As 6:30 da manhã. O Hospital já fervilhava de atividades. Lara, em seu uniforme de residente, com o jaleco impecável e os cabelos presos num coque despojado, carregava uma prancheta cheia de anotações. Seus olhos, mesmo com o cansaço do plantão noturno, brilhavam com a energia de quem ama o que faz.

— Próxima parada: Dona Lúcia. O trabalho de parto dela está evoluindo. — Lara fala para si mesmo enquanto revisa o prontuário.

Ela se dirige a um dos quartos. Dona Lúcia, uma mulher de meia-idade com uma barriga proeminente, estava deitada na cama, ofegante.

— Bom dia, Dona Lúcia! Como estamos hoje? Pronta para conhecer seu pequeno?

— Mais que pronta, doutora. Essas contrações não dão trégua! — A paciente está com um sorriso cansado.

Lara a examina com delicadeza e eficiência.

— Quase lá. Sua dilatação está ótima. Dr. santos já está a caminho. Você está fazendo um trabalho excelente. Lembre-se do que conversamos: respire fundo, no seu ritmo.

Lara passa alguns minutos tranquilizando a paciente, explicando o processo com uma clareza e empatia que iam além do protocolo. Ela tinha um dom natural para acalmar, misturando conhecimento técnico com uma humanidade genuína.

Minutos depois, na sala de parto, o ambiente era de tensão e euforia. Lara estava ao lado do Dr. Santos, observando e auxiliando. O som das contrações, os incentivos da equipe, e a voz de Dona Lúcia preenchiam o ar. Quando o primeiro choro do bebê ecoou na sala, um sorriso radiante se abriu no rosto de Lara. Era a prova viva da sua paixão, do milagre que ela ajudava a trazer ao mundo.

O Dr. Santos sorriu para Lara, enquanto cortava o cordão umbilical.

— Bom trabalho, Dra. Fontenelle. Você tem um futuro brilhante pela frente. Sentiu a energia?

— É indescritível, doutor. É por isso que eu amo o que eu faço. Cada parto é uma nova chance de ver a vida começando.

A rotina do hospital continuou. Lara fez a ronda, revisou os prontuários, discutiu casos com outros residentes. Era um dia típico, intenso, exigente. Mas cada interação, cada pequena vitória, reforçava sua certeza de estar no caminho certo.

Por volta do meio-dia, durante uma breve pausa para o almoço na cantina do hospital, Lara finalmente pegou o celular. Várias mensagens. Uma em especial chamou sua atenção, de um número familiar.

Mensagem de Chloe:

Meu pai está organizando um evento importante na empresa hoje à noite. Preciso que você me acompanhe. Ele quer que eu pareça... estável e comprometida. Estarei lá às 19h. Não se atrase.

Lara sorriu. Típico de Chloe. Direta, exigente e sem espaço para enrolação. Na noite em que elas saíram com as amigas, Lara sabia que tinha mexido com a mais velha. Só que Chloe era muito teimosa para admitir. Mas isso não seria um problema, pois a médica estava disposta a usar as suas melhores armas para conquistar aquela beldade. Todas as vezes que ela olhava para Chloe, sentia o seu coração acelerar. A morena era tão bonita e imponente. Apesar da enorme diferença de altura entre as duas, Lara não se deixava intimidar. O desafio só lhe instigava mais.

O plantão terminaria às 18h. Seria corrido, mas ela não perderia a chance. Para Lara, não era apenas um acordo; era a chance de estar perto de Chloe, de desvendar a mulher por trás da frieza. Ela digitou uma resposta rápida.

Mensagem de Lara:

Comandante, sua namorada está a postos! Terminando o plantão. Pode ser que eu chegue um pouquinho atrasada, mas farei uma entrada triunfal, prometo. Salve um champanhe para mim.

(---)

O evento corporativo dos Müller estava em pleno andamento. Acionistas, investidores e membros da alta sociedade se misturavam em um ambiente sofisticado. Chloe estava ao lado de seu pai, Miguel, em uma das rodas de conversa, a postura impecável, mas a tensão evidente em seus olhos. Ela olhava para o seu relógio favorito discretamente, esperando Lara.

— Onde está sua namorada, Chloe? Pontualidade é fundamental em eventos como este. — O seu pai falou em um tom baixo.

— Ela está vindo, pai. Teve um imprevisto no hospital.

— Acho incrível que a Lara seja médica. O Luís me disse que ela é muito dedicada a profissão. Acho que vocês são parecidas nisso.

Chloe sabia que o pai estava cativado pela Lara, porque ele não tolerava atrasos. Só foi saber que a Dra. estava vindo direto do trabalho que o seu descontentamento passou.

— Acho que é verdade. — Chloe falou para agradar o pai.

— Sabe, se você estiver pensando em  subir o nível da sua relação com a Lara. Eu dou todo o apoio. Se vai ser a minha sucessora na empresa é bom se casar logo.

Chloe quase se engasga com a água que estava tomando.

— Meu Deus, pai! Mal começamos a namorar e o senhor já está pensando em casamento. E eu nunca disse que seria a sua sucessora. Vamos com calma

— Qual o problema? Sua mãe e eu quase não namoramos. Seus avós arranjaram tudo. E estamos até hoje casados. Construímos uma bela família. Nem sempre as coisas precisam ser planejadas.

— Já chegar desse assunto. Por favor, vamos focar no presente.

— Mas filha...

Nesse momento, a porta do elevador se abre, e Lara surge, um pouco ofegante, mas com um sorriso deslumbrante. Ela havia trocado rapidamente o uniforme por um vestido elegante que ressaltava sua figura, e seu cabelo estava solto em ondas. Apesar do cansaço, seu carisma era inegável.

Com uma voz que se espalhou pelo ambiente, dirigindo-se diretamente a Chloe.

— Meu amor, me desculpe pelo atraso! O trabalho na sala de parto foi... emocionante hoje.

Chloe a fita, apesar do cansaço em seus olhos, a médica estava muito elegante. Isso faria com quem Chloe ganhasse pontos com os acionistas. Lara se aproxima, beija o rosto de Chloe suavemente, com uma doçura que fez a mais velha sentir um formigamento, mas sem mover um músculo do rosto. Ela continuava a ser insolente.

Lara então se virou para Miguel, e estendeu a mão.

— Sr. Miller, que prazer vê-lo novamente! Sua filha estava me contando sobre a importância deste evento.

— Lara, que bom que veio. Chloe estava preocupada. Ela me disse que você estava no trabalho. Seus pais devem sentir muito orgulho da filha dedicada que eles têm. — Miguel cumprimenta a nora todo sorridente.

— Obrigada, Sr. Miguel. — Lara aperta a mãos de Chloe que parecia uma estatua. A mulher estava divina em seu vestido de corte reto. — Não queria lhe preocupar, meu amor. Jamais faltaria a um evento tão importante para você. — A médica toca delicadamente no braço da mais velha.

Chloe lança um olhar de aviso para Lara, que apenas sorri com mais intensidade. Ela consegue manter a compostura na frente dos acionistas, mas sente um calor estranho subindo pelo pescoço.

— O papai está exagerando, não estava preocupada. Que bom que chegou. Deixa eu lhe apresentar a alguns acionistas.

— Ótima ideia. Deixa que eu acompanho vocês. — Seu Miguel se ofereceu.

Miguel começa a apresentar Chloe e a nora aos acionistas. Lara se lança na conversação com sua simpatia habitual, respondendo às perguntas sobre seu trabalho no hospital com paixão e falando sobre o relacionamento com Chloe com uma naturalidade que impressionava a todos.

— Então essa é a namorada misteriosa. Nunca imaginei que a Chloe fosse se amarrar. Ela nunca aparecia na empresa e quando aprecia nos eventos ficava sozinha pelos cantos. — É Eduardo que fala. Ele é filho de um dos acionistas da empresa. Trabalha com o pai desde que se formou. Chloe não ia com a cara do homem pomposo. Ele não tinha boas maneiras e sempre que podia, dava em cima dela. Além de desdenhar do seu trabalho como piloto.

— Oi Eduardo. Como sempre, você é um ótimo observador. — Aquela era a forma gentil de Chloe chamá-lo de intrometido. — Está é a minha namorada, Lara.

O homem estende a mão para Lara que apenas inclina a cabeça em sinal de cumprimento. A médica se aninha um pouco mais perto de Chloe, fazendo com que o braço de Chloe roçasse em sua cintura. Chloe sente o toque, uma faísca tênue que ela tenta ignorar.

— Você é mesmo uma moça adorável, Lara. E ainda por cima é médica. Você ganhou na loteria, Chloe.

Chloe estava prestes a responder ao homem insolente, quando Lara falou primeiro.

— Se tem alguém que ganhou na loteria, fui eu. A Chloe é maravilhosa. Tenho orgulho dela. Ela é perfeita em tudo que se propõe a fazer. — Lara sorri para a mais velha. Chloe fica surpresa, mas devolve o sorriso. Ela pega na cintura de Lara. Eduardo fica desconcertado.

— Se me dá licença, Eduardo. Vou levar a Lara para beber alguma coisa.

— Fiquem à vontade. — O homem parecia empolgado com a presença de Lara e Chloe não gostou nada daquilo. — Foi um prazer lhe conhecer, Dra. Lara.

Em um momento de respiro, enquanto se afastavam, Lara se vira para Chloe, em um tom mais baixo.

— Quem era aquela imbecil? — Chloe quase riu da sinceridade da pequena mulher.

— Ele acha que tem alguma influência na empresa. Não ligue para ele. Faça como eu e o ignore.

— Vou tentar. — Lara sorriu, mudando o rumo do seu olhar para Chloe. — A propósito, você está linda.

A ex-piloto não sabia como reagir ao elogio de Lara.

— Lara!

— É sério, fiquei sem fôlego quando te vi. — Lara chegou bem próximo do rosto de Chloe. Ela fazia o coração da mais velha acelerar.

— Já percebi que você gosta de flertar, mas não perca seu tempo comigo.

— Porquê? Você é minha namorada. Não vejo problema em te elogiar. — A médica se aproxima ainda mais e beija o canto da boca de Chloe. A atitude paralisa a mais velha por alguns segundos. Constantemente, Lara deixava Chloe sem palavras. Ela nunca precisou lidar com uma mulher tão audaciosa. Mas agora, as duas estavam presas a um segredo e Chloe tinha que contornar aquela situação. Lara nunca entenderia que entre elas não poderia acontecer nada além do namoro falso. Mas aquele não era o melhor lugar para ter aquela conversa. Então Chloe se afastou, entregou uma taça com champanhe para Lara e se manteve calada, tentando parar o formigamento em sua boca, por causa do toque suave dos lábios de Lara.

O casal cumprimentava a todos que vinham conversar com elas. Lara era boa em construir conversas empolgantes e divertidas. Chloe tinha que admitir que a mais nova era a companhia perfeita para aquele tipo de ambiente. Chloe nunca soube lidar com os executivos do seu pai. Ela não tinha muito tato social. Por isso, adorava ser piloto. Era cortês com os passageiros, com os tripulantes e com os seus superiores. Mas depois que os motores do avião eram ligados, ela podia ficar em silêncio. Com poucas falas entre uma comunicação de rádio e alguns avisos para os passageiros.

— Acha que seu pai está satisfeito? Ou devo encenar um pedido de casamento no meio da festa? — Lara não perdia a oportunidade de provocá-la.

— Por favor, não faça isso. Meu pai já alimenta ilusões demais sozinho.

— Ele te falou alguma?

— Não vamos falar sobre isso. É besteira. — Chloe observava o salão, mas era difícil se manter presente. Nada ali lhe interessava.

— Tudo bem, como foi o seu dia? — A pergunta de Lara lhe surpreendeu.

— Já lhe disse, não precisamos conversar sobre essas coisas.

— É sério Chloe. Estou entediada. Fiz tudo o que me pediu, ao menos me distraia.

— Obrigada. Você está se saindo bem.

Não era o que Lara queria ouvir, mas não deixava de ser satisfatório ver a imponente Chloe lhe agradecendo.

Lara sorri, um brilho travesso nos olhos.

— Isso foi um elogio?

— Não seja convencida. Sei que seu dia foi cansativo, só estou lhe agradecendo.

— Você podia me agradecer enviando umas flores lá para casa. Meus pais deixariam de perguntar sobre quando você vai conhecê-los.

— Vou pedir para a minha assistente fazer isso. Satisfeita? — Chloe estava séria, era visível que ela não se sentia confortável naquele ambiente.

— Sabe, estou curiosa... por que exatamente eu preciso estar aqui hoje? Além da sua "estabilidade", claro.

Chloe hesita por um instante, seu olhar percorrendo o salão antes de voltar para Lara, com uma rara vulnerabilidade em seus olhos. Ela respira fundo, como se estivesse reunindo coragem para admitir algo.

— Há... sussurros entre os executivos sobre eu ser muito fechada e antissocial. Meu pai quer mostrar que não há nada de errado com a "sociabilidade" da filha que ele está preparando para um cargo de peso. Estar namorando ajuda a abafar isso. A provar que sou... acessível.

— Entendi. Então eu sou o seu escudo contra os fofoqueiros e a prova de que você é uma pessoa normal e sociável.

— Basicamente é isso.

— Chloe, você não devia se importar com isso. O seu jeito não devia ser uma barreira para você assumir um cargo importante. Isso diz respeito a sua competência e somente isso.  — Lara falou docemente.

— O meu pai não pensa assim. A reputação é o que importa. Na frente dos outros precisamos ser o que agrada. E quando aparece um problema, resolvemos sozinhos, de maneira prática e calculista. Isso mostra a nossa força.

Aquela fala explicava muita coisa sobre a maneira como Chloe agia. Lara, pela primeira vez, conseguiu acessar um pouco sobre a mulher intrigante à sua frente.

— Mas, Chloe... Você não precisa pensar assim. Todo mundo precisa de ajuda às vezes. Não tem que resolver seus problemas sozinha.

— Sei o que estou fazendo, Lara. Só preciso que você continue a fazer o que lhe pedi.

Lara assente, sentindo a muralha de Chloe se levantar novamente, mas satisfeita por ter conseguido um pequeno vislumbre da mulher por trás de todas aquelas camadas.

— Certo. Então, que tal mais um abraço carinhoso para a plateia? Eles estão começando a cochichar sobre a sua inabilidade social. — Lara brinca.

Ela se aproxima de Chloe e a abraça suavemente pela cintura, de forma que pareça natural e afetuosa para quem observa. Chloe, surpreendentemente, não recua. Ela se mantém rígida, mas não a afasta. Por dentro, ela sente o calor do corpo de Lara, a familiaridade do cheiro dela, e uma estranha sensação de alívio. Com tudo o que estava acontecendo na sua vida, era a primeira vez que ela se permitia descansar em um abraço. Mesmo que fosse um abraço falso.

Lara sente o seu coração se encher de algo muito maior do que a curiosidade de desvendar a mulher em seus braços. Ela sente vontade de cuidar e acolher todas as inseguranças de Chloe. Mesmo não sabendo o que tinha acontecido para deixar Chloe tão vulnerável, ela se contentaria em ser um ombro amigo para a mais velha. Aos poucos Chloe estava deixando ela entrar.

Fim do capítulo