Capitulo 14
Maeryn
O dia amanheceu como se soubesse que a noite tinha sido longa demais, preguiçoso, dourado, com os primeiros raios de sol escorrendo pelas janelas como mel. O vento trazia o cheiro das flores do pátio, misturado ao perfume que ainda grudava na pele de Varka.
Eu estava enrolada no corpo dela.
A cabeça apoiada em seu ombro, as pernas entrelaçadas às dela, como se ainda tentasse me fundir ao que tínhamos sido horas antes. Traçava com a ponta dos dedos as linhas do seu abdômen, firme, quente, definido. Cada músculo tinha uma história que ela não contava. Cada cicatriz, um segredo. E eu queria aprender todos, mesmo os que doíam.
Ela deixava.
Sorria com os olhos semicerrados, o corpo exausto, satisfeito, ainda morno do nosso encontro. E quando eu murmurava bobagens, piadas sobre o vestido dourado, sobre o susto que ela levou quando a beijei perto da tapeçaria, sobre como ela gem* bonito quando tenta não gem*r, ela soltava um riso rouco e baixo, desses que nascem no fundo da garganta e arranham de tão reais.
Era tão raro vê-la assim.
Sem as muralhas, sem a armadura, sem o peso do mundo nos ombros.
Ali, entre lençóis bagunçados e promessas silenciosas, ela era só Varka.
E eu… eu estava feliz.
Não como quem encontra um trono ou escapa de uma guerra. Mas como quem encontra abrigo, um corpo que te aceita, uma respiração que te guia, uma presença que não exige explicações.
Ficamos assim por um tempo que nunca seria suficiente.
O silêncio não era desconfortável. Era denso, cheio de significados, costurado com respirações entrecortadas e beijos soltos no pescoço. A ponta do meu nariz deslizava pela clavícula dela, e sua mão, preguiçosa, traçava desenhos invisíveis na minha coxa.
Eu não queria sair dali.
Não queria lembrar dos conselhos, dos reis, da guerra e das obrigações.
Ali, com ela, eu era só corpo, só desejo, só alívio.
Até que os sinos tocaram.
Primeiro um. Depois outro.
O som invadiu o quarto com violência, como se nos arrancasse à força do que éramos. Ecoou por Valmont como um anúncio. Mudança. Chamada. Algo havia acontecido, ou estava prestes a acontecer.
O som dos sinos foi como um soco.
Ele não apenas quebrou o silêncio suave da manhã, ele nos arrancou à força do abrigo que havíamos criado entre lençóis amassados e toques preguiçosos. Como se gritasse que o tempo tinha acabado. Que a trégua era breve demais. Que o mundo, lá fora, exigia nossa presença.
Eu me ergui num salto, o coração disparado, e olhei para Varka. Seus olhos já estavam alertas, a expressão endurecida, os músculos tensos de novo. Ela vestiu-se com pressa, sem nem reclamar da dor nos ombros ou nas cicatrizes que ainda não tinham se curado por completo.
Eu fiz o mesmo, prendendo os cabelos com as mãos trêmulas, sentindo a roupa ainda cheirando a nós duas, tentando calçar as botas enquanto o coração martelava no peito. Ela abriu a porta primeiro. E eu fui atrás. Sempre atrás.
Descemos as escadas de pedra correndo, o som das vozes já enchendo os corredores. Criados gritavam ordens, armaduras tilintavam, crianças choravam em algum canto. O castelo inteiro se movia como um formigueiro invadido.
Nosso destino era o pátio da entrada. Foi ali que encontramos meu pai. Os olhos de Aldren estavam sombrios, o rosto marcado pela urgência. Ao lado dele, estavam meus irmãos, Corwin, tenso, com a mão já na espada; Alric, calado, olhando ao longe; Ragan, com o queixo erguido e o olhar fixo no horizonte.
E ali, ao centro, com a presença de um trovão: o rei Korgun.
Vestia couro escuro, os ombros largos cobertos por uma capa de pele. Seus olhos passaram por mim e por Varka.
(Korgun) — Valmont está sob ameaça — disse ele, a voz grossa e firme, dirigindo-se a filha. — Não sei se são os mesmos que ousaram tocar em Skarn… mas não seremos tomados de surpresa.
A multidão em volta silenciou.
(Aldren) — Organizem as defesas! — bradou, girando para os soldados. — Homens, comigo. Mulheres e crianças, para as câmaras subterrâneas. Elsera, Maeryn, vão com elas.
Eu travei. Olhei para ele. Meus olhos gritaram o que minha boca não ousou. Não me mande fugir. Não me mande deixá-la.
Ele desviou o olhar. E então falou baixo, apenas para mim:
(Aldren) — Vista-se com decência antes de ir. O povo já fala demais. Eu… não tenho tempo pra isso agora.
Aquilo me atingiu de um jeito estranho. Ele sabia. Sabia sobre mim e Varka. Sabia o que havia naqueles olhares trocados nos corredores, nas noites silenciosas. Mas naquele momento, a guerra era mais urgente do que a vergonha. Do que seu desgosto.
Elsera segurou minha mão com força. Ela também sabia. Sempre soube.
Eu olhei para Varka uma última vez.
Ela já havia pegado sua arma. Os cabelos ainda estavam soltos, a postura reta, os olhos fixos no horizonte, onde o perigo se formava. Ela não falou nada. Mas quando me encarou, eu soube. Soube que, dessa vez, ela lutaria por mim. Por nós. Pelo meu povo.
E isso doeu mais do que qualquer despedida.
Porque o que me preenchia não era orgulho. Era medo.
Medo de vê-la cair.
Medo de não ter tempo.
Medo de perder o que mal comecei a viver.
(Maeryn) — Varka… — sussurrei, mas ela já se afastava.
Fiquei ali por um segundo, lutando contra tudo dentro de mim, antes que Elsera me puxasse. Desci as escadas apressadas para as câmaras com o coração em pedaços. O som dos passos, das vozes, da correria, tudo parecia distante.
Cada batida dos meus pés no chão era uma prece muda para que ela voltasse.
Cada degrau que descia, um medo a mais.
As câmaras eram frias, apertadas, cheias de gente assustada. As esposas e filhos de Alric e Corwin já estavam ali também. Mas o único lugar onde eu queria estar era ao lado dela.
E enquanto o mundo lá fora se preparava para sangrar, eu fiquei ali…
Com o peito em guerra.
E o nome dela latejando em silêncio dentro de mim.
Lá embaixo, o tempo perdia a forma.
As paredes de pedra das câmaras pareciam nos engolir com seu frio úmido, com o cheiro de vela derretida, suor e medo. Estávamos todas ali, mulheres, crianças, alguns velhos, esperando, ouvindo, temendo.
O som vinha de cima.
Primeiro distante, abafado, como trovões indecisos no céu. Depois, mais perto.
Gritos.
Estrondos secos, rápidos, que reverberavam pelas pedras como batidas de tambor de guerra.
E então algo explodiu.
Não soubemos dizer o quê, se eram flechas com fogo, se era algum tipo de alçapão rompendo, se os deuses haviam cuspido sua ira, mas o chão tremeu sob nossos pés. Crianças choraram. Uma mulher rezava num canto. Elsera se agarrou a mim com tanta força que senti os ossos do braço latejarem.
Ela estava apavorada.
Aquela que sempre tivera a voz firme nos conselhos, a irmã que sabia o que dizer diante das pressões da corte, agora tremia feito folha. Seus olhos estavam cheios d’água, o peito arfava.
(Maeryn) — Ei… ei, olha pra mim — sussurrei, puxando seu rosto para o meu. — Vai passar. Já passou antes, lembra? Eu sobrevivi. Vamos sobreviver.
Mas no fundo, eu tremia também.
Porque em Skarn, eu era hóspede. Tão estranha quanto o perigo que a cercava.
Aqui… aqui era meu lar.
E era meu lar que tremia.
As horas se arrastaram.
Não sabíamos quanto tempo havia passado, não havia luz ali embaixo além das lamparinas que pendiam das paredes, lançando sombras trêmulas em nossos rostos.
As crianças dormiam nos colos das mães. As mulheres cochilavam com os olhos entreabertos, como se a qualquer instante pudessem ser acordadas por ferro e sangue.
Quando os passos dos guardas ecoaram pela escada, ergui a cabeça num sobressalto.
Eles não disseram muita coisa. Apenas que podíamos subir.
O perigo havia recuado.
Segurei a mão de Elsera e fomos.
Subir aquelas escadas foi como emergir de um pesadelo. Mas o que nos esperava no topo não era alívio. Era o rastro.
O ar do lado de fora estava pesado de fumaça e ferro. A noite já havia caído, e as tochas iluminavam um cenário que eu desejava nunca ter visto.
Os portões de Valmont estavam intactos. Mas os arredores…
As vilas mais próximas tinham ardido.
Podíamos ver, ao longe, as colunas de fumaça subindo no céu como dedos negros apontando para os deuses.
Corpos.
Alguns sendo carregados. Outros, cobertos.
Gritos de dor e lamentos cortavam o ar com mais força do que qualquer lâmina.
O chão estava manchado de vermelho.
Soldados sujos, ensanguentados, passavam por nós com o olhar perdido. Vi crianças correndo ao encontro de pais que mal podiam ficar de pé. Mulheres se jogando sobre maridos feridos. Velhos ajoelhados ao lado dos que não tiveram a mesma sorte.
E eu… eu procurava.
Meus olhos varriam cada rosto. Cada traço.
Meus irmãos? Meu pai? Ela?
Meu peito apertava mais a cada passo.
E se ela estivesse ali, caída?
E se eu nunca mais…?
(Maeryn) — Varka… — sussurrei. — Onde você está?
Elsera ainda estava ao meu lado, quieta, em choque, mas eu não conseguia mais pensar nela. Só via a lembrança do corpo dela tocando o meu naquela manhã. O riso. O calor. O silêncio. E agora… agora só restava a busca.
E o medo.
Sempre o medo.
Meus olhos varriam o caos como uma nau perdida no nevoeiro. Cada rosto que não era o dela aumentava a dor. Eu andava entre corpos feridos, entre vozes cortadas pela dor, entre os sons metálicos de armas recolhidas, armaduras desamarradas, lamentos contidos.
Encontrei meu pai primeiro.
O Rei Aldren estava coberto de fuligem, o rosto sério, mas inteiro. A expressão dele se desfez por um instante ao me ver, um meio aceno de cabeça, um toque breve no meu ombro como quem diz “está viva, está segura” sem palavras. Mas os olhos já voltavam ao que importava, as perdas, os números, os próximos passos.
Depois vi Corwin, com um corte no braço, a túnica rasgada. Alric, ileso, mas de olhos fundos, como se ainda estivesse lá fora, preso no que viu. Ragan conversava com um dos guerreiros da comitiva do seu pai próximo ao portão. Estavam todos vivos. Feridos, exaustos, diferentes, mas vivos.
Todos... menos ela.
Meu coração batia como um tambor de guerra, e, sem hesitar, me afastei deles. Atravessei o pátio ignorando os olhares, o sangue, as regras.
Não me importava mais com quem via.
Não me importava com o que pensavam.
Já tinha feito aquilo uma vez, e fui silenciada com escárnio. Mas agora era diferente.
Meus passos me levaram direto ao rei bárbaro.
Korgun se destacava como uma montanha. Ombros largos, barba encharcada de sangue e suor, os olhos faiscando com o fogo das batalhas recém-vencidas. Conversava com outros guerreiros em sua língua dura e antiga, mas quando me aproximei, ele me notou.
E sorriu.
Não como antes. Não com escárnio, não com aquele riso debochado de quem vê uma jovem fora de lugar. Dessa vez, havia algo quase… cúmplice em seus olhos.
(Korgun) — Princesa de Valmont… — ele disse, cruzando os braços diante do peito largo. — Perdeu minha filha de novo, foi isso?
O coração quase saltou pela boca.
(Maeryn) — Onde ela está? — minha voz saiu mais aguda do que eu gostaria. — Por favor… eu preciso vê-la.
Ele soltou uma gargalhada seca, não de zombaria, mas de quem entende mais do que diz. Olhou para mim com um brilho no olhar que me expôs inteira.
(Korgun) — Ah, Maeryn... — disse, ainda sorrindo. — Nunca vi um amor que não sabe se esconder. Ela está viva. Lutou como uma fera na linha de frente. Deve estar voltando…
E então eu a vi.
Entre os corpos, os destroços, o sangue e a fumaça…
Surgiu andando com a mesma força de sempre, mas com a roupa rasgada, o rosto sujo de lama e sangue, a pele manchada por pequenos cortes e hematomas. Os olhos ardiam, o peito subia e descia com esforço, e eu não sabia se o sangue que manchava suas mãos era dela ou dos outros, mas ela estava em pé.
Viva.
Inteira o bastante.
O mundo ao meu redor desapareceu.
Não esperei.
Não pedi permissão.
Corri.
Corri com o coração em chamas, com a alma na garganta, com os olhos marejando antes mesmo de chegar até ela. As armaduras batiam nas minhas pernas, as pessoas desviavam do meu caminho, e eu nem via mais nada além do corpo dela.
E então, me joguei.
O corpo dela recuou com o impacto, mas me acolheu.
Meus braços a envolveram com força, com fúria, com a urgência de quem quase perdeu tudo. E ali, contra o peito dela, desabei.
As lágrimas vieram. Quentes, silenciosas, indomáveis.
Molharam o sangue seco na pele dela, mancharam meu próprio rosto.
(Maeryn) — Ah Varka... Eu tive tanto medo... — murmurei, com a voz entrecortada.
Ela me segurava com força, uma das mãos no meio das minhas costas, a outra no meu cabelo, e sussurrou algo que não ouvi, mas não importava. Ela estava ali.
Eu soluçava, e sabia que todos olhavam.
Meu pai, os conselheiros, os soldados, o próprio rei bárbaro que agora observava em silêncio. Todos viram.
Mas pela primeira vez, eu não me importei.
Se aquilo os incomodava… que incomodasse.
Se murmurassem… que murmurassem.
Ela se afastou de mim devagar, como se o tempo ao nosso redor ainda tivesse gosto de urgência, mas os braços dela permaneciam ali, firmes em minha cintura, como raízes cravadas em terra instável. Seu rosto, sujo de fuligem e sangue seco, se aproximou do meu, e então ela sorriu.
Um sorriso pequeno. Quase imperceptível. Mas verdadeiro.
E naquele sorriso havia tudo o que eu precisava, um abrigo, um alívio, uma promessa muda de que ela voltaria sempre.
O caos ao nosso redor não cessava. Gritos de dor ainda cortavam o ar, ordens eram dadas em tom severo, guardas marchavam pelo pátio carregando corpos e recolhendo o que restava dos escudos partidos e lanças manchadas. O sangue tingia o chão de um vermelho escuro, quase negro sob a luz bruxuleante das tochas que começavam a ser acesas.
Meu pai foi o primeiro a se aproximar.
Aldren parou a poucos passos de nós. Olhava com uma expressão que não soube decifrar de imediato. Não era exatamente desaprovação. Era outra coisa, algo mais próximo de cansaço, ou talvez resignação. Como se estivesse cansado de lutar contra o que era inevitável.
Atrás dele vieram meus irmãos. Alric, sempre silencioso, olhou para mim por um instante e desviou o olhar, respeitoso. Corwin arqueou uma sobrancelha com um sorriso enviesado, aquele típico de quem não perde a oportunidade de provocar.
(Corwin) — Pai… — disse ele com o tom mais insolente que conseguiu encontrar. — Vai ter que celebrar outro casamento, pelo visto. O último foi perda de tempo.
A frase caiu como uma pedra no meio da roda.
Meu pai fechou os olhos por um breve segundo. E engoliu seco. Não respondeu.
O silêncio que veio depois foi quase mais eloquente do que qualquer grito. Ele apenas virou o rosto e deixou que os ombros afundassem um pouco mais. Parecia mais cansado do que jamais o vi. Não havia mais espaço para lutas pequenas.
Ragan e o rei Korgun também se aproximaram. O bárbaro observava tudo com aquele ar de quem assiste ao desenrolar de uma história que já conhecia o fim. Quando passou por mim e por Varka, murmurou algo em sua língua, e Varka respondeu com um gesto breve de cabeça.
Eles se dispersaram aos poucos.
Um a um, foram seguindo em direções distintas, para cuidar dos feridos, para reorganizar os postos de guarda, para carregar os corpos dos caídos. O mundo seguia. Mesmo ferido. Mesmo de luto.
E ali ficamos.
Sozinhas, por um instante precioso.
O sangue havia manchado minha roupa, minha pele, meus braços. Eu sentia o calor daquela batalha impregnado em mim. Não sabia se aquele sangue era dela ou de outros, e temer isso me doía por dentro. O cheiro era metálico e doce, ao mesmo tempo repulsivo e íntimo. Mas mesmo assim, eu queria abraçá-la de novo. Queria esconder meu rosto em seu pescoço, queria esquecer que o mundo existia.
Queria beijá-la.
Ali mesmo.
Com todos os olhos.
Com todo o medo.
Mas Varka era feita de urgência e instinto. E naquele momento, seu instinto dizia que ainda não estávamos seguras.
Ela tocou meu rosto com a mão suja, sujando minha pele sem cerimônia, e me beijou a testa. Um beijo lento. Quente.
Quase um pedido de desculpas por me afastar.
Quase um lembrete de que o amor pode ser feroz… e paciente.
Ela me encarou, com a mesma rigidez de antes. Mas não com a pressa de quem foge do olhar dos outros ou do toque do que sente. Varka se aproximou em silêncio e, sem dizer nada, envolveu meus ombros com seu braço, me puxando para perto, como quem precisa ter certeza de que ainda estou ali, e eu estava.
O peso do corpo dela era real. O calor também. Sua presença me envolvia como uma couraça invisível, e por um instante, mesmo com o sangue, a dor, o cheiro de morte ainda impregnado no ar, me senti protegida.
Seguimos juntas pelos corredores do castelo, entre criados apressados, soldados carregando mantimentos, conselheiros murmurando planos em cantos escuros. Havia mapas abertos em mesas improvisadas, comandantes discutindo rotas, reforços, perdas. O som era de guerra, mas não mais no campo. A guerra agora vivia entre as pedras do castelo, infiltrada nos passos apressados, nos olhos arregalados de cada rosto que cruzávamos.
Ninguém nos deteve.
Talvez por respeito. Talvez por medo.
Talvez porque naquele momento já não houvesse força maior do que a nossa união.
Varka apertava meu ombro de vez em quando. Um gesto pequeno, quase imperceptível, mas que dizia tudo: Estou aqui. Ainda estou aqui.
E eu queria dizer o mesmo.
Queria tatuar isso na pele dela, entre as cicatrizes que se acumulavam.
Entramos em meu quarto sem trocar uma palavra.
A porta se fechou, abafando os sons do mundo lá fora. O silêncio que restou era outro, mais íntimo, mais denso, mais terno. A luz da lareira ainda acesa lançava sombras quentes nas paredes, e por um instante tudo pareceu tão normal… tão distante do horror de horas atrás.
Mas ela estava suja.
Coberta de sangue.
E ferida.
(Maeryn) — Sente-se. — pedi, com a voz baixa, firme, como quem já sabe que não haverá objeção.
Varka apenas assentiu. Caminhou até o banco próximo ao lavatório e começou a desamarrar parte da armadura leve que ainda usava, mas as mãos tremiam, e os ferimentos se revelavam a cada gesto. Havia cortes não tão profundos na lateral do abdômen, uma rachadura escura na coxa esquerda, marcas roxas subindo pelo flanco. Um dos ombros estava inchado, avermelhado, e ela parecia fazer esforço para manter a postura.
Meu estômago se revirou.
(Maeryn) — Por que não disse nada? — perguntei, me ajoelhando à sua frente enquanto pegava as faixas limpas e o balde de água morna.
Ela deu um meio sorriso, cansado, os olhos já desfocados.
(Varka) — O importante era o reino estar a salvo. Porque assim você também estaria…
As palavras bateram fundo.
E doeram.
Porque era verdade.
Mas agora, ali, vê-la daquele jeito me feria mais do que o medo de tê-la perdido.
Comecei a limpar os ferimentos com todo o cuidado que o mundo ainda me permitia. Ela tremia a cada toque, rangia os dentes quando o pano úmido roçava alguma ferida mais sensível, mas não recuava. Só me olhava, com aqueles olhos intensos, onde havia exaustão, dor… e algo mais.
Algo que parecia dizer: Você é o que me resta.
Eu lavei cada pedaço de pele manchada, enfaixei os cortes, beijei a pele ao redor de cada machucado como quem pede perdão por não ter estado ao lado dela na linha de frente.
E no fundo, uma parte de mim sabia:
Eu também estava ferida.
Mas eram feridas invisíveis, feitas de medo e amor, de desejo e ausência.
E nenhuma delas podia ser enfaixada.
Quando terminei, ela estava exausta.
A respiração lenta, o corpo largado na cadeira, a cabeça apoiada na borda da parede.
Aproximei-me devagar. Meus dedos tocaram seu queixo, ergueram seu rosto suado.
Ela abriu os olhos.
E neles ainda havia guerra.
(Maeryn) — Agora você descansa, — murmurei, com a voz embargada.
(Varka) — E amanhã… — Varka sussurrou de volta. — Amanhã eu continuo por você.
Abracei-a ali mesmo.
E não soltei.
Varka
O sol já tocava as pedras altas das muralhas quando abri os olhos naquela manhã. A luz era suave, e o quarto estava mergulhado num silêncio espesso, não o silêncio da solidão, mas aquele cheio de presença.
Maeryn estava ali.
Deitada ao meu lado, ainda desperta, com os olhos atentos e as feições serenas, como se tivesse passado a noite velando meu sono. Não disse nada quando me mexi, apenas estendeu a mão e tocou meu rosto com ternura. Não era a primeira vez que eu acordava com ela perto, mas havia algo diferente naquela manhã. Talvez fosse o alívio. A certeza de que, depois da tormenta, ainda estávamos aqui.
Nos levantamos cedo. Ela me ajudou a vestir a túnica limpa, a prender os curativos nos lugares certos, e mesmo que meu orgulho resistisse, não tive forças para recusar. Os ferimentos ainda doíam, mas nada como os que carreguei em Skarn. Aquelas marcas haviam rasgado o corpo e a alma. Agora era só carne cicatrizando, e ao lado dela, até isso parecia mais suportável.
Descemos juntas até o salão principal. Os corredores já fervilhavam com movimento, ecos de passos apressados, vozes trocando ordens, o cheiro do pão recém-saído dos fornos se misturando ao ferro das espadas e ao incenso fraco queimado nas capelas.
O salão estava cheio.
E, para minha surpresa, não era uma desordem de pânico, mas de estratégia. Todos estavam reunidos em torno da mesa principal. Meu pai, Korgun, estava inclinado sobre um mapa, os cabelos presos com pressa, as mãos marcando rotas, cidades, alianças antigas. Ao lado dele, o rei Aldren. Sim, Aldren, ouvindo.
Inacreditavelmente ouvindo.
Não falava muito, mas prestava atenção. Os olhos, antes arrogantes e duros, agora pareciam mais cansados, mais atentos. Como se, enfim, tivesse entendido que o mundo estava desmoronando ao redor de todos nós e que já não havia espaço para orgulho.
Alric falava com segurança, apontando pontos nas margens dos mapas. Corwin, mesmo zombeteiro, parecia mais sério. Teyrion mantinha os braços cruzados, calado, mas presente. Ragan, até Ragan, discutia ao lado deles, como se aquela fosse uma batalha que também lhe pertencesse.
Foi então que entramos.
Todos voltaram os olhos para nós, e por um instante breve, o burburinho cessou. Meus passos estavam firmes, ainda que um pouco lentos pela dor. Maeryn vinha ao meu lado, com a cabeça erguida, os cabelos presos com elegância simples, a postura altiva.
E meu pai… sorriu.
Não com o escárnio de um rei vendo sua filha em meio à política de outros reinos. Não com ironia.
Mas com orgulho.
Orgulho de quem vê uma guerreira retornar viva. Orgulho de quem entende, mesmo sem concordar.
Aldren não sorriu. Mas também não franziu o cenho.
Seu olhar passou por mim e repousou um segundo mais longo sobre Maeryn. Não havia raiva ali. Nem desprezo. Apenas cansaço. Talvez um reconhecimento mudo do que já não podia ser evitado.
Fomos chamadas até a mesa.
Nos sentamos ao lado deles. Alguém nos serviu pão quente, frutas cortadas, vinho fraco. Eu comia devagar, ainda sentindo o corpo recuperar o peso da noite anterior. Maeryn partilhava a comida comigo em silêncio, os olhos atentos às falas dos outros, as mãos às vezes tocando minha perna discretamente sob a mesa, um gesto que ninguém via, mas que me ancorava.
Participamos da conversa, sim. Meu pai nos incluía, e, de forma surpreendente, até Aldren permitia. Ele ouvia minhas observações, ponderava as ideias de Maeryn sem desmerecê-las. Ninguém ousava rir. O clima era sério. O reino ferido.
Falamos de vigilância reforçada nos portões, dos vilarejos atacados, das possibilidades de retorno do inimigo. De alianças forjadas às pressas, de exércitos movendo-se nas sombras, de traições possíveis, sempre possíveis.
E ali, no meio de homens poderosos, de mapas riscados e planos traçados com urgência, eu não era só filha do bárbaro.
Ela não era só filha do rei de Valmont.
Nós éramos peças ativas.
Aliadas.
Força.
E mesmo que o mundo nos odiasse por isso, mesmo que nossos nomes ainda fossem sussurrados com desdém, estávamos ali. De pé. Unidas.
E naquele salão cheio de feridas abertas, era isso que me dava mais força do que qualquer espada.
Dessa vez, estaríamos prontos.
Não haveria mais surpresas. Nem correrias pelos corredores, nem mulheres escondidas em câmaras sob a pedra. Não permitiríamos que nossos inimigos ditassem o medo. E por mais que meus músculos doessem, por mais que as marcas das últimas lutas ainda queimassem sob a pele, meu corpo se movia com um único impulso: proteger o que era meu. Maeryn, seu povo, Skarn, Valmont, agora tudo se misturava dentro de mim como se sempre tivesse sido uma coisa só.
Meu pai foi o primeiro a falar com convicção.
(Korgun) — Eles vão voltar. — Ele se ergueu, a voz preenchendo o salão como se chamasse todos os deuses para escutá-lo. — E dessa vez, encontrarão ferro e morte esperando por eles.
Foi ele quem sugeriu as armadilhas.
Não só valas comuns, mas armadilhas bárbaras, velhas como as guerras do Norte. Poços falsos cobertos com toras leves, com lanças afiadas no fundo. Redes de cordas e correntes ocultas nas árvores próximas ao portão oeste, para derrubar cavaleiros e esmagar os primeiros que ousassem passar. Óleo fervendo sendo preparado nas cozinhas para ser despejado dos parapeitos, ao lado de barris de piche.
(Korgun) — Fogo. Sempre fogo. Queimar é mais eficaz do que espadas às vezes.
Aldren, para minha surpresa, não recusou nada. Não apenas concordou, ofereceu os recursos.
(Aldren) — Temos ferreiros, temos pedra, temos madeira e braços. Não falta nada. Só vontade.
E, naquele dia, Valmont teve vontade.
Os homens correram como formigas num ninho agitado. Jovens e velhos, soldados e criados, cada um encontrou algo para fazer. Os ferreiros bateram martelos sem descanso, moldando lanças, reforçando portões. As mulheres, inclusive Elsera, carregavam água, costuravam faixas, cozinhavam suprimentos. Eu vi Maeryn amarrando cordas, suja de poeira e suor, com os cabelos presos de qualquer jeito e os olhos vivos, atentos, como se estivesse de volta às suas aulas de combate.
Ela era filha de um rei, mas ali, parecia mais uma de nós.
Ragan e Alric organizaram as patrulhas de vigia nas muralhas, homens se revezando de três em três horas. Teyrion e Corwin supervisionaram os arcos que foram posicionados nos telhados, com flechas especiais feitas com pontas grossas, capazes de atravessar couro duro e talvez até aquelas bestas de ferro que os inimigos traziam com eles.
Nos campos ao redor do castelo, criamos linhas de obstáculos com estacas fincadas no solo, cobertas por folhas, voltadas com a ponta para o inimigo. Crianças levaram as mensagens. Velhos afiavam lâminas enferrujadas, uns com orgulho, outros apenas com medo.
E eu...
Eu liderei os que queriam aprender a lutar.
Juntei um grupo de jovens, homens e mulheres, alguns até tremendo e mostrei como segurar uma lança, como não vacilar quando a flecha corta o ar. Os olhos arregalados no começo, as mãos trêmulas. Mas aos poucos, o medo virou garra. A ameaça, propósito.
Durante a tarde, no meio daquele caos controlado, parei por um instante.
Subi a muralha principal. O vento soprava forte ali em cima, e pude ver ao longe os campos pisoteados da noite anterior. Restos de carroças queimadas, manchas escuras na grama. O inimigo não tinha avançado. Recuaram. Mas estavam perto.
Eu sabia.
A noite viria. Com ela, talvez eles também. Mas agora, teriam que pisar sobre ferro, fogo e sangue se quisessem alcançar Valmont.
E dessa vez, não fugiriam vivos.
Maeryn se aproximou quando o sol começou a baixar. Trazia nas mãos um cantil e um pedaço de pão. Suas mãos estavam sujas, os olhos cansados. E mesmo assim... bela.
(Maeryn) — Você devia descansar.
(Varka) — Descanso depois.
Ela não insistiu. Só ficou ali comigo, o olhar voltado para o horizonte. Nós duas lado a lado sobre a muralha.
E por um breve instante, entre um trovão distante e o canto triste de um corvo ao longe, senti que tudo estava exatamente onde deveria estar.
A noite caiu como uma sentença.
O céu estava limpo demais, silencioso demais. Senti quando o ar mudou, denso, pesado, como se o próprio mundo contivesse a respiração. Maeryn me abraçou com força. A luz da tocha mais próxima dançava nos olhos dela, refletindo tudo que ainda não dissemos. Beijei sua testa, toquei seu rosto como quem molda algo que quer gravar na pele para sempre.
A deixei com a irmã e as cunhadas, sabíamos que logo atacariam e precisávamos estar preparados.
Desci até os portões. As muralhas de Valmont estavam escuras, os arqueiros já em posição. Meu pai me esperava de pé, espada cravada no chão, olhos como gelo em brasa. Meus irmãos ajeitavam armaduras improvisadas, os escudos de Skarn reluzindo sob a luz fria da lua. Homens da minha terra, ombro a ombro com soldados de Valmont. Bárbaros, como eles chamavam. Guerreiros, como somos.
Dessa vez os sinos não ecoaram, sabíamos que eles estavam chegando e não precisávamos alertar ninguém.
O som das primeiras catapultas ecoou no vale como trovão. O chão tremeu sob os nossos pés. A pedra explodiu contra as torres leste. Gritos. Poeira. Começou.
(Korgun) — Espalhem-se! — gritou. — Armadilhas no ponto! Aguentem o primeiro impacto!
O inimigo veio como enxame de gafanhotos, fileiras de soldados negros, armaduras opacas, bandeiras rasgadas pelo vento. A infantaria deles marchava certeira, pesada. Mas não conheciam o chão que pisavam.
As armadilhas que passamos o dia cavando estavam camufladas por galhos e pelas folhas molhadas. A primeira fileira caiu em estacas cobertas de óleo. O segundo grupo não teve tempo de recuar, foram empurrados para dentro. Gritos cortaram o escuro. Ossos quebrando, carne perfurada.
(Korgun) — Agora! — urrou, erguendo a mão.
As redes com pesos se soltaram das árvores laterais, esmagando os que tentavam sair das covas. Rochas rolaram da encosta, atingindo os flancos do exército. E então, fogo. O óleo espalhado pelos arbustos acendeu quando Ragan disparou a flecha incendiária. Labaredas lamberam o chão, os corpos, as árvores secas. Era um inferno orquestrado.
Aldren estava nas muralhas. Vi seu rosto ao longe. Ele observava sem conseguir esconder a surpresa, ou o horror. Viu o povo que chamava de bárbaro lutar com fúria e estratégia. Viu meu pai abrir caminho entre os inimigos como uma besta solta, machado em cada mão. Viu meu irmão atravessar o peito de um cavaleiro e gritar em skarni uma prece de guerra.
As catapultas inimigas rugiram de novo. Uma pedra atingiu a muralha norte, abrindo um buraco e levando soldados com ela. Gritos. Pedaços. Sangue escorrendo pelas frestas. Mas resistimos. Por cada brecha, selamos com nossos corpos, com gritos, com metal.
Avançamos. As armadilhas estavam se esgotando. Era hora do confronto direto. Corri pela lateral, cortando pelas pedras que conhecia desde o primeiro dia naquele vale. Os cavaleiros deles vinham velozes, tentando flanquear, mas nossos escudeiros estavam prontos. Usaram lanças com pontas múltiplas, feitas por ferreiros de Skarn. Cavalo após cavalo tombou. Os que passaram foram puxados das selas por cordas entrelaçadas nas árvores. Gritavam em pânico.
Encontrei o comandante deles. Estava cercado de protetores, capa negra, elmo também. Desci sobre eles como tempestade. Três espadas vieram contra mim, aparo, giro, cortei uma garganta, rompi a lateral da armadura do outro. O sangue me cegava, escorria pela bochecha. Senti uma lança atravessar de raspão minha coxa. Rasguei a cara do que a segurava.
O comandante recuou.
(Varka) — Isso tudo que tem? — cuspi.
Ele tentou golpear. Desviei e cravei minha espada abaixo das costelas dele. Olhei nos olhos dele enquanto sangrava. Ele tentou dizer algo, engasgou em sangue. Deixei o corpo cair.
Quando ergui o olhar, vi Aldren de novo. Parado. Vendo os corpos. Vendo o sangue. Vendo meu povo protegendo o dele, enquanto seus cavaleiros hesitavam, atrasados, lentos, comandados por nós.
As catapultas pararam. Silêncio. A linha inimiga começava a se romper. Fogo lambia o campo, nossos arqueiros disparavam flechas flamejantes sobre os poucos que ainda tentavam resistir. Vi soldados deles recuando. Um grupo tentando fugir pelas colinas, mas estavam cercados. Meus irmãos de Skarn tinham tomado os flancos e cortavam a retirada.
Eles recuaram. Arderam. Morreram.
E quando o último caiu, a fumaça subiu alta no céu como o fôlego de um deus cansado. Eu estava coberta de sangue, do inimigo, do meu, do solo. A respiração saía rasgando. Mas estávamos de pé.
Maeryn…
Ela estaria ouvio de algum lugar. Saberia que resistimos. Saberia que voltarei.
E Aldren… agora ele sabia também.
Sabia de quem realmente vinha a força que mantinha Valmont de pé.
O dia nasceu sob um manto de fumaça.
Um sol pálido e hesitante esgueirava-se entre os galhos chamuscados e as nuvens de fuligem, como se temesse testemunhar o que fizemos na noite anterior. O ar ainda tinha gosto de ferro e cinzas, e a terra, embebida em sangue, soltava vapor quente como um animal ferido tentando respirar.
Estávamos de pé.
Não todos. Mas os nossos. Os que importavam.
Andei por entre os corpos como quem atravessa uma colheita final. Os de Valmont recolhiam seus feridos com mãos calejadas, chamando nomes, puxando corpos, cobrindo os olhos dos que não voltariam.
Os outros… os inimigos caídos… esses recebiam lanças curtas enfiadas direto no peito, ou na garganta, se ainda respiravam.
(Ragan) — Eles não vão voltar pra contar o que viram — disse meu irmão Ragan, com a calma de quem fala do clima.
Ao lado dele, Corwin, o maldito e amado Corwin, cantarolava alto uma canção de guerra de Skarn, rindo entre os versos como um lobo uivando ao amanhecer. Nem parecia um príncipe de Valmont.
(Corwin) — No lombo da morte montamos, sem rédea, sem freio, sem freio…
— Pisamos as cinzas dos fracos, rindo, cuspindo no meio!
Ele girava sua espada nos dedos, manchada de sangue até o punho, e chutava os corpos para testarem se ainda viviam. Quando um se moveu, ele apenas cravou a lâmina e seguiu cantando. Ragan gargalhou, bateu no ombro dele, e os dois riram como se fosse um banquete de casamento, não um campo de batalha encharcado em dor.
Meu pai veio andando em meio aos destroços, as botas espirrando lama e vísceras. O escudo pendia nas costas, a barba ainda suja com sangue seco. Tinha o sorriso mais sujo e satisfeito que já vi nele.
(Korgun) — Ei, filho da puta! — gritou para um dos feridos do inimigo que tentava rastejar. — Deixa eu ver se tu gem* igual tua mãe quando enterro minha espada nas tuas entranhas?
E riu alto. Um riso gutural, sem vergonha, carregado de um orgulho primitivo. Depois virou para os nossos e bradou.
(Korgun) — Vivos! Quero vivos! Uns cinco, seis no máximo! Vamos perguntar quem os mandou, onde cagam, onde fodem, quem pagou.
Dois dos nossos imediatamente começaram a recolher prisioneiros. Um deles gritou por socorro, e em troca levou o cabo de um machado no rosto. Desmaiou com um estalo.
(Korgun) — Esse é bom. Vai cantar, esse aí canta até de joelhos — disse meu pai, cuspindo no chão e passando por mim com um aceno.
Eu respirei fundo.
Minhas pernas estavam exaustas, mas não tremiam. Meu braço doía, um corte do ombro até o antebraço, mas raso. O sangue já tinha parado. A dor era só mais uma lembrança de que eu sobrevivi.
E então vi Aldren.
Ele vinha devagar, contornando os corpos. O rosto dele não escondia a surpresa e não era mais o tipo que vem com desdém. Era respeito. Ou medo. Ou os dois. Suas botas sujas, sua capa arrastando na lama. Parou a uns passos de mim.
(Aldren) — Foi um massacre — murmurou.
Assenti.
(Varka) — Foi uma lição.
Ele me encarou. Queria dizer algo. Mas então viu, mais atrás, nossos povos sorrindo, rindo. Corwin de pé em cima de um cadáver, erguendo a espada para o céu como se agradecesse aos deuses. Teyrion e Alric vinham logo atrás dele, o primeiro com olhos cheios de orgulho, o segundo radiante, com o rosto ainda sujo de fuligem. Abraçado ao meu irmão Ragan, seu novo cunhado.
(Aldren) — Inacreditável — ouvi Aldren murmurar.
(Varka) — Que vencemos? — perguntei.
(Aldren) — Não sei se teríamos vencido sem vocês, as ideias…
(Varka) — Gostando ou não. Somos um povo só agora— Falei firme.
Alric veio me abraçar. Suava, ria, segurava um odre de vinho roubado dos inimigos. Teyrion se aproximou com um olhar de quem estava impressionado e um pouco assustado também.
(Teyrion) — Vocês lutaram como se tivessem nascido para isso.
(Varka) — Nascemos. — respondi. — Só não éramos bem-vindos à sua guerra até agora.
Teyrion assentiu. Sem réplica. Era um homem esperto.
Corwin passou por nós arrastando dois escudos e uma lança.
(Corwin) — Esses malditos não sabiam com quem estavam lidando! — gritou. — Que mandem mais, que mandem todos! Vou empilhar os corpos até alcançar o topo da muralha!
Ragan gargalhava ao lado, tomando um gole de vinho e passando a garrafa pra mim. Bebi. Ardeu. A fumaça da manhã se espalhava, os gritos de dor já começavam a se calar.
Era vitória.
Crua, sangrenta, imoral. Mas vitória.
O cheiro de carne queimada ainda pairava no ar. Os galhos quebrados, os corpos, as armas quebradas. O campo de batalha era um mapa de destruição. Mas no meio daquilo, os nossos estavam vivos. Sorrindo. Bebendo. Limpando as armas. Como se a guerra fosse só mais um jogo.
Meu pai passou novamente.
(Korgun) — Quem pegar mais dois prisioneiros vivos, ganha o direito de escolher o primeiro vinho da noite! — bradou. — E se forem espertos, pegam também as botas deles, que são boas!
Encarou o rei Aldren com aquele sorriso sarcástico.
(Korgun) — Estou certo ou não rei? — Aldren esboçou um pequeno sorriso e assentiu arrancando uma gargalhada do meu pai.
Risos. Gritos de aprovação. Um dos nossos, ensanguentado até o pescoço, ergueu a mão com uma cabeça decapitada.
(Guerreiro) — Essa vale meia garrafa?
Mais gargalhadas.
Até mesmo Aldren sorriu, incrédulo.
Olhei para o horizonte. O sol estava subindo, lentamente, abrindo caminho entre as nuvens. Os pássaros ainda não voltaram. Nem o silêncio. O mundo ainda latej*v* com a memória da violência.
Mas dentro de mim…
Havia uma calma estranha.
Era como respirar depois de se afogar.
Como lembrar que você é viva.
Que pode matar.
E vencer.
(Varka) — Hoje… — murmurei.
— Hoje os deuses estavam do nosso lado.
Ragan me ouviu e sorriu.
(Ragan) — Os deuses não. Eles não se envolvem nas guerras dos homens…
(Varka) — Então quem?
Ele apontou para os homens, Skarn e Valmont.
(Ragan) — Nós. Juntos, como um povo só…
Sim.
Era isso.
Nós vencemos.
E se voltassem…
Nós os mataríamos de novo.
Fim do capítulo
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