Olivia

            Hoje o dia está – como diria minha amiga Gabriela – incrivelmente incrível. O tempo está agradável, o trânsito colaborou para eu deixar as crianças na escola no horário certo.

            Ontem, quando chegamos em casa, Theo pediu para Giovana colocá-lo para dormir novamente, foi a minha deixa para fugir mais uma vez dela, mais uma vez não conversamos sobre o ocorrido. Sei que eu pareço a criança da história, mas não estou a fim de lidar com isso agora.

            Deixo meu carro no estacionamento da universidade e sigo para onde será a aula hoje. Pedi que a coordenação enviasse um e-mail para os alunos, avisando que hoje a aula será prática, então eles precisam se encaminharem para outra sala.

            Quando entro no corredor que dará até a sala, vejo Giovana saindo discretamente dela, e quando me vê seu rosto ganha uma leve coloração vermelha. Alguma coisa ela está aprontando.

            Suas amigas que estão caminhando à minha frente chegam até ela primeiro que eu, e quando me veem Valentina é a primeira a puxar assunto.

            - Boa tarde, professora – Diz simpática.

            - Boa tarde, meninas – Não consigo evitar olhar para Paula, que nesse momento está cochichando algo no ouvido de Giovana – Como estão?

            - Estou muito bem, professora – Valentina parece extremamente animada – Hoje recebemos os e-mails e nós três fomos selecionadas para a conferência.

            - Que legal – Mostro minha felicidade por elas, mas já esperava por isso, todas as três tem ótimas notas, mas confesso que preferiria que só duas delas tivessem sido selecionadas – Isso será muito importante para a carreira de vocês.

            - Com certeza – Fala Paula – E será maravilhoso passar esses dias entre amigas, e acho que precisamos sair para comemorar hoje.

            Sei que como professora preciso ser imparcial com meus alunos, mas essa garota não me desce, quando vejo estou encarando-a com a sobrancelha arqueada. Tenho um pequeno defeito, como diz aquele meme “minha língua eu até controlo, mas minha cara não”

            - Para mim não vai dar – Giovana responde prontamente, recebendo uma revirada de olho da outra – Hoje começa meu estágio.

            Eu nem me lembrava disso.

            - Ah! É verdade. Você fará o estágio onde mesmo? 

            - No Aurora – A moça de olhos claros responde sem graça.

            - Espera – Paula me encara – Esse não é o seu restaurante?

            - É o que diz no contrato – Tento fazer piada com a situação.

            - Ah! – Solta um suspiro desanimado – Mas comemoramos outro dia, talvez algo mais íntimo.

            Giovana fica tão vermelha que é impossível não entender completamente ao que a garota se referia. Val me encara com uma cara completamente espantada, provavelmente analisando minha reação. Mas não faço nada além de encarar Giovana nos olhos.

            - A gente vê isso depois, não estou com cabeça para comemorações – Tenta cortar o assunto.

            Mesmo evitando, tenho que admitir que presenciar essa conversa mexe com algo dentro de mim, por mais que não tenhamos nenhum compromisso, que a garota é completamente livre para fazer o que quiser, o ciúme toma conta de mim, e preciso sair daqui o mais rápido possível.

            - Bom, meninas – Chamo atenção delas – Preciso ir preparar as coisas para a aula. Vejo vocês daqui a pouco na sala.

            - Até mais! – Valentina é a única que responde.

            Sigo apressadamente para a sala, não gosto de lidar com ciúmes, ainda mais quando não tenho direito nenhum de sentir isso. Está mais do que declarado que as duas tem algum caso ou já tiveram, ou Paula quer muito ter. Mas isso é problema delas.

            Entro na sala e vou deixar minha bolsa e livros na mesa que fica no canto esquerdo, e para minha surpresa há uma flor sobre ela. É simples, apenas uma solitária flor, sem arranjos e nem enfeites. Pego o pequeno papel que a acompanha e o abro.

Gérbera é a flor que representa recomeços. Nosso começo foi conturbado e desafiador. Me deixe te mostrar que sou muito mais do que aquela menina afrontosa, me deixe te mostrar que posso te dar momentos felizes.

G.G

            Meu coração acelera no peito e não tenho tempo de assimilar tudo porque os alunos começam a entrar na sala e não posso deixar que vejam meu estado. 

            Giovana entra acompanhada das outras duas e olha em minha direção, provavelmente para ver minha cara com o que aprontou. Seu sorriso de lado deixa a entender que ela sabe que conseguiu mais uma vez me desestabilizar.

            Espero que todos voltem do vestiário para começar a explicar a tarefa de hoje.

            - Hoje vocês farão o primeiro trabalho prático valendo nota – Começo explicar.

            - E aquela história que teríamos aula teórica e só depois a prática? – Um dos engraçadinhos da turma me interrompe.

            - Mudei de ideia, assim como posso mudar a qualquer momento, algum problema com isso?

O encaro esperando uma resposta, mas continuo quando vejo que ele não falará nada.

- Ok, continuando. Dentro desse saco – Levanto um saco de pano para que todos consigam ver – Há vários temas de pratos a serem preparados, cada um terá que contar com a sorte no sorteio e depois contar com a inteligência para preparar algo que me agrade. E podem ter certeza, sou bem exigente.

Meus olhos correm pela sala e todos estão atentos ao que eu falo. Quando começo a caminhar entre as bancadas para que os alunos peguem seus papeis e saibam o que tem que ser feito, alguns ficam felizes com o que tiraram e alguns não tanto.

Valentina e Giovana ficam felizes com seus temas, aposto que tiveram sorte de tirarem algo que seja simples para elas. Já Paula não teve a mesma sorte, pelo seu olhar fatal em minha direção e sua revirada de olhos ao ler o papel.

- Agora que todos já tem em mãos o que devem fazer, podem seguir para a dispensa e pegar seus ingredientes – Explico – Vocês terão 40 minutos para deixarem pronto. E o tempo começa a contar agora.

Giovana

            Fico extremamente feliz quando vejo que meu tema é Prato Vegetariano, não é a minha especialidade, mas tenho algo já em mente do que posso fazer. Me lembro de uma receita que eu amava que minha avó fazia para mim, será isso mesmo que farei hoje.

            Tenho sorte de o meu prato ser vegetariano e não vegano, pois isso me complicaria um pouco. 

            Pego na dispensa cogumelos – escolho o Shitake e Champignon de Paris – limão siciliano, salsinha, creme de leite, alho, manteiga, pimenta malagueta, queijo e o macarrão, depois já volto para minha bancada.

            Separo todos os ingredientes na quantidade que irei precisar e olho para o relógio, tenho muito tempo ainda.

            - Não irá começar? Seu tempo está correndo – Olivia me questiona parada em frente a minha bancada.

            - Meu prato é rápido de ser preparado, se eu começar agora, estará frio na hora de servir – Mantenho minha postura.

            - E qual é seu tema? 

            - Prato vegetariano.

            - E usará creme de leite em um prato vegetariano?

            - Sim, seria diferente se eu pegasse o tema Prato Vegano, aí não poderia usar nenhum alimento de procedência animal, diferente do vegetariano que apenas não usa carne.

            - Alguém fez a lição de casa certinho – Esconde um sorriso, mas posso ver que passei em seu teste.

            - Já falei que sou uma boa aluna – Respondo sem pensar e só depois vejo que meu tom de voz levou a frase mais para um flerte do que uma simples resposta.

            - Veremos isso com o resultado do seu prato, senhorita – Minha professora corta o assunto e segue para a bancada ao meu lado que é a de Paula, ela já começou a cozinhar.

            Quando o relógio marcou 15 minutos faltantes, coloco uma panela com água para ferver e começo a cortar os cogumelos depois de usar um pano para limpá-los bem – minha avó sempre falava que não se pode lavá-los com água, pois isso os faz absorvê-la e estragar tudo – eu uso toda a parte dele, até mesmo o talo. Corto em tiras finas. 

            Depois disso, coloco em uma frigideira grande 50 gramas de manteiga e uma colher de azeite de oliva. Deixo a gordura derreter por completo e coloco o cogumelo bem espalhados, me certificando que há espaço para todos e que consigam dourar. Enquanto isso, já pico rapidamente um dente de alho e a pimenta em pedaços muito pequenos, mas antes de acrescentá-los na frigideira, faço o movimento com ela para virar os ingredientes que já estão dentro, mas percebo que eles ainda não estão dourados o suficiente.

            Então aproveito para cortar a salsinha, nesse prato uso uma grande quantidade, pois ela não vai como tempero e sim como ingrediente, então uso praticamente uma mão cheia.

            Olho para o relógio e vejo que falta 7 minutos, hora de colocar o macarrão para cozinhar. Primeiro coloco sal grosso, para que a água fique muito salgada e despejo a massa, devo deixa-la cozinhar por 5 minutos.

            Volto para a frigideira, vendo que os cogumelos já estão dourados no ponto certo, então acrescento o alho e a pimenta. Algumas pessoas se perdem nesse prato, porque colocam o alho primeiro, e se eu fizesse isso, iria queimar antes de dourar. Agora coloco também o sal e volto a mexer a frigideira. 

            Espero 30 segundos e coloco o creme de leite para começar a fazer o creme junto do suco de meio limão. Lavo outro limão e coloco as raspas da casca também. Por último coloco a salsinha, isso deixa o creme com cor, o que antes estava pálido, agora ganha coloração. Experimento para ver se está tudo em ordem, e vejo que está perfeito.

            Desligo o fogo para não reduzir demais o creme de leite. Olho para o relógio e falta dois minutos, então hora de tirar o macarrão. Pego uma pinça de cozinha e transfiro o espaguete da panela para a frigideira, e com o mesmo utensílio, começo a virar a massa dentro do recipiente, misturando o molho e o macarrão, tomando todo o cuidado do mundo para não o quebrar, isso também arruinaria meu prato. 

            Começo a colocar no prato, tentando fazer uma decoração bacana, mas nada muito criativo. Quando finalizado, ralo um pouco do queijo por cima. No exato momento que termino, o alarme toca, indicando que o tempo terminou.

            Olho em direção a minha professora, e ela mais uma vez não esconde o sorriso.

            Olivia começa a avaliar os pratos e dar suas notas, não demorou quase nada até eu ser chamada, isso me deixa feliz, porque ela provará minha receita ainda quente.

            - Hoje você provou a comida enquanto cozinhava? – Questiona enquanto analisa meu prato e prepara o garfo para pegar um pouco.

            - Sim, senhora – Falo sem jeito, lembrando do desastre da última vez.

            - Muito bem, então não irei me arrepender de provar? – Me provoca.

            - Acredito que não – Digo confiante.

            Ela prova minha comida, deixando sua expressão neutra, isso me deixa ainda mais nervosa, e isso se repete quando ela pega mais um pouco e leva até a boca. Meu coração dispara, não sei se ela fez isso por estar bom ou porque precisa avaliar mais.

            - Aprendeu a fazer sozinha esse prato? – Leva o guardanapo aos lábios para limpar e isso me distrai um pouco, mas logo volto ao assunto.

            - Não, é uma receita que minha avó fazia.

            - Você tem contato com sua avó? – Continua, mas confesso que não entendo aonde ela quer chegar.

            - Não, ela já faleceu – Digo simples.

            - É uma pena! – Coloca o garfo e o guardanapo sujos na cesta ao seu lado – Eu diria para agradecê-la por ter te ensinado um prato tão simples de ser feito mas tão gostoso. 

            Sinto o silencio da turma se tornar maior, por mais que as bancadas sejam mais afastadas ainda dá para ouvir o que ela fala, normalmente tentamos não prestar muita atenção para não deixar os colegas constrangidos, mas vejo que a sala inteira está sem dar um piu.

            - Primeiro ponto, foi muito inteligente da sua parte esperar o tempo certo para começar, o sabor do prato teria se perdido se eu o provasse frio, e em um restaurante, o que menos um cliente quer é comer comida fria. Segundo ponto, você não quis engrandecer um prato que teoricamente é simples, ingredientes simples, fácil de ser cozidos, mas ao mesmo tempo exige uma atenção grande, e você respeitou o tempo e a forma correta de cada ingrediente.

            Meu coração começa a ganhar um pouco de alívio, eu estava com medo de receber uma avaliação ruim como da última vez.

            - Terceiro ponto, você provou o que estava preparando, e teria tempo suficiente para consertá-lo se precisasse, hoje você se comportou como uma verdadeira chefe de cozinha. Comida bem feita, doma e tocas bem colocadas – Ela realmente se atenta aos detalhes – Respeitou tempo e alimento, e fez um ótimo trabalho. Eu não posso te dar um dez.

            Meu coração novamente disparou, esperando o pior, é capaz dela me elogiar assim e depois me dar um 5, mas garanto que eu vou avançar nela se isso acontecer.

            - Pelo simples fato de que a montagem do prato poderia ser um pouquinho melhor – Continua – Aqui está sujo – Me mostra uma das bordas do prato – Então em um restaurante isso não pegaria muito bem, por isso minha nota para você é 9,5. Parabéns, senhorita Gonçalves. 

            Não contive minha alegria e deu um pulo socando o ar, quando me viro para ir para meu lugar a turma toda estava de boca aberta, mas ignorei todos e voltei para meu lugar. 

            As avaliações continuaram e quando a aula terminou me encontrei rapidamente com as meninas, mas me arrependi no mesmo momento em que Paula abriu a boca, ela errou sua receita, acrescentou queijo no prato que era para ser vegano, e a professora não perdoou e lhe deu um belo zero.

            Após ouvi-la chamar nossa professora de tudo, me despedi delas e fui para o restaurante para o início do meu estágio. Quando entro, vejo que obviamente o salão está todo escuro ainda, somente as luzes no fundo estão acessas.

            - Boa tarde – Uma voz soa atrás de mim – Você deve ser a Giovana.

            - Sou eu sim, hoje começo meu estágio – Explico.

            - Perfeito! Você pode me seguir, vou te mostrar onde é o vestiário e lá você pode deixar suas coisas e se trocar – Eu a sigo quando ela começa a caminhar – Aliás, eu sou Adriana, a gerente da casa, qualquer problema você pode reportar a mim, mas se a Dona Olivia estiver no restaurante, ela é a autoridade aqui, e na cozinha você terá o chefe da sua praça, tudo que for sobre a cozinha pode falar com ele ou ela, mas para o que precisar estou aqui.

            - Muito Obrigada.

            Deixo minhas coisas no armário que já estava com meu nome e será só meu pelo tempo do estágio. Não demoro até estar pronta e vou para onde ela explicou que fica a cozinha. Adriana me apresentou a equipe, variando de pessoas um pouco mais velha do que eu até pessoas com cinquenta anos. Fui bem acolhida por algumas pessoas, apenar das piadinhas por ser a novata, parece ser um ambiente de trabalho legal.

            Foi definido que eu ficaria uma semana em cada praça, para aprender de tudo um pouco e hoje vou começar na de massas. Um bom começo.

            No meio do meu expediente, Diego que é o meu chefe pediu que eu buscasse mais massa pronta no refrigerador, e assim eu fiz. Ao entrar na despensa, vejo uma garota tentando pegar um saco de açúcar que está mais ao alto.

            - Você precisa de ajuda? – Me aproximo.

            - Oi, sim – Fala sem jeito – Tentei pegar sem a escada, mas não estou tendo sucesso – Sorri.

            Consigo facilmente pegar o item para ela.

            - Muito obrigada – Me agradece – Você é a novata ne, prazer, sou a Maria, estou na praça dos doces.

            - Prazer, Giovana – Demos um rápido aperto de mão.

            - Muito legal ter gente nova aqui, as vezes as velhas me irritam um pouco – Olha ao redor para ver se não tem mais ninguém – Espero que seja legal seu estágio, aqui é um bom lugar, e a dona é muito humana, você irá gostar e espero que possamos nos dar bem.

            - Também espero, mas agora preciso ir até o refrigerador e voltar pra minha praça antes que eu leve bronca no meu primeiro dia.

            - Vai lá... e mais uma vez boa sorte.

            O resto do expediente foi bem tranquilo, é uma sensação boa fazer parte de uma cozinha profissional, acho que me fará bem estar aqui.

Fim do capítulo