Capitulo 46
Capítulo 46
O celular, vibrava feito um louco sob o travesseiro, se mexia como um bicho enjaulado tentando romper a pele. Ágata despertou num sobressalto, o coração aos coices, e por pouco não rompeu o sono frágil de Marcela, que só havia adormecido há bem pouco tempo. O som abafado, insistente, parecia uma unha arranhando direto sua audição. Puxou o aparelho com a pressa de um viciado em abstinência, os dedos trêmulos, e quando a tela acendeu com o nome, quase o deixou cair.
Um frio atravessou o corpo como uma agulha de gelo. O estômago se contorceu, a boca ressecou, um gosto de metal. O nome da mãe piscando na tela era mais que um incômodo — era o prelúdio de uma ameaça que pesava como uma pedra. A mulher que lhe dera a vida, mas nunca o afeto, agora invadia sua vida como uma sombra que não desaparecia.
Endireitou-se devagar, cada movimento pesado e cauteloso, como se o colchão fosse um pântano de vidro prestes a estilhaçar. Até a própria respiração lhe pareceu um trovão no silêncio do quarto. Deslizou para fora das cobertas, o chão gelado chicoteando a sola dos pés, e se escondeu no banheiro. A porta se fechou com um clique agudo, um eco de chumbo no silêncio da manhã.
Sentou no vaso, fechou os olhos por um segundo para se preparar, e atendeu.
— O que você quer? — A voz saiu firme, mas a coragem era só uma casca fina que por pouco não se rompia.
Do outro lado, uma risada curta, seca, sem humor.
— Quanta ignorância… é assim que fala com a sua mãe? — A voz, áspera e impaciente, arranhava o ouvido. — Suponho que esteja sozinha, já que não ouço mais ninguém aí.
A palavra “mãe” caiu sobre ela como um martelo. Nunca havia sido sinônimo de proteção, apenas de uma amizade supérflua: a mãe que não estava nas festas da escola, que não esperava no portão, que sempre pertencia a um mundo à parte — um mundo de luxo, ostentação, poder, tudo que o mundo do crime oferece.
— Diga logo o que você quer. Se não, desligo. — Ágata pressionou o celular contra a orelha como se pudesse esmagar aquela presença do outro lado da linha. O medo de ser rastreada corroía cada segundo. E se descobrissem o apartamento de Marcela? O pensamento veio com o peso de uma pancada.
— Espera… não desliga. Sei que você está no Rio com a filha da Montserrat. Sei que ela é policial, como o pai. Preciso falar com você.
— Está enganada. — A mentira saiu seca, apressada, com o gosto de um veneno na língua. — Não estou no Rio.
O coração batia uma batida descompassada, os lábios rachavam de tanta secura. As lembranças da adolescência vieram como um filme preto e branco. A cada palavra, Ágata sentia as pernas fraquejarem. A voz do outro lado não pertencia a uma mãe, mas à gerente de um cartel de tráfico, uma criatura fria e impiedosa do submundo do Rio. Era óbvio que para Mercedes, descobrir o paradeiro de qualquer pessoa era tão fácil quanto respirar.
— O que você quer de mim? — A voz de Ágata falhou, perdendo o controle do nervosismo que a consumia.
— Quero que venha se encontrar comigo. Tenho coisas a dizer que vão interessar a filha do Marcelo. Mas nem pense em contar para sua namorada ou para aquele policial amigo dela que sei que se encontraram essa madrugada.
Um tremor percorreu o corpo, frio e violento, como uma onda de choque. Ágata desligou às pressas, ativou o modo avião como quem ergue uma barreira invisível. Queria acreditar que aquilo bastava.
Mas a tela voltou a acender, vibrando com chamadas de números desconhecidos. Recusou uma, duas, cinco vezes. Na sexta, veio a mensagem que a fez congelar.
“Preciso te ver. Sozinha. Estou te esperando na casa da minha irmã, na Baixada. Ou sua namorada e a filhinha dela morrem.”
Simples. Direto. O mesmo tom imperativo de sempre, que não deixava espaço para escolha.
Ágata encarou aquelas palavras por longos segundos, as mãos tremendo, o coração martelando contra a costela. Parte dela queria esmagar o celular no chão, destruir a voz da mãe de uma vez por todas. Mas a outra parte… não podia. A vida de Alex e Marcela agora, mais que nunca, estava em perigo.
Respirou fundo, a escuridão daquelas palavras se espalhando dentro dela. Apagou a tela e abriu a porta do banheiro devagar. Do lado de fora. Marcela dormia em paz, inconsciente do peso da escuridão que a acompanhava.
O corpo nu da namorada, entregue ao sono, parecia uma escultura viva — músculos firmes, delineados por horas de disciplina, e ainda assim envoltos numa feminilidade delicada, quase hipnótica. Um desejo latejou no peito de Ágata, lembrando-lhe da intensidade daquela manhã, quando haviam se perdido uma na outra. Ágata se sentiu suja, como se estivesse traindo a confiança da mulher que amava. Marcela jamais permitiria que ela fosse ao encontro de Mercedes, da mesma forma que não permitiria que o pai viesse para o Rio, mas Ágata não podia ficar de braços cruzados, vendo sua mulher e sua filha correndo perigo. Ela iria saber o que a gerente do tráfico queria com ela, talvez uma negociação em troca de uma pena menor ou alguma outra coisa.
Sabia, porém, que não podia se permitir ao luxo de se jogar debaixo das cobertas e começar uma nova sessão de sex* selvagem. Precisava de ar, precisava se mover, talvez até fugir de si mesma antes que o peso das escolhas caísse de novo sobre os ombros. Pediu um carro por aplicativo. Como só tinha oito minutos antes do carro chegar, colocou o celular ao lado do de Marcela, que estava com a bateria 100% carregada, e conferiu a sua. Tinha bastante carga. Tirou seu carregador da tomada e guardou no bolso da calça grossa. Vestiu duas blusas, por sobre as quais enfiou um casaco que quase escondia a fragilidade que sentia por dentro.
Olhou uma última vez para Marcela, respirando fundo como se quisesse guardar aquela imagem dentro dela — a mulher forte, inesperadamente sua, que jamais entenderia essa necessidade de correr atrás do perigo. Pegou o celular ainda olhando para Marcela, saiu silenciosa.
Fechou a porta devagar. O frio da manhã não era nada perto do gelo que começava a se espalhar por dentro dela, suas mãos tremiam quando entrou no carro e o viu se distanciando.
O endereço na mensagem era um ponto perdido na Baixada Fluminense. Não era um lugar completamente estranho — lembrava-se de ter passado uma semana ali, quando tinha catorze anos, nas férias com as tias maternas. E jurara nunca mais voltar. Uma época em que Mercedes sumia a todo instante sem explicações, e a adolescente tímida que ela fora tentava preencher a ausência da mãe com a companhia barulhenta das primas e tias. A sensação que Ágata tinha é que fora abandonada no meio de estranhos. Quando desceu de volta no aeroporto e viu o pai a esperando, caiu num pranto de choro, fazendo o pai jurar que nunca mais a obrigaria a ir com Mercedes.
Agora, mais de dez anos depois, aquele nome de rua e aquele bairro reacendiam uma memória incômoda:
Ainda assim, foi capaz de pegar um aplicativo de corrida, entrar no carro e deixar-se levar pela rota. A cada quilômetro, a cidade mudava de rosto: os prédios da Zona Sul ficaram para trás, a manhã foi ficando mais escura, mais áspera, talvez chovesse. O coração de Ágata acelerava, dividido entre a esperança de um reencontro e a certeza gelada de estar entrando em território inimigo.
Casas simples, muros pichados, o cheiro de lixo e esgoto misturado ao ar úmido, asfalto quebrado dando lugar a ruas de terra, um verdadeiro contraste com a residência luxuosa e o bairro de classe A, onde Mercedes morava e que Ágata visitou no dia anterior. Vozes altas ecoando de algum lugar, o som de pagode alto, o zumbido de motos mais distantes, a brisa que levava o cheiro de maconha queimada. Não conhecia bem o Rio de Janeiro — e muito menos a Baixada — mas sabia que nada daquilo era seguro.
— Chegamos, moça. o endereço é esse aí em frente. — O motorista falou de maneira impessoal, os olhos fixos na rua, louco para encerrar a corrida e começar outra, só assim eles batiam a meta durante o dia. Ágata desceu, o ar pesado da Baixada enchendo seus pulmões. Mal bateu a porta, o carro partiu, deixando-a só na rua.
Ágata fixou o olhar à sua direita. Havia uma rua estreita, íngreme e serpenteada, os muros pichados com nomes de facções. Havia pouca gente circulando por ali, as poucas pessoas que passava demoravam a encarando desconfiados, apenas som distante de um cachorro latindo e o pipoco de balas bem longe vinha carregado pelo vento falavam em sussurro como um aviso mandando-a fugir o mais rápido possível. Ágata deu um passo indeciso, ajeitando o casaco como se isso pudesse protegê-la. Reconheceu a fachada da casa — velha, descascada, com o mesmo portão de ferro agora pintado de verde. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.
Bateu. Uma, duas vezes. O som ecoou oco, como se a casa devolvesse um aviso silencioso para que ela fosse embora. O arrepio subiu pela espinha e se alojou na nuca, mas ela insistiu.
Quando a porta finalmente se abriu, a visão fez seu estômago revirar. Uma mulher muito jovem, magra ao extremo, surgiu à sua frente. Os cabelos ressecados e quebradiços, como palha, caíam sobre os ombros ossudos; os lábios, flácidos, pareciam despencar a qualquer instante, pintados às pressas como uma máscara malfeita. Os olhos... sem brilho, fundos demais, como dois buracos vazios. Ágata sentiu a pele arrepiar. Aquela mulher carregava algo de sombrio — e não era a tia que esperava encontrar.
Teve a certeza de que caiu numa cilada quando, por trás dela, surgiu um garoto que não devia ter mais de treze anos. O contraste do rosto infantil com o fuzil nas mãos era perturbador. Ele mal podia com o peso da arma, os braços tremiam, mas a boca fria do cano estava firme, apontada direto para a cabeça dela.
— Entra, menina... — disse a mulher, a voz baixa, mas firme, como quem não admite réplica.
Ágata engoliu em seco. O coração disparou, martelando no peito, querendo arrebentar a caixa torácica. Cada instinto gritava para correr, para voltar, mas algo no olhar da mulher — aquela rigidez gélida — a paralisou. Tinha o pressentimento de que um único passo em falso seria seu fim.
Com as pernas pesadas como chumbo, atravessou o portão. Assim que pisou na sala, o som metálico cortou o ar: clac. O estalo seco de uma arma sendo engatilhada soou atrás dela, ecoando como uma sentença.
O sangue gelou. As mãos formigaram, as pontas dos dedos dormentes. Não precisou olhar para saber que estava rendida. Que não havia volta.
Fim do capítulo
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