os olhos por um segundo, respirou fundo para controlar a própria vertigem. Precisava ser o pilar, a adulta, mesmo com o coração despedaçado de medo. Voltou a falar, mais baixo, quase um sussurro grave junto ao ouvido da menina:
— Valentina, me escuta. Eu tô aqui. Você tá segura. Respira comigo.
Um trovão estourou acima do carro, iluminando os três por um instante. Valentina abriu os olhos pela primeira vez, úmidos, perdidos, mas vivos.
Verena deixou escapar o ar preso no peito. Apertou de leve a nuca da menina, como se a ancorasse naquele instante.
— Isso. Continua. Só mais uma vez. Inspira… segura… solta devagar.
Carol, ainda abraçada à amiga, encarou Verena pelo retrovisor. Os olhos vermelhos estavam em brasa, entre a desconfiança e a gratidão.
O trânsito começava a andar em câmera lenta. As buzinas se misturavam à tempestade, mas dentro do Audi só haviam três respirações descompassadas tentando encontrar o mesmo ritmo.
Avenida da Consolação — 16h43
O fluxo de carros avançou um pouco, mas Verena já não via saída em seguir daquele jeito. Os sinais de Valentina não melhoravam, e cada vez que a menina fechava os olhos, o medo de vê-la apagar ali dentro a corroía.
— Segura firme — disse, mais para si mesma, jogando o carro devagar para a direita. Buzinas explodiram atrás, mas ela ignorou, até encostar sob a marquise estreita de um prédio antigo.
O barulho da chuva batendo no vidro agora era ensurdecedor. Verena puxou o freio de mão e virou-se inteira para o banco de trás.
— Abre um pouco a janela, deixa o entrar ar. — ordenou a Carol, que obedeceu sem discutir. O vento úmido e frio entrou de uma vez, trazendo cheiro de asfalto molhado.
Valentina respirava curto, a pele tão pálida que parecia transparente.
— Ei, olha pra mim. Tá me ouvindo? — perguntou, e os olhos verdes buscavam desesperadamente qualquer sinal de resposta.
— Valen… — Carol engasgou, segurando-a pelos braços, tentando conter o tremor. — Ei, por favor, calma, respira comigo. Vai ficar tudo bem, respira comigo…
Mas a amiga não conseguia. Os soluços se atropelavam, a respiração se transformava em gemidos de dor. Valentina enfiav* as mãos no próprio rosto, como se pudesse esconder a catástrofe de dentro.
Verena, imóvel atrás do volante, sentiu o coração perder o compasso. Era como assistir alguém se despedaçar diante de si, e não saber como impedir. O peso da culpa latej*v*, cada lágrima da menina parecia cair dentro dela mesma.
E, contra toda lógica, contra toda humanidade que ainda lhe restava, a voz explodiu de dentro:
— Porr*, para de chorar!
O grito atravessou o carro como um estilhaço. Mesmo com a chuva, mesmo com o trânsito, ecoou alto demais.
Valentina paralisou, o rosto molhado, os olhos arregalados entre medo e dor. Carol virou-se devagar, ainda abraçada à amiga, a expressão em choque.
O arrependimento veio como uma marreta, esmagando-lhe o peito. Sentiu o estômago se contrair, as mãos tremerem no volante. O que havia feito? Gritar com ela — com aquela menina quebrada, que tremia ao ponto de se afogar nos próprios soluços?
Valentina fungava sem parar, as mãos úmidas limpando o rosto em vão. Tentava se recompor, mas os soluços vinham em ondas, cada um mais violento que o anterior.
Carol não resistiu, uma lágrima solitária escorreu pelo rosto dela. Apertou ainda mais a amiga contra o peito, como quem segura um frágil pedaço de vidro prestes a rachar.
Verena desviou o olhar. O peso de sua própria voz ainda reverberava dentro do carro. Ali, mostrava-se apenas uma mulher perdida, esmagada pelo desejo e pela culpa, incapaz de lidar com o abismo que ajudara a abrir.
Avenida da Consolação — 16h48
O silêncio voltou a reinar, mas agora era outro — denso, encharcado de arrependimento. Verena passou a mão pelo rosto, respirou fundo e, com a voz mais baixa que conseguiu reunir, murmurou:
— Me desculpem.
Nenhuma das duas respondeu. Valentina ainda tremia nos braços da amiga, os olhos perdidos no vidro embaçado, como se buscasse escapar por ali. Carol continuava firme, abraçando-a, sem se dar ao trabalho de olhar para a mulher ao volante.
Verena fechou os dedos em torno do câmbio, recuou o carro alguns centímetros e voltou para a faixa da direita. O trânsito ainda estava lento, mas fluía o suficiente para levá-las de volta ao bairro. Cada buzina, cada farol vermelho, cada gota grossa da chuva parecia um lembrete cruel da própria impotência.
No banco de trás, Carol ajeitou a mochila de Valentina no colo, tentando distraí-la com gestos banais — limpando com delicadeza o rosto dela, ajeitando-lhe o cabelo úmido que grudava na testa. Valentina permanecia em silêncio, apenas fungando, vencida pelo choro.
A cada olhar pelo retrovisor, Verena sentia o nó na garganta se apertar. Queria falar, queria se justificar, mas qualquer palavra pareceria uma nova violência. O máximo que podia oferecer era o trajeto seguro de volta.
O Audi avançou pela Consolação, depois pegou a Rebouças e, com o tráfego ainda denso, seguiu em direção à Zona Sul. Dentro do carro, o clima era de enterro. Verena não ousou colocar música, não ousou falar de novo. Apenas conduziu, a respiração pesada, enquanto via pela janela o dia escurecer antes da hora.
Rua da Casa de Carol — 17h32
O motor ainda roncava baixo quando Verena, sem se virar, deixou escapar, num tom que tentou soar natural:
— Eu posso levar a Valentina até em casa.
O coração sabia a resposta antes mesmo de ouvir.
Carol reagiu como se tivesse levado um tapa. Endireitou-se no banco, o braço ainda envolvendo a amiga:
— De jeito nenhum. — A voz saiu firme, cortante. — Aqui já tá bom.
Verena fechou os olhos por um segundo, apoiando a testa de leve no volante. A frieza da resposta atravessou-lhe o peito, mas não insistiu. Apenas respirou fundo, tentando não deixar transparecer a raiva misturada à impotência.
Valentina, silenciosa, enxugava o rosto com a manga da blusa, evitando qualquer olhar. O choro tinha cessado, mas os olhos ainda ardiam vermelhos, a pele sensível marcada pela tempestade de emoções.
Carol abriu a porta com um gesto brusco, puxando a amiga com ela. Antes de descer, lançou um último olhar rápido para Verena, duro, desconfiado, como quem crava um aviso mudo: acabou por aqui.
Verena não respondeu, nem tentou suavizar. Limitou-se a assistir as duas saírem, a porta bater, e o vazio tomar conta do banco do veículo, mais ensurdecedor que qualquer discussão.
Rua da Casa de Carol — 17h36
O motor do Audi já estava desligado há minutos, mas Verena continuava imóvel, as mãos presas ao volante, os olhos perdidos no vidro encharcado. O celular vibrou ao lado. A tela iluminou-se: Silvia.
Demorou dois segundos para atender, como se a garganta tivesse travado.
— Oi… — a voz saiu baixa, rouca.
— Verena? — Silvia soava ofegante, como quem tinha acabado de correr. — Você tá onde?
Verena sentiu o peito arder. A pergunta carregava algo estranho, denso.
— No carro… por quê? Aconteceu alguma coisa?
Silêncio. Apenas a respiração curta do outro lado. Então, Silvia tentou falar, mas a voz vacilou:
— É o meu pai…
Verena se endireitou no banco.
— O que tem o seu pai?
Dessa vez, Silvia não conseguiu esconder o tremor:
— Ele passou mal em casa. Um AVC… eu tô no hospital com a minha mãe.
Verena fechou os olhos, como se o mundo tivesse se recolhido de repente.
— Qual hospital? — a pergunta saiu firme, quase dura.
— Sírio-Libanês. Emergência. — O esforço da esposa para manter o tom racional apenas evidenciava o desespero. — Eu tô tentando ficar calma, mas… eu não consigo, Vê.
Verena respirou fundo, o peso da culpa e da angústia misturando-se numa pressão insuportável no peito.
— Eu tô indo agora. — girou a chave de imediato, o motor rugindo alto. — Fica calma tá bem? Já tô indo.
Do outro lado, Silvia hesitou um instante, a voz quase desmoronando:
— Vem rápido, por favor.
A ligação caiu.
Verena ficou um segundo parada, os dedos cravados no volante, até que uma buzina atrás a despertou. Arrancou, o carro disparando pela rua estreita, os faróis refletindo a chuva que recomeçara. E o coração batia como se quisesse acompanhar o giro do motor.
Fim do capítulo
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Zanja45
Em: 09/10/2025
Verena tremeu com esse flagra. - Se desesperou até com a choradeira de Valentina. - E a cena de Carol" congelada no tempo" foi muito engraçada . - Só não para vê que ficou apavorada com a ideia de alguém mais ter visto.
Zanja45
Em: 20/10/2025
Foi melodramático esse capítulo. - Verena perdeu o controle com a choradeira de Valentina.
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Zanja45
Em: 09/10/2025
Oi, autora, boa tarde!
Já li esse capítulo, mas comecei a lê lo novamente para comentar.
Estou relendo aos poucos - Ainda não fiz a leitura do último capítulo postado.
Até breve!
anonimo2405
Em: 19/10/2025
Autora da história
Oiee, boa noite!
Ah minha querida, obrigada pelo carinho. Não se preocupe, o mais importante é que tenha uma leitura prazerosa e no seu tempo.
E adoro ler seus comentários reflexivos.
Abraço! Até mais!
Zanja45
Em: 20/10/2025
Oi, boa noite, Autora!
Fico feliz que goste,
Quero ter tempo de ler sua obra da maneira como ela merece, porque já percebi se tem que fazer as coisas tem fazer com qualidade, aproveitar bem a leitura, assim como o levantamento das impressões. - porque deixar para depois a gente acaba de não ter tempo de retornar. Por isso, de agora em diante vou fazer o serviço completo. - Leitura e comentários de vez.
Abrc!
anonimo2405
Em: 10/11/2025
Autora da história
Oiie. Bom depois de um tempinho,n ca estou eu de novo. Não poderia deixar de agradecer pelo carinho enorme. E olha, já notei o seu empenho e acho muito legal ir vendo seus comentários pq sei a parte que tá lendo, e me pergunto o que vai achar quando chegar em tal parte rsrsrs.
Abraço!
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Zanja45
Em: 05/10/2025
Fechamento dos pensamentos a respeito da analise da capa
Autora, estava aqui olhando para a capa e bateu um pensamento ao ver Valentina olhando para dentro da imagem e Verena olhando para fora dessa mesma imagem. - Os sentidos são opostos - Lembrei que recentemente li uma citação do psicólogo suíço Carl Jung que diz assim : " Quem olha para fora sonha, mas quem olha para dentro desperta".
Continuação do anterior...
E Verena tem focado muito no mundo exterior, nas expectativas da sociedade. Nas projeções para o futuro. Visto que ela veio de baixo, estudou em escola pública. Conseguiu chegar num patamar alto, mas a custo de que? De chegar a estagnação? a perda de identidade? a desconexão consigo mesma? porque percebe - se claramente que isso não está enraizado na base dela. - pois supõe - se que isso vem como prova de valor, a única lembrança que puxou meio que Verena às raízes,pois ela meio que prometeu a avó, porque tem um determinado capítulo da história que ela vai até o túmulo da avó num momento de reflexão e diante da pressão política que está passando; e a iminência de perder o que conquistou. E meio que afirma que não vai aceitar isso, volta com os ânimos reacendidos. - A visão de que não pode voltar a vida que levava antes. Mas essa descida ao mundo dos mortos vai ser necessária em algum momento. - Ela vai ter que confrontar as sombras.
Entretanto, nota - se que ela está num caminho sem volta, se aproximando muito mais do abismo. - E a chegada de Valentina na vida dela e que vai levar a quebra do que ela achava que fosse concreto até aquele momento, porque Valen, está funcionando como um catalisador na vida de Vê.
Porque ela se apaixona por uma menina, uma adolescente, que ainda está se descobrindo enquanto ela já trilhou um caminho árduo até chegar ao poder. Uma mulher casada - Que aparentemente tem uma família estável, vê as coisas ruírem pouco a pouco, quando achava que estava tudo bem, porém não era isso que se via, pois desde o início ela já traia Sílvia, todavia agora é bem diferente, pois ela não pensa racionalmente quando o assunto é a menina, por quem ela está apaixonada. - Essa é a verdadeira Verena, longe do que ela projetou para si mesma. Mas ao que tudo indica essa separação entre matéria e espírito faz com que ela viva uma vida vazia, que vive apenas para satisfazer o ego e se distância do eu verdadeiro.
Já Valentina pegando a significação mais profunda do “olhar para dentro” que basicamente é o processo de autoconhecimento e confrontar o próprio eu, em que foca em reconhecer os medos, os desejos e potenciais. Este caminho pode levar ao despertar, a uma compreensão mais profunda de quem somos, ao crescimento pessoal e a verdadeira realização. Ela é uma jovem adolescente que está em fase de descoberta de quem ela realmente é, ela, uma menina da igreja, de fé crista, denominação evangélica, família cristã, que desde criança aprendeu e viveu nos princípios da fé, sem questionar nada - até porque não se pode questionar muita coisa - Em nenhum momento buscou saber os seus gostos, até mesmo porque na mente dela foi ensinado que era errado duas pessoas do mesmo sexo se unirem. - Mas o contato com o novo, o proibido, fez com que ela reconhecesse na outra o que seria a centelha que acende algo nela. - Foi o caminho de volta - Então, segundo Paulo Coelho “ Encontros importantes são planejadas pelas almas muito antes que os corpos se vejam”, alguns até podem confundir com destino, porém pode ser na verdade um contrato de almas, o que se vê claramente é uma paixão crescente, mas é algo que não pode ser vivido, você se reconhece no outro, porém se esbarra nos contratempos, possa ser que ela não tenha vindo para vida dela para permanecer, porém, para revelar algo mais profundo do que apenas uma paixão adolescente, foi uma forma de o universo dizer: você está pronta? então vou atravessar você. E Verena está sendo o catalisador dela nessa jornada de despertar. Porque temos presenciado ela com tantas dúvidas e medos, que está aprendendo a lidar com eles, elas têm recebido apoio dos amigos mais próximos, porém a verdade é que, ela tem que trilhar seus próprios caminhos, a viagem dela tem que ser ela e ela mesma. - Porque muitos desafios virão e ela tem que se preparar para enfrentar - los.
anonimo2405
Em: 19/10/2025
Autora da história
Oiee, boa noitee!
Olha, primeiro, eu tô sem palavras pra essa análise complexa e profunda. Parece que vc conseguiu ler exatamente o que eu quis transmitir com essa capa. Algo que eu sabia sentir, mas não sabia como explicar.
Incrível. Simplesmente esplêndido rsrs.
E segundo, eu continuo sem palavras rsrs. Acho que qualquer coisa que eu escrever aqui vai ficar redundante pq vc já falou tudo. Parabéns e obrigada por essa dedicação. Espero de coração que eu consiga compensar essas demoras minhas, que eu nem tenho mais coragem de me desculpar.
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N@ty
Em: 05/10/2025
Nossa, deu pra sentir a tensão daqui
Valentina não sabe o que está fazendo, mas sabe que não consegue resistir
Verena totalmente perdida e só quando o telhado desabar é que ela vai conseguir tomar alguma atitude.
Enquanto isso Silvia permanece presa em promessas e sonhos.Uma mulher dando tudo é recebendo migalhas...
Mas quando ela abrir os olhos a Verena pode esquecer.
Que complicado é essa personagem Verena
Ela realmente está afundada no abismo
Procurando em Valentina a sua luz
Quem sabe não seja?
Ou quem sabe tudo isso termine muito mal
Esse capítulo provocou arrepios
Foi muito vivido as emoções
anonimo2405
Em: 19/10/2025
Autora da história
Oiee, boa noite!
Pois é. A situação da Verena é muito difícil, porque se essa situação vier à tona, muita gente gente vai se machucar feio. De verdade, eu tbm espero que ela comece a pensar nas atitudes dela, pq nossa, isso que ela faz com a Silvia, é muito cruel. E com a Valentina tbm. Elas não merecem isso.
Mas fico muito feliz em conseguir despertar essas emoções, ainda que tensas. Espero poder compensar esses meus atrasos.
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Silvanna
Em: 04/10/2025
Autora você é muito corajosa!kkkk
Essa guria vai infartar com a Verena! Fico imaginando como vai rolar esse romance proibido, em vários aspectos, a mulher é casada, é mais velha, é mulher, a guria menor de idade, super ingênua etc.
Quanto a nós leitoras, haja agonia!!kkk
Bj
anonimo2405
Em: 04/10/2025
Autora da história
Rsrssrs
Corajosa? Só um pouquinho vai rsrs.
Mas olha, realmente, essa relação das duas promete viu...
Bjs! S2
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HelOliveira
Em: 02/10/2025
Que tenso... Valentina me deixa nervosa
anonimo2405
Em: 04/10/2025
Autora da história
Eu fico é com pena da coitadinha. Apesar que ela só sabe chorar né, mas...A angústia dela dever ser sufocante.
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anonimo2405 Em: 19/10/2025 Autora da história
kkkkkk, a Carol ficou em choque, mas ela sabia no fundo que ia acontecer de novo. E a Verena quase perdeu a cabeça. Cena foi tensa.