Capitulo 22
O bar exalava cheiro de cerveja derramada, madeira úmida e fritura. O som dos copos se chocando e das conversas misturava-se a uma música rouca de blues que saía de uma velha jukebox no canto. O ambiente estava abafado, mas pulsava com vida.
Victor foi o primeiro a abrir caminho entre as mesas lotadas.
- Aí está! - gritou, avistando a mesa em que Mei estava. - A mesa dos campeões está garantida!
Boris se jogou na cadeira com a pressa de quem atravessara um deserto.
- Uma rodada de vodka, e rápido! - chamou o garçom, sem cerimônia.
Hans se acomodou num canto, ajeitando a jaqueta no encosto e cruzando os braços, sempre observador.
Heather vinha mais atrás, e ao se aproximar sentiu a pontada no peito. Mei já estava lá, ela não encontrava com ela há uma semana. Heather sabia que Mei estava indo ao Queen Seas porque vias os consertos feitos, mas a engenheira não aparecia quando ela estava no barco. No início a capitã sentiu alívio, mas agora vendo a sentada com postura tranquila, um copo de cerveja à frente, a camisa clara dobrada nos cotovelos, ela sentiu saudade. Ao lado dela, Igor falava animado, os gestos largos, arrancando risadinhas discretas.
Heather endureceu o maxilar.
- Capitã! - Igor acenou. - Finalmente! Vem sentar com a gente.
Mei ergueu o olhar e por um segundo seus olhos encontraram os de Heather. Havia ali um silêncio incômodo, carregado de tudo que não estava sendo dito. Heather desviou rápido, e quase sem perceber, tomou o assento na frente dela.
Victor bateu a palma na mesa com entusiasmo.
- Senhores, e senhora, brindemos! À tripulação mais bem-sucedida deste cais!
Todos ergueram os copos. Heather ergueu o dela, mas seus olhos não se desgrudavam da forma como Igor inclinava o corpo para mais perto de Mei.
- Você acredita que eu ainda sou mais rápido que você? - Igor dizia, rindo.
Mei arqueou a sobrancelha.
- Em quê, exatamente? Porque até agora só te vi tropeçar nas próprias botas.
Boris gargalhou, cuspindo metade da bebida.
- Essa foi boa! A cada dia gosto mais de você. - apontou para Mei, já meio alterado.
Victor aproveitou para cutucar.
- Olha, Igor, parece que a Mei tem a língua mais afiada do que você.
Mei corou de leve, mas manteve o tom firme.
- Eu só digo o que observo.
Igor não se intimidou.
- Tá bem, tá bem... mas eu ainda vou te provar que sei fazer mais do que falar.
Heather apertou o copo. A cerveja parecia amarga demais de repente. Aquilo era um flerte descarado. Ela não se aguentou. Igor não era bom para Mei.
- Você devia beber menos e falar menos, Igor.
O homem ergueu as mãos, fingindo rendição.
- Só estou tentando a sorte. Não é crime, capitã.
- Você tá se esforçando demais. - Victor riu, dando um tapinha no ombro dele. - E quanto mais você fala, mais a Mei gosta do Boris.
- Ei, me deixa fora disso. - Boris levantou as mãos, mas riu em seguida. - Eu e a novata ainda estamos nos acertando. Ela só vai me conquistar se vencer a temporada de caranguejo-das-neves.
Mei riu baixo, balançando a cabeça.
- Vocês continuam os mesmos.
Foi então que Hans finalmente falou, sua voz grave cortando a algazarra.
- Vocês deviam parar de se exibir. A Mei já provou várias vezes que merece o nosso respeito.
O silêncio caiu por um instante. Todos olharam para Hans, surpresos pelo comentário. Ele voltou a olhar para o copo, impassível.
Victor quebrou o gelo.
- Hans sempre com as palavras certas. - e ergueu o copo outra vez. - Brindemos à engenheira, então. A que conserta motores e humilha egos.
Mei ergueu o copo, rindo. Heather fez o mesmo, mas seus olhos estavam fixos demais no sorriso de Mei para perceber o gosto da bebida.
A conversa se alongou. Victor contou histórias exageradas de viagens, Boris imitava sotaques estranhos, Igor se gabava de suas "vitórias" em bares de portos distantes. Mei ouvia, ria em alguns momentos, corrigia em outros, sempre atenta. Heather falava pouco, respondendo de forma neutra quando era puxada para a conversa.
Por dentro, era como se estivesse em uma batalha invisível. A cada vez que Igor se inclinava, a cada risada de Mei, a cada olhar cúmplice que ela dava para os outros, Heather sentia o estômago torcer. Porque sabia que nada daquelas gentilezas era para ela. Não depois do que ela fez com a Mei.
A porta do bar se abriu com um baque contra a parede. Connor entrou ladeado por três de seus homens, todos rindo alto, cheirando a rum e arrogância. Aquele silêncio pesado que sempre os acompanhava caiu sobre algumas mesas. Não demorou para os olhos de Connor encontrarem Heather.
O sorriso cínico se abriu em seu rosto.
- Ora, ora... se não é a minha capitã favorita. - a voz dele soou carregada de veneno. - Ou deveria dizer... ex-favorita?
Heather manteve o olhar firme, embora o coração acelerasse.
- O bar é grande, Connor. Não queremos confusão.
Victor, sentado ao lado, já se ajeitava na cadeira.
- A gente tá de folga. Nem tenta arruinar a noite, cara.
Connor deu uma risadinha curta.
- De folga? - olhou em volta, como se examinasse cada rosto. - Engraçado... quando aprontaram com o meu tripulante vocês não queriam descanso.
Boris bateu o copo na mesa.
- Você começou, apenas devolvemos.
Mas Connor nem sequer o olhou. Os olhos dele pousaram em Mei. O sorriso se tornou ainda mais perverso.
- Ah... e olha só quem está aqui. A heroína de estimação da capitã. - ele deu um passo à frente, o tom zombeteiro crescendo. A fama de Mei tinha se espalhado pelos barcos da frota. - A mesma que se meteu quando eu e Heather estávamos conversando. Eu me lembro muito bem.
Mei sentiu a tensão no ar, mas manteve o queixo erguido.
- E eu lembro que você não entendeu o recado. - disse firme. - A Heather não queria você por perto.
Alguns homens no bar riram baixo. Connor se aproximou mais da mesa, os punhos cerrados.
- Você fala demais pra alguém que só conserta parafusos.
- Já chega, Connor. - Heather alertou.
- Cala a boca, Heather. - Connor ficou exaltado quando a capitã defendeu Mei.
Igor inclinou o corpo para frente, ameaçador.
- Se eu fosse você, escolheria melhor as palavras.
Connor ignorou. Ele se aproximou de Mei, os olhos estreitados.
- Me diz uma coisa... já achou alguém que te aguente? Porque a última vez que vi, parecia desesperada pra chamar atenção da capitã.
Heather se levantou imediatamente, o sangue fervendo.
- Connor, sai daqui.
Mas ele riu, ignorando-a.
- Aliás... - ele se inclinou sobre a mesa, olhando Mei de cima a baixo com descaramento. - Talvez você só precise de um homem de verdade. Não é isso que você tá procurando, engenheirinha?
Heather iria matá-lo, mas Boris levantou-se primeiro, a cara vermelha.
- Repete isso, filho da puta!
Victor ficou de pé também, os punhos fechados.
- Você passou do limite.
Hans, que até então permanecera quieto, se levantou devagar. O olhar dele era frio, como gelo partindo no silêncio.
- Tira os olhos dela, seu verme.
Connor soltou uma gargalhada alta.
- E o segurança mudo resolveu falar? - esticou os braços, provocando. - Vem então, grandalhão. Mostra que sabe fazer mais do que encarar.
Mei tentou manter a calma, mas as mãos tremiam de raiva.
- Você não vai me intimidar, Connor. - disse, encarando-o direto. - Já te calei uma vez, e posso fazer de novo.
A resposta dela foi a faísca final. Connor deu um passo brusco à frente, como se fosse agarrá-la. Heather se colocou na frente de Mei e Hans explodiu: o punho dele atingiu o rosto de Connor com força suficiente para derrubá-lo sobre duas cadeiras.
O bar inteiro se levantou num caos de gritos, garrafas e socos. Os homens de Connor avançaram contra Victor e Boris. Igor saltou por cima da mesa, caindo sobre um deles. Heather tentou intervir, mas logo percebeu que não havia como separar ninguém.
- Merda! - ela segurou o braço de Mei. - Vem comigo, agora!
- Heather, eles... - Mei olhou desesperada para os companheiros, mas a capitã a puxava firme para fora do bar.
- Eles sabem se virar! - Heather rosnou, arrastando-a em direção à saída. - Eu não vou deixar você se machucar no meio disso.
Mei tentou se soltar, teimosa.
- Eu não preciso da sua ajuda.
Heather a encarou com raiva, os olhos faiscando.
- Para de ser orgulhosa. Vamos, eu te levo em casa.
- Heather, eu não... - Mei começou, mas a intensidade no olhar da capitã a fez engolir o resto. Ela já tinha presenciado aquele olhar muitas vezes durante a temporada, Heather estava com muita raiva.
Heather ligou o motor do carro ainda com o peito arfando, o barulho da confusão ecoando atrás delas.
O silêncio dentro do carro era tão espesso que parecia sufocar. Heather segurava o volante com força, os nós dos dedos esbranquiçados. O som do motor era o único preenchendo o ar, até que Mei quebrou a quietude, num tom irritado.
- Você não devia ter me tirado de lá.
Heather desviou o olhar por um instante para encará-la.
- Queria que eu deixasse você no meio daquela confusão?
- Eu sei me defender, Heather. - Mei cruzou os braços, olhando pela janela. - Não sou uma boneca de porcelana.
- Não se trata disso. - Heather rebateu, a voz baixa, carregada de tensão. - Você faz parte da tripulação, é minha responsabilidade.
Mei soltou uma risada curta, amarga.
- Engraçado você falar de responsabilidade agora.
Heather apertou mais o volante, tentando controlar a respiração.
- O que isso quer dizer?
- Quer dizer que você só sabe fugir quando as coisas saem do seu controle. - Mei virou o rosto para ela, os olhos brilhando de mágoa. - Mas, na hora de me arrastar pra fora de um bar, aí você age como se fosse a única que pode decidir por mim.
Heather parou o carro bruscamente num sinal fechado e virou-se para ela, os olhos faiscando.
- Eu não ia arriscar! Connor é um desgraçado. Você acha que ele ia parar só nas provocações?
Mei se inclinou um pouco, desafiadora.
- E se fosse com o Igor? Você teria feito o mesmo?
Heather engoliu em seco, o coração disparando.
- Do que você tá falando?
- Não se faça de boba. - Mei disparou, o tom frio. - Você ficou rosnando a noite inteira cada vez que eu trocava duas palavras com ele. Eu percebi, Heather. Todos perceberam.
Heather desviou o olhar, apertando os lábios.
- Ele não presta pra você.
- Ah, claro. - Mei bufou. - E quem presta, então? Você?
O silêncio que se seguiu foi quase doloroso. Heather respirou fundo, tentando se recompor.
- Eu não disse isso.
- Mas é o que você quis dizer. - Mei insistiu, o olhar fixo nela. - Você não suporta me ver dando atenção a outra pessoa, mas também não deixa eu me aproximar de você. O que você quer de mim, Heather?
Heather ficou sem resposta por alguns segundos. O sinal abriu e ela arrancou o carro, acelerando mais do que deveria.
- Eu só... - ela começou, a voz falhando. - Eu só não quero te ver machucada.
- Essa desculpa não cola mais. Não sou mais uma garotinha. - Mei rebateu. - Você me afasta quando eu tento chegar perto, mas surta se outro chega. Isso não é proteção, Heather. Isso é... - ela hesitou, mordendo o lábio. - Isso é controle.
Heather freou na frente da casa de Mei. A tensão ainda latej*v* entre as duas. Mei abriu a porta, mas antes de sair virou-se para ela, encarando firme.
- Decide de uma vez. Porque eu não vou ficar nesse meio-termo pra sempre.
Ela saiu, batendo a porta com força, deixando Heather sozinha no carro, encarando o volante como se fosse um inimigo.
Fim do capítulo
Instagram: escritora.kelly
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]