Capitulo 45
CAPÍTULO 45
A sala parecia estar mais fria que o quarto era como um casulo fechado. As janelas todas cerradas. As cortinas pesadas cobrindo quase todas, com exceção da que ficava de frente para o mar, ainda assim o ar se movia, passando não se sabe por onde, frio o bastante para morder a pele.
Ágata se encolhia dentro do cobertor como se tentasse se esconder de um inimigo invisível. Mas o frio passava — entrava por frestas que ela nem via, colava na pele úmida, grudava nos ossos.
O corpo dela não conhecia aquele tipo de frio. Vinha de Fortaleza, onde o calor era um abraço de um amante sedutor, e a chuva ou quadra invernosa como costumava chamar era muito rara, quase uma visita educada que chegava a noite e pela manhã partia. No Rio, o inverno chegava como uma mão áspera, úmida, que não pedia licença. E agora, além do gelo no corpo, havia outro, mais fundo: a notícia da fuga da mãe, pulsando como um tambor dentro da cabeça.
— Vou avisar ao papai... — a voz dela saiu trêmula, quase um sussurro — tenho receio que ela vá se esconder em Fortaleza com o cunhado.
— Espera, amor... — Marcela se ergueu num rompante, como se o sofá tivesse cuspido seu corpo. Segurou Ágata pelos braços e a guiou até o assento vazio à frente, o cobertor arrastando pelo chão. — Não ligue direto para o seu pai. Ligue para o seu irmão. Se viram a reportagem, já devem estar sabendo.
Então veio o som.
Baixo. Contido.insistente. O toque de um celular que parecia vindo de dentro das paredes. O coração deu um salto, depois correu descompassado. Ela tateou o espaço com os olhos, procurando. O toque parecia se mover, como uma voz fantasma que a chamava, sussurrando seu nome de um lugar onde o ar era mais denso e frio, não lembrava onde tinha deixado o aparelho.
— Acho que você deixou na pia do banheiro... — disse Marcela, desfazendo o abraço num gesto rápido. Desapareceu pelo corredor, os passos ecoando secos, firmes, como batidas de um relógio que marcava algo urgente.
O toque continuava. Cada vibração parecia pulsar dentro do peito de Ágata. Não era apenas insistente — era como se soubesse seu nome, como se a chamasse de um lugar onde o ar era denso e frio.
Quando Marcela voltou, trazia o celular na mão. Entregou-o sem olhar, o calor da palma ainda preso no aparelho, e retomou o lugar no sofá ao lado de Jacinto, dizendo algo baixo sobre a reportagem que passava na TV.
Ágata não ficou sentada. Caminhou até uma das janelas sem cortinas. Do lado de fora, a noite estava em fúria: o vento uivava, fazendo o vidro tremer; a chuva riscava o ar em lâminas prateadas; as ondas se arremessavam contra a areia como se quisessem engolir a praia inteira o espetáculo apesar de selvagem, era bonito de se ver dali do nono andar daquele prédio luxuoso na avenida Atlântica onde sua namorada morava.
— O senhor viu a reportagem? — Ágata perguntou, sem desviar os olhos da tormenta lá fora.
A voz do pai, pesada e abafada por ruídos distantes, ecoou no telefone: —Todo mundo aqui no restaurante viu... Ainda bem que ninguém associa a Mercedes com a minha ex-esposa.
— A Mercedes fugiu, papai, ela e o Magnata, não sei se estão juntos ou foi cada um para o seu lado. — a voz de Ágata falhou. — A polícia está caçando os dois. Se ela entrar em contato, não atenda, o senhor pode ser apontado como cúmplice.
O silêncio que se seguiu não era vazio — era pesado, cheio de algo que não se dizia. Ágata sentiu na pele, como a eletricidade antes de um raio. Podia ouvir a respiração dele, lenta, contida demais. E então o som dos seus passos, ele estava andando e a cada passo parecia mais próximo como se estivesse marchando em direção a ela.
— Qual o problema, papà? ela sussurrou, com medo de que Marcela e Jacinto, ainda conversando, percebessem.
— Não conte ainda a Marcela…— a voz do pai veio grave, tensa, mas parecia mais próxima. Ele estava andando. — Sua mãe falou comigo... antes de sumir.
O ar rareou. Ágata ficou muda. Quando conseguiu falar, a boca estava seca.
— Quando? Como ela fez isso?
— Mandou uma mensagem cedo da noite.
—Papà... isso é grave demais. Não posso mentir ou esconder algo que vai prejudicar a todos nós. O que a Mercedes queria?—Sua voz saiu um pouco mais ala do que deseja, mas não deu importância era da sua natureza falar alto quando estava sob pressão.
— Que deixou uma carta e uns documentos, nele tem o exame de DNA que comprova que sou o pai da Zara, entregou tudo a sua tia que mora na baixada.— ele respondeu, e cada palavra era um peso uma pedra jogada em um poço escuro.
Um gelo profundo subiu pela espinha de Ágata, não era o frio do Rio. Era um pavor que congelava cada nervo.
— Como sempre a Mercedes só pensa nela mesma, vai fazer com as meninas o mesmo que fez comigo e o Greg, O que o senhor vai fazer?— A voz dela saiu trêmula. —Não venha agora para o rio. Não se envolva papá. Qualquer passo pode colocar o senhor na mira, se a polícia descobre que tem filhos com a gerente do tráfico, as coisas vão se complicar.
— Tarde demais, filha...—a respiração dele estava agora tão perto que Ágata podia imaginá-lo ao lado dela. — Eu e seu irmão chegamos ao Rio de Janeiro às dez da manhã.
A voz de Ágata explodiu sem perceber.— Pelo amor de Deus, papà, isso é loucura!
Nesse instante, ela soube que estava sendo observada. Marcela e Jacinto, mesmo fingindo conversar, mantinham os olhos nela. Agata sentiu o peso do olhar de Marcela em suas costas. Era um olhar que não observava mais, dissecava. Que calculava cada tremor em seu corpo, cada mudança em seu rosto. Marcela não estava ouvindo conversa, estava avaliando suas emoções, — afiado, calculando cada respiração, como se lesse um segredo estampado na pele de Ágata.
Ágata não sabia como agir sob aquele olhar inquisidor. Ela tentou recobrar a compostura, voltando a falar de forma mais natural com o pai, mas as palavras eram uma casca vazia. O desespero estava estampado em seu rosto.
— Fique aí...— ela suplicou, mais para si mesma do que para ele. — Não venha para cá. As coisas aqui estão horríveis, papà. Tem polícia em tudo quanto é canto. A gente não sabe no que mais a Mercedes está envolvida.
— Mas tem minha bambina no meio desse fogo cruzado. — a voz dele veio firme, implacável, como uma sentença. — Estou indo resgatar minha filha.
— Que não sabe que é sua filha! — o grito de Ágata saiu áspero, como vidro se partindo. Ela atirou o cobertor no sofá, o gesto nervoso revelando o caos que fervia dentro dela. O peito arfava, a raiva e o medo se atropelando. — Paizinho... — a voz que antes explodia agora se quebrava num sussurro. — Pensa na Zara. A cabeça dela deve estar em pedaços. Ela viu o homem que chama de pai ser algemado, a mãe e o tio fugirem como criminosos. E agora o senhor aparece dizendo que é o pai dela... e quer levá-la para um lugar estranho? Já pensou no que isso vai causar?
Do outro lado, o silêncio pesou como chumbo. Vivo, sufocante. Ágata apertou o celular contra o ouvido como se quisesse arrancar dele uma resposta. O desamparo a esmagava. Sentou-se, os ombros cedendo, e acenou para Marcela.
— A Mercedes mandou uma mensagem para o papai... — murmurou, ainda grudada ao aparelho.
— Posso falar com ele? — Marcela estendeu a mão. Havia firmeza em sua calma. Ágata hesitou, mas cedeu.
— Senhor Gregório... — a voz de Marcela era clara, límpida, um contraste gritante com a tempestade lá fora — e dentro de Ágata. — Sua filha tem razão. Sua vinda só vai complicar a investigação. O senhor corre o risco de ser preso por associação ao tráfico.
— Eu sou homem honesto. Não devo nada à justiça. Vou aonde quiser. — havia uma dureza orgulhosa em sua fala, um eco da mesma teimosia que queimava em Ágata.
Marcela sorriu de canto, preocupada com a situação. — Não é mais assim. O senhor viveu maritalmente com uma criminosa procurada. Teve filhos com ela. O melhor é procurar meu tio Anderson, advogado. Ele pode ajudá-lo a lutar pela custódia sem que a polícia o pegue de surpresa.
Do outro lado, nada. Nenhum som, nem respiração. Era como falar com um fantasma. O celular podia estar na mesa, abandonado, a linha aberta — Seu Gregório parecia ter evaporado.
Marcela colocou no viva-voz. O silêncio se arrastava, irritante.
— Papá, eu sei que o senhor está aí, olhando para o celular, querendo nos vencer pelo cansaço. — a voz de Ágata agora tremia, mas não recuava. — Não venha. Cancele a viagem, mude a data. Qualquer coisa. Mas não apareça aqui. Eu não tenho estrutura para visitar um pai na cadeia!
Não foi mais voz — foi grito. E de repente, a sala inteira se encheu daquela explosão. Os dois discutiam em italiano, rasgando o ar com berros, como se cada palavra fosse um soco um querendo vencer o outro com seus argumentos.
Marcela se afastou de perto da sua Chiara, sem intervir. O coração ainda acelerado, mas a razão dizendo para não entrar na discussão entre pai e filha. Ao lado, Jacinto observava com um sorriso enviesado.
— O que foi por que essa cara de santa puta? — ela provocou, chutando suas pernas de leve para se sentar ao lado, abrindo espaço no sofá que foi arrastado para perto da TV.
Jacinto fingiu inocência. — Só estou pensando... Você sempre foi a bichona quando o assunto era mulher. Mas com essa aí... parece que perdeu o controle. Nunca vai ganhar uma discussão contra ela quando ela achar que está certa.
Marcela desviou o olhar para a janela. Ágata estava lá, escorada, exausta, olhos fixos na chuva que se dissipava, abrindo aos poucos o azul profundo de Copacabana. O mar refletia os primeiros raios de sol, ouro líquido em movimento. A mesma cor dos olhos dela — intensos, perturbadores.
Marcela deixou escapar um sorriso breve, quase devoto. — E eu vou amar cada briga que tivermos... porque a reconciliação vai ser das arábias.
Jacinto apenas ergueu os ombros, cético, mas calado. Havia coisas mais sérias em jogo.
— Agora que Magnata e sua sogra...— ele frisou bem a palavra, rindo cinicamente. — Agora que os dois estão em fuga... Qual o plano? Voltamos para Fortaleza? Ou esperamos que a caçada termine?
— Não podemos voltar, o Magnata conhece meu rosto, acredito que o seu ele não conheça. Se preferir pode voltar. Ou fique, o quarto de hóspede está vazio.
— Vou preferir ficar, assim posso me comunicar com o Leleco e com a Doutora Valesca, para ficar por dentro de como anda a perseguição.
— Jacinto, nem uma palavra sobre o parentesco da Chiara com a Mercedes. Valesca é muito cruel.
— Precisava nem pedir. Ela deve estar cuspindo fogo com seu namoro, e não pensaria duas vezes para incriminar a italiana.
Nesse instante, um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente. Marcela e Jacinto se viraram para o lado onde Ágata estava, observando-os. Não restava nada da italiana esquentada de momentos antes. O rosto dela, antes contorcido pelo desespero, agora estava estranhamente sereno. O corpo relaxado, o sorriso, doce, mas não convincente. A calma era tão intensa que parecia falsa, um disfarce, como uma máscara que ela usava para esconder algo.
— Meu pai não vem mais. Ele... concordou comigo — disse ela, a voz baixa, quase inaudível, mas com uma firmeza que nenhum deles esperava. — Vamos aproveitar que o maldito frio diminuiu e vamos dormir um pouco. Estou com muito sono.
A última frase soou como uma ordem, não um convite. Ágata se virou, mas parou antes de ir para o quarto. Seus olhos, antes cheios de fúria e medo, agora brilhavam com uma determinação fria. O ar parecia mais pesado, mais denso.
Seus olhos dourados, brilhantes como o sol da manhã em Copacabana, pareciam pregar algo no ar. Então ela se virou e caminhou em direção ao quarto, sem dizer mais nada.
Marcela e Jacinto se entreolharam, o mesmo pensamento estampado nos olhos: Ágata não era mais uma vítima. Ela tinha um plano.
Fim do capítulo
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