Capitulo 12
Maeryn
A noite foi um caos.
Não pelas guerras distantes, não pelos conselhos ou alianças prestes a ruir, mas porque eu estava em casa e, ainda assim, completamente em desassossego.
Era o silêncio dos corredores que me sufocava. O calor da minha cama, tão diferente do frio da fortaleza de Skarn. Estava cercada por conforto, por muralhas seguras e rostos familiares… e, no entanto, não conseguia fechar os olhos sem sentir o gosto do medo na boca.
Medo da guerra chegar até nós.
Medo de que Skarn caia.
Medo de vê-la morrer.
Medo do que sinto.
Medo de alguém descobrir.
Medo. Medo. Medo.
A palavra ecoava dentro de mim como um sussurro contínuo. Tentava apagá-la com a razão, mas era inútil. O que me inquietava não era apenas a guerra, era ela. Varka.
A lembrança dos olhos dela turvos de dor e raiva.
A lembrança do toque, da respiração quente entre as minhas mãos.
O modo como me puxava mesmo quando tentava se afastar.
E, sobretudo, o que aquilo significava para mim. O que faria comigo. Com tudo que sou.
O dia amanheceu com uma luz pálida pelas janelas da torre leste. Vesti-me sem pressa, mas sem hesitação. A casa começava a se mover, criados correndo, portas abrindo, a rotina voltando como se tudo estivesse em ordem. Eu sabia que não estava.
O salão do desjejum já estava com quase todos à mesa. Meu pai se sentava em sua posição habitual, mas os olhos estavam perdidos além do pão e do vinho. Havia um peso em seu semblante, não a preocupação de um rei apenas, mas de um homem à beira de uma decisão que poderia custar vidas. Corwin cochichava com um dos guardas, e Teyrion mal tocava a comida.
Foi Elsera quem me chamou a atenção. Estava mais arrumada do que o necessário para o café da manhã, e seu olhar voava com frequência até Ragan, que comia em silêncio, o rosto marcado, os ombros ainda tensos. Ela o observava com algo que eu conhecia bem demais: um misto de admiração e fascínio perigoso. Franzi o cenho. Não era de se estranhar, mas ainda assim me inquietava.
Mas não era deles que eu queria saber.
Procurei por Varka entre os rostos e vozes. Não a vi.
Ninguém mencionava seu nome.
Perguntei discretamente a um criado e ele disse que a viram no quarto, depois do tratamento das curandeiras, mas ninguém mais entrou.
A inquietação que me corroía durante a noite tornou-se urgência.
Levantei-me depois do desjejum, fingindo uma razão qualquer, e fui direto para o andar onde haviam preparado um quarto para ela. A cada degrau, meu coração batia mais forte. Eu precisava vê-la. Precisava saber se ainda respirava, se ainda era ela sob tudo aquilo que a guerra nos deixou.
Mas antes que pudesse bater à porta, meu pai surgiu no corredor.
(Aldren) — Maeryn.
A voz dele me fez parar, enrijecer. Era autoritária, mas havia veneno ali, e algo pior: julgamento.
(Maeryn) — Pai — respondi, tentando manter a compostura, o rosto neutro.
Ele se aproximou devagar. As mãos cruzadas atrás das costas, como sempre fazia quando estava prestes a dizer algo que doía.
(Aldren) — Vai visitá-la? — perguntou.
(Maeryn) — Sim. Ela ainda se recupera — disse, firme. — Passou dias em batalha, protegendo o seu povo, nosso tratado. A mim. Acho que ela merece uma visita.
(Aldren) — E o que mais ela merece, Maeryn? — O tom dele mudou. Era afiado. — Tem andado próxima demais dessa mulher. Próxima... demais.
Engoli em seco. O sangue subiu ao rosto, mas não desviei os olhos.
(Maeryn) — Ela salvou minha vida. Dezenas de vezes. Salvou a do Teyrion.
(Aldren) — Não estou falando de honra no campo de batalha — ele rosnou. — Estou falando do que vi. Do que ouvi. Do que todos veem, mesmo quando você acha que estão cegos.
(Maeryn) — Está insinuando o quê? — perguntei, mais por desafio do que por dúvida.
(Aldren) — Que há algo errado entre vocês. Sujo. Que você esqueceu quem é. O que representa. — Ele se aproximou mais, e a raiva em seus olhos me atingiu como um tapa. — Você é uma princesa de Valmont. Você será um pilar desta aliança. E está se deixando corromper por uma bárbara que nem sequer sabe se vai amanhecer viva.
As palavras dele me atingiram em cheio. Senti o corpo inteiro enrijecer, como se minha espinha fosse feita de aço. O nojo na voz dele, o modo como disse bárbara, como se fosse sinônimo de maldição, de doença.
Engoli tudo. A vergonha. A dor. A vontade de gritar.
(Maeryn) — Então é isso? — murmurei. — Toda a lealdade, toda a dor, tudo o que ela fez por nós... e tudo o que eu fiz... se apagam porque te incomoda quem ela é? Ou o que eu possa sentir?
Ele me encarou por um instante. Vi nos olhos dele a resposta antes que fosse dita: sim.
(Aldren) — Estou avisando. Você vai perder mais do que o respeito da corte.
(Maeryn) — O que eu perderia pai?
Ele me encarou com os olhos transbordando de raiva.
(Aldren) — Não há nenhuma aliança ou promessa de paz que me obrigue a aceitar essa sujeira. Se isso continuar eu a mato ali mesmo. A honra de um rei é mais importante que a paz.
Sua voz ecoou pelos corredores enquanto se afastava, e eu fiquei ali, remoendo a raiva e o medo.
A dor latej*v* em mim, como uma ferida recém-aberta. A cada passo que me afastava do quarto onde Varka estava, sentia o gosto metálico da impotência na boca. Eu, que tanto suportara em silêncio, que guardara luto por dentro, que sangrara por esse reino... agora era ameaçada pelo próprio pai. E pela primeira vez, temi de verdade por Varka.
Aquelas palavras dele se repetiam na minha mente, dilacerando minha vontade. "Se isso continuar, eu a mato ali mesmo." Não havia dúvida. Ele não blefava.
Então eu fugi.
Não literalmente, não do castelo, nem das minhas obrigações, mas fugi dela. Meus passos me levavam aos corredores opostos. Evitava os jardins, onde ela às vezes sentava com o sol ferindo sua pele ainda marcada. Evitava o pátio de treino, a torre dos curandeiros, até mesmo a ala leste, onde ela ficava durante a tarde. E quando nossos olhares se cruzavam de longe, porque cruzavam, inevitavelmente, eu desviava. Por ela.
Porque não suportaria vê-la ferida de novo. Porque não podia dar a ele mais um motivo.
As noites viraram aço. Dormia pouco, e quando dormia, sonhava com sangue, com ela caída, com meu pai de espada em punho. Acordava com o peito apertado, as mãos trêmulas, o nome dela preso na garganta.
Varka me olhava como quem busca um fantasma. Um reflexo de algo que já teve e não compreendia mais. Nunca me chamou. Nunca me cobrou. Mas seu olhar era mais cruel que qualquer palavra.
E o tempo passou.
Semanas, talvez mais. Os corredores voltaram a se encher de movimento. Conselheiros, soldados, sussurros sobre as fronteiras. A ameaça de guerra pendia como uma lâmina suspensa. Mas Skarn resistia. Os corvos chegavam com notícias: três investidas repelidas, os inimigos recuando, reorganizando-se. Era um alívio, mas breve. A tensão não cessava, como se todos estivéssemos prendendo o fôlego.
Foi numa dessas manhãs pálidas, sem sol, que Alric me encontrou.
Ele sempre soube quando algo não ia bem comigo. Havia algo nos olhos dele, não só inteligência, mas uma bondade rara. Um tipo de ternura silenciosa, que o tornava perigoso de outro jeito.
(Alric) — Vai continuar me evitando também, irmã? Ou só ela merece isso?
Estávamos no terraço alto, o vento nos cabelos, a cidade abaixo silenciosa. Não respondi de imediato. Olhei para as muralhas, para os telhados cinzentos.
(Maeryn) — Eu não posso...
(Alric) — Porque tem medo do que sente ou porque tem medo dela?
Fechei os olhos. A pergunta pesou mais do que deveria. Tentei respirar fundo, mas falhei.
(Maeryn) — Porque se eu chegar perto dela de novo, pai cumpre o que prometeu.
Ele não reagiu logo. Apenas passou a mão pelo rosto, cansado.
(Alric) — Nosso pai não seria tão tolo. Ele não arriscaria uma guerra contra Skarn.
(Maeryn) — Talvez com Skarn já enfraquecida... Isso o encoraje.
(Alric) — Eu não permitiria isso.
O silêncio que seguiu foi tenso. Eu não sabia o que pensar.
(Alric) — Acha que ela entende isso?
Assenti, com um nó na garganta.
(Maeryn) — Ela precisa entender. Eu não conseguiria vê-la morrer... por minha causa.
Alric pousou a mão no meu ombro. E, por um instante, fomos só dois irmãos em meio ao caos. Dois pedaços da mesma história, tentando não desmoronar.
(Alric) — Isso não vai durar pra sempre. E quando o tempo passar, você vai ter que escolher... Ela ou o reino.
Quando ele foi embora, fiquei ali por muito tempo, com os olhos fechados contra o vento. Sabendo que ele estava certo. Mas sem forças para fazer algo diferente.
Mais um dia que amanheceu pálido, como se o sol também estivesse cansado de tudo. Mais uma noite mal dormida, os lençóis embolados ao meu lado, o travesseiro ainda guardando o lugar de alguém que já não vinha. Varka não apareceu para o desjejum. Já fazia dias. Evitava o salão, evitava os olhos dos outros. Evitava a mim. Sabia o motivo. Ela podia ser muitas coisas, mas tola nunca foi. Se eu a evitava, ela recuava, como sempre fez, afinal. Varka nunca forçou a presença onde não era desejada. O problema era que ela ainda era desejada. Com uma intensidade que me corroía por dentro.
Eu estava farta. Das paredes de pedra que me prendiam. Das vozes constantes, das decisões que eram tomadas sem mim. Dos sorrisos que não me alcançavam mais. Das palavras do meu pai, ditas como flechas. E, acima de tudo, daquele olhar. Aquele olhar dele. Como se cada vez que ele me fitava, visse algo errado. Algo sujo. O mesmo homem que me ensinou a ser forte, agora me olhava como se minha força fosse desvio. Como se amar fosse sinal de desonra. Eu me sentia menos humilhada em Skarn, sendo alvo de risos abafados, comentários velados, até ameaças, do que ali, sob o teto do homem que um dia admirei. O nojo nos olhos dele… esse era pior do que qualquer dor.
Fugi do castelo antes que explodisse. Precisava respirar. Precisava fugir de mim.
Andei sem rumo, o vento puxando meus cabelos como se me arrancasse do tempo. Cruzei os pátios, desci colinas. E então a vi.
O som veio antes, espadas chocando, gritos curtos de esforço, estalos de madeira no chão duro do campo de treinamento. Me escondi por instinto, atrás das ruínas de uma antiga muralha coberta de hera. Não queria que me vissem. Não queria que ela me visse.
Lutava contra três homens de Valmont. Guerreiros experientes. Não como um jogo ou um treinamento leve. Aquilo era brutal. Era um embate. Ela se movia com fúria contida, o corpo marcado pelas cicatrizes que ainda não tinham perdido o tom avermelhado. As feridas de Skarn ainda estampadas na pele, mas o espírito dela… intacto. Ou talvez não. Talvez aquilo fosse a forma dela de gritar. De sobreviver.
O cabelo preso no alto da cabeça, solto em algumas mechas que colavam no rosto com o suor. Os músculos contraíam e esticavam a cada golpe. O abdômen à mostra sob a túnica entreaberta, agora empapada. Sujeira e suor manchavam as laterais. Os pés firmes, os punhos cerrados. Ela gritava com o corpo. Desafiava o mundo. E vencia.
Ragan estava ali, sentado numa pedra, os braços cruzados, observando a irmã com o cenho franzido. Proteção. Preocupação. Amor. Mas ele não a impedia. Sabia que ela precisava daquilo.
E eu fiquei ali, covarde, observando. Oculta.
Senti a garganta arder. Como se algo quisesse escapar, um grito, um soluço, um nome.
Varka.
Eu a amava. De um jeito que não sabia nomear. Não era paixão juvenil, nem simples atração. Era algo mais denso. Mais antigo. Como se minha alma tivesse reconhecido nela uma falta que sempre carreguei. E isso me destruía.
Porque eu também a odiava. Por me expor. Por me ver. Por me tocar sem pedir. Por me fazer desejar um mundo que talvez nunca fosse meu.
E odiava todos os outros também. Por me obrigarem a esconder. Por me fazerem crer que era errado. Por colocarem peso no que deveria ser apenas amor.
Odiava meu pai. Por me olhar como se eu fosse um erro.
Odiava a mim mesma, por ainda querer os olhos dele aprovando minha existência.
E, mesmo assim, não consegui dar um passo para trás.
Fiquei ali, imóvel, olhando Varka lutar. Como se ela fosse o único ponto de verdade em meio a um mundo que desabava.
Corwin surgiu como sempre fazia, como um sopro de caos.
(Corwin) — Você observa como quem reza — disse ele, surgindo do nada ao meu lado, encostado na pedra, braços cruzados e aquele maldito sorriso nos lábios.
Levei um susto, mas não me mexi. Ele era como uma praga, aparecia onde menos se esperava, e sempre no pior momento. Seus olhos foram direto para o campo, para Varka, para os homens suando sob os golpes dela.
(Corwin) — Impressionante, não? — continuou, inclinando levemente o corpo como se admirasse uma obra de arte. — Mesmo marcada, ainda luta como um animal selvagem. Aposto que faria qualquer homem tremer debaixo dela… ou mulher!
Ele virou o rosto lentamente para mim, com um sorriso enviesado. Sabia. Sempre soube. Corwin farejava segredos como um cão fareja sangue.
(Maeryn) — Vá embora, Corwin — murmurei, tentando manter a voz firme. Mas não consegui impedir o calor que me subiu às bochechas. Nem o tremor na mão que apertei contra a pedra.
(Corwin) — Tão delicada hoje, Lady Maeryn — disse ele, como se meu nome fosse uma piada. — Por que não vai até ela, hein? Está ali, suando como um cavalo de guerra. Pode até fingir que foi só… acaso. Preocupação. Disfarçar com perguntas sobre o treino. Quer que eu diga que foi meu pedido? Papai não precisa saber de nada. Eu guardo segredos.
(Maeryn) — Você não sabe o que fala.
(Corwin) — Ah, sei. E como sei. É por isso que você está aqui, escondida como uma ladra. Porque o corpo dela te prende, e a culpa te arrasta pelo chão. Isso te corrói, não é? — Ele sorriu mais largo. — Isso é o melhor tipo de veneno, irmã.
(Maeryn) — Cala essa boca — rosnei, girando o corpo para ele. — Você acha tudo um jogo. Você se diverte com a dor dos outros porque não sente nada. É um buraco vazio coberto de risos e vinho barato.
Ele deu uma gargalhada alta, jogando a cabeça para trás.
(Corwin) — Agora sim, essa é a minha irmã. Me ofendendo com classe e fúria. — Ele se aproximou um passo, o rosto agora sério. — Mas me escuta, só por um segundo, você pode negar o quanto quiser, mas o mundo não vai deixar de ser o que é só porque você fecha os olhos. O pai nunca vai aceitar. Os conselhos vão cochichar. Os servos vão espalhar. Então ou você aceita o que sente e arranca a pele por isso, ou continua se escondendo feito rato.
Fiquei em silêncio. O sangue martelando nas têmporas. O peito doendo como se segurasse um grito desde a infância.
Ele voltou a rir, mais baixo, como se se divertisse com o silêncio que deixava atrás.
(Corwin) — Vou deixar você com sua guerreira. Mas pense no que eu disse. — Fez uma reverência zombeteira. — E se resolver ir até ela… mande um beijo. Por mim.
Quando ele se afastou, deixei o corpo encostar na pedra como se minhas pernas já não suportassem mais. Varka ainda lutava. Os músculos do ombro se contraíam sob a pele bronzeada. Uma cicatriz atravessava a lateral do abdômen, mas não a impedia de girar e golpear com precisão cruel. O suor escorria pela têmpora. Os olhos fixos no oponente, como se nada mais existisse. Como se o mundo não estivesse prestes a engolir tudo o que restava de mim.
E eu fiquei ali, ainda. Observando. Ardendo. Amando. Tremendo de ódio e desejo. Sentindo como se minha alma tivesse sido colocada em carne viva só para arder por ela.
A noite estava espessa, silenciosa, e eu, como de costume, absorta no jardim, sentada sob as sombras retorcidas das árvores do pátio interno, ouvindo o sussurro do vento passar pelas folhas secas. O mundo parecia suspenso, como se aguardasse algo que não chegava nunca, a guerra, a destruição, ou talvez, simplesmente, uma mudança. Era esse o sentimento que me acompanhava, a espera sem forma. A única coisa que se movia dentro de mim era o ódio. Pela situação. Pelo silêncio forçado. Pelo olhar do meu pai. Pelo vazio.
Foi Corwin que apareceu, outra vez, como se pressentisse que eu estava à beira do colapso. A voz dele cortou o ar como uma faísca no escuro.
(Corwin) — Se continuar olhando para o chão com essa intensidade, vai cavar um buraco até Skarn — disse, encostado na parede com aquele maldito sorriso debochado de sempre.
Revirei os olhos, mas não respondi.
(Corwin) — Vamos sair. Distrair a cabeça. A guerra ainda não chegou a Valmont, mas você age como se já tivesse perdido.
Suspirei, cansada demais para discutir, entorpecida demais para recusar. Eu era uma renegada dentro da própria casa, uma alma errante vestida de nobreza. Nada me restava além de odiar, a mim, a tudo. Então, por que não ir?
Joguei o capuz sobre a cabeça. Ele estendeu o braço como um cavalheiro decadente e sorriu quando aceitei.
Descemos por vielas que eu jamais pisara, mesmo tendo vivido minha vida inteira naquela cidade. Ruas sem nome, pedras molhadas, janelas fechadas e risos abafados atrás de portas trancadas. Corwin ria das próprias histórias, debochava de conhecidos, me fazia rir com suas bobagens, como se fôssemos dois adolescentes fugindo do peso do mundo.
(Corwin) — Aqui é a Valmont que papai não quer que conheças — sussurrou, enquanto passávamos por becos estreitos. — A cidade que respira, mesmo quando o castelo dorme.
Antes que eu percebesse, estava com um copo de cerveja nas mãos, sentada num banco velho, com o cheiro de álcool e suor grudando nas roupas. A taverna era abafada, cheia de corpos apertados demais. Gente embriagada gritava, dançava, se atracava em cantos escuros. Olhares famintos, sorrisos lascivos. Era promiscuidade e liberdade misturadas num só cheiro.
Então era isso. Os boatos eram verdade. Os prostíbulos existiam mesmo em Valmont, escondidos atrás de fachadas discretas e vielas esquecidas. Cresci ouvindo que eram histórias dos inimigos. Um truque para manchar o nome da nossa honra. E ali estavam. De carne, osso, e gritos. E ninguém nos reconhecia. Estávamos camuflados pela escuridão, disfarçados com roupas simples e capuzes. Invisíveis. Livres.
Corwin se aproximou e segurou minha mão. Senti um arrepio estranho. Não de frio, nem de susto, mas como se estivesse sendo levada para um lugar onde todas as regras que conhecia não valiam nada.
(Corwin) — Vem comigo — disse, puxando-me para dentro de uma porta lateral, que dava para outra sala, iluminada por lamparinas vermelhas, onde o cheiro era ainda mais intenso.
(Maeryn) — Corwin — murmurei, parando. — O que é isso?
(Corwin) — Confiança, Maeryn — ele respondeu, sem parar de andar. — Só confia.
Eu hesitei. Algo dentro de mim se contorcia. Mas também havia algo curioso. Algo quebrado e sedento por sentir qualquer coisa além daquela dor constante.
Então, segui.
O som ficou mais abafado, mais íntimo. Corpos se moviam como sombras adensadas ao redor, sussurros e risos atrás de cortinas. Gente perdida e rindo, se agarrando como se fosse o último dia antes do fim.
E eu, Maeryn de Valmont, filha do rei que prega ordem e honra, caminhava por esse submundo com um copo na mão, o sangue quente demais nas veias e o peso de mil segredos nos ombros.
Não sabia o que Corwin queria me mostrar ali. Mas o segui mesmo assim.
No fim do corredor, os sons da taverna se distanciavam, abafados pelas paredes e pela crescente estranheza que se formava dentro de mim. As lamparinas pendiam dos ganchos enferrujados, lançando sombras trêmulas pelas paredes de pedra. Corwin seguia adiante com passos decididos, me puxando pela mão como se soubesse exatamente onde ia. Eu, menos firme, seguia com o coração acelerado, sentindo que a cada passo entrava mais fundo num mundo que não me pertencia.
Foi então que ouvi a voz.
(Alric) — Já está na hora, acalme-se.
Reconheci Alric no instante em que virei o corredor. Estava de pé à porta de um cômodo, falando com alguém do lado de dentro. A voz dele era grave, impaciente, mas não agressiva. Era o tom de quem exige sem querer ferir.
Corwin soltou minha mão e ergueu as sobrancelhas num gesto teatral.
(Corwin) — Adivinha quem veio pra festa — sussurrou, como se se divertisse com alguma piada oculta.
Fiquei paralisada. Alric ali. No mesmo lugar que eu. No mesmo prostíbulo abafado e escuro. Meu irmão mais velho, o inquebrantável, o exemplar. O que julgava cada passo meu com olhos de dever. E Corwin… bem, dele eu já esperava tudo. Mas ver os dois ali, juntos, sorrindo como se aquilo fosse só mais uma noite comum… foi demais. Por um momento, achei que estava sonhando.
Alric virou o rosto. E quando me viu, ergueu os olhos aos céus com um suspiro que beirava o alívio.
(Alric) — Graças aos deuses. Estava na hora. Achei que fosse nos fazer buscá-la com os guardas — completou rindo, abrandando as feições.
(Maeryn) — O que está acontecendo aqui? — perguntei, tensa, as palavras saindo duras, como espinhos entre os dentes. — Por que vocês…?
(Alric) — Não sairemos antes de resolver isso. — Alric cortou, firme. — E você vai ficar. Não temos hora pra voltar. A noite é longa.
Corwin escorou-se na parede ao meu lado, sorrindo como um espectador de espetáculo.
Eu os olhava, completamente perdida, desconcertada, o suor gelando minha nuca sob o capuz. Os cheiros ao redor, cerveja, perfume barato, pele e luxúria, se tornavam enjoativos. Eu estava no meio de um lugar que desprezava, ao lado de irmãos que eu não compreendia mais. E aí ela apareceu.
Varka.
Saiu do quarto devagar, como se pressentisse o tumulto que a aguardava. O rosto sério, os olhos estreitos. Vestia roupas leves, uma camisa larga e calças de couro puídas, que marcavam a forma do corpo sem pudor. Os cabelos soltos, ligeiramente úmidos, e o cheiro dela, mesmo ali, em meio àquela podridão, me alcançou como um golpe. Era uma presença tão sólida, tão intensa, que por um instante eu esqueci onde estava.
Ela me viu. E parou. Os olhos buscaram os meus, sem desviar. Havia surpresa, mas não alegria. Apenas uma serenidade tensa. Como se ela estivesse esperando algo ruim.
Alric estendeu a mão na direção dela, depois apontou para mim.
(Alric) — Essa era a ajuda que eu precisava de você — disse, com a convicção de quem anuncia uma aliança, uma missão, uma sentença.
Fiquei sem chão.
Varka não respondeu. Apenas me olhou.
Corwin riu, baixinho, atrás de mim.
(Corwin) — E você achando que a noite ia terminar com um copo de cerveja e um cochilo, Maeryn…
Minhas pernas tremiam. Não de medo. Mas de uma confusão que me dilacerava. Envergonhada. Porque por dentro algo se agitava: uma mistura de raiva e desejo, orgulho ferido e excitação, como se tudo fosse real demais. Como se meu corpo soubesse que aquele momento mudaria o curso do que viria depois.
Eles foram embora como chegaram: rindo.
Corwin, claro, fez uma reverência exagerada, quase teatral, enquanto se afastava pelo corredor.
(Corwin) — Não se metam em encrenca — disse, piscando para mim com aquele sorriso malandro. — Ou se metam. Mas que seja boa.
Alric, mais contido, apenas me lançou um olhar firme, cúmplice, quase… orgulhoso? Era difícil decifrar. Bateu de leve no ombro de Varka ao passar por ela.
(Alric) — Aproveitem esse tempo. Falem. Antes que seja tarde demais.
E então os dois sumiram, deixando apenas o som de passos e o ranger da porta que se fechava atrás deles.
Eu continuei parada, com o copo de cerveja ainda na mão, os dedos apertando o vidro como se aquilo me mantivesse ancorada. Olhei para Varka. Ela ainda me fitava, imóvel, confusa. Estava ali como eu, arrastada por uma armadilha construída por meus próprios irmãos. Não sabia de nada. A surpresa no rosto dela era verdadeira. E o incômodo também.
Ela deu um passo para trás, quase imperceptível, como se buscasse alguma explicação nas sombras do cômodo atrás dela. Eu entrei. Não tinha pra onde voltar.
(Maeryn) — Você… Não sabia? — murmurei, a voz baixa, quase engolida pelo som abafado da música distante.
Varka balançou a cabeça devagar. Os olhos verdes escuros se estreitaram, como se estudassem o chão, meus pés, minhas mãos, tudo, menos meu rosto.
(Varka) — Alric disse que era urgente. E eu… — Ela deu de ombros, tensa. — Eu só vim.
(Maeryn) — Corwin disse que era só um passeio.
Ficamos em silêncio. Um silêncio torto, sufocado. Eu queria dizer algo. Qualquer coisa. Mas havia semanas que eu só sabia fugir. Evitava os olhos dela nos corredores, saía do salão quando ela entrava, fingia não vê-la nos campos de treino. Era covardia. Eu sabia. Mas o medo do que meu pai podia fazer, do que podia acontecer conosco se soubessem, do que eu mesma podia sentir e não controlar… era paralisante.
E agora ali estávamos, trancadas num quarto qualquer, no fundo de um prostíbulo de Valmont, sob as ordens de dois irmãos que sabiam mais do que deixavam transparecer.
(Maeryn)— Eles são loucos às vezes… — murmurei, sem conseguir conter um sorriso nervoso.
Varka assentiu, um leve levantar de sobrancelhas. Finalmente, os olhos dela encontraram os meus. E por um instante o tempo se curvou. Tudo parou. Era como da primeira vez. Como se fosse sempre a primeira vez.
(Varka) — Você está bem? — ela perguntou, baixinho, com uma suavidade que me desmontou.
(Maeryn) — Não — respondi, sincera demais. — Não estou.
Aquela confissão ficou no ar, densa. E quando ela deu um passo em minha direção, o coração disparou como se tivesse esquecido como bater. Varka era sempre tão inteira, mesmo quando estava quebrada. E eu… eu era toda feita de fendas, tentando parecer sólida.
Ela apontou para a cadeira mais próxima com o queixo.
(Varka) — Quer sentar?
Assenti, sem pensar, e me deixei cair ali, com a cerveja ainda na mão, já morna. Ela ficou de pé, próxima, mas respeitando a distância. Não havia pressa. E talvez por isso doía tanto.
(Varka) — Eu senti sua falta — disse ela, de repente.
As palavras bateram em mim como uma maré inesperada. Ergui o rosto, encarando-a com algo entre dor e desejo. Não sabia como responder. Sentia o mesmo e muito mais. Mas o orgulho, o medo, o rancor... eram muros altos demais.
(Maeryn) — Você não parecia — murmurei. — Continuou vivendo como se nada tivesse acontecido. Como se eu… nunca tivesse existido.
Ela se aproximou mais um passo. Os olhos ardiam, e a tensão no rosto revelava mais do que qualquer palavra.
(Varka) — Eu só continuei sobrevivendo…
Não consegui segurar. O riso escapou, seco, quase amargo.
(Maeryn) — Eu fugi de você, Varka. Por medo do meu pai, do mundo, de mim mesma. E ainda assim... estou aqui. Trancada contigo num prostíbulo. Parece que o destino tem um senso de humor cruel.
Ela também sorriu, de leve. Depois se abaixou, ficando à minha altura, de cócoras, as mãos apoiadas nos joelhos. O rosto tão próximo que pude sentir sua respiração.
(Varka) — Acho que eu não gosto quando você finge que eu não existo.
Engoli em seco. Os olhos dela queimavam dentro dos meus.
(Maeryn) — Eu senti sua falta — disse em voz alta. — De verdade. Mais do que deveria.
O silêncio seguinte foi outro tipo de resposta. Um silêncio cheio de tudo o que nunca dissemos, tudo o que reprimimos, tudo o que nos queimava por dentro.
Ela ergueu a mão, devagar. E quando seus dedos tocaram os meus, ainda fechados ao redor do copo, um arrepio percorreu meu corpo inteiro. Não havia mais distância. Não entre nós.
(Varka) — Podemos conversar — ela disse. — Só conversar. Se quiser.
E, naquele instante, aquilo era o suficiente. A promessa de que poderíamos, talvez, nos reencontrar. Começar de novo. Ou simplesmente fugir. De todos, só nós.
Eu não queria conversar. Não queria falar nada, explicar nada, cavar buracos em palavras que só deixariam tudo mais confuso. Mas também não queria fugir. Não mais.
Varka estava ali. Perto. E isso bastava para me desequilibrar por dentro. Bastava para me arrancar de tudo o que eu tentava controlar. Ela não fazia esforço algum, era isso que mais me perturbava. Não havia jogada, não havia teatro. Só aquela presença firme, intensa, que me envolvia mesmo quando o corpo dela mal se movia.
Ela deu mais um passo, devagar, como quem se aproxima de um animal ferido.
(Varka) — Você não precisa dizer nada — murmurou, e cada sílaba parecia mais próxima da minha pele do que dos meus ouvidos. — Só... deixa eu te ver.
E foi o que ela fez. Me viu. Como sempre. Como ninguém mais conseguia. Os olhos varreram meu rosto com paciência, como se procurasse as partes de mim que eu mesma havia enterrado. Não havia lascívia no olhar. Nem pressa. Nem cobrança. Era desejo, sim, mas amarrado ao cuidado. Era fome disfarçada de reverência.
Meu coração batia alto demais, forte demais. O sangue pulsava em cada centímetro do meu corpo. E eu continuei calada. Porque qualquer palavra seria um erro. Um rompimento. Um recuo.
Ela ergueu a mão com a mesma calma com que manuseava uma lâmina, mas agora não havia ameaça, só um calor que chegava devagar, quase insuportável de tão suave. Os dedos dela tocaram minha face, e mesmo a pele ferida pelo vento noturno se aquietou. Fechei os olhos, por instinto. Talvez para suportar. Talvez para me permitir.
Senti o polegar dela traçando minha bochecha, meu maxilar. A respiração dela se misturava à minha. Era como se o tempo tivesse parado entre dois corações batendo no mesmo compasso, tentando descobrir quem cederia primeiro.
Eu.
Fui eu quem cedeu.
Inclinei o rosto, buscando a palma da mão dela com os lábios. Um beijo sutil. Um pedido. Um rendição muda. Quando abri os olhos de novo, os dela estavam ainda mais próximos. Escuros. Tensos. Lindos.
(Varka) — Você tá tão linda assim — murmurou, a voz rouca, quase falha.
Quis rir. Quis chorar. Quis gritar pra ela não falar coisas assim, porque cada palavra era uma faca abrindo espaço dentro de mim. Mas não falei. Meus dedos tocaram o peito dela, o tecido fino colado à pele quente. Senti o ritmo acelerado do coração dela também. Estávamos espelhadas. Loucas.
Ela não me puxou. Não me prendeu. Só esperou. A boca dela estava ali, a centímetros da minha. A respiração dela misturada à minha. O corpo parado. Mas o silêncio gritava. Me desfiz do copo de cerveja, ficamos em pé.
E eu... me inclinei.
Beijei primeiro.
Devagar. Como quem testa a temperatura de um rio profundo.
E ela respondeu.
Com doçura. Com precisão. Com tudo o que estava guardado. A mão que estava no meu rosto escorregou para minha nuca, me puxando com mais intensidade. A outra foi à minha cintura, me prendendo como se já fosse parte de mim há muito tempo.
E meu corpo... meu corpo cedeu. Completamente. Os muros ruíram de vez. Eu me encostei nela, entrelacei as pernas, senti o calor que vinha de cada toque, cada suspiro. Não era desejo solto, lascívia simples. Era algo mais. Era reencontro. Era perdão sem palavras. Era saudade se desfazendo em contato.
Os lábios dela desceram pela minha mandíbula, pelo pescoço. Minhas mãos se perderam nos cabelos dela. O mundo ao redor sumiu. Não havia mais prostíbulo, nem irmãos, nem castelo, nem pai. Só nós. Ali. Tarde demais para recuar, cedo demais para entender o que viria depois.
E tudo o que eu tinha para dar era o agora. Então dei. Sem pensar. Sem culpa. Sem nome.
Porque eu não queria conversar.
Eu queria sentir.
E com ela, sentir era como incendiar por dentro e, ainda assim, querer mais fogo.
Varka
Ela se entregou sem resistência alguma.
E isso me desmontou.
Porque eu conhecia a dureza de Maeryn, suas defesas forjadas a orgulho. A língua afiada, o olhar cortante, a constante muralha que erguia ao redor do próprio peito. Mas agora… agora ela era só pele e suspiro. Boca e desejo. Uma chama que não pedia licença pra arder, só queimava.
E eu, ali diante dela, tentando não me perder.
Ela se jogou nos meus braços como quem cai de um abismo, com os olhos fechados e sem pedir por corda. E eu a segurei. Quis ser chão. Quis ser abrigo. Quis ser tudo que ela nunca teve coragem de pedir.
Mas era difícil.
Era difícil medir a força quando o meu próprio corpo tremia. Quando o sangue fervia nas veias, a pele latej*v* por tê-la assim, tão entregue. E, ainda assim, eu lutava comigo mesma, freando cada impulso bruto, cada gesto que ameaçava ser rápido demais, intenso demais, feroz demais.
Ela merecia mais do que isso.
A boca dela encontrou a minha como um sopro quente, mas urgente, e o gosto era de raiva, de medo, de mágoa… mas também de amor. De tudo que ela segurou por tempo demais, e agora vazava por cada beijo, cada toque, cada suspiro entrecortado.
Toquei seu rosto com cuidado, como quem toca algo sagrado. Os dedos traçaram a linha do queixo, depois a curva do pescoço, onde sentia o pulso dela acelerar sob a pele fina. Eu queria decorá-la com os olhos, com as mãos, com os lábios. Mas sem marcar. Sem ferir. Eu já tinha machucado ela demais.
E mesmo assim… ela se abriu.
A cabeça jogada para trás, os lábios entreabertos, os olhos cerrados como se buscasse se perder dentro de si. Os cabelos caíam em ondas sobre os ombros, desalinhados, lindos. As mãos me agarravam pela camisa, como se eu fosse a única âncora entre ela e o colapso. E talvez fosse.
Meu corpo gritava. Queria devorá-la inteira. Mas eu contive. Contive tudo.
Desci os lábios até sua clavícula, beijei devagar, quase em silêncio, sentindo o arrepio que tomava sua pele sob meus dedos. A ponta da língua desenhou caminhos invisíveis, e a resposta veio no arrepio, no tremor sutil, no gemido que ela tentou conter. Um som abafado, sofrido, que me atravessou como uma prece.
Toquei-a com carinho. Um carinho feroz. Um carinho que doía de tão contido.
As mãos passaram por sua cintura, pelas costas, pelos quadris, sem pressa. Reverência. Era isso. Eu a reverenciava. Como se estivesse diante de uma entidade que me escolheu, apesar de tudo. Apesar de quem sou. Do que sou. Da dor que causei.
O corpo dela se curvava sob o meu como se houvesse sido feito pra caber ali. E havia tanta coisa naquele gesto. Não era só desejo, embora fosse também. Era um pedido. Um grito sem som. Um fica. Um vê. Um me reconhece.
E eu vi.
Vi a menina assustada que ela ainda escondia. Vi a mulher que sufocava dentro da filha obediente. Vi a amante escondida embaixo de camadas de negação. Vi Maeryn. Toda. Inteira.
E a amei.
Amei nos gestos contidos. No modo como ela sussurrava meu nome como se não quisesse que o mundo escutasse. No modo como se despia de medos, pedaço por pedaço, ali nos meus braços.
Mas era aflitivo.
Era como tentar conter o mar com as mãos em concha.
Cada vez que ela se arqueava contra mim, eu precisava me lembrar de respirar.
Cada vez que ela gemia meu nome, eu precisava me lembrar de não perder o controle.
Eu queria dar prazer a ela sem tomá-la à força. Queria que fosse do jeito dela. Que ela comandasse, mesmo se de olhos fechados. Queria mostrar que, apesar da fúria que corre em mim, eu também sei amar. E sei cuidar.
Mesmo ferida.
Mesmo cansada.
Mesmo sem saber se terei outro momento como esse.
E então, quando ela me puxou para si, sem nenhuma barreira, sem nenhuma hesitação, eu entendi.
Ela me escolheu.
Não com palavras. Mas com o corpo. Com o abandono. Com a confiança que só se dá a quem, apesar de tudo, ainda se ama.
E naquele quarto abafado, cercadas por um mundo que não nos queria juntas, ela se abriu como uma flor forçada a florescer no deserto.
Ela me puxou com força.
Sem hesitação. Sem medo.
Maeryn me queria. Não como antes, com os olhos desviando, com o corpo recuado mesmo quando o desejo queimava. Agora ela se entregava inteira, com a fome escancarada nos olhos e o corpo pedindo por mais, por tudo, por mim.
E foi ali que me perdi.
Tentei me conter, juro pelos deuses que tentei. Eu tremia. Não de nervosismo, mas de tensão. Do esforço de manter cada toque sob controle, de conter as mãos que queriam apertar, os lábios que queriam morder, a força que borbulhava em mim como lava prestes a romper.
Mas ela...
Ela arqueava o corpo contra o meu, buscava meus quadris com as pernas, puxava minha nuca com dedos firmes, famintos. E gemia. Não como uma donzela assustada. Mas como quem exige. Quem quer mais. Quem não se contenta com pouco.
E foi aí que tudo virou.
Ela passou a comandar, mesmo sem dizer palavra. Guiava minhas mãos, os beijos, a pressão. E o que ela pedia era intensidade. Era força. Era o meu lado mais selvagem, aquele que sempre temi deixar escapar. Aquele que ela parecia querer mais do que tudo.
(Maeryn) — Assim — ela sussurrou, entre dentes, puxando meus cabelos. — Não para.
Minha respiração já vinha em arquejos curtos, o corpo latejando de desejo e contenção. Eu beijei sua boca como se o mundo estivesse acabando. A mordi com carinho brutal. A agarrei pela cintura e a ergui contra mim, encostando-a na parede do quarto estreito. E ela... ela só gem*u mais alto.
Pediu por mais com cada movimento, com cada revirar de olhos, com cada gemido sufocado no meu ombro.
A pressão das unhas dela na minha pele me dizia que eu podia ir além. E eu fui.
Desci os beijos pelo pescoço, mordendo, sugando, marcando como se gravasse meu nome ali, na carne quente e arrepiada. As mãos agarravam sua cintura, e ela se movia contra mim como quem desafia, como quem incendeia.
(Varka) — Maeryn — murmurei contra a pele dela, rouca, ofegante. — Eu não quero te machucar.
(Maeryn) — Então não me trate como se fosse fraca — ela respondeu, cravando os olhos nos meus. — Eu quero que seja você. Sem controle.
Foi quando eu deixei de resistir.
A peguei nos braços e a levei até o colchão raso, jogando-a ali com mais força do que pretendia, mas ela riu, arfando, os cabelos espalhados, os olhos brilhando como se tivesse vencido uma guerra.
Eu a devorei.
Com os lábios, com a língua, com os dedos, com os quadris. A cada toque, um suspiro mais rouco. A cada investida, um gemido mais alto. Ela se arqueava para mim como se fosse minha por direito, meu templo, meu altar. E eu rezei com o corpo inteiro.
Me perdi entre suas pernas como quem mergulha num mar profundo, sem corda, sem ar, sem volta.
Ela era calor, era ventre em chamas, era fome.
Afundei os dedos com força, sentindo cada contração, cada resposta do corpo dela como se fossem ordens. E ela… ela se movia. Rebolava contra minha mão, me guiava, me marcava com gemidos que soavam como promessas antigas, sagradas.
A pele dela suava sob a minha, quente, pulsante. E cada vez que meu toque apertava mais fundo, ela se arqueava como se o prazer rasgasse a alma.
Eu mordia o interior de suas coxas, subia lambendo a pele macia, beijava sua virilha como quem beija terra santa, e então a tomava com a boca, sugava, ch*pava devagar, depois rápido, depois de novo devagar. O gosto dela era salgado e doce e cravado na minha língua como um vício.
Ela gemia alto demais, e eu adorava isso.
Porque era o som da sua entrega.
Sem máscaras. Sem paredes. Sem medo.
Maeryn era um incêndio no escuro. Um corpo que queimava o meu com pura vontade.
E quando se cansava de esperar, ela me puxava, me virava, me montava como uma amazona antiga, altiva, selvagem, indomável.
Ela cavalgava meu corpo como quem conhece os próprios ritmos, como quem sabe que manda.
Os cabelos caíam no rosto, grudados pelo suor. As mãos se apoiavam no meu peito, as unhas afundavam em minha pele, e os quadris dela se moviam com uma fúria que me deixava sem ar.
Ela gemia contra minha boca, e eu respondia com beijos entrecortados, com mãos apertando sua cintura, guiando, prendendo, deixando, soltando.
(Maeryn) — Mais — ela sussurrava. — Mais.
Afundei os dedos com mais força. Ela gem*u alto, arqueando-se contra mim, e depois se jogando, como se buscasse mais fundo, mais rápido, mais. As pernas se apertaram ao redor dos meus ombros e ela começou a rebol*r, ritmada, crua, esfregando-se em mim com uma vontade que me fazia grunhir entre os dentes.
Era linda assim. Selvagem. Indecente.
Me afastei só para olhá-la. Para vê-la naquele estado. Os cabelos colados na testa, os seios marcando o tecido fino, subindo e descendo com a respiração descompassada. O rosto todo vermelho, mordendo os lábios, os olhos semicerrados como se cada toque meu a empurrasse para o abismo, e ela quisesse cair.
Voltei a ch*pá-la, firme, molhada, com a língua e os lábios sugando, mordendo leve, depois mais fundo, e ela gem*u alto demais, os quadris tremendo, as mãos agarrando meus cabelos com violência.
(Maeryn) — Varka…! — sussurrou, com a voz rasgada, cravando as unhas nos meus ombros.
Era quase um aviso. Quase um clamor. Quase um grito.
E mesmo assim, ela me empurrou de costas na cama e subiu em mim.
Sem pedir.
Montou como se fosse dela, e era.
Começou a se mover com fome, cavalgando com ritmo e raiva, os gemidos se perdendo entre os beijos que me dava, ofegantes, sujos, entrecortados. Ela gemia contra minha boca, me arranhava as costas, me dizia que não parasse, que apertasse mais, que a segurasse como se o mundo fosse acabar logo depois.
E eu obedeci.
Segurei firme sua cintura, ajudei no ritmo, cravei os dedos em suas coxas, senti o corpo inteiro dela se contorcer sobre o meu, e a cada impulso, a cada descida, ela me levava junto, mais fundo. Mais dentro.
Os gemidos viraram choro abafado no meu pescoço. E mesmo ali, no meio da selvageria, eu a sentia frágil. Tão humana. Tão minha.
Era prazer, sim. Era brutalidade, sim. Mas era mais.
Era amor doente, impróprio, clandestino.
E mesmo assim, eu me deixei ser devorada por ele.
Porque Maeryn me queria.
E eu…
Eu já era dela. Desde o começo.
Ficamos ali. Pela primeira vez… ninguém fugiu.
Nenhuma de nós correu para vestir as roupas de volta. Nenhuma ergueu as muralhas logo após o prazer.
Só ficamos.
Os corpos ainda entrelaçados, cobertos de suor e marcas vermelhas. O silêncio pesado, mas não desconfortável. O quarto mal iluminado cheirava a cerveja morna, incenso barato e sex*, mas, entre nós, havia uma paz estranha, como se um campo de batalha tivesse finalmente se esvaziado.
Maeryn estava deitada ao meu lado, nua sob o lençol amarrotado, com o rosto virado para mim e os cabelos espalhados pelo travesseiro. Os olhos dela me estudavam em silêncio, como se ainda tentasse entender o que tínhamos feito. O que éramos. E, por mais que eu tentasse manter a pose, eu sabia que, por dentro, também estava em ruínas.
Mas não era a mesma ruína de antes.
Era uma nova. Mais suave.
Eu toquei de leve sua cintura, o polegar traçando distraidamente um hematoma fresco que havia deixado ali. Ela não recuou. Nem desviou o olhar. Só respirou fundo, e por um instante achei que fosse dizer algo, mas o que veio foi um pequeno sorriso de canto, preguiçoso.
E eu senti algo apertar dentro de mim.
Podíamos ter ficado assim por horas. E talvez ficássemos. Até que veio a batida na porta.
Uma, duas vezes. Depois uma voz abafada:
(Corwin) — O sol já se cansou de esperar, Varka. Maeryn, está viva aí?
Era Corwin.
Ouvi o riso de Alric em seguida, um pouco mais distante, mais grave, meio arrastado.
Maeryn rolou os olhos e afundou o rosto no travesseiro.
(Maeryn) — Malditos — murmurou.
Levantei devagar, puxando a calça do chão, ainda com o corpo doendo e leve, como se tivesse lutado a noite inteira e vencido. Olhei para ela antes de abrir a porta. Os cabelos bagunçados, a pele marcada por mim, os lábios levemente inchados.
Linda.
E minha. Pelo menos por aquela noite.
Abri a porta devagar, como quem espera uma tempestade.
Corwin estava com a túnica desalinhada, o tecido manchado de batom vermelho, o pescoço cheio de marcas e o sorriso torto estampado no rosto como uma bandeira de guerra.
(Corwin) — Aí está a campeã — ele disse, apontando pra mim e rindo. — Já vi que vocês fizeram mais do que conversar.
Atrás dele, Alric apoiava o ombro na parede de pedra, meio bêbado, mas sereno, quase... orgulhoso.
(Alric) — Funcionou — disse, como quem encerra uma missão. — Finalmente.
Passei a mão pelos cabelos, tentando encontrar algum vestígio de compostura.
(Corwin) — Tinha que ser assim. Trancadas num buraco como esse. A Maeryn é muito medrosa…
(Varka) — O rei ficaria tão orgulhoso… — murmurei, sarcástica.
Maeryn apareceu atrás de mim, já vestida, o capuz puxado, mas ainda com os olhos marcados de cansaço e desejo. Alric olhou para a irmã por um segundo mais longo do que o normal.
(Alric) — Pronta? — perguntou.
Ela assentiu sem responder.
Corwin veio até ela e estendeu o braço, ainda todo sujo de batom.
(Corwin) — Meu trabalho aqui está feito. Hora de devolver a princesa para o castelo antes que papai mande os corvos.
Maeryn passou por mim. Não disse nada. Mas o olhar que trocamos ali, naquele segundo, foi mais íntimo do que tudo que havia entre nós antes daquela noite.
Ela partiu com Corwin, e eu segui com Alric.
As ruas ainda estavam úmidas da madrugada, a cidade acordava devagar, ignorando os segredos que o escuro sempre guarda.
Andamos em silêncio por um tempo, até que Alric falou, a voz baixa, ainda com um sorriso contido:
(Alric) — Não vamos falar sobre isso.
(Varka) — Ainda bem. — respondi.
A partir daquela noite, tudo mudou.
Não de forma abrupta, não com palavras ditas ou pactos firmados, mas com os gestos pequenos, os silêncios cheios, os olhares que duravam mais do que deveriam. Depois de tanto medo, de tanta fuga, era estranho perceber que ninguém parecia realmente se importar.
Ou melhor, os que importavam, não se importavam.
Os irmãos mais velhos de Maeryn, ao contrário do que eu temia, não demonstraram nenhum incômodo. Alric me tratava com a mesma firmeza de antes, mas havia algo diferente em sua postura, um certo respeito contido, uma aceitação silenciosa. Corwin, por sua vez, era só provocação e risadas veladas. Mas havia algo por trás da zombaria, ele me olhava como quem sabe um segredo e torce para que tudo dê certo, mesmo fingindo não se importar.
Era o rei o único que ainda me lançava olhares frios. Sempre que eu entrava nos conselhos, sentia seu julgamento pairar como lâmina no ar. Nunca disse nada, não diretamente. Mas o modo como sua mandíbula se travava ao me ver, como seus olhos se estreitavam quando eu me dirigia a Maeryn em público, deixava claro: ele sabia. E odiava.
Mas não podia fazer nada. Porque Alric estava ao lado dele.
Alric era influência viva. E bastava uma palavra sua para que qualquer tensão se dissolvesse. Ele me incluía nas reuniões, me dava voz diante dos nobres e dos oficiais da patrulha, e até mesmo fazia questão de me ouvir antes de tomar decisões que envolviam a segurança dos arredores.
E Ragan, como sempre, era meu pilar. Silencioso, leal, presente.
Já curada, voltei aos treinos pesados com os soldados de Valmont, comandando os exercícios nas redondezas, reformando estratégias com os comandantes locais. Me sentia observada, sim, mas não como inimiga, como ameaça útil, como guerreira de respeito.
O nome de Skarn voltava às conversas, com peso e hesitação. Eu sabia que o chamado do meu pai estava próximo. Ele era paciente, mas não esquecia. Uma filha e um filho ausentes por tanto tempo chamariam atenção demais.
Mas enquanto esse momento não chegava, eu me permitia… vê-la.
Não em público. Não nos corredores do castelo, onde nossos nomes ainda eram sussurrados. Não diante dos olhos do rei, ou dos escudeiros fofoqueiros. Mas nas sombras.
No escuro das estrebarias, no abrigo dos bosques atrás do castelo, em torres esquecidas e quartos trancados.
Nos víamos com a mesma fome contida de sempre, com os mesmos dedos ansiosos, os mesmos beijos urgentes, mas agora havia outra coisa.
Havia riso.
Às vezes ela chegava ofegante, com o capuz sobre os cabelos e um sorriso travesso nos lábios, me empurrando contra a parede como se me odiasse. Mas seus olhos brilhavam. E eu a segurava, forte, e pesava:
“Hoje o mundo pode esperar.”
E ela não discordava.
Éramos farsa em público. Um teatro muito bem encenado. Maeryn retomou sua pose de rigidez e silêncio, e eu segui com minha altivez controlada, como se fôssemos apenas conhecidas, afastadas por mágoas
antigas. Mas nos olhares cruzados nos salões, nos sorrisos contidos à distância, havia promessas.
À noite, ela voltava para mim.
E eu… já não me perguntava mais até quando.
Eu sabia que aquilo era frágil. Que o rei nos observava. Que em breve viria o chamado de Skarn pelos corvos do meu pai.
Mas, por agora, por aqueles dias escondidos, era como se tivéssemos vencido um pedaço da guerra.
E bastava.
Fim do capítulo
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