Capitulo 3
A manhã no porto de Dutch Harbor estava fria e cinzenta, a neblina densa cobrindo as montanhas e as águas. No convés do Queen Seas, Heather estava em seu elemento. Ela dava ordens com a voz firme, o olhar atento a cada detalhe enquanto a tripulação revisava os equipamentos para a próxima temporada de pesca.
- Boris, verifique a tensão dos cabos do guindaste. Não quero surpresas lá fora. - ordenou Heather, apontando para o guindaste.
- Pode deixar, capitã. Eu cuido disso. - Boris, o barbudo chefe do convés, assentiu, a sua voz rouca e grave ecoando pelo cais.
Enquanto Boris se ocupava dos cabos, o resto da tripulação, três homens experientes chamados Victor, Igor e Hans, realizavam outras tarefas. Eles eram um trio de russos-americanos que trabalhavam com Heather há anos. Victor era o mais velho e gentil; Igor, o mais novo e falador; e Hans, o mais forte, mas também o mais preguiçoso.
- O Hans, como sempre, só está esperando a hora do almoço. Ele parece um urso hibernando. - Igor zombou, arrancando risadas dos outros dois.
- Igor, menos conversa e mais trabalho. Ou vai ter que me ver brava. Hans, reparos nos covos danificados, agora. - Heather lançou um olhar sério. Igor se calou de imediato, e Hans, apesar do costume de resmungar, ergueu-se em silêncio e caminhou até as enormes gaiolas de captura, começando a consertar os buracos da última temporada.
A tripulação sabia que Heather não tolerava brincadeiras durante o trabalho. Sua fama de capitã durona e exigente era bem merecida, e todos a temiam. A sua competência em encontrar os caranguejos e seu recorde de pesca a tornavam uma lenda no Mar de Bering. O respeito vinha tanto pela disciplina imposta quanto pelo dinheiro que ganhavam ao fim de cada temporada. O Queen Seas era o barco mais bem-sucedido da frota e ninguém queria perder uma vaga no seu barco.
Enquanto revisava a lista de equipamentos, Heather avistou uma figura familiar se aproximando do cais. Era Morgan, seu antigo engenheiro, caminhando com um sorriso no rosto. Mas foi a pessoa ao lado dele que fez o coração de Heather dar um salto inesperado.
- Morgan! Que bom te ver. Como você está? - saudou, disfarçando a súbita inquietação.
- Estou melhor, capitã. E como prometi, trouxe a sua nova engenheira.
Heather parou. Seus olhos azuis se fixaram na jovem ao lado de Morgan, e um arrepio subiu-lhe pela espinha.
- Mei? - murmurou, incrédula. Porque a mais nova dos Wang queria trabalhar em um barco de pesca? Os seus pais tinham concordado com aquilo?
Mei assentiu, com um sorriso tímido.
- Oi, Heather. Será um prazer trabalhar para você.
O convés mergulhou em silêncio. A tripulação, antes rindo e conversando, encarava incrédula. Morgan falou de um engenheiro promissor, mas ninguém imaginou que fosse uma mulher. Boris se adiantou, o olhar carregado de desconfiança.
- Uma mulher? E ainda por cima novata? Capitã, tem certeza de que isso é uma boa ideia? - disse, e Victor, Igor e Hans assentiram.
Heather se manteve firme.
- Não se esqueçam que eu também sou mulher. E sou quem paga o salário de vocês. - A voz dela soou cortante. - Morgan me garantiu que ela é a melhor. E eu confio nele. Se Mei está aqui, é porque tem competência para estar.
Morgan interveio:
- Eu garanto, Boris. A Mei é a melhor. Ela tem um talento natural para a engenharia naval. É a única que consegue consertar um motor só com um pedaço de arame e uma chave de fenda.
Mei corou, envergonhada pelo exagero, mas também orgulhosa. Era verdade que tinha talento, mas sabia que o maior desafio seria lidar com a dureza de um barco de pesca. A ligação de Morgan, pouco depois da formatura, tinha sido um convite irresistível, um retorno ao lar, ao mar que sempre a chamava.
Antes que pudessem seguir, a tensão aumentou. Sr. e Sra. Wang, pais de Mei, surgiram no cais. O olhar deles era de desaprovação e preocupação. Mei estremeceu, claro que tinham seguido seus passos depois da ligação de Morgan.
- Mei! O que você está fazendo aqui? Nós a mandamos para a Califórnia para ter um futuro melhor, não para se arriscar em um barco de pesca! - gritou o Sr. Wang, a voz trêmula.
- Bába, eu sou engenheira. Barcos precisam de engenheiros. Eu sei o que estou fazendo. Sempre quis trabalhar no mar. - Mei respondeu, tentando soar firme.
- Não! O seu lugar é na cidade, em um escritório, casada com um bom rapaz! Não em um barco de pesca, correndo risco nesse mar assassino! - A Sra. Wang retrucou, lágrimas nos olhos.
A tripulação observava em silêncio. Boris, supersticioso, murmurou:
- Capitã, isso não é bom presságio.
Heather, em silêncio até então, assistia a cena com o coração apertado. A lembrança veio como um flash: a pequena Mei correndo pelo cais, tropeçando, e ela a segurando antes que caísse na água. O mesmo instinto protetor borbulhava agora. Mas a garota não era mais uma criança, e pelo olhar de Mei, Heather percebeu que ela não desistiria.
- Eu sou adulta, mãma. Tomei minha decisão e estou feliz com ela. - Mei falou, firme.
- Você está envergonhando a família. - o Sr. Wang replicou furioso.
Foi então que Heather deu um passo à frente. Pousou a mão firme no ombro de Mei, gesto que parecia pequeno, mas para Mei, era um sinal de apoio.
- Sr. e Sra. Wang, Mei é a nova engenheira do meu barco. E eu confio nela. Se está aqui, é porque tem talento.
O Sr. Wang a encarou, vacilante.
- Heather, você mais que ninguém sabe que o mar não é lugar para ela. Não devia incentivar essa loucura.
- O mar é o meu lugar, Sr. Wang. Se a sua filha escolheu o mar, é porque também é o dela. - Heather respondeu, a voz firme.
Sem mais palavras, os Wang se afastaram, rígidos e contrariados. Mei ficou imóvel por um instante, o peso da rejeição sufocando-lhe o peito. Mas também havia gratidão: Heather tinha estado ao seu lado.
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Na casa do leme, o ambiente era diferente: fechado, silencioso, íntimo. Painéis modernos e mapas cobriam as paredes. O cheiro de metal e maresia impregnava o ar.
Heather fechou a porta atrás de si e encarou Mei com seriedade.
- Eu te defendi porque era o certo. Mas agora, entre nós duas, preciso saber: você entende no que está se metendo? - A voz dela saiu mais baixa e rouca do que Mei lembrava.
Mei engoliu em seco, mas respondeu firme:
- Sei que é perigoso. Sei que preciso ser cuidadosa. Mas sinto isso no sangue, Heather. Desde criança eu sonhava em estar aqui.
Um lampejo atravessou a mente de Heather: Mei pequena, de mãos dadas com Xiao, olhando fascinada os barcos saírem para o mar. Lembrava-se de como a menina aplaudia os pescadores, como se fossem heróis.
- Não é o mesmo que sonhar no cais. Aqui, a vida de todos pode depender de você. Um erro no no convés em meio a uma tempestade pode custar tudo. Consegue lidar com essa pressão? - Heather se aproximou, o olhar intenso queimando nos olhos de Mei.
- Eu vou provar que consigo. Não espero que confiem em mim de imediato. Mas vou mostrar que sou capaz. - Mei respondeu, firme.
O silêncio se alongou. Heather via a menina frágil que um dia segurara pela mão, mas também via uma mulher decidida. Esse contraste mexia com ela mais do que gostaria.
- Certo. Você tem uma chance. Mas se falhar, se mostrar menos do que excelência, eu não hesitarei em te tirar daqui. - A voz da capitã voltou a ser fria.
Mei assentiu. Agora entendia porque Xiao dizia que todos a temiam. No Queen Seas, Heather era totalmente diferente do que ela se lembrava.
- Não vou te decepcionar, capitã.
Heather respirou fundo. O título soou diferente. Como se naquele momento, não fosse uma brincadeira igual há algumas noites antes, mas o início de um contrato entre capitã e tripulante.
- Espero que não. Agora vá conhecer o barco. Amanhã começamos, e não teremos tempo para conversas.
Mei se virou para sair, mas parou na porta.
- Obrigada... por ter me defendido.
Heather apenas assentiu. Quando a porta se fechou, deixou-se apoiar um instante contra o painel. O rosto de Mei, tão diferente e tão igual ao da menina de antes, ainda estava vivo em sua mente.
E pela primeira vez em anos, Heather se perguntou se estaria realmente pronta para lidar com alguém próximo se colocando em perigo sem que pudesse interferir.
Fim do capítulo
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