Cinzas e Promessas
A manhã chegou cinzenta. O céu estava carregado como se o próprio universo tivesse decidido refletir o peso no peito de Lia. O café da manhã ficou esquecido na bancada da cozinha, o chá de hibisco esfriando como tantas outras coisas na vida dela ultimamente.
Ela olhava para o celular como quem segura uma vela prestes a apagar. Elisa havia dito que estaria de volta pela manhã. Não tinha dado hora exata. Só isso: "pela manhã". E para Lia, cada minuto estava sendo uma tortura.
O apartamento ainda cheirava a alfazema e madeira queimada, vestígios da noite anterior em que ela, entre um desespero e outro, quase incinerou as cortinas durante um feitiço de proteção mal canalizado. Fênix ou não, ela estava emocionalmente desarmada.
Quando finalmente a campainha tocou, Lia nem precisou olhar pelo monitor, ela sabia. Sentiu no ar. No cheiro de ozônio sutil, no arrepio na nuca. Elisa.
Abriu a porta.
E ali estava ela. Cabelos castanho-escuros presos num coque rápido, olhos verdes escondidos sob olheiras discretas, uma camisa social preta meio amarrotada, calça de alfaiataria. Elegante e cansada. Um contraste perfeito entre controle e exaustão.
— Posso entrar? — Elisa perguntou, com a voz baixa, quase rouca.
Lia só assentiu, saindo da frente.
Por alguns segundos, o silêncio entre elas foi quase físico. O tipo de silêncio que só existe entre duas pessoas que já conheceram o corpo uma da outra em todas as formas possíveis e que agora fingem que não lembram.
Elisa largou a pasta com documentos sobre a mesa. Mas antes de começar qualquer assunto, ela puxou o celular e desbloqueou, distraída.
— Não dormiu? — Lia perguntou, num tom que era mais sussurro do que fala.
Elisa soltou um riso breve, quase sem humor. — Acho que você sabe a resposta.
O olhar de Lia baixou para o pescoço dela, onde uma marca avermelhada quase sumida ainda resistia. Não era dela. Aquilo a atravessou como uma lâmina quente.
Elisa pareceu perceber. De propósito ou não, virou o corpo para o outro lado, como se esconder aquela parte fosse aliviar algo.
— Eu… — Lia começou, depois parou. Engoliu em seco. — Você disse que a guerra era só política. Então o que diabos você estava fazendo no Setor Leste?
Elisa levantou os olhos devagar, com aquela calma gélida que ela usava quando estava escondendo um medo real.
— Assuntos de expansão. Nada que te interesse mais. — Ela jogou a frase como quem joga uma adaga.
O peito de Lia se contraiu.
— Não faz isso comigo. — Sua voz quebrou um pouco.
— Faz o quê? — Elisa ergueu uma sobrancelha, umedecendo os lábios de um jeito que Lia odiava amar.
— Fingindo que isso aqui é só profissional. — Lia deu um passo à frente. — Fingindo que a gente não está num campo minado prestes a explodir. Fingindo que… — Parou. O ar ficou denso.
Elisa mordeu o canto da boca, desviando o olhar.
— Você me traiu, Liana. Eu tô tentando... sobreviver a isso. — Sua voz também cedeu um pouco agora.
— Eu não te traí. — A resposta saiu quase como um rosnado abafado. — Eu fui sugada para uma dimensão onde o tempo correu diferente! Eu não escolhi aquilo! Eu… — Ela respirou fundo, os olhos começando a arder. — Eu só escolhi te amar. De novo. E de novo. E eu continuo escolhendo. Mesmo quando você me olha como se eu fosse só mais um fornecedor na sua lista de contatos.
Elisa fechou os olhos por um instante, longo demais para alguém que queria parecer inabalável. Quando abriu, havia ali uma fissura.
— E se eu ainda te amar? — perguntou, quase num fio de voz.
Silêncio.
Lia sentiu o coração saltar até a garganta. A tensão entre elas explodiu como eletricidade prestes a soltar faíscas.
Sem esperar resposta, Lia avançou.
O beijo foi tudo menos delicado. Foi raiva, foi saudade, foi culpa, foi desejo amassado em meses de negação. Elisa respondeu com a mesma intensidade. As mãos dela cravaram na cintura de Lia como se quisessem arrancar dali toda a dor guardada. Lia segurou a nuca de Elisa, puxando-a mais fundo, até o gosto metálico da falta de ar se misturar ao gosto dela.
Quando separaram, estavam ofegantes. Elisa com a testa colada à de Lia, os olhos ainda fechados.
— Isso não devia estar acontecendo… — Elisa sussurrou, mas as mãos ainda estavam na pele dela, quente como sempre.
— Não devia — Lia concordou, mas roçou os lábios nela de novo, como se desafiasse o destino.
Por alguns segundos, o mundo lá fora deixou de existir. Só havia o cheiro de Elisa, o gosto de Elisa, o toque de Elisa.
Mas então, antes que a entrega fosse total, Elisa recuou um passo, tremendo levemente.
— Eu… eu preciso de tempo. — disse, ajeitando a roupa com dedos trêmulos.
Lia respirou fundo, controlando a vontade de puxá-la de volta.
— Só… fica viva até lá. — pediu, a voz carregada de súplica.
Elisa parou na porta. Virou-se, ainda com os olhos carregados de algo que misturava medo e desejo.
— Eu sempre fui boa nisso. — Ela sorriu de canto, como só ela sabia fazer.
E saiu, deixando Lia ali, de novo com o gosto dela ainda nos lábios e o presságio queimando feito brasas no peito.
Fim do capítulo
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Yennxplict Em: 21/10/2025
Desculpe a demora para trazer respostas as suas perguntas. Só conseguimos responder agora, por essa conta.
A Calíope consegue transitar por várias dimensões e também enviar pessoas, foi o que aconteceu no prólogo da história. Essa dimensão que Lia menciona funciona fora do tempo linear. Lá, o tempo não segue a mesma lógica do nosso plano, ele se molda de acordo com a energia e a consciência de quem está presente. Por isso, quinze minutos aqui podem equivaler a anos lá.