O Desfecho
O relógio soou o sinal que há anos significava o fim da sessão. Fabiana levantou-se do divã e Júlia de sua poltrona, conduzindo-se até a porta. A analista inclinou-se para abri-la, mas a voz da paciente, baixa e firme, a interrompeu. “Júlia, a porta”, Fabiana sussurrou. “Não abra ainda. Deixe-a fechada um pouco mais”. A mulher obedeceu, percebendo o comando na voz da outra. Elas permaneceram paradas, a poucos centímetros uma da outra, na pequena área entre o divã e a saída. Fabiana hesitou por um instante, o peito subindo e descendo em uma respiração acelerada. A mulher que se protegia do mundo com uma fachada inabalável não se moveu para o abraço costumeiro. Esticou a mão e, em vez de buscar um abraço, seus dedos tocaram o braço de Júlia, junto de um sussurro provocante, enquanto aproximava seu corpo um pouco mais. Os olhos das duas se cruzaram e se fixaram naquele olhar. O corpo de Fabiana inclinou-se ligeiramente, numa tentativa desesperada e quase furtiva de encurtar ainda mais a pouca distância. Os olhos de Júlia, perspicazes e inteligentes, captaram o movimento, o desejo ardente que a mulher finalmente se permitia demonstrar. Fabiana moveu os lábios em direção aos dela, não mais um gesto de súplica, mas de afirmação. Sua pele quente e macia tocou o pescoço de Júlia, que sentiu seu corpo estremecer. A mão delicada da paciente finalmente tocou seus cabelos curtos, fazendo com que a psicanalista se entregasse às sensações que aquela aproximação causava, sem mais saber o que estaria deixando transparecer. Fabiana conseguiu. Seus lábios inseguros e sedentos encontraram os de Júlia, e o beijo, inicialmente suave, lento e tímido, aconteceu. A psicanalista se viu tomada por uma onda de pensamentos, sentimentos e sensações que naquele momento desejava não questionar. Por um lado, o profissionalismo soava um alarme dentro da mente. Por outro, havia tesão, fascínio e um orgulho avassalador pela evolução de Fabiana. Era perigoso, sim, mas era a prova viva de que a paciente finalmente se permitia desvencilhar da rigidez opressora que vinha de si mesma e do mundo, permitindo-se sentir e entrar em contato com seus desejos mais desconhecidos. Júlia se deixou levar por um instante, deliberadamente sentindo um pouco de tudo o que fantasiava com Fabiana. Retribuiu o beijo de forma acolhedora, no início, como quem oferece oportunidade para a paciente se expressar, mas foi o suficiente para sentir o gosto, o toque, a textura daquele desejo. Os braços de Fabiana se fecharam em sua cintura e com uma das mãos percorreu as costas da analista com vigor subindo até a nuca, por onde a puxou com mais firmeza. Um gemido em tom de sussurro escapou por entre os lábios de Júlia. Fabiana se encorajou a experimentar a mulher em seus braços com urgência, o beijo se tornou envolvente e acalorado, as línguas se buscando famintas enquanto a respiração das duas se confundia e revelava o calor dos corpos. Foi o suficiente para Júlia se desconcertar e, num lampejo, voltar a si. Em um segundo momento, a ética e o profissionalismo falaram mais alto. Júlia, com uma calma que surpreendeu até a si mesma, segurou os ombros de Fabiana, gentilmente, mas com firmeza. Sua mão se moveu do pescoço para os ombros dela, a detendo com doçura. A voz de Júlia era suave, mas carregada de uma autoridade profissional que transcendia a experiência daquele momento. “Fabiana”, ela disse, sem desviar o olhar. “Não faremos isso. Mas faremos outra coisa”. Fabiana recuou, confusa, com o coração acelerado pela mistura de vergonha e desejo. As lágrimas ameaçaram vir, mas Júlia a amparou com palavras antes que pudessem rolar. “O que você sente, esse desejo, não é um erro”, continuou Júlia. “É material. É o que precisamos trabalhar aqui, juntas. Eu compreendo o impulso, a fantasia. Mas você não precisa abandonar o único lugar seguro onde pode explorar esses sentimentos”. Júlia a convidou a voltar e sentar-se na cadeira de frente para ela. Fabiana obedeceu, ainda trêmula. “Se eu cedesse ao desejo e te encaminhasse para outra pessoa, eu estaria te abandonando de uma forma que você não merece. Se te rejeitasse, estaria dizendo que o seu desejo é tão grande que rompe os limites da terapia. Mas ele não rompe. Eu sou sua analista. E meu papel é usar esse desejo, essa força que você sente, para te guiar a encontrar o acolhimento que você tanto busca. A rejeição, neste momento, é minha enquanto mulher, para que eu possa permanecer como sua psicanalista”. Fabiana ouvia as palavras, a nova perspectiva de Júlia. Não havia uma parede, mas uma porta que se abria para uma nova camada da análise. Júlia, com sua sabedoria única, estava lhe mostrando que o desejo podia ser um mapa, não um beco sem saída. Que a vulnerabilidade podia ser acolhida e não descartada. E que a conexão entre elas, por mais intensa que fosse, era um instrumento de cura, não de sedução. O desfecho, naquele dia, não foi o fim de algo, mas o início de uma nova fase da jornada. A dor da rejeição cedeu lugar à surpresa da possibilidade. A psicanalista havia rejeitado a mulher para proteger a paciente e, nesse ato de firmeza e acolhimento, Fabiana começou a entender que o amor que ela procurava fora dali talvez já estivesse, de certa forma, sendo cultivado dentro daquela sala. Finalmente começava a entender que tinha agora espaço e coragem suficientes para descobrir quem verdadeiramente era.
Fim do capítulo
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