O Primeiro Beijo
Auditório Vazio – 21h30
O olhar de Verena sustentava-se ali, como se houvesse algo de sagrado naquele ponto proibido. O tempo parecia ter se contraído, tornando o espaço entre as duas um universo próprio, intocável.
Movendo-se com uma lentidão quase cerimonial, ela inclinou o corpo, não como quem invade, mas como quem pede permissão a cada centímetro. A ponta dos dedos apoiada discretamente no braço da cadeira era o único elo que a mantinha ancorada à realidade. Quando o canto de sua boca tocou o de Valentina, foi tão leve que parecia não ter acontecido — não fosse pelo sobressalto silencioso que atravessou o corpo da menina.
O suspiro que escapou de Verena foi denso, carregado de tudo o que vinha reprimindo. O nariz roçou no dela com um cuidado que mais lembrava uma confissão do que um gesto físico.
Valentina fechou os olhos de vez. Não para fugir, mas porque o mundo ao redor deixara de existir. Havia apenas aquela pressão suave, quase tímida, mas carregada de uma promessa que ela ainda não sabia decifrar.
Verena abriu os olhos por um instante, buscando qualquer sinal de recuo — e encontrou uma menina imóvel, mas entregue, sustentando o momento com um silêncio que gritava mais alto que qualquer palavra. Era a primeira vez.
Verena não sabia, mas imaginava, e a simples hipótese de não ser a primeira feria um orgulho silencioso. Precisava acreditar que aquele instante era inaugural, seu, irrepetível. Sentiu o peso dessa possibilidade nos ossos, e por isso se conteve, oferecendo apenas a borda de um toque, uma promessa que poderia ou não ser cumprida.
No silêncio que se seguiu, cada batida do coração parecia amplificada, ecoando entre elas como um chamado. E a pergunta não era mais se aconteceria, mas quando o inevitável atravessaria a última linha.
O toque inicial foi tão breve que poderia ter passado por um engano — não fosse o tremor que percorreu Valentina da nuca aos pés. Não havia comparação possível, pois não havia memória para servir de referência.
O canto da boca voltou a roçar o dela, mais demorado desta vez. Valentina não sabia se respirava ou se esquecia como. O coração batia em um compasso estranho, como se tentasse sair pela garganta. Um calor subia pela pele, mas havia também um frio que se espalhava pelo estômago, um susto bom, novo e vertiginoso.
A proximidade fazia tudo maior: o som quase imperceptível da respiração de Verena, o cheiro limpo e sutil que parecia se infiltrar pelos sentidos, a textura macia de um lábio tocando o seu com delicadeza exasperante.
Então, devagar, sem pressa e sem margem para dúvidas, a boca de Verena deslizou até encontrar por inteiro a de Valentina. Não foi um beijo urgente. Foi um beijo inaugural. Um sopro de descoberta e de posse ao mesmo tempo, em que o medo de machucar e a fome de sentir se misturavam na mesma medida.
Para Valentina, tudo era excesso: o calor, o toque, o sabor desconhecido. E, por mais que houvesse receio, não havia vontade alguma de escapar.
A pressão se manteve por alguns segundos, até que Verena, já sem conseguir domar o impulso, cedeu um pouco mais. Sua boca abriu o suficiente para que um sopro quente escapasse contra os lábios de Valentina.
O corpo da menina reagiu antes que a razão pudesse interferir. Era como se um fio invisível a puxasse para mais perto, como se o próprio ar ao redor tivesse ganhado peso. O calor que vinha daquele toque não era como o de um abraço ou de um aperto de mãos era mais profundo, instintivo, como se despertasse algo que ela sequer sabia que estava ali.
Sem entender exatamente o que fazia, Valentina abriu também um pouco a própria boca, numa hesitação que misturava curiosidade e medo. Foi recebida pela resistência suave da outra, firme e paciente, mas que acompanhou o movimento, ajustando-se ao dela.
A sensação era estranha e ao mesmo tempo inevitável: o peso do outro lábio se movendo junto, a maciez que se moldava à sua, o breve deslizar que a fez prender a respiração de novo.
Verena manteve os olhos fechados, mas sentiu a entrega mínima — quase um pedido mudo — e precisou conter o instinto de avançar mais. A mão, até então imóvel, subiu devagar para segurar o rosto da menina, o polegar tocando de leve a pele quente, como se quisesse garantir que ela não recuaria.
Valentina não recuou. O coração parecia querer atravessar o peito, e um arrepio correu por sua nuca. Ela não sabia onde colocar as mãos, não sabia como corresponder, mas sabia que não queria que acabasse.
O som abafado da respiração das duas preenchia o espaço estreito entre as cadeiras, misturando-se ao farfalhar distante das folhas lá fora. A luz fraca do celular de Verena, caída no chão, projetava feixes oblíquos sobre os pés das cadeiras, criando sombras alongadas que pareciam se mover com o balanço mínimo dos corpos.
Valentina sentia cada segundo como se fosse o primeiro de uma vida nova — os lábios ainda colados aos dela, quentes, hesitantes, mas sem recuar. O toque suave do polegar de Verena no seu rosto a ancorava, e, ao mesmo tempo, parecia fazê-la flutuar.
Até que um barulho metálico veio da porta. Um clique baixo, depois o ranger da dobradiça.
— Tá tudo bem aí? — a voz masculina quebrou o silêncio, carregando um tom de estranheza.
Auditório Vazio – 21h45
O rapaz, que se afastara minutos antes, mas agora, de volta, espiava pelo vão entre a porta e a parede. Do ângulo em que estava, não via rostos — apenas o feixe da lanterna no chão e dois contornos abaixados entre as cadeiras, próximos demais para o que parecia ser uma conversa.
Verena congelou. O corpo de Valentina também. O ar que elas compartilhavam se dissipou de repente, e o peso daquele instante se quebrou como vidro fino.
— Nós… já estamos indo — respondeu Verena, a voz grave, controlada, mas ainda embargada pelo que tinha acontecido.
O rapaz hesitou, lançou um último olhar curioso e recuou, deixando a porta encostar sem fechar completamente.
O silêncio voltou, mas não era mais o mesmo. As duas continuavam próximas, respiração ainda acelerada, mas agora havia um espaço invisível entre elas — não físico, e sim da consciência súbita de que tinham cruzado um limite.
A porta encostou-se com um estalo leve, abafando de novo o mundo lá fora. Restando apenas o som irregular das respirações, um pouco mais rápidas do que deveriam estar.
Valentina engoliu em seco, desviando o olhar por um instante, como se precisasse encontrar algum ponto fixo para se lembrar de respirar. O coração ainda pulsava no fundo da garganta.
— Desculpa… — murmurou, sem saber exatamente pelo quê.
Verena a olhou por um segundo a mais, aquele segundo que pareceu se alongar só para provar que algo ficou inacabado. Endireitou-se devagar, o movimento rígido, como se cada vértebra reclamasse pela posição em que estivera. Passou a mão pelo blazer, mais para ganhar tempo do que para arrumar de fato.
— Não foi culpa sua — respondeu, voz baixa, quase rouca. Depois inspirou fundo, tentando recompor o timbre. — Vamos… antes que ele volte.
Levantaram-se, evitando se encarar por mais do que alguns fragmentos de segundo. Mas o corpo ainda guardava a memória do toque, do calor que não desaparece só porque a distância aumentou.
Enquanto Verena recolhia o celular do chão, a luz voltou a iluminar de forma crua os traços tensos do rosto de Valentina. Ela, por sua vez, ajeitava a alça da mochila no ombro, mas os dedos tremiam levemente, denunciando o que a voz não diria.
Ao passarem lado a lado pelo corredor estreito, o ombro de uma roçou no braço da outra. Não houve pedido de desculpas dessa vez — só um silêncio espesso, carregado de tudo o que ficou preso entre boca e boca e que nenhuma das duas ousava nomear.
Auditório Vazio – 21h50
O corredor estava mais iluminado do que a sala, e a claridade fez Valentina piscar rápido, como se precisasse de um segundo para se recompor.
O homem estava encostado na parede, mexendo no celular, mas ergueu o olhar assim que ouviu o som das passadas.
— Acharam a garrafinha? — perguntou, com um meio sorriso, embora fosse impossível não notar o objeto preso na mão dela.
Valentina apertou mais a garrafa contra o corpo, evitando encarar diretamente. — Sim… — respondeu baixo, a voz quase se perdendo.
Verena, por outro lado, manteve um tom seguro, como se nada tivesse acontecido minutos antes. — Estava entre as cadeiras.
O rapaz assentiu, mas o olhar correu rápido de uma para a outra. Havia algo no ar que não sabia nomear — um certo peso no silêncio, um cuidado excessivo nos gestos. Não comentou. Limitou-se a abrir espaço para que passassem.
Valentina seguiu primeiro, passos rápidos, como quem quer colocar distância. Verena veio logo atrás, deliberadamente mais devagar, os olhos fixos na nuca da menina por um instante antes de desviar para o corredor.
No fim, nenhum dos três disse mais nada. Mas o silêncio não apagou o que tinha acontecido — apenas o empurrou para um lugar onde, por enquanto, ninguém ousaria tocar.
Corredor Principal – 22h02
Silvia ajeitava a alça da bolsa no ombro, distraída, quando viu Verena surgir pelo corredor. A deputada caminhava com passos tensos, olhar severo, como se carregasse consigo um segredo. A esposa, sem desconfiar de nada, abriu um sorriso leve.
— Achei que tivesse me abandonado aqui — disse com bom humor, rindo baixinho. — Já ia pedir carona pra alguém.
Verena não respondeu. Apenas segurou o braço dela com firmeza, como quem precisava ganhar tempo, disfarçando a urgência.
Nesse instante, um vulto correu pelo mesmo corredor. Era Carol, o rosto marcado pelo alívio e pela raiva, que praticamente se atirou sobre Valentina.
— Valen! — a voz explodiu entre o desespero e o choro contido. — Onde você se enfiou, caramba? Você não viu a porr* do celular? Eu quase tive um infarto!
Ela agarrou a amiga pelos ombros, sacudindo-a levemente, como se quisesse acordá-la de um sono profundo. Mas ao olhar de perto, percebeu: Valentina estava rígida, os olhos arregalados, o corpo frio.
— Ei... — Carol baixou a voz, suavizando o tom. — O que foi que aconteceu?
Valentina piscou devagar, como se voltasse de um transe. Não respondeu. Não conseguia. As palavras haviam se perdido dentro dela, junto com o ar que lhe faltava nos pulmões.
Enquanto isso, Verena acelerava o passo, quase arrastando Silvia pelo braço. A esposa estranhava a pressa, tropeçando ao tentar acompanhá-la.
— Vê... o que tá acontecendo? — perguntou, ofegante. — Que pressa é essa?
Verena manteve o silêncio. Era a única defesa possível. Apenas o silêncio poderia apagar o fogo que ainda ardia nela, antes que alguém conseguisse decifrar demais no contorno dos próprios olhos.
Escada Lateral – 22h27
O barulho dos passos ecoava pelo concreto frio da escada. Carol segurava Valentina pelo pulso, quase puxando-a, enquanto o rosto da amiga permanecia pálido, distante, como se tivesse deixado parte de si em algum canto escuro do prédio.
— Valen... olha pra mim — murmurou Carol, já no segundo lance. — O que foi que aconteceu lá dentro? Você tava branca, parecia que ia cair.
Valentina mordeu o lábio, tentando encontrar palavras que não existiam. O coração disparava, o corpo ainda ardia em uma memória recente que não ousava confessar.
— Eu... eu só me perdi — disse, a voz trêmula. — Nada demais.
Carol parou no meio da escada, forçando-a a encarar seus olhos.
— "Nada demais" o caramba! — rebateu, quase sussurrando para não chamar atenção. — Você some, não atende o celular, e volta desse jeito? Tá me escondendo o quê?
O som de um carro buzinando do lado de fora anunciou a chegada da mãe de Carol. As duas apressaram o passo, mas a inquietação já estava plantada.
Hall de Saída – 22h06
Do outro lado, Verena caminhava rápido, quase arrastando Silvia pelo braço. A esposa tentava acompanhar, mas não entendia aquela urgência, como se precisassem fugir de algo invisível.
— Vê, você pode me explicar? — Silvia perguntou, entre um riso nervoso e a desconfiança. — Tá parecendo que a gente roubou alguma coisa daqui.
Verena não respondeu de imediato. Os olhos estavam fixos no chão, tentando afastar da mente a lembrança da sala escura, das sombras, do calor que ainda sentia na pele.
— Eu só... — respirou fundo. — Eu só quero ir embora logo, Silvia. Amanhã é um dia cheio.
A esposa arqueou a sobrancelha, intrigada.
— Dia cheio você sempre tem. Aconteceu alguma coisa na Alesp?
Verena forçou um sorriso frio, mas o nervosismo a traía. O silêncio não era uma defesa perfeita. Era apenas um disfarce frágil.
Estacionamento – 22h09
A porta do carro bateu com força incomum. Verena girou a chave na ignição quase antes de Silvia fechar a sua, e o motor respondeu com um ronco áspero.
Silvia ajeitou a bolsa no colo, olhando de soslaio para a esposa. O semblante de Verena era duro, concentrado demais para o simples ato de sair de um estacionamento universitário.
— Verena... quer me dizer o que foi que aconteceu? — perguntou, com a calma que usava para clientes irritados em seu escritório. — Você saiu como se estivesse fugindo.
Verena manteve os olhos no retrovisor, engatou a ré e fez a curva sem olhar para ela. O silêncio durou alguns segundos, espesso, até Silvia insistir:
— Foi algum problema na Alesp? Alguma coisa que não me contou?
A deputada apertou o volante com força. Queria dizer “não”, queria inventar uma desculpa qualquer, mas a pressão por dentro transbordava.
— Não, Silvia! — explodiu, a voz mais alta do que pretendia. — Não é na Alesp, não é nada disso. Eu só... eu só quero ir embora. Tô cansada, quero deitar e dormir logo. Só isso.
O eco da própria fúria a fez se arrepender no mesmo instante. Engoliu em seco, os ombros tensos, enquanto diminuía a velocidade no semáforo seguinte.
Silvia, surpresa, ficou alguns segundos sem reação. Depois, respirou fundo e respondeu com firmeza, mas sem elevar o tom:
— Ok. Não quer me contar, você quem sabe. Mas não vou admitir ser tratada assim. Ouviu? — Virou o rosto para encará-la.
Verena desviou o olhar para o sinal vermelho, como se o semáforo fosse seu refúgio. O arrependimento queimava por dentro.
— Eu sei... desculpa. — murmurou, ainda sem conseguir olhar nos olhos da esposa. — Não devia ter falado desse jeito.
Silvia suspirou, cansada, mas não insistiu mais. Limitou-se a encostar a testa no vidro, como quem decide guardar perguntas para outra hora. O carro seguiu pela avenida iluminada, mas dentro dele o silêncio era mais denso do que a noite.
Carro da família Oliveira – 22h37
O carro já vinha aquecido, mas o frio da noite grudava nos vidros. O limpador fazia um rangido discreto, ainda molhado da garoa que caíra mais cedo. No banco da frente, Dona Lúcia falava sobre o mercado aberto até mais tarde, reclamando do preço do tomate.
— Um absurdo, menina. Tava quase oito reais o quilo. Eu falei pra moça do caixa: “vocês tão vendendo ouro, não é possível”.
O comentário se perdeu no ar. Carol e Valentina, no banco de trás, não ouviam nada.
Carol segurava o celular ainda aceso na mão, a tela iluminando seu rosto indignado.
— Onde é que você se enfiou, Valen? — disparou, a voz misturada de alívio e raiva. — Eu quase surtei, liguei dez vezes. Não olhou a porr* do celular?
Valentina não respondeu. Estava sentada com o corpo rígido, as mãos enlaçadas no colo, o olhar perdido para fora da janela, como se a cidade noturna passasse em câmera lenta.
Carol aproximou o rosto, o tom agora mais baixo, preocupado:
— Ei... fala comigo. O que foi que aconteceu?
Nada. Apenas o som distante de uma buzina irritada atrás do carro, que fez Dona Lúcia resmungar no volante:
— Gente apressada, credo. Nem vê que o sinal tá fechando...
Carol segurou o braço da amiga, tentando arrancá-la daquele transe.
— Valen, olha pra mim. Você tá pior do que quando eu te deixei. — A voz saiu quase num sussurro. — Me diz o que foi...
A cada curva, o estofado rangia baixo, o cheiro de amaciante impregnado nas roupas recém-lavadas. O ambiente parecia normal, trivial — mas dentro de Valentina, tudo estava em colapso.
Carol percebeu. E, pela primeira vez naquela noite, largou as perguntas. Apenas encostou a testa no ombro da amiga, fechando os olhos com força. A raiva já tinha sido engolida pelo medo.
Casa dos Moraes – 22h42
A chave girou na fechadura com um estalo seco. Valentina entrou devagar, os ombros encolhidos, como se o frio tivesse grudado nela. O cheiro familiar de feijão requentado ainda pairava na cozinha.
Ana Paula levantou do sofá, ajeitando a manta que cobria a filha mais nova adormecida.
— Graças a Deus, menina! Onde você tava? — a voz saiu carregada de alívio e bronca ao mesmo tempo. — Eu já tava ficando doida, liguei, liguei, e nada de atender.
Valentina largou a mochila no chão e apenas murmurou:
— Desculpa, mãe...
— Desculpa nada, Valentina. — Ana Paula se aproximou, os olhos examinando a filha como quem procura febre. — Você tá branca, tá suada... que foi que aconteceu?
A menina deu de ombros, sem forças para inventar uma desculpa. O corpo parecia pesado demais.
— Só... me deu um negócio.
Ana Paula segurou o rosto dela entre as mãos, forçando o olhar:
— Que negócio, filha? Você tá me escondendo alguma coisa?
Valentina desviou, encarando o chão de lajotas gastas. A sandália fazia um rangido pequeno quando ela a arrastava.
— Não tô escondendo nada, mãe. Só... quero deitar.
Um silêncio curto, denso. Ana Paula suspirou fundo, vencida pela exaustão do dia.
— Vai. Mas amanhã a gente conversa.
Valentina assentiu, subiu as escadas sem olhar para trás. Cada passo parecia um peso arrastado, mas ao mesmo tempo um refúgio. No quarto, fechou a porta devagar, encostou a testa contra a madeira fria. O celular vibrou na mochila, mas ela não se moveu. O som ficou abafado, como se viesse de outra vida.
Na sala, Ana Paula ajeitou a filha pequena no sofá e ficou em silêncio. O relógio da parede marcava vinte e duas e quarenta e cinco. A noite ainda não tinha acabado.
Casa dos Moraes – 22h50
Ana Paula pegou Isadora com cuidado no colo, a menina resmungou baixinho, ainda entregue ao sono. Subiu devagar os três degraus que separavam a sala do corredor estreito, a luz fraca da lâmpada pendurada balançando com o vento que entrava pela janela mal fechada.
No quarto simples, as duas camas de solteiro se encaravam. Valentina já estava deitada, virada para a parede, os olhos semicerrados fingindo um sono profundo. O lençol embolado denunciava a pressa com que se enfiara ali.
— Pronto, princesa... — murmurou Ana Paula, ajeitando Isadora na cama ao lado, cobrindo-a com o mesmo cuidado repetido há anos, como se cada dobra do cobertor fosse uma reza silenciosa.
A mãe ainda se demorou, olhando para as duas filhas. Passou a mão devagar nos cabelos de Valentina, que permaneceu imóvel, respirando mais fundo de propósito.
— Deus cuide de vocês... — suspirou, antes de se afastar em silêncio.
A porta fechou com delicadeza. O quarto mergulhou na penumbra.
Valentina manteve os olhos abertos, fixos na parede fria. O coração batia num ritmo estranho, como se o corpo ainda não tivesse voltado a si. Sentia a boca seca, e junto dela, uma lembrança que queimava: a sensação nítida de ter beijado alguém.
E esse alguém era Verena.
Apartamento dos Castilho – Jardins – 23h05
A chave girou na fechadura com um clique abafado. Verena entrou primeiro, deixando a pasta sobre o aparador. O salto ecoou seco pelo piso de madeira, até ser silenciado pelo tapete espesso da sala. Silvia fechou a porta com calma, pendurando a bolsa na cadeira antes de seguir a esposa.
O silêncio era incômodo, só quebrado pelo barulho distante da cidade — buzinas esparsas, o ronco de um motor na avenida.
No quarto, Silvia acendeu apenas o abajur. A luz amarelada deu ao espaço um ar de refúgio, mas Verena parecia não caber dentro dele. Tirou a camisa social apressada, como quem quer se livrar de uma armadura pesada, jogando-a sobre a poltrona.
— O que foi aquilo no carro? — a voz de Silvia era mansa, mas curiosa. — Você quase me deixou achando que tinha acontecido alguma bomba na Alesp.
Verena tirou os óculos, os olhos minúsculos. Esfregou o rosto com as duas mãos, exausta. Sentou-se na beira da cama, o corpo curvado, o olhar fixo no chão.
— Não foi nada — murmurou, seca.
— Nada? — Silvia arqueou uma sobrancelha, descrente. — Você estava dirigindo como se quisesse fugir de alguém.
Verena suspirou fundo, o ar saindo pesado. Sentiu-se encurralada pelo tom doce da esposa, justamente por ele não carregar acusação, apenas preocupação.
— Silvia... — começou, a voz trêmula de irritação mal contida. — Você não entende... eu só queria chegar logo em casa, ok?
O silêncio caiu outra vez. Silvia cruzou os braços, encostada na cômoda, analisando cada gesto da companheira.
— Tá. — respondeu simples, desviando os olhos.
A resposta calma soou como um espelho, refletindo de volta toda a dureza que Verena não queria admitir. A deputada ergueu o olhar, arrependida.
— Desculpa. — disse baixo, quase num sussurro. — Desculpa.
Silvia se aproximou devagar, sentou-se ao lado dela. O perfume suave da esposa contrastava com o cheiro ainda impregnado de rua na roupa de Verena.
— Eu só queria entender. — falou, sem exigir mais nada.
Verena fechou os olhos, respirando fundo. Não tinha resposta, não tinha explicação plausível. Apenas o fantasma de uma lembrança que queimava: o gosto dos lábios de Valentina, insistia em permanecer na boca.
Quarto – Madrugada
O quarto estava mergulhado no silêncio, apenas o som baixo da respiração de Silvia ao lado preenchia o espaço. Verena, deitada de costas, tinha o rosto virado para o teto. O corpo finalmente cedeu ao cansaço, mas o sono não veio em paz.
No sonho, estava de novo no estacionamento da faculdade. O ar parecia mais pesado, as luzes intermitentes do teto piscavam como se falhassem. E ali, em meio às sombras, Valentina corria. A respiração da menina ecoava desesperada, o olhar perdido.
Verena a perseguia, passos firmes, predadores. Não havia hesitação em seu corpo. Quando alcançou a jovem, agarrou-a pelos braços, prensando-a contra algumas cadeiras metálicas. A estudante debatia-se, tentando escapar, o cabelo colado no rosto pelo suor frio.
— Você é minha. — A voz de Verena soava mais grave, como se viesse de um lugar que nem ela mesma reconhecia. — Só minha.
Valentina virava o rosto, buscando uma fresta para fugir, mas Verena acompanhava cada movimento, forçando o beijo. Não era mais o selinho incerto da realidade, mas um contato quente, selvagem, invasivo. Os lábios esmagando os dela, a respiração cortada, a resistência se desfazendo em lágrimas.
A cada tentativa de fuga, Verena apertava mais forte. O som do choro da menina soava como uma navalha atravessando a cena.
Até que — de súbito — ela acordou.
O quarto voltou à penumbra calma. Silvia dormia profundamente, virada para o outro lado, alheia ao que se passava. Verena estava suada, a respiração ofegante, o coração disparado. Levou a mão à testa, como se pudesse apagar o que acabara de ver.
Sentia o gosto de culpa mais amargo do que o próprio sonho.
Cozinha – Madrugada
A luz do abajur no quarto não era suficiente para acalmar. Verena levantou devagar, o lençol colado ao corpo suado. Passou a mão pelo rosto, os dedos tremendo levemente. Silvia virou-se no sono, murmurou algo incompreensível, mas não acordou. Verena parou por um instante, observando a esposa deitada. Uma pontada de culpa atravessou-lhe o peito.
Saiu em silêncio. O corredor parecia mais longo naquela hora, o chão frio sob os pés descalços. Desceu as escadas com cuidado, segurando firme no corrimão, como se o próprio corpo pudesse desabar a qualquer momento.
Na cozinha, acendeu apenas a luz sobre a pia. O cômodo ficou meio iluminado, revelando o brilho opaco dos azulejos. Abriu a torneira e deixou a água correr, enchendo um copo de vidro que segurava com tanta força que parecia prestes a quebrar. Bebeu de um só gole, sentindo o líquido gelado descer arranhando a garganta seca.
Mas não adiantou. A sensação do sonho ainda estava viva. Os lábios pressionando os de Valentina, o choro da menina, a frase dita como uma sentença: “Você é minha.”
Verena apoiou-se na pia, a respiração descompassada. A imagem da estudante tentando escapar lhe voltava em fragmentos. Não parecia apenas um sonho — parecia um espelho cruel dos pensamentos que ela vinha evitando, mas que agora a encaravam sem piedade.
— O que você está fazendo com a sua vida… — murmurou para si mesma, quase sem voz.
Passou as duas mãos nos cabelos, puxando-os para trás com violência, como se quisesse arrancar dali a inquietação. Andou em círculos pequenos pela cozinha. O relógio na parede marcava pouco depois das três. O silêncio da casa era absoluto, apenas interrompido pelo motor distante de algum carro na rua.
Verena abriu a geladeira sem saber o que procurar. Ficou parada diante da luz branca, encarando prateleiras repletas de coisas banais — frutas, potes, garrafas de água. Nenhum objeto fazia sentido naquela hora. Fechou a porta de repente, o estalo seco ecoando no ambiente.
Encostou-se na mesa, cruzou os braços sobre ela e deixou a testa repousar ali, exausta, como se o peso de tudo a esmagasse. Não tinha coragem de voltar para o quarto. Não tinha coragem de encarar o próprio reflexo no vidro da janela.
Ficou ali, imóvel, no meio da madrugada, sem saber se chorava ou se ria do absurdo de desejar o que mais deveria repelir.
Assembleia Legislativa – Gabinete de Verena – 09h20
O barulho dos corredores já denunciava que a manhã seria longa. Servidores carregavam pilhas de documentos, jornalistas circulavam à espreita e o eco de vozes se misturava ao ruído constante dos elevadores. O clima era de segunda-feira, mesmo não sendo.
No gabinete, Verena entrou de forma quase automática. Terno escuro, camisa clara, cabelos soltos e bem alinhados — a imagem perfeita da autoridade que precisava sustentar, ainda que por dentro mal tivesse dormido. Largou a pasta sobre a mesa, suspirando baixo, enquanto ligava o notebook.
Rafaela já estava lá, inclinada na cadeira com uma caneta girando entre os dedos. Não levantou de imediato, apenas acompanhou a chefe com aquele olhar que misturava profissionalismo e ironia.
— Bom dia, Vê. — O tom foi protocolar, mas carregado de uma ponta de sarcasmo. — Dormiu bem? — A pergunta veio certeira, com um meio-sorriso que não esperava resposta sincera.
Verena ergueu os olhos por um instante, como se decidisse se valia a pena rebater. — Dormi o suficiente para aguentar o dia. — Virou-se para o computador, tentando encerrar o assunto.
Rafaela apoiou o queixo na mão, observando a tela que ainda carregava. — Pois vai precisar. Carmona marcou presença na reunião das comissões. Promete fogo. — Fez uma pausa dramática, antes de acrescentar: — Espero que você esteja no seu melhor humor, porque o dele… não vem nada cristão.
Verena soltou um riso seco, quase sem humor. — O dia em que ele vier cristão, eu me preocupo. — Abriu um arquivo qualquer só para ter algo diante dos olhos.
O silêncio seguinte não era natural. Entre as duas, havia um espaço que antes se preenchia de cumplicidade e agora parecia um corredor vazio. Rafaela não insistiu. Levantou-se, caminhou até a estante para pegar uma pasta, e deixou escapar em tom leve:
— Se quiser café, ouvi os estagiários comentarem que o da copa acabou de sair. — Olhou de lado, com a sobrancelha arqueada. — Vai que ajuda a acalmar os demônios.
Verena segurou a resposta por alguns segundos. Estava prestes a disparar uma ironia, mas conteve-se. Apenas assentiu, seca, voltando ao monitor.
O relógio digital do gabinete marcava 09h27. O dia mal tinha começado.
Assembleia Legislativa – Sala da Comissão de Educação – 10h15
A sala estava lotada. Assessores disputavam espaço ao redor das paredes, jornalistas se acotovelavam para garantir a melhor foto e o burburinho constante deixava o ar carregado. O presidente da comissão tentava impor ordem batendo a caneta na mesa, mas ninguém parecia disposto a colaborar.
Verena entrou acompanhada de Rafaela e dois assessores. O cabelo solto caía em ondas controladas, a camisa branca impecável sob o blazer escuro, e a postura ereta anunciava autoridade. Ainda assim, havia uma sombra nos olhos — reflexo da noite mal dormida.
Carmona já estava lá. De braços cruzados, sorria com aquele deboche conhecido, como quem aguardava a presa entrar na arena. Terno mal-ajambrado, gravata frouxa, e um ar de dono da sala. Ao ver Verena, inclinou-se na cadeira, soltando alto o suficiente para os microfones captarem:
— Até que enfim. Achei que tinha desistido, deputada.
Verena não respondeu. Sentou-se, ajustou os papéis diante de si e apenas ergueu o olhar, firme, direto. Não piscou.
O presidente da comissão abriu os trabalhos, mas bastaram três minutos para Carmona interromper. — Quero começar dizendo que esta casa não pode ser palco de palhaçada. Educação não é assunto pra espetáculo midiático. Diferente de certas figuras aqui, eu não vivo de lacrar em rede social nem de posar de justiceira.
O golpe era claro. Olhares se voltaram para Verena. Rafaela, ao lado, apenas ergueu a sobrancelha, murmurando quase inaudível: — E lá vamos nós.
Verena respirou fundo antes de falar. — Agradeço a preocupação do deputado, mas quem transforma esta casa em circo é quem se porta como bufão. — As palavras saíram num tom gelado, calculado, mas com a força de uma lâmina.
Carmona se inclinou sobre a mesa, apontando o dedo. — Bufão? Olhe aqui, sua… — Conteve-se por causa dos microfones, mas a lembrança dos insultos anteriores pairava no ar. — A senhora não tem moral nenhuma pra me dar lição. Acha bonito posar de mais homem que eu? Pois mantenha a pose, porque aqui eu não abaixo a cabeça.
O burburinho explodiu. Jornalistas anotavam freneticamente, gravadores se estendiam pelo ar.
Verena sustentou o olhar. — Pois saiba, deputado, que não estou aqui para medir masculinidade. Estou aqui para defender escolas, professores e alunos, algo que o senhor, até agora, não demonstrou interesse algum em fazer.
A plateia de jornalistas reagiu com murmúrios, flashes dispararam.
Carmona levantou-se de súbito, a cadeira arrastando com estrondo. — Vagbunda! — A palavra escapou como um veneno antigo, que ecoou no recinto e fez o presidente da comissão golpear a mesa.
— Ordem! — gritou o presidente. — Deputado Carmona, contenha-se!
Rafaela, ainda sentada, inclinou-se para Verena e sussurrou com ironia: — Ele perdeu a linha mais cedo do que eu esperava. Parabéns, Vê.
Verena não respondeu. Apenas manteve o queixo erguido, sabendo que aquela cena renderia manchetes antes mesmo de o dia terminar.
Corredor da Alesp – 11h02
Assim que a reunião foi encerrada às pressas, Verena mal teve tempo de organizar os papéis. O barulho de cadeiras arrastadas e conversas exaltadas ecoava pela sala, mas no instante em que ela cruzou a porta, foi engolida por um corredor lotado.
Microfones surgiram de todos os lados, gravadores estendidos à sua frente, câmeras quase coladas no rosto. O tumulto era sufocante.
— Deputada, o que a senhora tem a dizer sobre o insulto do deputado Carmona?
— A senhora pretende acionar o Conselho de Ética?
— Foi a senhora quem provocou a reação dele?
— Deputada, a senhora confirma que chamou Carmona de bufão?
As perguntas se sobrepunham, atropelando-se numa cacofonia de vozes. Flashes disparavam em sequência, quase cegando.
Rafaela abriu caminho como pôde, braço firme, empurrando delicadamente microfones que tentavam encostar na deputada. — Calma, calma, vamos dar espaço — dizia, mas no fundo se divertia. — Olha só, Vê, você é a estrela do circo.
Verena manteve o queixo erguido, sem parar de andar. O som dos saltos contra o piso de mármore marcava o ritmo da fuga. Respirava fundo, sentindo o ar pesado, os flashes ardendo nos olhos, mas não recuava.
— Deputada! — insistiu uma repórter da Folha, enfiando o microfone quase na boca dela. — A senhora se considera vítima de violência política de gênero?
Foi a primeira vez que Verena parou. Os olhos, ainda marejados de raiva contida, fixaram-se na jornalista. O silêncio de um segundo foi mais eloquente que qualquer resposta.
Rafaela percebeu o risco. Tocou-lhe o braço e sussurrou, séria: — Não dá. Agora não.
Verena desviou o olhar e retomou a caminhada. — Não vou comentar — disse por fim, seca.
O corredor fervilhava, mas a frase curta foi captada por todos os gravadores. Rafaela apertou o passo, conduzindo-a para a sala do gabinete, como quem salva alguém de um afogamento.
Quando a porta finalmente se fechou atrás delas, o barulho do corredor se transformou em um silêncio espesso. Rafaela encostou-se à parede, rindo com sarcasmo. — Eu avisei que ele ia perder a linha, mas confesso… não achei que fosse tão rápido.
Verena largou a pasta sobre a mesa, respirando fundo, os olhos ainda fixos no nada.
Gabinete – 11h18
O ar no gabinete parecia mais pesado do que o normal. A porta recém-fechada abafava o barulho distante dos corredores, mas o silêncio ali dentro não era menos ruidoso. Verena permanecia de pé, apoiando as duas mãos sobre a mesa ainda bagunçada, os papéis desalinhados como testemunhas mudas do confronto de minutos atrás. O peito subia e descia num ritmo acelerado.
— Eu vou acabar com esse filho da puta. — murmurou, ainda ofegante, sem tirar os olhos do tampo de madeira.
Rafaela, sentada de lado na poltrona, tamborilava os dedos contra o braço da cadeira. Observava a deputada com a calma irônica de quem já vira cenas piores, mas ainda assim, sabia reconhecer a gravidade. Não respondeu de imediato. Pegou uma caneta, rodou entre os dedos, e só então quebrou o silêncio:
— Vê… antes de você planejar a crucificação do Carmona, tem outro fogo começando a arder.
Verena ergueu os olhos devagar, o olhar frio, quase impaciente. — O que foi agora?
Rafaela puxou uma das folhas rabiscadas com marcações em vermelho, ajeitou a postura e falou sem floreios:
— O Deodato resolveu morder mais do que devia. O último repasse veio abaixo do esperado.
Verena piscou devagar, como se processasse o golpe. — Quanto abaixo?
— O suficiente pra levantar suspeita se alguém olhar de perto. — Rafaela apoiou a folha na mesa e bateu de leve com a caneta sobre um número. — Ele mexeu na porcentagem. E não parou aí. Colocou um parente na jogada. Um nome limpo, sem histórico, mas com o mesmo sobrenome. Eu já chequei.
Verena se afastou, indo até a janela. A luz forte do sol entrava em linhas diagonais pelo vidro, iluminando partículas de poeira suspensas. Ela respirou fundo, como se o ar pudesse dissipar a raiva, mas só trouxe mais incômodo.
— Esse idiota não tem noção do risco que corre — disse, num tom baixo, quase para si mesma. — Nem do que nos faz correr.
— Ah, ele tem noção, sim. Só acha que a gente não vai reagir. — Rafaela apoiou o queixo na mão, com um meio sorriso. — E o problema, Vê, é que enquanto você gasta energia com o Carmona, o Deodato cava devagarinho.
Verena se virou de repente. O rosto estava tenso, os olhos injetados de cansaço e fúria contida.
— Eu devia ter cortado essa gente do início — rosnou. — Agora tenho jornalista farejando sangue no corredor e dentro do gabinete tem gente me esfaqueando pelas costas.
Rafaela ergueu as sobrancelhas, teatral. — Bem-vinda à política, amor. Aqui ninguém te apunhala de frente, porque de frente dá pra ver.
Verena lançou um olhar fulminante. — Para de fazer piada.
— Não é piada, é aviso. — Rafaela largou a caneta, a voz mais firme. — Ou a gente enquadra o Deodato agora, ou ele vai achar que manda na mesa. E se ele manda, quem perde é você.
O silêncio que se seguiu foi denso, quebrado apenas pelo tique-taque discreto do relógio de parede. Verena passou a mão pelo cabelo, respirou fundo e voltou a encarar a mesa, como quem calcula o próximo movimento num tabuleiro em chamas.
Zona Oeste – 22h47
Um restaurante discreto, de luz baixa e mesas vazias a essa hora. O garçom já parecia irritado pela demora deles em pedir algo mais além de café e água. No canto mais afastado, três pessoas ocupavam a mesa redonda: Verena, de camisa social clara e manga dobrada, Rafaela ao lado com expressão de tédio armado, e Deodato em frente, ajeitando o paletó como quem tentava disfarçar o nervosismo.
— Você tem noção da merd* que fez? — A voz de Verena cortou o ar, baixa, mas afiada como lâmina.
Deodato deu uma risada seca, desconfortável. — Eu só corrigi a fatia que estava desproporcional. Ninguém vai perceber.
Rafaela bateu a caneta contra o copo de vidro, impaciente. — "Ninguém vai perceber"? O repasse veio quase vinte por cento abaixo do combinado. Isso não é correção, é se entupir sozinho.
— E ainda arrastou um parente pra dentro do jogo — acrescentou Verena, inclinando-se sobre a mesa. O olhar dela, frio, fixava-se nele como de predadora. — Quer que a polícia bata na porta da sua casa primeiro ou da nossa?
Deodato respirou fundo, tentando parecer calmo, mas o suor na testa entregava. — Eu garanti que o nome está limpo. O cara não tem passagem, não tem nada. Está tudo sob controle.
Rafaela soltou uma risada curta, venenosa. — Controle? Você não controla nem sua língua quando bebe, imagina um esquema desses.
O silêncio que seguiu foi sufocante. O som distante de talheres no salão parecia ecoar mais alto do que deveria. Verena recostou-se na cadeira, cruzou os braços, e falou devagar, palavra por palavra:
— Escuta bem, Deodato. Você põe tudo de volta no eixo no próximo repasse. Sem parente, sem gracinha, sem desvio fora do combinado. Ou eu corto você fora da engrenagem, e você sabe o que acontece quando alguém fica exposto sozinho.
Deodato empalideceu, mas não recuou. Inclinou-se sobre a mesa, os punhos cerrados.
— Eu não sou moleque pra você dar sermão, Verena. Eu tô nessa desde antes de você sonhar em ser deputada.
Os olhos dela faiscaram. Também se inclinou, aproximando-se dele como predadora em confronto direto. O espaço entre os dois se reduziu a poucos centímetros.
— Justamente por estar tanto tempo nesse jogo, deveria saber que amadorismo custa caro. E eu não vou pagar a conta do seu erro.
Rafaela ergueu a mão, pousando-a de leve no braço de Verena, como quem pedia contenção. — Gente... não vamos transformar isso em duelo de ego.
Deodato sorriu de lado, carregado de veneno. — Engraçado você falar de erro... porque quem foi imprudente no plenário não fui eu. O Carmona só falta babar esperando a sua próxima escorregada. Se você cair, você arrasta todo mundo junto.
O silêncio ficou pesado. Rafaela ajeitou a postura, pronta para intervir se um passo a mais fosse dado. Verena manteve o rosto colado ao dele, sussurrando entre os dentes:
— Eu não caio, Deodato. Mas se alguém tiver que cair, acredite... não serei eu.
O homem a encarou por longos segundos, firme, até que recuou alguns centímetros, afrouxando a gravata. — Então trate de manter seu lado limpo. Eu cuido do meu.
— Ótimo. — Verena se levantou, jogando algumas notas sobre a mesa pelo café. — Última vez que eu gasto meu tempo com amadorismo.
Rafaela também se levantou, lançando um olhar carregado de sarcasmo para o homem.
— Boa noite, Deodato. Aproveita e reza pra imprensa não descobrir a sua gula.
Elas saíram, deixando-o sozinho na mesa, encolhido, o café já frio diante dele.
Estacionamento da Alesp — 23h51
O ar frio da noite misturava-se ao calor ainda preso no concreto do estacionamento. A luz amarelada dos postes lançava sombras alongadas, e o silêncio só era quebrado pelo barulho distante do trânsito na avenida. Verena parou diante do carro, cigarro entre os dedos, tragando como se cada baforada fosse capaz de expulsar a raiva e o gosto amargo que Deodato deixara na boca.
Rafaela, alguns passos atrás, ajeitou a bolsa no ombro e a observou. Estava cansada, exausta daquela espiral de tensões, mas sabia que qualquer palavra mal colocada poderia acender outro incêndio.
— Preciso beber. — A voz de Verena soou firme, quase como uma sentença.
Rafaela bufou, segurando a própria língua antes de retrucar. No fim, não resistiu:
— O que você precisa é de cama. Dormir. Amanhã você acorda e pensa com a cabeça fria.
Verena girou o corpo devagar, encarando-a por cima da brasa acesa do cigarro. Um riso curto escapou, frio, carregado de ironia.
— Desde quando você virou puritana sóbria, Rafa? Vai me dar sermão agora?
O silêncio entre as duas durou segundos longos demais. Rafaela ergueu as mãos em rendição, mas deixou escapar, num tom baixo:
— Só lembra que não é só você que pode afundar nessa.
Sem responder, Verena apagou o cigarro com força no asfalto, entrou no carro e ligou o motor. O celular vibrou no painel. Uma mensagem de Silvia iluminava a tela: “Já está vindo? Fiz um chá.”
Por um instante, o mundo parou. A culpa atravessou o peito como um ferro quente. Ainda assim, os dedos dela deslizaram pelo visor, digitando rápido: “Ainda em reunião, amor. Vai demorar um pouco.” Enviou sem coragem de ler de novo.
Bar Estação 32 — 23h15
A fachada era um recorte decadente da cidade: néon azul piscando intermitente, paredes grafitadas, um toldo rasgado que denunciava anos sem reforma. O som abafado de música antiga escapava pela porta, misturado à fumaça que se acumulava na calçada.
Lá dentro, o bar era um retrato daquilo que se evitava comentar em público. Mesas bambas ocupadas por homens que jogavam baralho com notas amassadas no centro, no canto, uma jukebox desafinada tentando sustentar um samba antigo, uma sinuca disputada por olhares pesados, mulheres rindo alto, taças na mão, e nos cantos mais escuros, trocas discretas de envelopes e pacotes. Era um ambiente onde todos sabiam que havia sujeira, mas fingiam não ver.
Verena entrou com passos decididos, como quem buscava anestesia. Sentiu o cheiro de fumaça misturado a álcool barato. Jogou a pasta no balcão e pediu um uísque duplo, sem sequer olhar para o barman. O copo veio sujo, com uma lasca discreta na borda. Ela bebeu de uma vez só, ignorando o detalhe. O segundo gole queimou menos que a culpa que ardia no estômago.
Bar Estação 32 — 23h40
A porta rangeu, e uma presença inesperada tomou o espaço. Lilian Nobrega. Cabelos impecáveis, salto firme, olhar afiado que varreu o bar até pousar exatamente onde deveria: na deputada caída sobre o balcão.
O contraste era brutal. Verena, ombros pesados, olhar cansado, copo meio vazio na mão. Lilian, impecável, carregando no sorriso a confiança de quem sabe o efeito que causa.
Ela se aproximou sem pressa, cada passo um movimento calculado. Encostou-se ao balcão, inclinando o corpo com uma intimidade provocativa.
— Que coincidência deliciosa, Castilho. — Sua voz saiu baixa, quase um sussurro carregado de veneno. — Um lugar desses… pra alguém como você.
Verena suspirou, não respondeu. Só levantou o copo, pedindo outro. Lilian tomou o assento ao lado, inclinando-se no balcão. O perfume adocicado da jornalista tomando conta do espaço entre as duas, abafando até o cheiro de cigarro e bebida.
— Deixe que eu pago este. — disse ao barman, sem desviar os olhos da deputada.
O copo veio, cheio. Verena hesitou, mas bebeu. Lilian manteve o ritmo: um para ela, outro para Verena. Conversa curta, afiada.
— E aí, me conta. Fugindo de quem? Do Carmona… ou da sua própria esposa? — Lilian soltou como quem cutucava ferida aberta.
O olhar de Verena se estreitou.
— Você não cansa?
— De você? — Lilian riu baixo, erguendo a taça. — Nunca.
Ela aproximou o corpo, deixando o perfume adocicado preencher o espaço entre as duas. Pousou a mão de leve sobre o braço de Verena, quase imperceptível.
— Bebe mais um. — sussurrou. — Vai te fazer bem esquecer.
O barman encheu novamente os copos. Verena bebeu rápido, o álcool já pesando nos olhos. Lilian, com paciência de caçadora, só molhou os lábios, observando a queda lenta da deputada.
Bar Estação 32 — 00h10
Verena já sentia o peso das doses acumuladas. O rosto apoiado de lado na mão, os dedos batucando devagar no balcão. Lilian, ao contrário, permanecia elegante, quase teatral. Observava a deputada como quem acompanha um animal feroz enjaulado — fascinada pelo risco, mas também segura de que tinha a chave.
— Você está fraca hoje, Castilho. — comentou, girando o próprio copo sem beber. — Não é a leoa que costuma engolir deputados em plenário.
Verena ergueu os olhos pesados, encarando-a.
— Talvez eu esteja poupando energia… pra lidar com urubus.
Lilian riu baixo, inclinando-se ainda mais.
— Urubus são previsíveis. Eu não. — A ponta dos dedos correu pelo balcão até encostar novamente no braço da deputada. — E você… você tem medo do que eu posso fazer.
Verena afastou o braço, pedindo outro copo ao barman com um gesto seco. O funcionário hesitou, mas Lilian interveio com um sorriso:
— Deixa comigo. Coloca mais uma. — pagou em dinheiro vivo, sem recibo.
O copo veio. Verena bebeu de uma vez, como quem tentava afogar algo que queimava por dentro.
— Sabe o que eu acho? — Lilian aproximou os lábios de sua orelha, a voz grave, quase íntima. — Você mente bem em público. Mas aqui… — olhou ao redor, destacando os frequentadores distraídos, ninguém prestando atenção. — Aqui você é só mais uma mulher perdida.
A mandíbula de Verena travou. Quis responder, mas o álcool embaralhou as palavras antes de saírem. Lilian aproveitou o vazio.
— Eu posso te fazer esquecer. — sussurrou, deixando o perfume doce escorrer pela distância mínima entre elas. — Silvia, Carmona... Tudo.
Bar "Estação 32" — 00h27
A música ambiente, um jazz rouco vindo da jukebox, se misturava ao som de copos batendo e conversas abafadas. O lugar estava cheio, apesar da hora, mas a mesa de canto onde Lilian agora guiava Verena parecia existir em outro ritmo.
A deputada já havia perdido a conta das doses. O blazer repousava sobre o encosto da cadeira, a camisa parcialmente aberta, o cabelo solto caindo sobre o rosto. O olhar oscilava entre o vidro do copo e o vazio da própria mente.
Lilian, por outro lado, mantinha-se sóbria — quase intocada pelas taças que pedira. Tomava goles lentos, mais encenação do que consumo. Sua postura era impecável: corpo levemente inclinado para frente, o sorriso afiado, o olhar que acompanhava cada movimento de Verena como quem calcula o próximo lance.
— Já reparou… — Lilian começou, deslizando o dedo pela borda da taça, a voz calma, quase hipnótica — …como certas pessoas só mostram quem realmente são depois da meia-noite?
Verena soltou um riso baixo, arrastado, e apoiou a cabeça na mão.
— Você fala demais, Lilian.
— Eu observo. — corrigiu, inclinando-se mais, próxima o suficiente para que a pele arrepiada da deputada sentisse o calor de sua respiração. — E observo que, quando não está no plenário, você… sangra como todo mundo.
Verena virou mais um copo de uma vez. Lilian acenou discretamente ao garçom, que trouxe outro. A jornalista o afastou levemente da deputada, mas logo empurrou de volta para perto.
— Devagar. — disse num tom que misturava comando e provocação. — Não queremos que a grande Castilho desmaie antes de terminar a conversa, não é?
O olhar turvo da deputada tentou encontrar foco no rosto de Lilian. Havia raiva, mas também rendição.
— O que você quer, afinal? — murmurou, a voz rouca, meio embaralhada.
Lilian sorriu devagar, como quem saboreava a pergunta. Não respondeu de imediato. Apenas ergueu a taça, brindando no ar, e deixou a resposta suspensa no silêncio — um silêncio que pesava mais do que qualquer palavra.
O relógio da parede marcava a madrugada avançando. E Verena, cada vez mais, afundava no jogo paciente da jornalista.
Bar "Estação 32" — 01h04
A essa altura, o bar estava em sua fase mais caótica: risadas altas, copos se chocando, gente se arrastando para fora. Mas ali, naquele canto, parecia haver um pacto silencioso.
Verena afundava no assento, a cabeça levemente tombada para trás, o corpo pesado, entregue ao álcool que lhe subia quente pelo estômago. A respiração irregular denunciava o limite. Lilian, em contraste, permanecia impecável — cruzando as pernas, apoiando o queixo na mão, os olhos fixos na deputada como quem contempla uma presa cansada.
— Você sempre resiste um pouco. — comentou, voz baixa, quase carinhosa, enquanto deslizava a mão até ajeitar a gola solta da camisa de Verena. — Mas uma hora todo mundo cede.
Verena abriu os olhos devagar, turvos. Tentou falar, mas só conseguiu um resmungo incompreensível. Lilian sorriu de canto, pegou o copo diante dela e afastou, deixando apenas a taça que fingia beber.
— Já chega. — murmurou, mas não em tom de cuidado. Era domínio. — Você não vai querer passar vergonha aqui.
Com calma, recolheu o balzer esquecido sobre a cadeira e o pousou sobre os ombros da deputada, inclinando-se o suficiente para que os cabelos roçassem no rosto dela. O perfume doce se misturou ao cheiro ácido do álcool. Verena fechou os olhos de novo, como se quisesse fugir da realidade.
— Vamos. — Lilian disse, firme, levantando-se e segurando o braço da deputada.
Verena tentou resistir por um instante, mas o corpo não obedeceu. Deixou-se erguer, ainda trôpega, arrastada para fora do bar sob o olhar curioso de alguns poucos clientes. Nenhum deles, no entanto, ousou comentar. No Estação 32, cada um carregava os próprios segredos.
Do lado de fora, a madrugada era fria. Lilian ajeitou melhor o blazer em Verena, que cambaleava, e a puxou em direção ao carro estacionado na esquina. Os saltos da jornalista ecoavam firmes no asfalto molhado, enquanto os passos da deputada soavam descompassados, quase infantis.
Dentro do veículo, o silêncio foi apenas quebrado pelo clique do cinto de segurança que Lilian afivelou na deputada, aproximando-se mais do que o necessário. Os olhos dela, escuros e atentos, estudavam cada traço cansado de Verena, cada fragilidade exposta pelo álcool.
— Agora você é minha. — sussurrou, antes de fechar a porta com calma calculada, como quem encerra uma armadilha cuidadosamente preparada.
Motel Solaris — 01h47
A fachada era discreta, sem letreiros luminosos. Apenas um portão automático que se abriu ao reconhecer o carro de Lilian. O asfalto úmido refletia a luz fraca das lâmpadas frias, e o silêncio pesado do lugar revelava sua verdadeira clientela: homens de terno, mulheres de salto alto, motoristas que sabiam exatamente para onde conduzir.
Lilian parou o carro junto à porta de uma das suítes reservadas. Respirou fundo antes de contornar o veículo. Abrir a porta do passageiro foi fácil. Tirar Verena de lá, nem tanto.
— Vamos, Castilho. — murmurou, puxando-a pelo braço.
A deputada abriu os olhos devagar, rindo de algo que só ela entendia.
— Não… não posso… Silvia vai… vai me botar no sofá. — arrastou as palavras, tentando se agarrar ao cinto de segurança. — Se eu não chegar… sofá.
Lilian bufou, sem humor. Forçou o cinto a soltar e puxou Verena, que tombou meio corpo para fora do carro, quase a derrubando junto.
— Você é grande demais pra isso. — resmungou, apoiando o corpo da deputada sobre si. — Vamos logo.
Verena tropeçou, encostando o rosto no ombro da jornalista. O cheiro de álcool misturado ao perfume da camisa dela criou uma cena quase absurda.
— Eu… eu preciso ir pra casa… — insistiu, rindo sozinha. — Silvia é brava… brava… vai me deixar sem café da manhã.
— Cala a boca, Verena. — disse em voz baixa, cortante. — Você não está indo pra casa.
A cada passo, Lilian sustentava mais peso do que esperava. Verena se arrastava, os saltos batendo no chão irregular da garagem. A jornalista, no entanto, mantinha o semblante firme, quase frio.
Chegaram até a porta. Lilian esticou a mão, pegou o controle que abria a suíte e empurrou a deputada para dentro, fechando rapidamente a porta atrás delas. O ambiente era limpo demais, artificial demais: cama enorme com lençóis impecáveis, abajures acesos em luz âmbar, frigobar cheio. O silêncio só era quebrado pela respiração irregular de Verena.
Ela cambaleou até a cama, quase caindo de cara, mas Lilian conseguiu guiá-la para sentar. O blazer escorregou dos ombros, revelando a camisa amarrotada.
— Eu disse… sofá. — murmurou, antes de rir outra vez.
Lilian a encarou, séria, tirando os saltos e largando-os no canto. Aproximou-se com calma, tirando o blazer e jogando na cabeceira
— Você não faz ideia de como é previsível. — disse, quase num sussurro.
E então, se sentou ao lado, cruzando as pernas, olhando Verena como quem já sabia que tinha vencido.
Motel Solaris — 01h51
O quarto carregava o cheiro agridoce de álcool misturado ao perfume caro de Lilian. A luz baixa fazia sombras dançarem pelas paredes, enquanto Verena afundava no colchão como quem lutava contra a própria consciência. Os óculos tortos, a camisa meio aberta, a respiração pesada.
Quando a porta se abriu, o clique da fechadura pareceu ecoar mais alto que o riso arrastado da deputada.
Jéssica entrou com a calma de quem já previa a cena. O salto marcava cada passo sobre o piso frio, e o olhar clínico varreu o quarto antes de pousar na figura largada de Verena.
— Bem, bem, bem… — murmurou com ironia, encostando-se à parede. — Quem diria. A poderosa Verena Castilho… assim.
Lilian, ainda sentada à beira da cama, ergueu o olhar num gesto rápido, quase irritado.
— Feche essa porta, pelo amor... — disparou em voz baixa.
Verena tentou erguer a cabeça, confundida, mas só conseguiu rir, tropeçando nas próprias palavras.
— Vocês duas… tão sérias… eu só queria… uma taça… Silvia vai… vai me pôr no sofá se eu não for…
Tentou se levantar, apontando o braço em direção ao frigobar, mas Lilian empurrou de volta com a palma firme sobre o ombro, sem paciência, fazendo-a tombar de volta. O colchão gem*u, e Verena riu alto, tentando ajeitar os óculos outra vez.
— Quietinha, Castilho. — sussurrou, sem disfarçar o tom de comando.
Jéssica avançou um passo, cruzando os braços, um sorriso frio nos lábios.
— É quase poético, Lilian. Você sempre quis ela. E agora olha só: está entregue. Um presente.
— Não é poesia, é logística. — retrucou Lilian, sem humor. O tom seco denunciava a tensão. — Mas se não formos rápidas, o plano inteiro vai por água abaixo.
Verena, alheia ao peso das palavras, piscava devagar, tentando acompanhar o que acontecia à sua volta.
— Plano? — murmurou, rindo de novo. — Vocês… vocês conspiram… eu sabia…
Jéssica se aproximou da cama, inclinando-se com elegância calculada. O rosto dela ficou a poucos centímetros do de Verena, que cheirava a álcool e perfume misturados.
— Ah, deputada… — sussurrou, quase com ternura falsa. — Eu só quero ouvir você falar.
Verena tentou responder, mas a voz saiu embaralhada, misturada a uma risada breve. Lilian olhou para Jéssica, firme:
— Se quiser que ela confesse, tem que ser agora.
Motel Solaris — 02h17
O quarto respirava tensão. Verena, largada sobre a cama, esticava o braço em direção ao frigobar, repetindo como uma criança teimosa:
— A champanhe… eu quero a champanhe…
Lilian suspirou, perdendo a paciência.
— Isso vai acabar com tudo. Ela vai apagar antes de abrir a boca. — disse firme, o olhar cortante na direção de Jéssica.
Mas a advogada não recuou. Lentamente, ajoelhou-se diante do frigobar, abriu a portinha e retirou uma garrafa pequena de champanhe gelada. O vidro tilintou contra o metal, e ela ergueu a garrafa como um troféu.
— Você está preocupada demais, Lilian. — ironizou, abrindo o lacre com calma. — Eu sei o motivo.
Lilian a encarou, desconfiada.
— Não começa.
Jéssica sorriu de canto, enquanto o gás escapava com um estalo seco.
— Ah, mas é delicioso ver você tão ansiosa. — disse, aproximando-se da cama com a garrafa na mão. — Medo de que ela durma? Ou medo de que diga o nome que você não quer ouvir?
Verena riu alto, tentando se apoiar nos cotovelos.
— Nome? Que nome? — perguntou, arrastando a voz, os óculos caindo pela metade do rosto.
— Calma, deputada. — Jéssica se inclinou, quase roçando os lábios na orelha dela. — Vai ter sua champanhe… e eu vou ter minhas respostas.
Estendeu a garrafa, colocando-a entre as mãos da parlamentar. Verena segurou desajeitada, parte do líquido derramando sobre o lençol. Riu de novo, sem perceber o veneno no gesto.
— Aqui está. — murmurou Jéssica, o sorriso frio. — Beba. Depois… você vai poder se satisfazer em alguns minutos. – Terminou olhando para a jornalista.
Lilian girou o corpo de lado, quase num ímpeto de raiva, mas conteve-se.
— Você está passando dos limites.
Jéssica ergueu a sobrancelha, sem perder a calma.
— Limites? — sussurrou. — Quem é você pra me falar de limites Lilian?
E no centro da cama, Verena bebia entre risos e soluços, sem notar que o jogo se estreitava à sua volta.
Motel Solaris — 02h24
O ar-condicionado sussurrava do alto, luz verde discreta no termostato aceso. A suíte tinha cheiro de lençol passado a ferro, perfume doce e álcool derramado. Na mesa lateral, a garrafa de champanhe suava, gotículas escorriam e formavam um anel úmido na madeira. Verena afundava na cama, um joelho para fora, a blusa social aberta no primeiro botão, os óculos, tortos, insistiam em escorregar.
Jéssica não tinha pressa. Ajoelhada ao lado, ajeitou com dois dedos a armação no rosto de Verena com o cuidado de quem recoloca uma peça de laboratório. A outra mão, fora de vista, tocou duas vezes no celular virado para baixo sobre o criado: a tela acendeu e, sem som, um filete vermelho indicou que o gravador estava ligado.
— Devagar, deputada. — sussurrou, oferecendo a garrafa, mas segurando a base para controlar o ritmo dos goles. — Respira.
Lilian, encostada na cômoda, observava as duas com o maxilar tenso. O salto pousado de lado, a mão apertando o copo pelo gargalo até os nós dos dedos esbranquiçarem. Quando Jéssica se inclinou demais — o perfume roçando o queixo de Verena, o fio de cabelo caindo no pescoço da deputada, um lampejo de ciúme atravessou o rosto da jornalista, tão breve quanto cortante.
— A gente não tem a noite toda. — disse Lilian, controlada, mas com o veneno aparente. — Se ela dormir, foi tudo à toa.
Jéssica manteve o sorriso, sem olhar para ela.
— Relaxa. Cada uma de nós vai sair com o que quer. — respondeu macio, como quem recita uma promessa antiga. — Você sabe que eu cumpro com o que prometo.
Verena levou o gargalo à boca. Parte do líquido tocou os lábios e voltou, num tropeço. Ela riu sozinha, um som curto.
— Vocês… vocês duas… — murmurou, procurando a palavra certa no meio de um labirinto. — conspiram…
— Não! Nós cuidamos de você, Verena. — Jéssica corrigiu, pousando a garrafa na mesa antes que virasse. A mão dela ficou ali, perto demais da perna da deputada — e perto o suficiente para Lilian endireitar o corpo, instintiva.
— “Cuidamos”… — Lilian repetiu, seca, tentando engolir a própria irritação. — Anda logo com isso Jéssica.
Jéssica então adotou o tom que usava em audiências difíceis, uma voz morna, sem arestas, que convidava a falar.
— Me diz uma coisa… — começou, como quem abrisse uma gaveta de memórias. — Naquela roda de conversa, na escola … você estava no controle até certo ponto. Depois… não. Quem mexeu com você?
Verena piscou, devagar. O ventilador de teto parecia girar dentro dos olhos dela, mesmo parado.
— Escola… — repetiu, tentando organizar os pensamentos. — Tinha… alunos… perguntas…
— Eu lembro. — Jéssica assentiu, aproximando milímetros. — Mas pergunta difícil nunca te derrubou. Foi alguém. Foi alguma aluna?
Silêncio. O ar-condicionado venceu um estalo. Lilian, imóvel, prendeu a respiração sem perceber.
— Ninguém… — Verena tentou rir, mas saiu um gorgolejo rouco. — Eu… tropecei…
Jéssica não retrucou. Esperou. O truque não era empurrar, era dar espaço para a confissão querer existir.
— E antes de “tropeçar”… você estava olhando pra onde?
Os olhos de Verena, perdidos no teto, desviaram um pouco para a direita — como se seguissem um fantasma na penumbra.
— Pro meio da roda… tinha uma menina… ela…
— Isso, uma menina. — Jéssica sussurrou, encorajando. — Aquela menina… do segundo ano, né? Eu notei o jeito que você olhava pra ela. E aquela caneta? A sua caneta… você deu só pra ela?
Lilian se moveu levemente, como se algo tivesse lhe espetado a coluna.
Verena não respondeu. Mordeu o lábio, o gesto mais involuntário do que consciente e o sobressalto foi visível.
— Quando você saiu… — Jéssica prosseguiu. — Quem foi a primeira pessoa que passou pela sua cabeça? Não precisa dizer tudo. Uma sílaba. Eu te ouvi a vida inteira em plenário, entendo você até com um sussurro.
A resposta veio num fio, arrastada de dentro do peito:
— Va…
Lilian fechou os olhos por um segundo, como se aquele som lhe tivesse arrancado parte da pele. Endireitou as costas, forçou um sorriso.
— Va… — repetiu, tentando parecer leve. — “Vá” pra casa. É isso.
— Va… — Verena insistiu, e as sobrancelhas se juntaram. — Va…len…
Jéssica não olhou para Lilian. A mão pousou no dorso da deputada, cálida, firme, ancorando.
— Tá tudo bem. — garantiu. — Eu já sei.
Lilian inspirou fundo, segurando o ímpeto de atravessar a sala e arrancar a mulher de perto da cama. Entreabriu a boca, fechou, assentiu para si mesma — treino de quem aprendeu a modular obsessões em ambientes públicos.
— Você disse que cada uma ia sair com o que quer. — lembrou, quase rindo, mas havia vidro na risada.
— E vai. — Jéssica retrucou, sem se virar. — Você quer a Verena. Eu quero portas abertas. Nenhuma de nós precisa gritar pra conseguir.
No criado-mudo, o celular vibrou uma vez — um ícone de mensagem brilhou e morreu. Silvia. Jéssica pousou a ponta dos dedos sobre a tela para abafar uma nova vibração. Verena não viu. Só sussurrou, num pedido que parecia criança:
— Eu… não posso…
— Não pode o quê? — Jéssica encorajou, baixinho. — Dizer o nome dela?
O silêncio pesou. E então a confissão veio, não em forma de nome, mas de imagem:
— O cabelo… — ela disse, e o rosto se amoleceu com a lembrança. — Prendeu no zíper… e… eu…
Jéssica congelou por um instante. A informação era nova. Um brinde. O tipo de detalhe íntimo que não se inventa embriagada. O tipo de cena que só existe… quando existiu.
Lilian perdeu o chão. A mão apertou o copo até o gelo estalar.
— Chega. — disse, mais áspero do que queria. — Você já tem o que queria.
— Ainda não. — Jéssica respondeu, baixo, sem perder a música. — Ela precisa dizer o que sente. Palavras valem decreto.
Voltou a Verena, tão perto que a respiração das duas se misturou.
— Aconteceu alguma coisa entre vocês duas?
Verena demorou. Piscou duas vezes. A voz saiu com o timbre de quem atravessou a rua no sinal fechado:
— Eu...
— Você... — Jéssica levou, milímetro a milímetro. — O que aconteceu?
O silêncio se partiu em dois. Lá fora, um carro acelerou na avenida, o som chegou amortecido, como se viesse de outra cidade. Verena mordeu o canto da boca. A pele do rosto ficou mais quente de repente.
— Beijo. — disse, num fio. — Eu não podia… mas, mas eu quis. Ela é... linda!
Lilian respirou como quem emerge. A obsessão não era mais fome, era náusea e alívio ao mesmo tempo. O objeto do desejo confessara, mas a confissão nasceu nos lábios da outra. A jornalista deu dois passos para trás, encostou-se na parede fria e deixou a nuca bater, buscando um limite físico para não atravessar a cena.
Jéssica recolheu a garrafa, afastou-a definitivamente, e alcançou um copo d’água.
— Bebe. — pediu, e dessa vez havia cuidado genuíno no gesto. — Chega de álcool.
Verena, obediente, deu um gole, depois outro. A água traçou um caminho pela garganta, e por um instante ela pareceu voltar um centímetro para a superfície.
— Eu… — começou, mas a frase perdeu o chão. — Eu… não sou…
— Não se preocupa deputada. — Jéssica completou, quase com doçura. — Você quer essa menina, então vai ter. – Terminou a última frase num sussurro, mais para si mesma.
A advogada então se levantou, recolheu o celular do criado e apenas o encostou na própria palma, calando o gravador com um toque. Voltou-se para Lilian.
— Está feito. — disse, sem ornamentar. — É o bastante para mim.
— E para mim? — Lilian devolveu, as unhas marcando a pele da própria mão. — O que me prometeu?
Jéssica a mediu com o olhar — não com desdém, e sim com a frieza de quem distribui cartas.
— Ela tá aqui não tá? — falou, objetiva. — Quer que eu faça o quê agora? Participe também? – Riu com deboche antes de apagar o abajur mais próximo. A penumbra engoliu as arestas do quarto.
— Deixa de drama Lilian — disse à jornalista, cruzando a suíte rumo à porta. — Eu sugiro começar logo antes que ela comece a vomitar.
— Começar o caralh*! — Lilian estalou, se erguendo com fúria. — Isso não foi o que a gente combinou!
Jéssica parou na metade do caminho. Virou só o rosto, sem pressa.
— Combinado? — repetiu, como se tivesse ouvido uma piada ruim. — Eu combinei acesso. Não performance.
— Ela tá apagada! — Lilian rosnou, entre dentes. — E você sabia que isso ia acontecer! Fez ela beber mais do que devia. Só pra extrair o que queria.
— E consegui. — Jéssica respondeu, fria. — Agora ela é toda sua. Faça bom proveito.
— Vai se foder. — Lilian devolveu, andando até o pé da cama, respirando fundo como quem contava até dez pra não explodir. — Eu não queria ela assim, Jéssica. Eu queria ela, inteira. Hoje.
— Então pega. — a outra deu de ombros, abrindo a porta com um estalo seco. — Ela não tá correndo. É você quem tá com medo de tocar.
Lilian congelou por um segundo. Olhou para Verena — os olhos semicerrados, o rosto entregue, vulnerável — e depois voltou o olhar para a mulher que cruzava a soleira.
— Você é podre. — disse, amarga.
Jéssica soltou um sorrisinho de canto, quase divertido.
— Você também. A diferença é que eu admito.
A porta fechou com força contida, abafando tudo do lado de fora. O ar-condicionado continuou a sussurrar, indiferente ao pacto, indiferente ao desejo atravancado.
Lilian sentou-se na beira da cama e, por um instante, só olhou. A mão chegou a tocar a barra da blusa da deputada, mas recuou. O corpo ali era dela por um fio. Mas o que fazer com um corpo sem alma?
O celular da Verena vibrou novamente, esquecido no móvel. A tela brilhou e morreu. “Silvia”.
Lilian fechou os olhos, pressionou as têmporas com força. A obsessão, por aquela noite… aprenderia a se calar?
Permaneceu imóvel por alguns segundos. O som da porta ainda vibrava dentro dela como um tapa não dado.
Depois se inclinou devagar, os olhos fixos no rosto adormecido de Verena — os cílios relaxados, o maxilar finalmente sem tensão.
Por um momento, pensou em ir embora.
Mas não foi.
Com a ponta dos dedos, desabotoou o segundo botão da camisa. Depois o terceiro. Com a delicadeza de quem desmonta uma lembrança antiga, afastou o tecido do corpo da deputada, revelando a pele pálida, o sutiã frouxo, já torto sob a blusa, semiaberto, uma alça fora do lugar.
Lilian puxou-o delicadamente pelos ombros, sem pressa, como quem desnuda uma relíquia. O pedaço de renda azul clara ficou pendurado em sua mão por alguns segundos. Ela o observou em silêncio. E então, sem pensar, enfiou dentro da bolsa.
— Isso eu vou levar. — murmurou. — Só pra lembrar que hoje… você foi minha.
Verena soltou um som baixo, um resmungo sem forma. Lilian congelou. Mas a mulher não acordou. Apenas virou o rosto um pouco, ainda afundada na inconsciência de quem bebeu mais do que devia.
Lilian se despiu aos poucos, sem charme, sem plateia — como se aquilo fosse um ato de fé. Deitou-se ao lado e, com cuidado, se aninhou sobre o peito da mulher adormecida. Um suspiro escapou. Mais dela do que de Verena.
Puxou a coberta até os ombros. A pele nua encostando na outra. A perna jogada sobre as coxas da deputada. As mãos agarrando, sem força, a cintura que ela decorara em mil discursos.
— Você quietinha assim é perfeita. — sussurrou, a boca encostando na curva do pescoço. — Sem me interromper. Sem fugir.
O rosto repousado no colo da mulher que amava. Ou melhor — que achava amar. Ou talvez… que não sabia amar de outro jeito.
— Você é minha. — sussurrou, com a boca colada ao osso da clavícula. — Sempre foi. Desde antes daquela primeira entrevista… lembra? Quando você me corrigiu no ar e eu senti raiva e tesão ao mesmo tempo. Eu devia te odiar. Mas não consegui dormir naquela noite. Você me desmontou com uma frase.
A voz tremia, mas não parava.
— Eu te vi casar. E eu sorri. Na redação, no banheiro, sozinha. Eu sorri. E depois chorei tanto que precisei lavar a cara no banheiro dos homens. Vi você virar mãe de campanha. Vi você engolir o mundo com esses olhos cansados. E eu continuei aqui. Atrás das colunas. Das câmeras. Dos panfletos.
A mão subiu e parou entre os seios da deputada, sem apertar. Os olhos começaram a marejar, mas o choro não era limpo. Era um choro ácido, carregado de anos de frustração.
Era devoção.
Era loucura.
Fechou os olhos por um segundo, mas a cabeça não parava.
— Lilian Nobrega… não. — riu sozinha, o som cortando o ar como uma lâmina molhada. — Lilian Castilho. Isso, assim que devia ser. Você só não sabe ainda.
Ficou em silêncio por alguns segundos, ouvindo o coração de Verena batendo sob seu ouvido. Ritmo lento. Forte. Indiferente.
— Ninguém vai te amar como eu. — disse, num sussurro mais baixo. — Nem aquela menina. Nem a Silvia. Nem você mesma. Você se sabota. Eu te seguro.
O corpo de Verena mexeu um centímetro — um suspiro mais fundo, um músculo do braço reagindo. Mas não acordou.
Lilian fechou os olhos e se colou ainda mais ao peito da outra. Chorou em silêncio.
As mãos escorregaram pelas costelas de Verena, sem força. Como quem revisita um corpo que nunca foi seu, mas sempre foi.
— Aquela convenção… lembra? Quando você tirou os sapatos e sentou no chão do camarim? Você me ofereceu uma uva. E eu recusei. Devia ter aceitado. Devia ter encostado a cabeça no seu joelho. Devia ter beijado sua perna, pelo menos. Mas eu era covarde. Agora não sou mais.
A voz foi sumindo, ficando mais baixa, mais íntima.
— Você vai ver. Vai entender. Não precisa da Silvia. Ela não vai durar. Essas esposas de vitrine não aguentam sua sombra. Eu aguento. Eu limpo. Eu sustento. Eu cuido de você. Até o fim.
A coberta se moveu levemente quando Lilian se apertou mais, as mãos agarraram a cintura de Verena como se quisessem colar nela, fundir, buscando calor. A obsessão, naquela noite, não quis mais esperar.
O celular vibrou de novo. “Silvia”. Mas ninguém atendeu.
Lilian não se mexeu. Só virou o rosto para o colo da deputada, os olhos fixos num ponto imaginário. A luz morreu sem testemunhas.
— Se ela sumisse… você seria minha. Se ela morresse… você me chamaria.
Fechou os olhos com força.
— Mas não precisa disso. Você já está aqui. Você só não acordou ainda pra ver.
Silêncio.
Verena respirava, e era só isso que restava entre o mundo real e o delírio de Lilian. A jornalista se aconchegou mais. Beijou o centro do peito da deputada, como quem sela um pacto silencioso.
— Eu te amo. De um jeito que ninguém deveria amar. Mas eu amo mesmo assim. E agora… você sabe.
As lágrimas escorreram. Não havia mais raiva. Só a obsessão finalmente satisfeita.
Fria.
Cansada.
Viva.
Lilian fechou os olhos e dormiu ali, nua, grudada no corpo da mulher que jamais seria sua — mas que, por uma madrugada, não foi de mais ninguém.
Na manhã seguinte — 06h14
O quarto ainda estava na penumbra. O ar-condicionado sussurrava como na noite anterior, mas agora o som parecia mais agudo, mais cortante. Lilian abriu os olhos devagar. Estava encolhida contra o corpo de Verena, uma perna ainda jogada sobre ela, o braço afundado na cintura. Por um instante, não soube onde estava.
Depois lembrou.
E sorriu.
Verena continuava dormindo. A boca entreaberta, os olhos cerrados, o rosto virado para o lado oposto. O cabelo desalinhado se espalhava no travesseiro — e no peito da jornalista. A camisa aberta, o lençol levemente amarrotado, o rosto em paz. Quase pareceu amor.
Lilian inspirou fundo. Estava quente ali. E não só pelo corpo da outra. Estava quente dentro dela. Uma febre antiga. Desfez o abraço devagar. Tirou a perna, depois a mão. Cada movimento era silencioso, calculado. Como quem desarma uma bomba. Sentou-se na beira da cama, ainda nua, com as mãos apoiadas nas coxas. Observou o corpo da outra por longos segundos.
— Você nem se mexeu. — murmurou. — Como um altar.
Levantou-se e pegou a roupa largada pelo quarto. Vestiu-se sem pressa. Calcinha, sutiã, vestido. Sapatos. Pegou a bolsa. Antes de sair, voltou-se uma última vez para a cama.
Se aproximou de novo.
Verena ressonava baixo. O lençol subia e descia no ritmo da respiração.
Lilian se abaixou. Com uma das mãos, afastou devagar o cabelo que cobria o pescoço da deputada. A pele ali era fina, macia, vulnerável.
Inclinou-se.
Primeiro, um beijo.
Depois… os dentes.
A mordida foi firme. Não violenta. Mas suficiente. A pele reagiu. A marca surgiria dentro de minutos, talvez antes. O tipo de marca que não desaparece em poucas horas. Lilian a olhou com admiração — como se fosse sua obra-prima.
Quando se afastou, deixou o rosto próximo o suficiente para que o hálito quente invadisse o ouvido da mulher adormecida.
— Só pra você saber… que eu estive aqui. — sussurrou. — E agora, você não vai mais esquecer.
Depois... puxou a gola da camisa de volta. Com cuidado. Com zelo.
Arrumou o tecido com os dedos, ajustando cada canto, cada dobra. Escondeu a marca como se cobrisse uma relíquia. Um segredo.
— Ninguém precisa ver. — murmurou. — Nem ela.
Ficou ali, olhando a gola ajeitada. A mão pousada sobre o peito da mulher dormindo.
Fechou os olhos. E então… recitou.
— Na saúde. Na política. No escândalo. Na ruína. Na queda. Na vergonha. E no silêncio.
Inclinou-se e sussurrou no ouvido de Verena:
— Até que você acorde… E diga sim.
Não havia ironia.
Não havia plano.
Só fé cega.
E um amor doente demais para caber em palavras.
Ajeitou a alça do sutiã escondido no fundo da bolsa. Tocou os próprios lábios com os dedos — e depois encostou a mão na boca da outra, como se pudesse sentir o beijo através do toque.
— Eu te amo meu amor. — sussurrou.
Então virou-se.
Foi até a porta.
Abriu.
Mas antes de sair, olhou pela última vez. A mulher que dormia. A marca sob a gola. O corpo que ela não teve… mas tocou. E o nome que, um dia, ainda esperava ouvir com amor:
“Lilian.”
Saiu sem fazer barulho. O ar-condicionado continuou sussurrando. Verena não acordou. Mas estava marcada. Para sempre.
Casa da Família Moraes — 06h30 da manhã
O despertador tocou pela terceira vez, insistente, até que a mão de Valentina o alcançou e silenciou de vez. Ela não se levantou de imediato. Ficou ali, de olhos abertos, encarando o teto encardido do quarto, como se houvesse alguma resposta escrita nas marcas de umidade. Não havia.
Suspirou. Um suspiro sem força. Virou o rosto pro lado. Isadora ainda dormia encolhida no colchão ao lado, um dos braços por cima da boneca sem cabelo. Valentina levantou devagar, com o cuidado de não acordar a irmã.
Foi ao banheiro. Ligou a torneira. Lavou o rosto. O gesto foi automático, sem pressa nem energia. A água escorrendo não despertava nada, era só mais uma etapa da coreografia diária. Olhou-se no espelho. A olheira parecia maior. O cabelo, armado. Penteou sem capricho, apenas o bastante pra não ouvir a mãe reclamar.
A cozinha já tinha cheiro de café coado. A mãe falava alguma coisa com o pai sobre contas, mas as palavras chegavam até ela como sons distantes, embaralhados, sem forma. Sentou-se à mesa. Passou margarina no pão. Mastigou sem sentir gosto. Olhou o relógio da parede. Sete e quinze. A mochila já esperava perto da porta.
— Tá ruim filha? — Ana Paula perguntou, preocupada.
A menina deu de ombros, sem encarar.
— Tô sem fome.
Carlos a observou, mas não disse nada. Só franziu a testa antes de sair pro trabalho.
Valentina se levantou, pegou a mochila, enfiou os pés nos tênis. O corpo fazia tudo sozinho. Como se fosse uma marionete puxada por cordas invisíveis.
Na rua, o ar da manhã bateu frio, mas não trouxe alívio.
Alguns, jovens, também uniformizados, falavam alto, riam de algum vídeo, do outro lado da calçada. Valentina seguia olhando os próprios passos, os fones de ouvido sem música só pra não ter que sair da própria bolha.
Enquanto caminhava, a cena se repetia: a mão de Verena segurando seu rosto, o hálito quente, o cheio de hortelã, a textura dos lábios. O beijo que tinha acontecido como um choque elétrico. Fechou os olhos com força, mas a imagem não sumia.
O estômago se revirou. Não sabia se era culpa, medo, ou saudade de um instante que jamais devia ter existido. Sentia vontade de chorar, mas as lágrimas também pareciam ter secado. Era só vazio.
Chegou à escola antes do sinal, como sempre. Entrou pelo portão, cumprimentou Regina com um aceno rápido. Caminhou pelo corredor cheio de vozes, sem ouvir nenhuma. Tudo soava distante.
Sala de aula — manhã de quarta-feira
O ventilador no teto rangia a cada volta, soprando um ar morno que não refrescava ninguém. A voz do professor se espalhava pelo quadro e pelo corredor, mas para Valentina soava distante, como se viesse de trás de uma parede grossa de vidro. O caderno em sua frente estava aberto, mas não passava de rabiscos. Palavras soltas, frases que começavam e morriam antes do ponto final. Traços sem rumo.
Ela apoiava o rosto no braço dobrado sobre a carteira, os olhos pesados, sem foco. A imagem insistente voltava sempre. O professor falava de revolução industrial, mas na cabeça dela só havia o eco de uma respiração que não era a sua.
Carol, ao lado, fingia anotar a matéria. Mordeu a tampa da caneta pela terceira vez, sem perceber. Tentava se prender ao que o professor escrevia — "revolução industrial", "máquinas a vapor", "produção em série" —, mas tudo se embaralhava. Os olhos voltavam sempre para a amiga.
Tentava se concentrar, mas o peso no peito não deixava. Desde o simpósio, não tinha conseguido olhar para a amiga sem sentir a fisgada da culpa. Achou que seria leve, divertido, um truque de amiga que arma uma coincidência e depois ri do acaso. Queria bancar o cupido, a amiga cúmplice que cria coincidências. Mas não tinha previsto as consequências.
E agora, a amiga parecia se dissolver em silêncio.
Mordeu mais forte a tampa da caneta, engolindo um gosto amargo de plástico.
No intervalo, desceram juntas até o pátio. O barulho dos alunos era ensurdecedor, mas parecia não atingir Valentina, que caminhava devagar, os ombros baixos. Comprou um pão na cantina, mordeu sem sentir gosto.
— Tá tudo bem? — Carol perguntou, num tom tímido, quase perdido no meio da algazarra.
Valentina levantou os olhos, demorou um instante como se buscasse a resposta no vazio.
— Tô. — disse, e a palavra morreu curta, seca, insuficiente.
Carol assentiu com a cabeça, mas não acreditou. Ficou em silêncio, acompanhando a amiga mastigar mecanicamente. Quis dizer tudo: pedir desculpas, confessar que sabia, que tinha armado, que achava que seria bonito, divertido. Mas e se fosse pior? E se o silêncio fosse menos doloroso do que a verdade?
De volta à sala, Carol se sentou ao lado, abriu o caderno. Escreveu algumas linhas sem sentido, apenas para fingir que acompanhava. Mas os olhos caíam sempre sobre o estojo da amiga, onde repousava a caneta dourada com o nome gravado: Verena Castilho.
Um presente que não era dela, mas que gritava presença.
O peito apertou. Era como se cada vez que a caneta aparecia, lembrasse a amiga de algo que a fazia definhar mais. E Carol, cúmplice de tudo, sentia-se uma traidora em silêncio.
Motel Solaris — 10h02 da manhã
O quarto estava silencioso demais. Só o ar-condicionado insistia em sussurrar do alto, indiferente ao corpo largado na cama. Verena abriu os olhos com esforço. A claridade tímida da cortina mal fechada ardeu na retina. Piscou duas vezes, mas a sensação de areia não passava.
A cabeça latej*v*. Não era só ressaca — era peso, era cansaço, era o vazio de quem não sabia se queria lembrar. Passou a mão no rosto. Estava quente. A boca amarga, ressecada. A língua ainda sentia o gosto metálico de álcool barato misturado ao champanhe da noite anterior.
Virou o rosto devagar. Ao lado, o travesseiro estava afundado, amassado, mas vazio. Só o perfume adocicado no lençol, misturado ao cheiro seco de ar-condicionado.
Sentou-se com dificuldade. A camisa estava aberta, um dos botões arrancado.
Levantou-se cambaleante, pés frios no carpete. Foi até o banheiro. A cada passo, o corpo parecia resistir. Os músculos pesados, a cabeça girando devagar. Ligou a torneira. Lavou o rosto com as duas mãos. O choque da água fria trouxe só um alívio temporário.
Quando ergueu o olhar para o espelho, congelou.
No lado esquerdo do pescoço, bem na curva entre o ombro e a mandíbula, uma marca roxa começava a se formar. Não era batom. Não era um arranhão. Eram dentes. Uma mordida. Clara. Profunda o suficiente para não ser acidental.
Verena levou os dedos até a pele. Pressionou devagar. Doeu. Um arrepio subiu pela espinha, mais forte do que o frio da água.
Ela tentou buscar lembrança. Um gesto. Uma voz. Um toque. Mas não se lembrava de nada além de pedir uma ou duas doses em algum bar.
O peito apertou. Alguém esteve ali. E deixou uma assinatura.
Se afastou do espelho, tropeçando no próprio reflexo. Voltou para o quarto. Pegou o celular com as mãos trêmulas. Dezenas de ligações perdidas da esposa e algumas de Rafaela. Abriu as mensagens de Silvia, mas não teve coragem de responder. Enfiou o aparelho de volta no bolso. Sentou-se na beira da cama, as mãos nos joelhos, respirando fundo.
O quarto parecia menor agora. O ar-condicionado soprava mais forte. Ela fechou os olhos por um instante, mas a imagem da marca voltava, insistente, como uma cicatriz que já não pertencia a ela.
Verena sabia discursar de improviso, enfrentar adversários no plenário, arrancar palmas até de quem não a suportava. Mas diante do espelho, com o próprio corpo marcado por alguém em quem não confiava, só conseguiu sussurrar uma palavra, quase sem voz:
— Merda…
Respirou fundo, tentando se recompor. Começou a fechar os botões da camisa, quando viu que faltava uma coisa. O sutiã.
Mas quando procurou… não encontrou.
Olhou debaixo da cama, no canto perto da cortina, no banheiro. Nada. Aquela peça íntima simplesmente não estava ali.
O estômago revirou. Um arrepio percorreu a nuca.
Não era só a marca no pescoço. Alguém tinha levado alguma coisa dela. Um pedaço pequeno, invisível para os outros, mas íntimo demais para ser ignorado.
O peito apertou. E pela primeira vez em muito tempo, Verena Castilho não se sentiu poderosa, nem desejada. Sentiu-se invadida.
Sentou-se outra vez na beira da cama, os cotovelos nos joelhos, a respiração pesada. O celular voltou a vibrar no bolso.
Silvia.
Verena fechou os olhos. Atendeu.
— Alô?
A voz do outro lado veio tão rápida, tão trêmula, que ela mal conseguiu respirar.
— Verena?! Pelo amor de Deus, onde você tá?! Eu te liguei quinze vezes! Eu tô desde ontem tentando falar com você! Você sumiu! Você sumiu, Verena!
Ela apertou os olhos com força. Engoliu seco. Afastou o celular do ouvido por um segundo. Depois voltou a encostar. A voz da esposa vinha carregada de medo, mas não só. Era raiva.
Pura. Quente. E com razão.
— Sil, calma... eu... eu tô bem, tá? Desculpa. Eu saí de uma reunião tarde ontem, tava morta. Achei melhor dormir num hotel perto da Alesp. Nem vi a hora. Apaguei. Não queria te acordar no meio da madrugada.
— Você não queria me acordar?! — Silvia engasgou a frase. A voz falhou. — Verena, são DEZ E MEIA da manhã. Você some, não atende, não responde, eu te ligo QUINZE vezes... e você não queria me acordar?
Verena apertou os olhos, como se a força nas pálpebras pudesse apagar a vergonha.
— Eu sei. Eu devia ter avisado. Foi uma decisão idiota, tá? Eu reconheço. Eu só... eu só tava cansada, Silvia. Tinha um monte de coisa ontem, a sessão se estendeu, depois reunião com o jurídico, a cabeça fervendo... e eu não quis voltar pra casa do jeito que eu tava. Preferi dormir por ali. Só isso.
Do outro lado da linha, silêncio. E então um soluço abafado. Depois outro. E, entre eles, uma respiração curta, falhada.
— Eu achei que tinha acontecido alguma coisa com você. — Silvia disse enfim. A voz já não era raivosa — era quebrada. — Eu acordei de madrugada e você não tava. Nem um bilhete. Nem uma mensagem. Nada. Eu fiquei horas imaginando se alguém ia bater na minha porta de manhã... pra me dizer que você...
Verena sentiu o coração apertar dentro do peito, como se alguém o tivesse dobrado em quatro.
— Ei... não fala isso. Eu tô bem. Eu tô aqui. E eu juro, amor, eu juro que não foi por mal. Foi só descuido. Eu... eu apaguei.
— Eu sou o quê pra você Verena? — Silvia continuou, agora com mais firmeza, mesmo chorando. — Você não é minha colega de trabalho. Nem minha amiga de infância. Você é minha esposa. E me deve, no mínimo, um aviso.
— Eu sei. Você tem toda razão.
A resposta saiu baixa. Engolida por orgulho e culpa.
— Eu fiquei desesperada. — Silvia repetiu. — Pensei até em te procurar em hospital, em delegacia. Eu fiquei desesperada, Verena. Sozinha. Nem a Rafaela sabia de você.
— Não fala assim. Eu tô aqui. Tô indo pra casa. Tá bom? Me espera com aquele café com leite e baunilha, vai?
A tentativa de suavizar a tensão veio com um sorriso fraco nos lábios. Mas o silêncio do outro lado não correspondeu. Silvia respirou fundo. Até que falou. Baixo, seco:
— Você acha que isso tem graça?
Verena congelou.
— Não, eu só… — hesitou, percebendo o erro — eu tentei…
— Não tenta. — Silvia cortou. A voz vinha mais fria agora, quase controlada demais. — Eu não sei mais o que fazer com você Verena.
E desligou.
O estalo seco do fim da chamada pareceu amplificado, como se tivesse eco. Verena ficou ali, imóvel, o celular ainda encostado no ouvido, ouvindo um vazio que não era silêncio — era ausência. A cabeça pendeu pra frente, o ombro cedeu junto.
O peso do silêncio da esposa era pior do que qualquer acusação.
Devagar, como se a mão pesasse o triplo, abaixou o celular até ele cair na cama. Respirou fundo — uma tentativa de se reerguer por dentro — e se virou para o espelho.
A marca no pescoço já não podia ser ignorada. Duas tonalidades: um roxo fechado no centro, bordas mais vermelhas, como um campo de hematoma em expansão. Era o tipo de coisa que não se esconde com pressa. Nem com base ruim.
Tocou com a ponta dos dedos.
Doía.
Desviou o olhar para o chão. Nada. O sutiã tinha sumido como se nunca tivesse existido. Procurou mais uma vez ao redor da cama, perto da cortina, na fresta entre a parede e o criado. Vazio.
Um arrepio percorreu sua espinha, lento. Não era medo. Era nojo de não saber.
“Alguém levou isso.”
“Eu fui... tocada?
“E agora eu vou atravessar a porta de casa como se tivesse apenas dormido num hotel qualquer.”
Foi até a poltrona. Pegou o blazer com dedos trêmulos. Vestiu. Abotoou até o último botão. O colarinho subiu um pouco — não o bastante. A gola não alcançava a mancha. Nem perto.
Suspirou. Um suspiro rouco, engasgado.
Já havia enfrentado comissões de ética, CPI’s, jornalista escroto, deputado misógino, panfleto apócrifo com fake news, até ameaça de morte. Mas nada — absolutamente nada — parecia tão insustentável quanto o que vinha agora.
Cruzar a porta de casa. E encarar Silvia. Sabendo que o amor que a esperava lá dentro vinha misturado à desconfiança mais dolorosa de todas: a de quem ama e não reconhece mais o que vê.
Verena passou a mão no rosto com força. Como se quisesse apagar tudo — a noite, o gosto de álcool, o buraco na memória, a culpa. Mas o toque só espalhou ainda mais a sensação de sujeira.
Recolheu a bolsa. Guardou o celular. Olhou o quarto uma última vez.
A garrafa pela metade. O abajur torto. A cama desfeita. A marca no espelho. E o reflexo de uma mulher que, pela primeira vez em muito tempo, não sabia como ia sustentar a própria mentira.
Saiu sem olhar pra trás. E o silêncio, do lado de dentro, continuou exatamente como ela deixou.
Apartamento de Verena e Silvia — 11h20
A chave girou na fechadura com mais ruído do que Verena esperava. Era estranho como o som de sempre agora parecia mais alto. Mais acusatório.
Empurrou a porta devagar. O ar da sala estava parado, intacto — como se o tempo tivesse se recusado a passar sem ela.
Entrou. Trancou atrás de si. E só então respirou um pouco. Silvia não estava ali. Nem na sala, nem à vista no corredor. Um alívio seco atravessou o peito — daqueles que aliviam o corpo, mas não libertam a alma.
Verena encostou as costas na porta, os olhos varrendo o espaço em silêncio. O abajur da sala apagado. O sofá arrumado. A caneca ainda na mesinha lateral, com a borda marcada de batom nude. Silvia tinha saído cedo. Talvez mais cedo do que de costume.
Tirou o celular do bolso. Tocou no nome dela. Ligação.
Chamou uma vez.
Duas.
Três.
Nada.
Encerrada a chamada, ficou olhando a tela como quem olha uma porta fechada.
Digitou uma mensagem:
“Cheguei em casa.
Desculpa mais uma vez.
Você tá no escritório?”
Enviou. Os dois tracinhos azuis não vieram. Verena ficou ali parada, o celular ainda na mão, como se ele pudesse responder por ela.
Caminhou até o quarto. Tirou o blazer. A gola da camisa tinha vincos molhados de suor.
Foi até o espelho. A marca no pescoço parecia ainda mais viva agora. Mais inchada, como se o sangue ali estivesse em revolta.
Abriu a gaveta da penteadeira. Achou a nécessaire de Silvia — uma de maquiagem mais leve, a que ela deixava em casa. Verena nunca foi boa com isso.
Tirou a base. Leu a tonalidade no rótulo. Bege-claro 02. Mais clara que a sua. Pegou o corretivo também. Pálido demais. Tentou assim mesmo.
Passou devagar sobre a marca. O líquido não cobriu. Só tornou tudo esverdeado, mais evidente. Pegou a esponja, tentou esfumar.
O efeito final era pior do que a mancha sozinha.
Verena fechou os olhos. A raiva agora era contra si mesma. Pela noite. Pela bebida. Pela fraqueza. Pela maldita sensação de não estar no controle. Respirou fundo. Jogou a esponja na pia com mais força do que pretendia.
Tentou de novo. Dessa vez com o próprio BB Cream antigo — esquecido num estojo rachado no armário. A cor se aproximava mais. Com uma camada cuidadosa, conseguiu suavizar a borda da marca. Mas não apagar.
Pegou uma camisa de gola mais alta. Escura. Fechou até o último botão. Voltou à sala. Se sentou no sofá. O corpo afundou no estofado com o peso acumulado de horas, dias, erros.
O celular ainda não tinha vibrado. Nenhum aviso. Nenhuma resposta. Só o silêncio, agora morando ali com ela. E mesmo sem Silvia ali, Verena sentia a ausência da esposa como um julgamento invisível.
A casa era a mesma. Mas não era mais dela. Não inteira. Pegou a caneca na mesinha. Estava seca por dentro.
— Me espera com café com leite e baunilha — murmurou sozinha, num sussurro ridículo, como quem quer fazer as pazes com o próprio vazio.
Mas o silêncio respondeu no mesmo tom. E doía igual.
Escritório Silvia Alencar | 11h52
Verena estacionou na vaga de visitantes do edifício comercial. Não se deu o trabalho de ligar antes. Silvia ainda não tinha respondido as mensagens que enviara ainda em casa.
Com os ombros tão tensos quanto a mão que apertava o celular, Verena entrou no prédio. Cumprimentou o recepcionista com um aceno rápido, ignorou o espelho do elevador, manteve a gola alta do blazer bem ajustada, apesar do calor abafado.
No andar do escritório, a porta de vidro já exibia a discreta plaquinha dourada: Silvia Alencar Advocacia. Verena empurrou sem bater.
— Bom dia. A doutora está em reunião, senhora Verena — avisou Juliana, desconfortada com a entrada abrupta.
— Eu espero.
Verena se sentou na sala de espera. O ar-condicionado parecia não funcionar ali. Passou a mão pelo colo, checando se a maquiagem seguia cobrindo a mancha. Não sabia se era paranoia, mas achava que o roxo da marca já tinha rompido a barreira da base.
Quase vinte minutos depois, a porta da sala de reunião se abriu. Silvia apareceu. Um vestido azul-marinho leve, salto fino, cabelos presos num coque malfeito. Os olhos castanhos claros pararam em Verena por um segundo longo demais.
— Combinamos assim então, doutor Vinícius. Eu envio os documentos revisados até o final da tarde.
O homem assentiu e se despediu discretamente. Silvia não sorriu.
Assim que a porta se fechou, a postura caiu.
— O que você está fazendo aqui?
— Tentando conversar. — Verena se levantou. — Eu vim te ver. Te pedir desculpas. Te explicar.
— Explicar? — Silvia riu sem humor. Cruzou os braços. — Onde você dormiu ontem, Verena?
— Num hotel. Tinha uma reunião tarde na Alesp. Achei melhor...
— E o celular? Esqueceu no carro? Caiu na privada? Acabou a bateria? Qual desculpa você quer me dar hoje?
— Eu não consegui pensar. Achei que ia parecer pior se ligasse de madrugada.
— Pior pra quem? Pra você?
Verena fechou os olhos. Sentia o gosto amargo da própria mentira. Silvia se aproximou, os olhos marejando, mas a voz firme.
— Verena... nós temos uma consulta marcada na semana que vem. Uma ultrassonografia. Ainda lembra?
Verena assentiu, baixando os olhos.
— E você some. Some. Me deixa achando que aconteceu algo grave com você, que sofreu um acidente. E quando finalmente resolve responder, só diz que "tava num hotel". Com quem, Verena?
O silêncio cortou o ar. Verena olhou para a esposa, tentando encontrar nela algum espaço de acolhimento. Mas só viu dor. Magoa. Medo. Inspirou fundo. O peito se expandiu, mas a resposta não veio de imediato. Ela baixou os olhos por um segundo e voltou a encará-la.
— Sil. Não é nada disso... Eu... eu jamais faria isso com você.
A advogada não piscou. A postura, firme. Mas a garganta se movia discretamente.
— Então por que você não ligou? Por que dormiu fora e sequer pensou em me avisar?
— Eu já te disse... a reunião na Alesp foi longa. Envolveu o jurídico e o presidente da comissão. Era mais fácil dormir por ali mesmo. Eu tava exausta.
Silvia deu um passo lento à frente.
— E você nem pensou em mim? Nenhuma mensagem? Um "cheguei", um "tô bem"?
Verena hesitou. A mão esquerda subiu discretamente até a gola da camisa, tocando o colarinho — um gesto automático. Silvia percebeu.
— Não mente pra mim — repetiu, firme. — Por tudo que a gente construiu. Por tudo que eu ainda tentei salvar.
— Eu tô dizendo a verdade.
— Olha nos meus olhos e repete.
Verena encarou. Mas a voz, antes tão segura nos plenários, agora vacilava:
— Eu não passei a noite com ninguém.
Silvia manteve o silêncio por alguns segundos, analisando cada detalhe — a respiração entrecortada, o leve tremor nos dedos, o suor que insistia em brotar nas têmporas da esposa.
— Você acha que eu não conheço seu corpo? Seu tom de voz quando mente?
— Não é mentira, Silvia. Você tá vendo coisa onde não tem.
Silvia fechou os olhos, respirou fundo. Depois os abriu, mais suaves agora — o tipo de suavidade que machuca.
— Só tem uma coisa pior do que uma traição, Verena. É ser feita de idiota.
A frase cortou. Verena deu um passo para trás, como se as palavras tivessem peso físico.
— Sil…
— O maior sonho da minha vida é ter uma família com você. Mas cada vez que eu olho pra suas atitudes, eu vejo que é um sonho que eu carreguei sem sua ajuda por anos.
Verena balançou a cabeça, a voz falhando.
— Amor, não mistura as coisas. Eu errei em não ter te avisado. Mas foi só isso. Eu juro.
— Jura? — Silvia cortou, com ironia seca. — Jura mesmo?
A sala ficou em silêncio. Do corredor, ouvia-se o ruído abafado de uma impressora. Lá fora, o mundo seguia seu curso.
Silvia abaixou os braços.
— Vai embora. Vai pensar no que você quer. Porque eu, sinceramente, já não sei mais.
Verena tentou falar, mas não havia mais espaço para palavras.
Deu meia-volta. Os saltos soando duros no piso de madeira. Parou à porta, mas não teve coragem de olhar para trás.
E saiu.
Gabinete 312 — Assembleia Legislativa de São Paulo — 12h40
Rafaela estava com os braços cruzados, encostada na bancada de apoio, os olhos fixos no relógio digital da parede. Doze e quarenta. Quase uma hora. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação. Nenhum “cheguei”.
Na sala, assessores andavam de um lado pro outro, cochichando. O clima estava pesado desde cedo — e não era só por causa da pauta do dia.
Ela suspirou fundo. Caminhou até a porta do gabinete principal. Bateu uma vez. Entrou sem esperar resposta.
Verena estava de pé, de costas, olhando a cidade pela janela. O colarinho fechado demais, como se sufocasse. Nem virou o rosto.
— Ah, resolveu aparecer. — Rafaela disparou, sem ironia. Só cansaço.
Verena fechou os olhos por um segundo. Depois virou-se, lenta.
— Bom dia pra você também.
— Você sabe que horas são? — Rafaela se aproximou. — Que horas começa a reunião da Comissão de Direitos Humanos? Que horas o seu nome tava na agenda?
— Eu sei das minhas obrigações, Rafaela. — A voz veio firme, mas sem alma.
— Sabe? Que ótimo. Porque enquanto você some e não atende ninguém, a sua mulher liga pra mim. Pra mim, Verena. — Os olhos de Rafaela estavam vermelhos, não de choro, mas de raiva. — Perguntando se a esposa dela tava viva.
Verena piscou. Uma vez só. Não disse nada.
— Sabe o que eu respondi? Nada. Porque eu não sabia. Porque ninguém sabia. Porque você simplesmente sumiu. — Rafaela agora já estava à frente dela, os olhos cravados nos dela. — Você tem ideia do que isso significa? Da lama que você tá se enfiando?
— Eu passei a noite em um hotel, só isso.
— Só isso? — Rafaela riu com incredulidade. — Então por que você tá com essa blusa desse jeito com esse calor? Com essa cara de quem não tá se aguentando em pé? Acha que tem algum idiota aqui Verena?
Verena virou o rosto, seca.
— Cuida da pauta da comissão, Rafaela. É pra isso que você tá aqui.
— Não me testa, Verena. — A voz baixou, carregada. — Você acha que eu sou sua cúmplice pra esse tipo de coisa? Acha que eu vou ficar quieta enquanto você destrói o casamento com uma mulher que te ama muito mais do que você merece?
Verena deu um passo. Rígida.
— Não se mete no que não é da sua conta.
— Você fez virar da minha conta. — A resposta veio num sussurro cortante. — Quando usa esse gabinete como esconderijo. Quando mente pra Silvia e espera que eu cubra. Quando deixa essa... essa bagunça emocional transbordar no trabalho, como se ninguém percebesse.
Um silêncio curto. Doloroso.
— Você acha mesmo que ela merece isso? — Rafaela continuou, agora sem gritar, só com a voz fria e pesada. — A mulher que quase implorou por notícias suas ontem à noite. Que ainda te defende. Que tá lá, esperando uma explicação decente. E você... você nem sabe o que aconteceu ontem, né?
Verena não respondeu.
— Claro que não sabe. Nem deve lembrar com quem tava. Com quem foi dormir.
— Rafaela. — A voz de Verena saiu baixa, rouca. — Cala a boca.
Mas Rafaela já tinha ido longe demais pra parar.
— E ainda tem a Valentina, né? — Um segundo. Um peso no ar. — A garota tem 16 anos, Verena. E eu espero, de verdade, que esse seu sumiço não tenha nada a ver com ela.
Verena ficou estática.
— Toma cuidado. Antes que isso tudo vire um escândalo que nem eu vou poder limpar.
Um silêncio pesado tomou conta da sala. Verena virou-se de novo pra janela, tentando respirar. Mas o ar não vinha.
Rafaela deu um passo pra trás. Estava tremendo.
— Você não é mais a mulher que eu admirei, Verena.
Virou-se e saiu, sem esperar resposta.
A porta fechou com força. Lá fora, o som dos corredores da Alesp voltou — telefones tocando, vozes discutindo, passos apressados.
Lá dentro, Verena afundou na poltrona. A camisa sufocava. A base no pescoço já não cobria a mancha. E tudo que ela conseguia ouvir era o eco de uma frase que não sabia como responder:
"Você não é mais a mulher que eu admirei."
Gabinete 312 — Alesp — 14h17
A sala estava em silêncio. Tão silenciosa que dava pra ouvir o tique-taque do relógio acima da estante de livros jurídicos. Verena estava sentada à mesa de reuniões, a luz do teto acentuando o vinco entre as sobrancelhas. O blazer escuro fechado até o topo, abafando o corpo que ainda latej*v* por dentro.
Um estagiário jovem, camisa social mal passada, estendia um relatório impresso.
— É sobre o parecer da emenda complementar, deputada. Solicitaram uma resposta antes das três da tarde…
Ela pegou o papel com os dedos duros. Começou a ler.
Primeira linha: erro de concordância.
Terceira linha: dados duplicados.
Quinta linha: a fonte estava desalinhada.
Verena fechou os olhos por dois segundos.
A cama do hotel voltou à mente. O sutiã sumido.
A ligação da Silvia. A frieza na voz dela.
A caneta nas mãos de Valentina.
A boca de Valentina.
O beijo.
A ausência.
A culpa.
Ela abriu os olhos e voltou ao papel. Pulou direto para a seção final do parecer. Um parágrafo inteiro copiado de outro relatório — ela reconheceu de longe. Copiar e colar. Sem revisão. Sem leitura.
O sangue subiu de vez.
— Isso aqui tá uma porcaria.
O estagiário arregalou os olhos. Deu meio passo pra trás.
— Eu… me baseei no último parecer da CCJ, mas posso corrigir e…
— Corrigir? — Verena ergueu os olhos, frios. — Corrigir o quê, exatamente? A ausência de cérebro? A preguiça? A falta de noção?
— Eu não quis…
Ela levantou de súbito. O papel amassou na mão dela.
— Você sabe o que é um parecer técnico? Sabe que isso aqui pode virar matéria vinculada em comissão? Que se tiver erro, é o meu nome que vai pra lixeira? — O tom não era de grito. Era cortante. — Você acha que está em uma faculdade qualquer aqui dentro?
O rapaz ficou mudo. Pálido. Os olhos marejados.
Verena jogou a folha impressa sobre a mesa com força. Ela quicou, escorregou e caiu no chão perto do pé dele.
— Pega isso. Sai da minha sala. E só volta quando souber a diferença entre revisar e entregar qualquer coisa.
Ele gaguejou um “sim, senhora” quase mudo, recolheu o papel, e saiu apressado. As orelhas vermelhas, o rosto em choque. A porta fechou com um clique seco.
Sozinha, Verena apoiou as mãos na beirada da mesa, a cabeça baixa.
O silêncio voltou. Mas agora vinha com um zunido dentro do peito. O blazer apertava. O ar parecia denso, grudento.
Ela se sentou devagar. Encostou as costas na cadeira.
As mãos tremiam.
Fechou os olhos.
"Você não é mais a mulher que eu admirei."
"Você passou a noite com quem?"
“O gosto daquela boca tão macia”
Ela levou a mão ao rosto. Pressionou as têmporas.
Queria gritar. Mas não podia. Queria sumir. Mas o meio em que estava não perdoava atrasos.
Verena Castilho, 29 anos, deputada estadual em primeiro mandato, mulher mais jovem da sua bancada, sentada sozinha numa sala cheia de vitórias vazias, à beira de um colapso emocional que não cabia nem nas entrelinhas dos discursos que costumava dominar.
Olhou o crachá pendurado no canto da mesa. O próprio nome impresso ali.
Só o nome, que já não sabia mais como sustentar.
Estacionamento Subterrâneo da Alesp — 18h43
O concreto do estacionamento subterrâneo exalava um cheiro de borracha velha misturado ao leve odor de gasolina e metal quente. As luzes fluorescentes zumbiam em intervalos, projetando sombras instáveis sob os carros estacionados. Rafaela caminhava a passos firmes, salto ecoando seco no chão, uma pasta sob o braço e a expressão de quem não queria mais ser interrompida por nada nem ninguém.
O dia tinha sido um inferno. A briga com Verena pela manhã, o clima insustentável no gabinete, o susto com a ligação de Silvia na noite anterior. E, pra completar, a deputada surtando no meio da tarde e jogando um relatório em cima de um estagiário. Era demais. Rafaela não queria mais saber de nada. Só queria entrar no carro e sumir.
Mas quando apontou a chave para destravar a porta, ouviu um estalo sutil de salto no piso de cimento.
— Parece que alguém teve um dia dos bons.
Rafaela virou com um reflexo que beirava a agressividade.
Jéssica estava ali, encostada no carro próximo, braços cruzados, um blazer escuro por cima da blusa clara, olhar atento.
— Me poupa, Jéssica. Hoje, não. — disse Rafaela, sem disfarçar o cansaço.
— Calma. Não vim provocar. Só... vi você descendo. Resolvi esperar.
— Esperar o quê? Uma chance de insinuar que tava certa desde o começo?
Jéssica sorriu com metade da boca.
— Não. Só achei que você não merecia sair daqui sozinha, depois de aguentar o que aguentou.
— Você não sabe o que eu aguento. — rebateu Rafaela, a voz mais baixa agora, mas cortante.
— Sei o suficiente pra ver que a mulher que você tenta proteger está se afundando. E levando você junto.
Rafaela fechou os olhos por um segundo, tentando conter a explosão.
— Não quero falar dela. Não hoje.
Jéssica sorriu com um canto da boca.
— Tarde demais. Todo mundo viu, Rafa. Hoje não foi um dos melhores dias naquela sala.
— Eu não sou todo mundo. — a frase saiu seca. Mas mostrava uma rachadura.
Jéssica se aproximou devagar, os olhos firmes, sem sarcasmo.
— Você não é todo mundo. É exatamente por isso que eu tô aqui.
Rafaela girou a chave na porta com mais força do que precisava, mas não entrou. Ficou parada.
— Sabe o que é pior? É que eu já sei que você tem razão em metade do que pensa. E mesmo assim, sua voz me irrita.
— E a outra metade?
— Eu não quero descobrir.
Jéssica parou mais perto agora. Não invadiu o espaço, mas estava ali. Presente.
— Eu sei que você tentou segurar tudo hoje. Segurar o gabinete, a imagem dela, a própria dor. Mas você não você não pode fazer mágica, Rafaela. Não tem como salvar quem não quer ser salvo.
Rafaela encarou Jéssica por alguns segundos longos demais.
— Às vezes, eu me pergunto o que você ganha com isso.
— E eu me pergunto por que você ainda espera que ela mude.
Silêncio. Só o barulho distante de um carro acelerando na rampa.
Rafaela não respondeu. Olhou pro teto por um segundo, buscando fôlego.
Jéssica se aproximou um passo.
— Se quiser desabafar... Ou qualquer outra coisa que te ajude a lembrar que você existe fora da sombra dela... eu tô aqui.
Rafaela riu com ironia, mas foi um riso pequeno, doído.
— Você é uma estrategista nojenta.
— E você é linda até quando me xinga.
Rafaela não respondeu. O olhar endurecido aos poucos foi cedendo à exaustão. O dia tinha sido longo. Demais.
— Vai ficar aí me analisando até quando? — murmurou.
— Até você admitir que não quer voltar pra casa hoje. — Jéssica disse, sem levantar o tom. — E não precisa.
Rafaela riu. Um som curto. Irônico.
— Eu não durmo na casa de quem vai me fazer reviver tudo o que eu quero esquecer.
— O que eu quero é exatamente o oposto, Rafa. Eu quero que você se levante. Com outra base. Outro ritmo. Outra força. E, se quiser, com um vinho decente e silêncio suficiente pra respirar.
Silêncio.
— Tô com o carro aqui. Você não precisa decidir agora. Só entrar.
Mais alguns segundos. Rafaela desviou o olhar, viu o painel do próprio carro. As luzes vermelhas piscando, impacientes. Como se até ele estivesse cansado de esperar.
Respirou fundo.
— Não quero conversa.
— Nem eu. — Jéssica respondeu, já abrindo a porta do próprio carro. — Só paz. E talvez uma noite sem precisar sustentar o mundo inteiro sozinha.
Rafaela hesitou por um último instante. Depois, caminhou devagar. Sem olhar de volta para o próprio veículo.
Entrou.
Jéssica não disse nada. Só ligou o motor. A luz do subsolo apagou por um segundo, depois voltou. Mas quando o carro subiu a rampa, só o que ficou ali foi o reflexo apagado de quem, por uma noite, escolheu parar de lutar.
Apartamento de Jéssica — 19h52
A porta abriu com um clique suave, e a primeira coisa que Rafaela sentiu foi o cheiro: uma mistura sutil de madeira envelhecida e chá preto. O apartamento era amplo, de tons neutros, com uma iluminação indireta que suavizava os cantos e evitava qualquer sombra agressiva. Não havia nada fora do lugar. Mas também nada que gritasse “lar”. Era tudo funcional. Impecável.
Rafaela entrou sem comentar. Olhou em volta com a atenção de quem não queria demonstrar interesse, mas absorvia cada detalhe. O piso era de cimento queimado, combinando com a estética minimalista. As paredes, em cinza claro, sustentavam poucos quadros — todos com traços geométricos e frios. Não havia fotos. Nem retratos. Nem passado visível.
— Pode deixar a bolsa ali. Ou no sofá, se preferir. — disse a anfitriã, trancando a porta com a mesma calma com que tudo naquela casa parecia funcionar.
Rafaela não respondeu. Caminhou até a área da sala e pousou a bolsa sobre uma poltrona de couro caramelo. Só então tirou os sapatos.
— Água, vinho, café? — ofereceu Jéssica, já indo em direção à cozinha americana, onde acendeu uma luz âmbar sobre a bancada.
— Silêncio. — respondeu Rafaela, seca. — É isso que eu quero.
Jéssica sorriu de leve, pegando duas taças e uma garrafa de vinho branco da geladeira.
— Vinho, então.
Rafaela sentou no sofá com lentidão. O corpo afundou num cansaço que ela nem tentou disfarçar. Jogou a cabeça para trás, respirou fundo e fechou os olhos.
A voz de Jéssica veio do outro lado da sala, baixa, limpa:
— Se quiser tomar banho, o banheiro é ali. Roupa limpa também tem. Roupa que serve. Eu fiz questão de comprar, lembra?
— Você é assustadora. — murmurou Rafaela, ainda de olhos fechados.
— Realista. — Jéssica respondeu, caminhando até ela com uma taça em cada mão. — Você me ensinou a antecipar movimentos.
Entregou a taça, mas não sentou ao lado. Manteve certa distância.
— E hoje, qual movimento você tá antecipando? — Rafaela perguntou, abrindo os olhos devagar, encarando-a.
Jéssica não desviou o olhar. Mas esperou um segundo inteiro antes de responder.
— O da sua respiração voltar ao normal.
Rafaela riu. Sem humor, sem ironia. Apenas um riso exausto, vencido.
— Fala a verdade. Você quer saber da Verena, não quer?
— Eu quero saber de você. Da mulher que segurou um gabinete em colapso, enquanto era descartada feito detalhe de rodapé. — Jéssica deu um gole no vinho. — Mas se quiser falar dela... estou com tempo.
— Não. — respondeu Rafaela, firme. — Hoje não.
— Então bebe. E relaxa.
Elas brindaram em silêncio. O som leve do cristal se chocando foi o único ruído na sala por alguns segundos.
Depois, Rafaela levantou devagar.
— Onde é o banheiro?
— Segunda porta à esquerda. Toalha cinza é a limpa. — Jéssica respondeu sem se mover, apenas observando.
Rafaela caminhou até lá sem olhar pra trás.
E Jéssica ficou. Sentada. Taça na mão. Olhar fixo no corredor.
Ela sabia: aquela noite não era sobre conquistar. Era sobre deixar Rafaela perceber, sozinha, que ali, poderia parar de fingir força.
E, quando voltasse daquele banho... Estaria ali. Com vinho, com silêncio, e com a certeza de que o jogo, aos poucos, estava virando.
Apartamento de Jéssica — 20h26
O som do chuveiro ainda ecoava pelo corredor quando Jéssica largou a taça vazia na bancada e caminhou até o canto mais escuro da sala, onde o celular vibrava sobre um aparador discreto.
Atendeu sem hesitar. A voz do outro lado era masculina, firme, mas abafada demais para ser identificável.
— Sim. — respondeu ela, baixando o tom.
Fez uma pausa curta, olhando em direção ao corredor. O barulho da água ainda corria.
— Está indo tudo conforme o previsto. — disse, encostando-se à parede. — Ela veio por vontade própria. Exatamente como eu imaginei.
Mais uma pausa. Um meio sorriso formou-se nos lábios de Jéssica.
— Não. Não é hora de ter pressa. Com ela, é no tempo certo. E no tom certo.
Ouviu a resposta. E sua expressão mudou sutilmente — de satisfação para leve irritação.
— Eu disse que não era pra ligar hoje. — cortou, firme. — Isso foi uma exceção. E a última.
Seu olhar voltou ao corredor. O som do chuveiro havia cessado.
Ela desligou rápido. Apagou o registro da chamada. E respirou fundo, retomando o controle da respiração como quem veste uma máscara.
Ajeitou a blusa com elegância, passou a mão pelos cabelos e voltou para o sofá, a taça de Rafaela ainda sobre a mesa de centro.
Sorriu sozinha, antes de sussurrar:
— Um brinde ao próximo lance.
E se sentou. Esperando.
Fim do capítulo
Oiee! Espero que esteja bem! :)
Bom, primeiro, quero me desculpar pela demora! Aidna estou me organizando pra tentar não demorar tanto pra atualizar!
E segundo, obrigada pela paciência! S2
Comentar este capítulo:
N@ty
Em: 26/08/2025
A linha foi cruzada...
Quando Silvia souber vai ser um baque.
Mas ela é uma mulher decidida e forte
Verena tá prestes a explodir
Toda essa pressão, essa fúria, essa insatisfação, confusão só denota o quanto ela já não sabe mais quem é, o que quer
Com quem quer.
Mas Valentina conseguiu despertar nela algo antigo
E esquecido, talvez nunca conhecido...se perdeu no passado, mas continua ali
Agora está acordando
É o que chamamos de inevitável, né?
N@ty
Em: 26/08/2025
Querida autora não foi suficiente porque eu quero mais... porque você é incrível
Sem cadastro
Em: 27/08/2025
Querida autora não foi suficiente porque eu quero mais... porque você é incrível
Sem cadastro
Em: 29/08/2025
Querida autora não foi suficiente porque eu quero mais... porque você é incrível
Sem cadastro
Em: 29/08/2025
Querida autora não foi suficiente porque eu quero mais... porque você é incrível
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Zanja45
Em: 25/08/2025
Muito bem construindo, esse capítulo. - Muito dinâmico.
Preciso ler" como se fosse a primeira vez", porque foi bem fluido e trouxe várias reflexões. - Algumas cenas fiquei rindo internamente.- você proporcionou isso, viu Autora? - Quase invadiram minha privacidade por manifestação facial do meus sentimentos. - Não foi como aquelas duas megeras fizeram com Verena, mas foi uma invasão.
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Zanja45
Em: 25/08/2025
Oi!
SIM, acho que estou bem, viu autora?
Que capítulo massa!
Sei que o mais esperado era beijo de Vê e Valen, mas fique vidrada nos outros acontecimentos que sucederam. - Que jornalista louca é aquela? E Jéssica parece ser a líder de um jogo muito maior.
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N@ty Em: 26/08/2025
Sobre o primeiro beijo
Eu não me contento, preciso demais
Preciso ler e sentir a energia que quer nos transmitir
Não foi o suficiente, mas foi incrível
Eu confesso que eu gosto de me perder na bolha do amor
Da paixão, do proibido...
Estou ansiosa e intrigada para saber quais serão os próximos passos.
Pobre Valentina tão nova já se vê presa nessa trama