A Analista
Júlia ouvia Fabiana, prestava atenção nas palavras, nas pausas, no que era dito e, mais ainda, no que era evitado. Ela observava a postura da mulher no divã: o corpo tenso, as mãos deslizando uma sobre a outra num movimento de quem tentava se acolher de maneira ansiosa, o rastro das unhas sempre cuidadosamente bem feitas. Fabiana era uma força da natureza, de uma vivacidade impressionante, protegendo-se do mundo com uma fachada de inabalável segurança. Mas Júlia via as rachaduras na armadura e os pequenos tremores que denunciavam a fragilidade por trás da beleza exuberante e das tranças perfeitas. Ela reconhecia os sinais. A repetição, a idealização, o desejo. Era a clássica transferência, o paciente projetando sentimentos no analista. Mas o que a inquietava não era o que Fabiana sentia. Era o que ela mesma experimentava. A cada sessão, uma onda sutil de admiração a percorria. Via-se projetando em Fabiana, naquela leveza de quem ainda não se sabe e que ela própria sentia ter perdido, em sua vida rigorosamente estruturada na análise pessoal. A atração era inegável, um contrafluxo perigoso, a contratransferência. Por mais que enxergasse em Fabiana a verdade de sua dor e a legitimidade de seu sofrimento, e ouvisse no discurso da paciente sobre seu lugar de “vítima”, como inocente da própria história, havia algo mais, algo não dito que por muito tempo insistiu em escapar de sua perspicácia. Foi em uma sessão alguns meses atrás, talvez há um ano, que algo disso que inicialmente escapava da leitura que fazia da paciente se mostrou pela primeira vez. Fabiana tinha experienciado recentemente uma série de perdas significativas e, ao mesmo tempo em que se viu desesperadamente frágil, vulnerável e perdida, com a ajuda de sessões extras ora solicitadas por ela mesma, ora agendadas pela analista, conseguiu abrir janelas onde as portas foram brutalmente fechadas. Num movimento bonito de se acompanhar, Fabiana passou a chegar às sessões com um novo brilho no olhar e uma luminosidade que Júlia ainda não conhecia. Fabiana também não. A paciente vinha reencontrando amigos antigos que há muito não via, além de algumas paixões não vividas de adolescência, permitindo-se resgatar o passado e também começar a criar um presente diferente, redescobrindo-se nesses novos lugares, com novas interações e novas perspectivas. Foi então que uma atitude de Fabiana a pegou desprevenida, com um comportamento que ultrapassou de forma quase travessa a dose necessária de formalidade que havia entre as duas, habitualmente. Na ocasião viu, incrédula, Fabiana levantar-se num movimento ágil e intempestivo, com passos precisos em sua direção, para acariciar sua face. Seus olhos já encontravam os seus quando, num movimento automático, tão rápido quanto foi a aproximação, distanciou-se, fugaz ao momento. Júlia desejou profundamente que tivesse sido preparada para aquele instante, não para evitá-lo, mas para senti-lo ainda mais, com mais consciência, ainda que a excitação fosse suficiente para que o rosto de Fabiana, muito mais próximo que o habitual durante apenas aquele breve instante ficasse gravado na sua memória. A mulher demonstrou naturalidade, apesar de apresentar um certo rubor nas faces. Por algumas sessões subsequentes, aquele gesto parecia ter sido qualquer coisa pontual e isolada, e ainda não compreendida pela psicanalista, até que Fabiana novamente a surpreendeu, com um comportamento aparentemente inofensivo, mas que deixou a escuta analítica de Júlia ainda mais aguçada – e mais confusa. Ela precisou se forçar a acreditar no que seus olhos viam e no que sua mente demorava a assimilar, enquanto o corpo respondia de forma que não condizia com a maneira com que reagia durante as sessões, não só com Fabiana, mas com qualquer outro paciente. Estava acontecendo, Fabiana puxou as pernas, cruzando-as em cima do estofado e não se importou quando seu vestido subiu, deixando sua calcinha evidenciada pela posição que forçava suas pernas a se abrirem, como que se oferecendo à mulher à sua frente. Fabiana teria consciência da visão que estava proporcionando? Havia maldade naquele gesto, ou a maldade estava no olhar da analista? Fabiana estaria demonstrando a confiança construída naquele espaço em que se sentia tão segura a ponto de se colocar totalmente à vontade, sem sequer perceber a possibilidade de estar ultrapassando um limite? O alerta ficou evidente e Júlia precisava entender se havia ali uma ingenuidade cativante ou uma sedução velada, mas antes que a dúvida se instalasse, percebeu que seus olhos pousaram entre as pernas de Fabiana por tempo demais, e pôde ver nos olhos da paciente que ela havia notado isso, e tinha gostado. Tão despretensiosa quanto pareceu ao se colocar naquela posição, a mulher saiu dela, deixando que o vestido caísse novamente sobre as pernas, apenas com o movimento do corpo, sem precisar tocá-lo. A sessão seguiu e Fabiana prosseguiu como se nada tivesse acontecido. Júlia se pegou pensando se outro gesto inusitado invadiria alguma das sessões de Fabiana, o que já fazia com que, sem querer, esperasse as quartas-feiras com um entusiasmo diferente. Algumas semanas se passaram, as sessões transcorriam sem insinuações veladas, Júlia ouvia a paciente atenta e cuidadosamente. A analista percebia, na escuta acolhedora dos relatos de Fabiana, como ela havia se amedrontado com o próprio avanço no que se referia a se permitir se conhecer cada vez mais. Alargar seus limites a assustou e, num movimento de autossabotagem, deixou-se iludir pela história que ela própria criou. Romantizando uma situação como se fosse outra pessoa, que não havia tido tantos insights recentemente, começou a namorar um colega de infância, que não via desde então e que havia reencontrado por acaso. O rapaz serviu de âncora para a mulher que se via desnorteada diante da liberdade e Fabiana se juntou a ele mergulhando de cabeça numa relação que mais parecia um bote salva-vidas. Era nítido, para Júlia, mas não para Fabiana, o quanto essa escolha a reconduzia para uma zona de conforto que ela justamente trabalhava para sair. Fabiana não sabia com a consciência, mas o retorno das crises de ansiedade que há meses não vivenciava e um forte sentimento de angústia denunciavam a repetição enquanto negativa à elaboração e o retorno dos sintomas a assustava quase tanto quanto a liberdade que quase se permitiu abraçar. A relação intensa com o novo namorado rapidamente tornou-se o centro de suas atenções e tão rápido quanto começou, passou a desmoronar, trazendo de volta o medo da solidão. Foi ao término de uma sessão difícil, de exposição e entrega em sua completa vulnerabilidade e desamparo que, no abraço habitual de despedida, Júlia tocada pela fragilidade de Fabiana, e dispersa das sensações provocantes que já havia experimentado em relação à paciente, foi novamente pega de surpresa. Fabiana se demorou mais do que de costume nos braços da analista, como quem pede colo, abrigo, proteção. Ela a enlaçou pelas costas, sobre os ombros, com as mãos espalmadas e os dedos pressionados contra a blusa de Júlia que, sentindo o apelo, sustentou seu corpo colado ao dela, os braços a amparando pela cintura, num gesto generoso que permitiu que a mulher ditasse a duração daquele contato. Fabiana ensaiou encerrar o abraço, porém antes de soltá-la, voltou a enlaçá-la, com mais pressão, puxando o corpo para ficar ainda mais colado ao seu. Júlia sentiu a respiração dela em seu pescoço e uma onda de desejo e excitação invadiu todo seu corpo, de uma forma que definitivamente não esperava e que não desejava dispersar. Retribuiu silenciosamente, sem conseguir entender no que havia se transformado a intenção de acolhimento com que iniciou aquele contato. Depois de alguns segundos, Fabiana se distanciou, parecendo acorda de um sonho bom, não encarou a analista e seguiu para fora do consultório. Em suas anotações, Júlia analisava o fenômeno com a distância necessária que sua formação ensinou. Mas em sua mente, em momentos de silêncio, a análise cedia lugar à fantasia. Ela imaginava Fabiana em um contexto diferente, longe do consultório. Pensava na mulher que a vida tinha tornado vulnerável em sua psique e forte na persona, a que se blindava do contato com seus sentimentos e sensações na tentativa frustrada de manipular o controle. Refletia como seria essa mulher fora dali, já que suas histórias eram só o recorte que ela escolhia revelar. Em sua casa, em seu mundo, como seu corpo reagiria ao inusitado de uma aproximação que não fosse iniciada por ela mesma? Júlia se via fantasiando sem sua própria permissão e se questionava. A ética, a honra de sua profissão, o respeito pela história de Fabiana, tudo era fronteira sagrada que jamais seria cruzada. Mas o desejo era real, vivo e dançava no limite invisível entre o profissional e o humano.
Fim do capítulo
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