Capitulo 9
A decisão de Heather de levar o Queen Seas para uma nova área, longe da frota e da sombra sufocante de Connor, havia injetado uma nova onda de esperança na tripulação. O Mar de Bering continuava tão impiedoso quanto antes, com seu hálito gélido e ondas negras como muralhas, mas a atmosfera no convés estava diferente; mais focada, mais unida. A tensão ainda permanecia, mas não era a tensão do desânimo, era a da expectativa. Um fio de esperança havia se instalado, e cada olhar carregava a possibilidade de um recomeço.
Heather conhecia aquela região. Anos antes, já havia pescado ali, entre fendas profundas e fundos pedregosos onde os caranguejos costumavam se esconder. Seu instinto dizia que estavam no lugar certo.
Mei se sentou na cozinha do barco, segurando um copo de café quente. A chaleira ainda soltava vapor, perfumando o ambiente com aquele aroma forte e amargo que se misturava ao cheiro metálico de óleo e ferro do casco. Ela havia sido a primeira a acordar, e o ar cortante do convés a fizera sentir-se viva. Nos primeiros dias, sofrera com enjoos constantes por conta do balanço brutal do barco, mas agora começava a se acostumar.
Sua mente, no entanto, estava cheia de ansiedade. Tudo era novo para ela. Cada dia era uma lição. Aprendera que a paciência era tão essencial quanto a força, que não existia hora certa para o trabalho acabar, e que as noites geladas podiam ser infinitas. Seus músculos estavam doloridos, o corpo coberto de hematomas de tantas vezes que se chocava contra algum objeto no convés. Mas, apesar das dores, sua mente permanecia firme, alimentada por uma teimosia silenciosa.
Depois de um gole grande no café, ela pegou um pão com geleia improvisada e subiu as escadas até a casa do leme. O vento lhe chicoteava o rosto, mas ela o ignorava.
Heather estava ali, como sempre, com a mão firme no leme, olhos fixos no horizonte cinzento. A luz fraca da madrugada entrava pelas janelas, desenhando linhas azuladas em seu rosto. Apesar das olheiras, havia nela uma força inquebrável, um fogo que a mantinha de pé.
- Café e pão, capitã. - Mei disse, erguendo a bandeja com um sorriso tímido. - Achei que você precisava de energia.
Heather se virou, e pela primeira vez em dias sorriu para Mei. Um sorriso verdadeiro, ainda que cansado.
- Obrigada, Mei. - Sua voz veio carregada de gratidão. - O seu café é o melhor que já bebi. Os meninos tentam, mas nunca acertam o ponto.
Mei riu, mas seus olhos baixaram.
- Que bom que posso ser útil em alguma coisa.
Heather notou a sinceridade daquela confissão. A garota ainda se sentia um peso, mesmo quando estava se esforçando mais do que qualquer outro.
- Não fale assim. Você já faz parte da equipe. E está indo bem.
Mei hesitou, mordendo o lábio.
- Todos acham que sou louca por estar aqui. Eu vejo como eles me olham.
Heather não respondeu de imediato. Pegou o pão, deu uma mordida lenta, e só então falou:
- Loucura é relativa. - Ela disse, sem suavizar demais a verdade. - Mas sei de uma coisa: coragem não nasce sem risco.
Mei se animou com aquelas palavras.
- Se ao menos eu pudesse mostrar minha habilidade naquilo em que me formei...
Heather arqueou uma sobrancelha, curiosa.
- Engenharia. Sempre achei fascinante. Um barco sem engenheiro não é nada. Você vai ver, um dia a sua hora chega.
As palavras aqueceram o coração de Mei. Heather nunca falava à toa. Se dizia que acreditava, era porque realmente acreditava e Mei estava adorando que naquela madrugada, ela estava mais aberta. Como na noite em que caminharam juntas para casa.
- Você acha que sou louca por estar aqui? - Mei insistiu, quase num sussurro.
Heather se calou. Um silêncio pesado pairou. Até que, com um olhar firme, ela respondeu:
- Acho que você tem potencial para realizar sonhos maiores do que pescar caranguejos.
Mei franziu o cenho, um pouco ferida.
- Achei que você me entenderia. Não é só sobre caranguejos. É sobre encarar o perigo, fazer o que poucos têm coragem.
Heather suspirou, recostando-se na cadeira.
- Eu entendo. Mas a pesca não é somente uma forma de se testar. Pra mim, sempre foi um negócio de família e também um dos trabalhos mais rentáveis da ilha, sendo capitã. Você não tem medo de acabar se machucando?
- Claro que tenho. - Mei respondeu sem hesitar. - Mas o medo é um bom professor. Ele ensina a ser forte.
Heather soltou uma risada breve.
- Não vou conseguir te fazer mudar de ideia, não é?
- Não. - Mei disse com firmeza. - Sei que ainda não sou uma boa tripulante, mas um dia serei.
Os olhos de Heather suavizaram. Ela via naquela jovem a mesma insegurança que carregava aos vinte e dois anos. Como capitã, sua função era endurecê-la. Mas como amiga... queria apenas confortá-la.
- Estamos todos no mesmo barco. Literalmente. Aqui o sucesso é coletivo. Eles podem parecer um pé no saco agora, mas tenho certeza: cada um desses homens daria a vida por você. Continue se esforçando, e tenha cuidado.
Mei sorriu, e as palavras escaparam antes que pudesse contê-las:
- Quero ser corajosa por você, capitã.
Heather sentiu um impacto estranho no peito. Antes que pudesse reagir, Mei continuou:
- Durante toda a minha infância, vi você e o Xiao se aventurando pelo cais. Ficava impressionada. Sempre desejei ser como vocês. Ser como você.
Heather desviou o olhar, sem saber como lidar com aquela franqueza. Os rapazes jamais diziam esse tipo de coisa. A delicadeza de Mei quebrava suas defesas.
Um silêncio pesado pairou. Até que Heather, lembrando-se do constrangimento da garota quando usou o banheiro da tripulação, apontou para uma pequena porta ao fundo e mudou o assunto.
- Use o banheiro da casa do leme. Fiz quando comecei a vir com meu pai. O convívio com eles no outro banheiro pode ser difícil.
- Não quero incomodar.
- Você não vai.
Mei, emocionada, se aproximou e lhe deu um abraço. Heather congelou por um instante. Não estava acostumada a contato físico. Mas com Mei... não foi desconfortável. Foi natural, como quando elas eram mais novas.
Quando Mei saiu, Heather ficou sozinha com seus pensamentos.
Lembrou-se da infância solitária, dos dias de casa vazia enquanto o pai navegava. Tinha apenas os livros e um urso de pelúcia surrado como companhia. A chegada da família Wang mudara tudo. Xiao fora o irmão de aventuras. Mas foi a pequena Mei quem trouxe cor à sua vida, com sua gentileza e curiosidade sobre o mundo. A pequena Mei sempre foi fascinante, e ainda era.
Recordou-se do dia em que Mei caiu no cais, pequena e assustada, presa às cordas. Ela havia corrido, sem pensar, e a segurado com força. "Nunca vou soltar você", murmurara na época. E cumprira.
Agora, vendo-a crescida, Heather percebia que a vontade de protegê-la só aumentara. Esse instinto de proteção, sempre foi mais forte com Mei. Mas como equilibrar isso com o seu posto de capitã?
(---)
Na manhã seguinte, a tripulação se preparava para retirar os primeiros covos da nova área. O mar, caprichoso, parecia de bom humor. Boias coloridas balançavam como faróis de esperança no cinza imenso.
Mas o Bering nunca mostrava clemência por muito tempo.
O vento soprou mais forte, o céu escureceu sem aviso. Uma onda monstruosa se ergueu, como uma muralha negra, e tombou sobre o Queen Seas.
O barco gem*u, o convés se encheu de água, os homens se agarraram ao que puderam.
Mei, que estava próxima à borda, perdeu o equilíbrio. O gelo sob seus pés traiu sua força. Ela escorregou, o corpo sendo lançado para frente. Seu braço bateu com violência contra um covo, a dor latejou, e por um segundo ela acreditou que cairia no mar.
Uma mão a agarrou com brutalidade. Victor.
- Meu Deus, Mei! - Ele gritou, o rosto pálido de susto.
Heather, na casa do leme, viu a cena. Seu coração disparou.
- Hans, assuma! - ordenou, descendo as escadas num ímpeto.
Correu até o convés, atravessando marinheiros molhados e atônitos.
- Mei! Você está bem? - Sua voz saiu quase em pânico.
Mei, trêmula, levantou o braço. O sangue escorria. Heather a segurou, levando-a para dentro.
Com mãos firmes, abriu o kit de primeiros socorros.
- Não parece profundo. Vou limpar e enfaixar.
Mei se encolheu com o ardor da solução.
- Me desculpa... eu devia ter sido mais cuidadosa.
Heather levantou o rosto dela com a mão.
- Ei. Está tudo bem. O mar estava agitado. Só tome mais cuidado. - A capitã queria acamá-la.
O silêncio entre as duas se alongou. O olhar de Heather suavizou, as sobrancelhas franzidas pela preocupação. Mei, sem pensar, pousou a própria mão sobre a dela. Os olhos se encontraram. Heather baixou o olhar para os lábios da mais nova. Mesmo com os cabelos molhados e bagunçados, o rosto vermelho do frio, Mei estava linda, ela pensou. O tempo tinha acentuado a sua beleza. Heather tinha certeza que a engenheira arrastava pretendentes por onde passava. Sem pensar, seu dedo acariciou o canto da boca de Mei. A mais nova ficou nervosa e até esqueceu do latejar em seu braço. A boca de Heather estava tão próxima que ela podia sentir o hálito gelado da capitã.
E então um grito explodiu do convés:
- Capitã! O covo está cheio! - Igor berrava, a voz carregada de euforia.
Heather e Mei se afastaram de súbito, ambas ofegantes.
No convés, a alegria explodiu. Caranguejos-reais enormes se aglomeravam, cintilando na mesa. Heather recuperou o controle, erguendo a voz firme:
- Vamos, rapazes! Hoje a noite vai ser longa!
A tripulação vibrou, esquecendo o susto.
Heather enfaixou o braço de Mei com cuidado, mas sem olhar para ela dessa vez. Mei agradeceu e voltou ao convés. Boris se aproximou, batendo no ombro dela.
- É normal se machucar às vezes. - Ele disse, com a voz carregada de humor. - Vai ficar uma linda cicatriz. Tenha orgulho.
Mei sorriu, ainda com o coração acelerado. O som metálico dos caranguejos contra a mesa ecoava como música. Mas sua mente voltava, insistente, para o momento de segundos atrás. Mei tinha experiência em flertar com mulheres, ela sabia que gostava delas desde pequena. Mas com Heather tudo era sempre tão misterioso. A jovem tinha medo de interpretar os olhares de uma forma errada. Afinal, Heather era a sua capitã e amiga. Apesar de Mei sempre ter tido um crush na mais velha, ela sabia que Heather era hétero. Não queria confundir cuidado com atração.
Teria imaginado o olhar de Heather? Ou havia realmente algo ali, escondido sob as camadas de dureza?
- Vamos novata, seja mais rápida. - Igor chamou a atenção de Mei para a conferência dos caranguejos.
Ela se focou no seu trabalho e ignorou a sensação de que alguém a estava observando.
Fim do capítulo
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