Fragmentos de Controle
O relógio da cozinha marcava 02:47 quando Ariel entrou no apartamento, com as botas nas mãos e a respiração ainda descompassada. O silêncio da madrugada era quebrado apenas pelos efeitos sonoros do videogame ligado na sala. Ana estava ali, sentada de pernas cruzadas no sofá, jogando como se fosse o centro de equilíbrio do universo, completamente alheia ao furacão que era Ariel naquela noite.
— Voltou viva? — Ana perguntou, sem tirar os olhos da tela, mas com um sorriso torto que sempre fazia o estômago de Ariel revirar.
— Por pouco. — Ariel respondeu, jogando-se no sofá ao lado dela. O cheiro de suor, magia instável e desejo reprimido colava nela como uma segunda pele.
Ana pausou o jogo e virou-se para encará-la, apoiando o queixo nas mãos.
— Deixa eu adivinhar… Ísis?
Ariel fechou os olhos, bufando.
— Não aconteceu nada. — Mentira. A frase tinha gosto amargo, e ela sabia disso. Ana também.
— Se fosse verdade, você não teria voltado assim… com o cheiro dela em você. — Ana se levantou e caminhou até a cozinha, pegando uma garrafa de água. — E com esse olhar perdido de quem tá tentando se convencer de que é só atração física.
Ariel apertou os olhos com força. Não queria chorar. Não por Ísis. Não na frente de Ana.
Mas o toque de Ísis ainda queimava na pele dela. O gosto ainda estava em sua boca.
Horas antes, no corredor da Escola de Magia, Ariel havia encostado Ísis contra a parede, num impulso quase suicida de desejo.
— Você sabe que isso é um erro. — Ísis tinha dito, mas não a empurrou. Não afastou o corpo. Muito pelo contrário.
Seus dedos deslizaram pela cintura de Ariel, e antes que qualquer resposta fosse formulada, os lábios das duas se encontraram numa colisão quente, desesperada e imprudente.
O beijo durou o suficiente pra Ísis perder o controle por um segundo. O suficiente pra magia no corpo de Ariel começar a vibrar descontrolada. Uma fissura se abriu na parede ao lado, e as luzes do prédio piscaram.
— Isso precisa parar. — Ísis disse, ofegante, soltando Ariel com um olhar que misturava desejo e culpa.
E ela foi embora. Como sempre.
Agora, deitada na cama, Ariel encarava o teto.
Ela tirou o colar de contenção, só por alguns minutos. Só para sentir a energia circular livre.
O ar ao redor ficou mais pesado. Pequenos estalos elétricos começaram a surgir nas pontas dos dedos. A parede do corredor tremeu levemente.
O celular vibrou.
Uma mensagem de Lia:
"Você tá sem o colar. Eu senti. Coloca de volta antes que faça a cidade inteira acordar. Tudo bem?"
Ariel riu baixo. Mesmo distante, Lia sempre a sentia. Como se tivessem uma conexão que ia além de qualquer colar encantado.
Ela pensou em responder, mas os dedos deslizaram para outra conversa.
Ísis.
Digitou:
"Amanhã... posso te ver? Preciso de ajuda com o controle."
Apagou antes de enviar.
O polegar hesitou.
Fechou os olhos. Colocou o colar de volta e dormiu sufocando a própria confusão.
****
Na manhã seguinte, Ariel acordou com uma sensação de claustrofobia emocional.
Lia a chamou cedo. Queria vê-la. Reforçar os feitiços de contenção do colar.
Na casa de Lia, a bruxa estava debruçada sobre livros de magia ancestral, com o corpo coberto por uma camiseta larga e uma calça moletom, as tatuagens rúnicas à mostra. As runas no braço esquerdo de Lia ainda pulsavam uma leve luz dourada, reflexo do feitiço de monitoramento que ela usava para conter a energia de Ariel.
— Você anda testando meus limites, Ariel. — Lia disse sem olhar, os olhos fixos nas páginas. — Vai acabar me obrigando a reforçar o feitiço e não sabemos se isso pode te machucar.
— Não foi por querer.
Lia ergueu uma sobrancelha.
— Mentira ruim. — Ela se aproximou. — Foi a Ísis, né?
Ariel desviou o olhar.
O silêncio entre elas pesou.
Lia segurou o colar de Ariel, os dedos deslizando na nuca dela para fechar o fecho. O toque foi lento, íntimo, carregado de um ciúme que Lia jamais admitiria em voz alta ainda sentir por Ísis.
— Ela vai te destruir. — Sussurrou, a boca perigosamente próxima da pele da amiga.
Ariel engoliu em seco.
— Você fala como se eu fosse tão frágil assim.
— Você é. Por ela, você é.
****
À noite, Ana estava na varanda, fumando, com o cabelo preso de qualquer jeito e uma blusa larga com o símbolo do Coven Demunnus estampado nas costas. Ariel encostou na grade da sacada ao lado dela.
— Hmmm… então resolveu sair do quarto. — Ana disse, soltando a fumaça.
— Queria conversar.
Ana virou-se, os olhos castanhos quase dourados refletindo as luzes da cidade.
— Sobre a Ísis?
— Sobre… tudo.
Ariel respirou fundo.
— Eu não sei o que sinto por ela. Só sei que… quando ela chega perto, eu perco o controle. Literalmente. Mas, ao mesmo tempo… quando eu tô com você… é diferente. É leve. E eu fico me perguntando… por quê?
Ana sorriu de canto.
— Porque você nunca me viu como ameaça.
Ariel franziu a testa.
— Mas ultimamente… eu não paro de pensar em você.
Ana não respondeu. Apenas apagou o cigarro e se aproximou. Sem permissão, sem pergunta, sem hesitação.
Beijou Ariel.
Um beijo quente, urgente, mas ainda assim seguro. Um porto.
Ariel correspondeu. Por segundos inteiros, ela deixou-se levar. Até o colar em seu pescoço começar a aquecer, sinal de que sua magia estava oscilando de novo.
Elas se separaram ofegantes.
— Se continuar, eu vou explodir a vizinhança. — Ariel brincou, tentando sorrir.
Ana sorriu de volta.
— Vale o risco.
****
Horas depois, sozinha no quarto, Ariel abriu o celular. Uma mensagem nova.
Ísis:
"Se ainda quiser treinar amanhã… te espero depois do almoço."
Ariel olhou a notificação e então deslizou os dedos até a conversa com Ana:
"Se eu não explodir antes, a gente pode terminar o que começou amanhã?"
O envio foi instantâneo.
Pela primeira vez em dias Ariel dormiu sorrindo.
Fim do capítulo
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Yennxplict Em: 21/10/2025
Ariel x Ana x Ísis é uma relação bem complexa mesmo, e só o tempo dirá o que vai seguir a partir disso.
Quanto à energia que emana de Ariel é a manifestação do poder bruto dentro dela, o qual ela não tem domínio e fica ainda mais instável em situações emocionais.