Capitulo 19
Mei acordou com a cabeça pesada, a boca seca e um gosto amargo de vodka barata ainda insistindo na língua. Piscou algumas vezes até se acostumar com a claridade do quarto improvisado na casa do irmão. O teto era simples, o barulho da chaleira na cozinha chegava abafado. O cheiro de café fresco e pão torrado a fez levantar devagar, tropeçando nos próprios passos até encontrar Xiao.
Ele estava de avental, mexendo em uma frigideira com ovos mexidos, cantarolando baixinho. Quando a viu, abriu um sorriso cansado, mas sincero.
- Bom dia, bêbada. Dormiu bem? - brincou.
Mei gem*u, esfregando os olhos.
- Dormir eu dormi. Mas minha cabeça não me deixa esquecer que eu bebi.
Xiao riu.
- Isso se chama ressaca, mèi mei. Seja bem-vinda ao mundo adulto.
Ela bufou e se sentou à mesa. Hao, já pronto para a escola, apareceu correndo com a mochila nas costas.
- Tia Mei! - gritou, pulando no colo dela. - Você voltou mesmo?
Mei abriu os braços e o acolheu em um abraço apertado.
- Voltei, rapazinho. Mas só por um tempo.
- Por que você tem um cheiro estranho? - Hao perguntou, franzindo o nariz. - Cheiro de gasolina misturado com peixe.
Xiao quase engasgou de tanto rir.
- Esse é o perfume especial da sua tia. Chama-se "Temporada de Caranguejo, edição limitada".
Mei deu um tapa de leve no braço do irmão, mas não conseguiu segurar o riso. Hao gargalhou ainda mais.
- Bàba, quando eu crescer, eu também quero cheirar a peixe e graxa!
- Não, não, não - Xiao levantou o dedo. - Você vai ter uma profissão tranquila. Nada de mar revolto.
Mei cutucou o garoto no nariz.
- Nada disso. Se você quiser ir pro mar, eu ensino. Mas só quando for grandão.
Hao ergueu os braços como se fosse forte.
- Eu já sou grandão!
A cozinha encheu-se de risadas, e por alguns minutos, Mei esqueceu a dor de cabeça, a briga com o pai, o peso que vinha carregando nos últimos dias. Xiao serviu café para os dois e colocou os ovos e torradas na mesa.
Enquanto comiam, ele lançou um olhar mais sério para a irmã.
- E então... vai me contar o que aconteceu ontem? Por que me ligou daquele jeito?
Mei desviou o olhar para a xícara.
- Nada demais. Eu só não queria ficar em casa. O bàba continua... sendo o bàba.
Xiao suspirou.
- Eu imaginei. Ele não vai mudar, Mei. Mas você não precisa carregar essa culpa. Você é boa no que faz. Não deixe ele apagar isso. Você está se sentindo melhor?
Ela assentiu, mas não respondeu. Não queria falar sobre Heather, não queria abrir aquele assunto. Já estava cansada de se sentir rejeitada.
Xiao, tentando aliviar, mudou de tom.
- O Queen Seas vai precisar de muitos reparos. Você devia aparecer por lá, ajudar a Heather. Ela vai precisar de você.
Mei fingiu um sorriso, enfiando um pedaço de pão na boca.
- É... vou ver isso.
Mas no fundo, já tinha decidido: iria sim, mas apenas à noite, quando Heather provavelmente não estivesse lá. Assim não precisaria suportar aquela dança desconfortável de aproximação e afastamento.
(---)
O dia inteiro foi exaustivo para Heather. Entre telefonemas, contratos e orçamentos, ela parecia mais uma gerente de obra do que capitã. O casco precisava de solda urgente, os reparos no sistema hidráulico eram caros, e os pintores já reclamavam do frio que começava a ficar mais intenso naquela época do ano.
Enquanto revisava os papéis apoiada na amurada do barco, seu pensamento fugia sempre para o mesmo lugar: Mei. Onde ela estava? Por que não tinha aparecido para ajudar? Será que estava doente? Ou apenas cansada dela? A ausência pesava mais do que gostaria de admitir.
Chegou a pegar o celular, digitou o nome dela na tela de mensagem, mas apagou antes de enviar. Ridículo. Eu não sou dona dela, pensou, irritada consigo mesma. Mas o nó no estômago não passava.
No início da noite, cansada, Heather seguiu para a casa do leme para ajeitar anotações no diário de bordo. Perdeu-se entre páginas, revisando números, até que um som metálico ecoou da casa de máquinas. Franzindo o cenho, desceu os degraus, preparada para espantar algum curioso que tivesse invadido o barco.
Quando virou a esquina, congelou.
- ...Mei?
A engenheira estava ajoelhada diante do gerador, cabelos presos de qualquer jeito, macacão já sujo de graxa. O rosto se iluminou por um segundo de surpresa, mas logo endureceu.
- Eu achei que você já tinha ido embora. - respondeu, enxugando a testa.
Heather respirou fundo, sentindo o coração acelerar.
- O que você está fazendo aqui só à noite?
Mei largou a chave inglesa e a olhou nos olhos.
- Eu não queria atrapalhar. Você parecia desconfortável perto de mim, Heather. Então achei melhor vir quando você não estivesse aqui.
Heather sentiu um aperto no peito.
- Eu nunca... - tentou começar, mas Mei interrompeu.
- Não precisa negar. Eu percebi. - a voz dela vacilou, mas se manteve forte. - Mas pode ficar tranquila. Eu não vou mais entrar no seu caminho. Você não precisa me manter distante. Já entendi que, pra você, eu sou só uma tripulante.
Heather deu um passo à frente, instintivamente. O rosto de Mei estava carregado de mágoa, e aquilo doía. Ela levantou a mão e, sem pensar, tocou o rosto da jovem, o polegar deslizando de leve sobre a pele quente.
- Mei... eu nunca quis machucar você. Eu só... não sei lidar com isso. Mas não quero que a gente se afaste. Nós podemos ser... amigas.
A palavra caiu como uma pedra. Mei mordeu os lábios com força, desviando o olhar.
- Amigas... - repetiu, como se fosse veneno. - Claro. Se é isso que você quer.
Heather quis dizer mais, quis abrir o peito e confessar o medo, o desejo, a confusão. Mas não conseguiu. Apenas a puxou para um abraço apertado.
- Me desculpa. - sussurrou, sentindo o corpo dela tremer contra o seu.
Mei fechou os olhos, tentando não chorar. No fim, afastou-se e voltou ao trabalho. Heather ficou observando, engolindo em seco a culpa que parecia crescer cada vez mais.
(---)
No dia seguinte, Heather ainda remoía a cena. Não sabia como apagar a tristeza nos olhos de Mei. Estava na proa, assinando mais papéis, quando um carro estacionou perto do cais. Igor desceu, como sempre espalhafatoso, jaqueta de couro e sorriso de galanteador.
- Heather! - acenou, antes de notar Mei no convés. - Ora, ora... olha só quem temos aqui. A engenheira prodígio!
Mei riu, surpresa.
- Igor! O que você faz por aqui?
- Vim ver como estavam os estragos do barco. Mas, pelo visto, você já está resolvendo tudo. - Ele piscou, exagerado. - Sempre soube que você era boa com as mãos.
Heather quase engasgou com o café que segurava. Mei, por outro lado, corou levemente e riu da piada. Igor continuou, fazendo perguntas, contando histórias absurdas e arrancando gargalhadas fáceis dela.
Heather observava de longe, o maxilar travado, as mãos fechadas em punhos. Por que isso está me incomodando tanto? Tentou se concentrar nos papéis, mas cada risada de Mei era como um cutucão direto no peito.
Até que Mei, ao perceber a expressão da capitã, silenciou de leve. Igor, sem notar nada, se despediu com um beijo no rosto da engenheira e um aceno para Heather.
- Se precisar de ajuda, já sabe! - gritou, antes de partir.
Assim que ele saiu, o silêncio ficou pesado no convés. Mei olhou para Heather, arqueando as sobrancelhas.
- Você ficou com ciúmes?
Heather piscou, tentando parecer indiferente.
- Claro que não. Não seja ridícula.
- Hm. - Mei cruzou os braços, um sorrisinho brincando nos lábios. - Engraçado... parece muito com ciúmes.
Heather desviou o olhar.
- Eu só não confio nele com você, pronto. Agora volta ao trabalho.
Mei deixou escapar uma risada curta.
- Tá bom, capitã.
Heather não respondeu. Recolheu os papéis e saiu rapidamente, o coração batendo descompassado.
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Naquela noite, deitada na cama, encarando o teto, Heather não conseguiu dormir. Repassava as cenas: o olhar triste de Mei quando ela disse "amigas", o riso leve dela ao lado de Igor, o fogo no peito quando a viu sendo elogiada.
Finalmente deixou escapar em voz baixa, como se confessasse a si mesma:
- Eu fiquei com ciúmes.
Cobriu o rosto com as mãos, frustrada. O que fazer com aquilo? Como continuar fingindo que não sentia nada?
O silêncio da madrugada não trouxe respostas. Apenas o peso do desejo e do medo, lado a lado, queimando dentro dela.
Fim do capítulo
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