Rasgos de Madrugada e Silêncios Matinais
Passava das três da manhã e a maioria dos convidados já haviam deixado o apartamento de Ariel. Restavam somente os vestígios da noite: copos vazios, garrafas pela metade, restos de pizza fria e uma tensão cortante no ar.
Lia estava sentada no sofá, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça baixa, massageando as têmporas com os dedos. Hope já tinha ido embora pouco antes, alegando uma dor de cabeça, mas Lia sabia que a garota só queria evitar ficar mais tempo perto dela.
As últimas horas foram um turbilhão.
Ariel e Ana tinham desaparecido no quarto de Ana há cerca de meia hora. A risada abafada que escapava da porta deixava claro que o clima entre as duas estava longe de ser inocente.
Ísis estava na cozinha, mexendo numa taça de vinho como se o líquido fosse uma poção de concentração. Desde o beijo quase acidental com Lia na despedida da manhã, a distância entre as duas tinha virado pura eletricidade. E agora, depois de algumas doses a mais, Ísis estava claramente derrapando nos próprios limites.
E Elisa? Elisa estava no andar de cima, no banheiro, havia tempo demais.
Lia se levantou, caminhando até a cozinha.
— Você vai ficar aí a noite toda? — perguntou para Ísis.
Ísis ergueu os olhos azuis, meio embriagados.
— Só… me distraindo.
Lia encostou-se à bancada.
— Distrair é perigoso… você sabe como reage quando baixa a guarda.
Ísis soltou uma risada baixa, carregada de ironia:
— Desde quando você se preocupa com os meus gatilhos, Liana?
Lia passou a língua nos dentes e suspirou, tentando ignorar o jeito que a outra se aproximou, deixando poucos centímetros entre elas.
— Desde sempre. — respondeu em voz baixa, com os olhos fixos nos lábios da outra.
Ísis sorriu, inclinando-se perigosamente perto, até os lábios quase tocarem os de Lia.
O cheiro familiar de vinho e lembranças amargas tomou conta do espaço entre elas.
Foi quando a porta do banheiro abriu lá em cima. Elisa desceu as escadas com passos firmes, ajeitando o cabelo.
Lia se afastou de Ísis num reflexo rápido.
Elisa não disse nada, mas o olhar dela queimava.
— Tô indo pra casa. — Elisa anunciou.
Lia tentou falar algo, mas a Nefilin apenas pegou a bolsa e saiu, deixando a porta bater com mais força do que o necessário.
O clima na sala ficou pesado.
— Você devia ir atrás dela. — Ísis disse, dando as costas.
— E você devia parar de me provocar. — Lia respondeu de imediato.
Ísis parou e olhando para trás, falou:
— Se eu realmente quisesse te provocar, Lia… você já estaria na minha cama agora.
A frase ficou no ar, como pólvora à espera de um fósforo.
****
A manhã seguinte iniciou silenciosa.
Lia acordou na própria cama, sem lembrar exatamente da última hora da noite anterior. Havia adormecido com a cabeça cheia e a alma cansada.
Antes que pudesse pensar muito, a campainha tocou.
Lia caminhou até a porta, ainda sonolenta, mas o coração já acelerando.
Quando abriu, lá estava Elisa.
De moletom, o rosto sem maquiagem, os olhos fundos como se também tivesse dormido mal.
— Eu detesto isso. — Elisa disse, antes mesmo de Lia abrir a boca.
— O que exatamente você detesta? — Lia perguntou, sem saber se sorria ou chorava.
— O que a gente é agora… O que você e a Ísis ainda são… O que eu sinto e não deveria sentir… — Elisa respirou fundo. — Eu tô cansada de fugir de você.
Lia congelou.
— Então para de fugir e fica… — Lia falou se aproximando alguns passos com os olhos fixos nos de Elisa.
Por um segundo, parecia que tudo se resolveria ali. Que talvez, naquele instante, o universo pararia de testar as duas.
Mas como tudo no mundo de Lia, a calmaria era apenas o prenúncio de outra tempestade.
O celular de Lia vibrou, alto o suficiente para quebrar a tensão.
— Desculpa… — Lia sussurrou pegando o celular.
Na tela uma mensagem de um número desconhecido.
"Oi, é a Alex. Preciso falar com você sobre a Calíope. Me encontra no meu estúdio. Agora!"
O nome na mensagem parecia pulsar com uma força estranha.
Lia respirou fundo após abrir a mensagem. Mesmo depois de tudo que viveram, depois de batalhas, mortes e renascimentos, só o nome de Alex já era suficiente para causar uma irritação física na boca do estômago.
— Ótimo… justo ela. — Lia murmurou, largando o celular em cima da bancada da cozinha.
— Ela quem? — Elisa perguntou, curiosa.
— Sua amiga, Alex Foster. — Lia falou com certo esgar e virou-se pegando a jaqueta no encosto da cadeira.
— E o que ela quer com você?
— Alguma coisa sobre a Calíope. Não deu detalhes… Pediu pra eu ir até o estúdio dela.
— Quer que eu vá junto? — Elisa ofereceu, agora com o olhar totalmente focado.
Por um segundo, Lia hesitou.
Parte dela queria Elisa ali. Outra parte preferia lidar com Alex sem testemunhas.
— Não… Por enquanto não.
Elisa apenas assentiu, mas o olhar dela endureceu. Lia conhecia bem aquele olhar.
— Se eu demorar… — Lia começou.
— Eu vou atrás de você. — Elisa completou.
****
O estúdio, um espaço criativo no centro da cidade, tinha o mesmo cheiro de incenso e papel antigo de sempre. Plantas cresciam nas prateleiras, quadros inacabados ocupavam um canto, e sobre uma mesa de madeira, a figura inconfundível de Alex Foster.
Cabelos escuros como a noite, olhos ainda mais profundos, pele branca como porcelana rachada. Vestia um macacão de couro preto, decotado nas costas, a cruz ansata na testa chamando atenção como sempre.
— Fênix… — Alex disse, deslizando da mesa com aquele andar de predadora. — Que bom que veio.
— Vai direto ao ponto, Alex. — Lia respondeu, já cansada de toda aquela teatralidade.
— Calíope. — Alex começou, andando em círculos ao redor dela como um animal de caça. — Ela está na Terra. Meus sentinelas a sentiram atravessando os portais da minha dimensão há dois dias.
Lia fechou os punhos.
— Ela prometeu que não faria movimentações aqui sem avisar.
— Promessas são apenas palavras. — Alex sorriu, inclinando-se perigosamente perto.
Lia revirou os olhos, tentando ignorar a tensão óbvia.
— Continua.
— Ela está… estranha. Mais agitada que o normal. E tem mais… a Hope entrou num estado de transe há algumas horas. Segundo a Penélope… ela teve uma visão com você, com a Elisa e com… Calíope.
Lia engoliu em seco.
— O que ela viu?
— Ainda não sei exatamente. Mas foi suficiente pra Penélope falar comigo.
Lia respirou fundo, cruzando os braços.
— Quer que eu faça o quê? Mande um e-mail pra Calíope pedindo explicações?
Alex riu baixo.
— Não. Quero que você esteja pronta. Porque se Calíope veio até aqui… ela quer algo. E você tem sido, quase sempre, o motivo.
Antes que Lia pudesse responder, Alex se aproximou ainda mais. As palavras seguintes saíram com uma lentidão provocativa:
— E… Liana… só pra constar… continuo achando uma pena a gente ter parado… sabe… as aulas com a Ariel.
Lia fechou os olhos por um segundo, lutando contra o calor que subiu pelo corpo.
— Depois de tudo o que fez com a Ariel?
O sorriso de Alex perdeu um pouco da graça.
— Eu precisava levar ela ao extremo, se tivéssemos continuado, você não estaria tendo o trabalho de conter os poderes dela agora.
— Você deixou ela quase morta… Mas não foi para isso que você me chamou. — Lia se virou para sair, cortando a conversa — A propósito esse encontro poderia ter sido uma mensagem. Me avise se tiver novas notícias. Você tem meu número.
Calíope na Terra. Hope tendo visões. Alex provocando como sempre.
Lia saiu sentindo a cabeça latejar e o corpo querendo ceder ao cansaço.
****
De volta ao apartamento, as malas de Elisa estavam na sala, o que confirmava: ela havia decidido ficar.
O cheiro de maçã fresca tomava conta do ambiente.
A macieira havia produzido duas novas frutas. Uma com brilho dourado, outra, curiosamente, com tons de vermelho-sangue.
Lia pegou a maçã escura nas mãos, analisando como se ela fosse um presságio.
Elisa surgiu na porta da cozinha, já trocada, pronta para ir pra empresa.
— E então? — Elisa questionou.
— Ela confirmou. Calíope tá aqui. — Lia disse, girando a maçã nas mãos.
Elisa franziu o cenho, caminhando até ela.
— Quer que eu cancele o expediente?
Lia balançou a cabeça em negativa.
— Não. Vai. Mas fica atenta… e me responde sempre que eu te mandar mensagem.
Elisa encostou-se ao batente da porta.
— Você tá bem?
— Já estive melhor. — Lia respondeu com um meio sorriso.
Antes de sair, Elisa parou. Olhou a outra de cima a baixo, e num movimento inesperado, deu um beijo rápido na bochecha dela.
— Se cuida, Lia.
Lia congelou no lugar.
Quando a porta fechou atrás dela, Lia largou a maçã na mesa e soltou o ar que nem sabia que estava prendendo.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: