Capitulo 13
O Queen Seas ainda se recuperava da noite anterior. O mar não estava mais em fúria, mas a ressaca das ondas deixava o casco pesado, rangendo sob cada impacto. O convés tinha marcas do caos: cordas encharcadas, covos amassados e poças de água salgada que insistiam em não secar, apesar do vento constante. Os homens trabalhavam em silêncio, concentrados, como se temessem que qualquer brincadeira pudesse invocar de novo a ira do mar e da capitã. Em tantos anos de trabalho, eles nunca tinham vista Heather perder o controle e se deixar levar pela raiva. Talvez ela estivesse com problemas em casa.
Igor, especialmente, parecia menor. O rosto fechado, os olhos evitavam os da capitã. Ele falava pouco, fazia apenas o necessário. Heather não lhe deu tréguas, mantinha a postura firme, os comandos curtos e secos. Se o russo quisesse reconquistar sua confiança, teria que se provar no trabalho.
Heather estava mais dura do que nunca. Não havia espaço para hesitações. A cada ordem dada, a cada olhar que lançava sobre a tripulação, era como se tentasse reforçar para si mesma que era apenas a capitã, nada mais. Mas dentro dela, uma confusão latej*v*.
Ela se lembrava do beijo. O calor da respiração de Mei, o toque ousado em sua pele, a vertigem de ter se deixado levar... Heather queria apagar aquilo da memória, classificar como um momento de fraqueza, mas o seu corpo a traía sempre que os olhos cruzavam com os da engenheira.
Mei, por outro lado, trabalhava com uma obstinação quase doentia. Jogava-se nos reparos, na manutenção, dos estragos feitos pela tempestade. O corpo doía, mas a mente doía mais. A lembrança do instante na cabine a perseguia. A recusa velada de Heather a deixava dividida entre a frustração e o desejo. Será que ela tinha inventado aquele olhar? Será que forçara algo que não existia?
No entanto, ela não conseguia negar o que sentia. Desde menina, Heather era para ela uma crush inalcançável. Que ela gostava de imaginar que era somente dela. Seja como protetora e depois como namorada mais velha. Mas aquilo tudo era na imaginação de uma mente adolescente. Agora, depois de tantos sinais, Mei achava mesmo que Heather sentia atração por ela.
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Três dias depois da tormenta, o navio parecia enfim ter encontrado o seu ritmo outra vez, até que um barulho estranho, fora de compasso, subiu pelo casco. No painel da casa do leme, uma luz âmbar começou a piscar sem parar. Heather ajeitou os fones no ouvido, mexeu nos controles, e percebeu: o gerador secundário, aquele que segurava a iluminação, parte dos sistemas hidráulicos e o "conforto" da tripulação, tinha perdido força. Não era uma pane total, mas um aviso claro, se deixasse pra depois, aquilo poderia virar um problema enorme.
- Mei, casa de máquinas. Agora. - A voz dela no rádio não admitia espera.
A engenheira desceu primeiro. O calor da sala de máquinas era um tapa depois do vento do convés: cheiro de óleo, borracha morna, metal vibrando em frequência contínua. Heather entrou logo atrás, segurando a prancheta de manutenção.
- O gerador secundário não segura a carga. Caiu para 22,8 volts no pico. - Heather apontou o amperímetro de painel. - Se for hidráulico eu desligo guincho e bomba auxiliar. Se for elétrico, é com você. - Mei sabia que Heather estava estranha com ela, usando palavras impessoais, mas não ligou. Resolveu se concentrar no trabalho.
- Elétrico é mais provável. - Mei desceu o macacão para o meio da cintura, amarrou o cabelo num laço e já pegou o alicate amperímetro da sua bolsa de ferramentas. - Liga só iluminação de serviço e o stretch mínimo do convés. E ninguém liga micro-ondas. - gritou, já sabendo que Boris tentaria esquentar café.
Ela encostou a ponta fria do multímetro nos terminais do regulador. O zumbido grave do motor preenchia o peito.
- Linha está em 24,4, mas o ripple tá alto. Olha. - Mostrou na tela oscilando. - Diode pack pode ter ido pro saco, ou o regulador tá surdo. Em outras palavras . - Mei suspirou. - Ou a energia que sai tá vindo toda errada, ou a peça que deveria controlar isso ficou "surda" e não tá respondendo.
- Tenho um regulador externo no armário de emergência. - Heather já se antecipava.
- Ótimo. Eu faço um bypass provisório: isolamos o regulador interno, jogo o externo e estabilizo a tensão. Enquanto isso, a gente faz load shedding: corta metade das luzes do convés, desliga aquecedor da copa e mantém o freezer no ciclo econômico. Assim não "pico" o secundário.
- Faça como você achar melhor.
Heather traduziu pelo rádio no estilo direto da capitã:
- Vocês ouviram né rapazes! No convés, só metade das luzes. Copa, nada de micro-ondas. Freezer no modo econômico.
Igor apareceu à porta, com cara de quem pedia uma segunda chance.
- Quer ajuda, Mei?
Ela avaliou em dois segundos. Precisava. E talvez ele precisasse mais.
- Pega o kit de jumpers, a caixa de terminais e o régua externa. E também traz braçadeiras de nylon.
- Sim, eu sei o que é quase tudo, mas kit de jumpers... - Victor fez uma cara como se Mei estivesse falando grego..
Mei rolou os olhos, mas riu.
- Jumpers, Victor... aqueles fiozinhos coloridos, com ponta de metal. Parece miojo elétrico. Vem num estojo pequeno, não tem como errar. - Ela disse, gesticulando com as mãos como se mostrasse fios soltos.
- Ahhh, os macarrãozinhos de eletricista! - ele respondeu, rindo, antes de ir atrás do kit.
No miolo da máquina, as duas ficaram próximas demais. Heather segurava o chicote para Mei, que cortava o lacre do regulador original. Os braços encostaram. O calor não era só do motor.
- Você está muito calada, capitã. - A voz de Mei saiu baixa, quase um desafio. - Acho que em algum momento devemos conversar sobre o que aconteceu. Não quero que o clima fique estranho entre a gente.
Heather travou. Os olhos de Mei estavam magoados, mas também eram doces.
- Eu não posso - respondeu, firme, sem encará-la. - Aqui você é minha tripulante. Eu não posso me dar ao luxo de...
- De sentir? - Mei cortou, levantando o rosto, sujo de graxa, mas linda. - Porque eu senti, Heather. E sei que você também.
A tensão explodiu no pequeno espaço. Heather recuou, o corpo inteiro em alerta, como se enfrentar ondas de quinze metros fosse mais fácil do que aquele olhar.
- Termine o conserto. - ela ordenou, fria. - Depois volte ao convés.
Mei ficou sem reação, Heather estava mudando de humor o tempo inteiro e aquilo bagunçava com a sua mente. Victor voltou, o que fez a engenheira se concentrar novamente. Heather ficou na porta observando. Mei estava começando a ficar cansada das fugas de Heather.
- Vermelho no B+, preto no ground do chassi, sense no pós-chave, field na excitação. Sem faísca, Igor - Mei explicou, paciente, e ele segurou o feixe com um cuidado que não tinha mostrado na noite do covo.
Victor franziu a testa.
- Tá, mas traduz isso aí pra mim, Mei...
Ela suspirou, mas acabou sorrindo.
- Significa ligar o positivo da bateria no fio vermelho, o negativo no chassi, e garantir que o fio de sinal esteja ligado depois que a chave girar. O último fio é o que manda energia pro alternador começar a trabalhar. - Ela explicou de forma simples, quase como se estivesse ensinando a uma criança e apontou onde devia ficar cada fio.
- Ah. Você é mesmo uma louca da engenharia. - Ele brincou e Mei sorriu novamente. A interação dos dois deu um leve desconforto no peito de Heather. Mas ela ignorou a pontada de qualquer sentimento que não fosse profissional em relação a Mei.
- Pronto pra teste. - Mei limpou a mão na perna do macacão.
O motor girou, engasgou uma vez, depois estabilizou. O multímetro subiu para 24,8 volts e o gráfico no visor ficou mais suave. O zunido da máquina retomou o compasso certo, como se o navio inteiro tivesse soltado um suspiro de alívio.
- Funcionando. - Mei declarou, sem esconder o orgulho. - Não é definitivo, mas segura até o porto.
Heather confirmou os números no painel, depois olhou para Mei de canto de olho. A engenheira estava com o rosto suado, uma mecha de cabelo solta grudada na testa e os dedos manchados de graxa. Mesmo naquele estado, ou talvez por causa dele, Heather sentiu o pensamento proibido se insinuar de novo, o mesmo que tentava expulsar desde o beijo. Apertou a prancheta contra o peito, como se fosse um escudo.
- Bom trabalho. - Disse seca, já se virando para a saída.
Mei franziu a boca, tentando esconder a frustração, e recolheu as ferramentas em silêncio.
Victor quebrou o clima sem perceber.
- Olha, se eu tivesse que escolher entre naufragar e mexer nesse emaranhado de fios, eu já tava de colete salva-vidas, hein.
Mei riu baixo, mas os olhos procuraram Heather. A capitã já estava na porta, distante, como se todo o calor da sala de máquinas não fosse capaz de alcançá-la.
- Continuem monitorando a tensão a cada meia hora. - Heather ordenou, voltando ao tom profissional. - Se houver qualquer queda, me avisem imediatamente.
Ela saiu, deixando o barulho das máquinas engolir o silêncio pesado que ficou entre Mei e Victor.
Mei respirou fundo, fechou a caixa de ferramentas com força e murmurou, mais para si mesma do que para o imediato:
- Ela não vai conseguir fugir pra sempre.
Fim do capítulo
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