Capitulo 8
O silêncio no convés era mais pesado que o vento gelado do Mar de Bering. A euforia do triunfo inicial na fileira teste havia sido esmagada por uma amarga trapaça. O Queen Seas tinha se afastado, ido para uma outra regiao. Perderam tempo e recomeçaram a pescaria jogando os covos novamente, haviam esperado o tempo certo para que os caranguejos fossem capturados pelas suas armadilhas, mas a segunda fileira trouxe apenas frustração.
O motor do guindaste, comandado por Heather, rugia como uma fera cansada. Um a um, os pesados covos emergiam da escuridão do oceano. Mas não traziam abundância. Eram gaiolas ocas, com apenas a isca desfeita e alguns caranguejos mirrados que logo eram devolvidos ao mar. O som metálico das armadilhas batendo no convés ecoava como marteladas de fracasso.
A tripulação, que horas antes comemorava aos gritos, agora trabalhava em silêncio. Moviam-se devagar, como se cada gesto fosse arrastado pelo peso da decepção. Mei, com as mãos doloridas e os ombros tensos, ajudava a limpar as gaiolas vazias, tentando não demonstrar o desespero que sentia por dentro. Sabia que não era sua culpa, mas o fracasso a atingia em cheio. Se ela já sentia esse peso, como deveria estar Heather?
Do alto da casa do leme, a capitã estava rígida. Sua mão firme no joystick do guindaste agora tremia levemente. Heather não deixava a tripulação ver, mas por dentro ardia em raiva contra si mesma. O novo lugar que parecia promissor não passava de um deserto gelado. E um erro desses podia custar a temporada inteira.
De repente, o rádio quebrou o silêncio, como uma faca cortando o ar. A voz de Connor, carregada de cinismo, invadiu todas as frequências:
- Heather, minha querida... parece que o mar não está sorrindo para você hoje. - O tom falso de lamento soava quase como riso. - Mas não se preocupe. Eu tenho uma dica para você. Ao sul, perto das ilhas Pribilof, dizem que está cheio de caranguejos. Mas claro, com a sua experiência, você já deve saber disso.
Heather desligou o rádio com tanta força que quase quebrou o botão. A provocação havia sido pública, todos os barcos da frota tinham ouvido. Connor não queria apenas irritá-la, queria desmoralizá-la diante de todos.
O convés inteiro parou por um instante. Cada rosto refletia raiva. Todos sabiam que era uma armadilha. Connor queria afastá-los de uma boa área, fazê-los perder tempo, talvez até levar a tripulação ao limite.
Foi então que passos pesados ecoaram pelas escadas da casa do leme. Boris entrou, o semblante sério, mas o olhar paternal. Ele era o mais velho do Queen Seas, havia visto Heather crescer, e antes disso, havia trabalahdo ao lado do pai dela.
- Não dê ouvidos a esse homem, Heather - disse em voz firme, mas baixa. - Connor sempre foi um covarde. Ele late muito, mas só porque sabe que você não vai revidar.
Heather cerrou os punhos no controle, os olhos fixos no radar. Boris se aproximou, a voz mais grave, carregada de lembranças:
- O seu pai me ensinou algo que nunca esqueci. Ele dizia: "O mar fala conosco, mas só quem respeita o silêncio consegue ouvir." Andrew confiava na intuição mais do que em qualquer mapa ou dica. E você herdou isso dele, menina. Já tivemos inícios de temporada piores do que esse, e foi você quem nos trouxe de volta com os bolsos cheios. Não é agora que vai falhar.
Heather respirou fundo. A tensão nos ombros pareceu se dissolver. Quando falou, sua voz já não tremia:
- Obrigada, Boris. Eu não vou cair no jogo dele.
A decisão estava tomada. Heather traçou um novo rumo, distante das indicações de Connor e, principalmente, longe da frota. Uma área isolada, onde dependeriam apenas da sua própria intuição. A tripulação não disse nada, mas o silêncio já não era de desânimo, era de expectativa.
No convés, Mei observava a casa do leme. O coração dela batia rápido. Desde menina, Heather sempre lhe parecera maior que qualquer problema. E a lembrança veio com força: o cais molhado, o pé escorregando, o mergulho repentino nas águas gélidas. Mei, criança, engolindo água salgada e gelada, acreditando que iria afundar. E então, braços fortes a puxando de volta. Heather, ainda adolescente, mas já destemida, havia mergulhado sem hesitar. O choque da água, a respiração falhando, o coração disparado, mas Heather não a soltou até ter certeza de que estava salva. Para Mei, desde aquele dia, ela não era só uma amiga. Era uma heroína.
Agora, tantos anos depois, a sensação era a mesma. Mesmo em meio ao fracasso e à humilhação, Heather era o farol que mantinha todos de pé.
O trabalho no convés terminou em silêncio pesado. A tripulação se dispersou para as suas camas. Mei, sem forças para deitar, sentou-se na pequena cozinha, os cotovelos apoiados na mesa, o rosto enterrado nas mãos. O cheiro de café queimado impregnava o ar.
Victor surgiu e puxou uma cadeira, colocando uma xícara quente diante dela.
- Ei, novata. - A voz era calma, quase carinhosa. - Não se preocupe com o que aconteceu. O mar é assim. Um dia ele te dá tudo, no outro ele te vira as costas. A capitã sabe disso. E você também vai aprender.
Mei ergueu os olhos cansados para ele. Victor era o único que desde o início havia demonstrado paciência e compaixão.
- Ainda tenho tanto que melhorar... vivo cometendo erros. - A voz dela saiu baixa, embargada.
Victor deu um sorriso breve, sincero.
- Quer saber um segredo? Você já está melhor do que muito marmanjo que passou por esse barco. - Ele deu uma leve cotovelada nela, arrancando um meio sorriso. - E olha que eu já vi cada desastre aqui...
Mei riu, sem forças, mas riu.
- Obrigada... é bom ouvir isso. Você acha que a nova área vai dar certo? - perguntou, ainda insegura.
- Eu acho que a gente vai conseguir sim. - A convicção dele soou verdadeira. - A capitã sabe o que faz. E com você a bordo... bom, sorte nunca é demais, não é? Você comeu a cabeça do peixe, certo? - brincou, arqueando uma sobrancelha.
Mei soltou uma gargalhada curta, a primeira do dia.
- Você não vai deixar essa história morrer nunca, né?
- Nunca - disse Victor, sorrindo enquanto levantava a xícara. - Até porque foi o ritual mais estranho de sorte que eu já vi.
A risada suave ecoou na cozinha, quebrando por alguns instantes o peso do dia.
Enquanto isso, na casa do leme, Heather manobrava o Queen Seas com firmeza. Seus olhos estavam fixos no horizonte cinzento. Sabia que os próximos dias seriam difíceis, que a temporada ainda guardava armadilhas, mas sua determinação era inabalável. Não voltaria para casa sem cumprir a cota.
O mar podia testar sua força, Connor podia provocar, mas ela não cederia. O Queen Seas seguiria em frente.
E dessa vez, Heather jurava para si mesma, seria apenas ela, sua tripulação e o mar.
Fim do capítulo
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