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Dois Reinos por Natalia S Silva

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Palavras: 7154
Acessos: 734   |  Postado em: 12/08/2025

Capitulo 10

Maeryn 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eu saí daquele salão com a alma em carne viva. Cada passo que dei foi uma luta contra o desejo de correr, de desaparecer entre as pedras daquela fortaleza sombria. Fingi dignidade. Fingi orgulho. Mas por dentro, estava ruindo.

 

As palavras daqueles homens ainda martelavam nos meus ouvidos. Riam de mim. Riam de nós. E ela… ela estava lá. Sentada entre eles, entre hienas que esperavam a menor gota de sangue para devorar. Varka não disse nada. Não se levantou. Não me defendeu. Não me olhou com vergonha ou com dor. Apenas... ficou ali, como se não fosse comigo. Como se eu fosse uma figura deslocada, inconveniente, tola.

 

Depois da pequena discussão no pátio, onde ela só fez doer ainda mais, corri para os meus aposentos, e quando fechei a porta não consegui conter o choro. O som veio sufocado, curto, e logo desapareceu. Eu não permiti mais. Porque se começasse a chorar, se deixasse que a dor saísse, não teria forças para me recompor. E eu precisava manter o controle. Sempre.

 

Passei o resto do dia ali. Ouvia os sons da fortaleza, soldados nos corredores, curandeiras andando de um lado ao outro, o barulho das tochas sendo reacendidas ao cair da noite. Mas eu não saí. Recusei comida. Recusei qualquer companhia. Mandei dizer que estava indisposta, e que preferia ficar sozinha.

 

Na verdade, estava apavorada. E com raiva. Mas mais do que tudo… eu a amava.

 

Essa era a parte que doía mais. Porque o amor não vai embora só porque é maltratado. Não desaparece quando é ignorado. Ele se agarra em nós como uma raiz teimosa, mesmo quando tudo ao redor tenta arrancá-lo. E eu a amava. Apesar de tudo. Apesar de mim.

 

Tomei um banho quente quando o sol já havia desaparecido além dos muros. Me despi como quem se despede da própria pele. A água me ajudou a conter os tremores, mas não o vazio. Vesti uma camisola simples, longa, de linho claro. Cabelos soltos, corpo ainda úmido. Me deitei na cama e fiquei ali, encarando o teto escurecido pela noite, ouvindo apenas o som do vento contra as janelas.

 

Esperei. Por nada. Por tudo. Esperava o impossível. Esperava que ela viesse. E ao mesmo tempo, rezava para que não viesse, porque não saberia o que fazer se a visse de novo.

 

Foi então que a porta se escancarou com um estrondo.

 

O som da madeira batendo contra a parede me fez sentar de sobressalto na cama. O coração disparou. E antes mesmo de entender o que acontecia, lá estava ela.

 

Varka.

 

Assustada. Ofegante. Andando com dificuldade. A roupa escura, o corpo ainda coberto por ataduras sob a túnica leve que não disfarçava bem. Ela segurava a espada numa das mãos, mal, como se os dedos não obedecessem direito. O olhar selvagem. Os olhos me encontraram como se fosse a primeira vez. Como se precisasse ter certeza de que eu estava ali. Viva.

 

 

(Varka) — Maeryn… — A voz dela saiu rouca, quebrada, um sussurro à beira do desespero.

 

 

Me levantei da cama num salto.

 

 

(Maeryn) — O que houve? 

 

 

Me aproximei depressa, o coração ainda batendo descompassado pela visão dela ali, ferida, armada, ofegante. Os olhos de Varka estavam vermelhos, talvez da dor, talvez de algo mais profundo que ela ainda não tinha palavras pra dizer. 

 

Ela respirou fundo, os ombros curvando-se como se o peso de Skarn inteiro estivesse sobre eles.

 

 

(Varka) — Os batedores viram as tropas a menos de meia légua. O segundo ataque 

começou. Não vão esperar a luz do dia.

 

 

Eu congelei por um instante. As palavras dela foram como água gelada derramada sobre o corpo. Senti o sangue fugir do rosto.

 

 

(Maeryn) — Já? — sussurrei, como se o tempo obedecesse ao meu susto.

 

 

(Varka) — Não há tempo pra perguntas, Maeryn. — ela me puxou levemente pelo braço. — Vim buscar você.

 

 

Aquela frase me atravessou. "Vim buscar você." Não uma ordem. Não um dever. Era pessoal.

 

 

(Maeryn) — Para onde? O esconderijo?

 

 

(Varka) — Há passagens antigas sob o castelo. Poucos conhecem. O rei mandou evacuar parte das mulheres para os esconderijos. Mas… — Ela hesitou, olhando para os lados, como se até as paredes pudessem ouvir. — Eu não quero que você vá com eles.

 

 

A raiva e a ternura se misturaram tão rápido que mal pude separar os sentimentos.

 

 

(Maeryn) — Você mal consegue ficar em pé, eu não vou pra lugar nenhum sozinha…

 

 

(Varka) — Eu sei o que estou fazendo. — Ela me fitou com uma intensidade que quase doeu.

 

 

Antes que eu pudesse responder, os sinos começaram.

 

O primeiro toque cortou o ar como um açoite.

 

O som se espalhou pelos corredores como um lamento de guerra. Profundo, grave, tocado com a urgência de quem sabe que a morte já bate à porta. Logo em seguida vieram os passos apressados no corredor, vozes elevadas, ordens gritadas, ferro batendo em ferro. O castelo acordava de um pesadelo que ainda nem havia começado.

 

Varka se endireitou, a dor visível no modo como cerrava o maxilar.

 

 

(Varka) — Maeryn, agora. — Sua voz era pura urgência. — Vista o que tiver à mão, calce botas. Não leve mais do que pode carregar. Só o essencial.

 

 

Corri. Abri o baú ao pé da cama, puxei um vestido mais pesado, escuro, e o vesti por cima da camisola. Apertei um cinto em torno da cintura, calcei as botas de couro forrado. Quando me virei, Varka já havia recolhido a espada e a prendia à cintura com movimentos rápidos, impacientes.

 

O som do sino aumentava. Era como se o próprio céu tivesse começado a desmoronar sobre nós. E ainda assim, em meio àquela confusão crescente, havia algo mais forte. A presença dela.

 

 

Saímos do quarto juntas, a tocha nas mãos dela iluminando o corredor com luz trêmula. Por onde passávamos, encontrávamos rostos assustados, soldados correndo, escudeiros armando barreiras, curandeiras apressadas com bolsas de ervas e unguentos. Gritos ecoavam dos salões superiores. Crianças chorando. Mães tentando acalmá-las. O terror havia se espalhado como fumaça.

 

Varka me guiava com passos decididos, embora mancasse discretamente. Conhecia cada atalho, cada escada, cada oculta. Passamos por uma tapeçaria antiga, e ela a empurrou para o lado, revelando uma passagem de pedra estreita e úmida.

 

 

(Varka) — Por aqui — murmurou. — Fecha atrás de nós.

 

 

Entramos. A escuridão nos engoliu, e por um instante, tudo o que existia era o som dos nossos passos e o eco do sino soando longe, como um coração apavorado batendo dentro de uma fortaleza condenada.

 

Ali, entre as sombras da muralha, senti o calor da mão dela encontrar o meu braço.

 

 

 

 

O corredor era estreito, úmido e velho, muito mais velho que o restante da fortaleza. As paredes de pedra estavam cobertas de musgo em algumas partes, e o teto baixo fazia com que precisássemos andar quase curvadas. O som de nossos passos ecoava abafado, misturado ao tinido distante dos sinos, agora mais ritmados, mais próximos. O chamado da guerra estava cada vez mais alto.

 

O cheiro ali dentro era de terra molhada, pedra antiga e mofo. Mas eu preferia aquilo ao cheiro de medo e sangue que já se espalhava pelo castelo.

 

Varka andava à minha frente, segurando a tocha com firmeza, mas eu via seu corpo tenso, o leve arrastar do pé ferido, o esforço para não demonstrar a dor. E mesmo assim, guiava com segurança, como se soubesse exatamente onde cada passo devia cair, como se já tivesse feito aquele caminho mil vezes em pensamento.

 

O corredor terminou em uma curva súbita, e à frente, uma fresta estreita na rocha dava para o mundo lá fora. A muralha terminava ali, e além dela, as sombras das árvores e o cheiro fresco da noite.

 

Ouvimos vozes antes de sair.

 

Varka apagou a tocha com um gesto rápido, esfregando-a contra a parede úmida, e o breu nos envolveu por alguns segundos, até que saímos para o ar livre.

 

Lá estavam eles.

 

Três guerreiros, todos armados até os dentes, com mantos escuros, as espadas presas às costas. Um deles limpava a lâmina com um pedaço de tecido ensanguentado. Outro já mantinha o olhar atento à floresta adiante, como se esperasse serem emboscados a qualquer momento.

 

Ao lado deles, uma mulher de cabelos desgrenhados, num tom avermelhado e pele marcada pelo sol. Rinna.

 

Ela sorriu ao me ver, mas não era um sorriso gentil. Era mais como o de uma loba que fareja tensão.

 

 

(Rinna) — Ela veio, então — disse ela, com um tom que não consegui decifrar se era surpresa ou desaprovação.

 

 

Ela estava de pé, com uma expressão relaxada demais para a situação. Os cabelos presos num nó desfeito, o rosto marcado de poeira e suor. As roupas justas de couro, as botas altas cobertas de barro. E os olhos dela foram direto de mim para Varka, sem disfarce. Sabia exatamente o que estava fazendo.

 

O orgulho me feriu como um punhal. Lembrei do rosto dela sobre o corpo de Varka, de como riu quando me viu pela primeira vez, dias atrás. Agora estava ali, como parte de um plano que não incluía a mim. Pelo menos não do jeito que eu gostaria.

 

 

(Varka) — Eles vão te levar — disse Varka, sem preâmbulo, como se falasse com alguém qualquer, não comigo. — O grupo vai pela trilha de norte. Há uma travessia segura pela floresta. Vão seguir direto até Tyrën, depois desviam por Keleth. Há abrigo em um vilarejo escondido, ninguém saberá onde está.

 

 

Demorei um segundo pra absorver. Olhei de Varka para os cavalos, depois para Rinna. Voltei para Varka. Ela mal me encarava.

 

 

(Maeryn) — E você?

 

 

Ela hesitou. Não respondeu.

 

 

(Maeryn) — Você fica — afirmei, num tom que queimava a garganta. — Me manda embora como se fosse uma criança assustada.

 

 

(Varka) — Estou mandando você pra longe da linha de frente. É o que o rei quer. E o que eu preciso que aconteça.

 

 

Engoli a raiva como ferro em brasa.

 

 

(Maeryn) — Você precisa? E o que eu preciso? Ou isso não importa?

 

 

(Varka) — Isso não é sobre o que você quer — respondeu, fria. — É sobre o que é necessário.

 

 

(Maeryn) — Não finge que é racional — cuspi. — Isso é covardia. É fuga. É mais fácil me tirar do caminho do que lidar com o que há entre nós.

 

 

Ela não respondeu. Não recuou. Também não confirmou. Apenas me olhou com aquele rosto impenetrável que ela usava sempre que queria esconder o que doía.

 

 

(Maeryn) — Você escolheu isso — continuei, o coração disparado, o sangue quente. — E escolheu ela também, não foi?

 

 

Meu olhar foi para Rinna, que nem fingia desviar os olhos. Varka apenas cerrou o maxilar.

 

 

(Varka) — Isso não importa agora!

 

 

(Maeryn) — Claro que não. Você só está protegendo a aliança do seu pai!

 

 

A tensão entre nós era espessa como fumaça de incêndio.

 

Varka virou-se para o grupo.

 

 

(Varka) — Vão. Se não passarem pelo rio antes da próxima hora, perdem a travessia.

 

 

Ela se afastou. Não disse mais nada. Nem se despediu.

 

Fiquei ali parada. O peito aberto. A garganta ardendo.

 

Subi no cavalo como uma estátua. Um dos guerreiros me ofereceu a mão, mas não aceitei. Não queria ajuda. Nem pena.

 

Enquanto a trilha se abria diante de nós, e deixávamos a fortaleza para trás, me obriguei a não olhar para trás. Me obriguei a não perguntar o que ela sentiria quando voltasse e não me encontrasse. Se sentiria algo.

 

Ela escolheu o dever. O orgulho. A guerra.

E me tirou do caminho como se isso fosse proteção.

 

Mas proteger, às vezes, é só uma forma elegante de fugir. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O som dos sinos, o rugido da guerra, os gritos e as ordens gritadas, tudo isso ficou para trás à medida que adentrávamos a floresta. O eco da batalha que começava às margens de Skarn se diluiu entre as árvores, como se a própria natureza tentasse abafar os horrores da guerra. Os galhos se fechavam sobre nossas cabeças, como dedos entrelaçados, criando túneis verdes e escuros. A luz da lua mal passava pelas copas espessas. E tudo era sombra, galho seco e folhas quebrando sob os cascos dos cavalos.

 

Os guerreiros à minha volta não falavam. Estavam alertas, as mãos nos cabos das espadas, os olhos varrendo os arredores em silêncio. A tensão neles era diferente da de Varka, era profissional, automática, fria. Rinna seguia à frente, montada com facilidade, como se tivesse nascido em cima de um cavalo. O corpo dela era todo atenção e agilidade, e os olhos, sempre tão vivos, conheciam o caminho com familiaridade impressionante. Ela não hesitava, não parava para pensar, não olhava mapas ou céus. Apenas guiava. E os outros seguiam.

 

Era claro que ela já havia feito aquela travessia antes.

 

A mata ficou mais fechada antes de se abrir repentinamente diante de um rio largo, de águas turvas e fundo raso. Descemos dos cavalos sem precisar de comando. Os homens fizeram a travessia a pé, guiando os animais. A água gélida subiu até os joelhos, mas o silêncio permaneceu. Nenhum de nós ousava quebrar aquele pacto mudo de pressa e precaução.

 

Atravessamos.

 

Do outro lado, os galhos voltaram a se fechar. As folhas estavam úmidas do sereno da madrugada, e a floresta, cada vez mais densa. A trilha era quase invisível, marcada apenas por pedaços de troncos derrubados ou pedras ligeiramente deslocadas. Se alguém não soubesse que o caminho estava ali, passaria reto. Rinna cavalgava como se a floresta fosse uma extensão do próprio corpo.

 

O tempo parecia distorcido. Podiam ser horas, ou apenas minutos intermináveis. Mas a cada passo que dávamos, sentia a distância entre mim e Varka aumentar. E com ela, uma ferida fria e silenciosa se abria no peito. Não era só mágoa. Era algo mais primitivo: o abandono que vem sem promessas, sem explicação, apenas com o peso da decisão do outro. Ela decidiu por mim. Me tirou da guerra. Me tirou do lado dela.

 

O céu começou a clarear, devagar. Um cinza pálido dissolvendo o azul profundo da noite. Os primeiros pássaros cantaram, tímidos. A floresta, enfim, parecia respirar de novo.

 

Foi quando vi: entre duas elevações de pedra e uma queda suave do terreno, surgiu o vilarejo.

 

Pequeno. Escondido.

 

Casas de madeira cobertas por musgo, telhados baixos e tortos, quase invisíveis entre as árvores. Galinheiros silenciosos, hortas abandonadas e um pequeno lago de águas escuras no centro. Havia fumaça saindo de uma ou outra chaminé, e o cheiro de lenha queimada se misturava ao da terra molhada. Um cachorro latiu ao longe, seguido por outro, mas ninguém veio nos receber. O vilarejo era protegido pelo esquecimento, não precisava de muros. Era invisível.

 

Os cavalos diminuíram o passo. As patas cansadas batiam contra a lama com menos firmeza.

 

Rinna desmontou sem dizer nada e puxou o capuz para trás. Os homens a seguiram. Ela bateu duas vezes numa porta de madeira carcomida. Uma fresta se abriu, alguém acenou de dentro. Estava tudo previsto. Tudo organizado. Me perguntei há quanto tempo esse plano existia, e por que Varka não me contara nada antes.

 

Fiquei ali, por um momento, imóvel em cima do cavalo, observando o lugar. Era seguro, sim. Difícil de encontrar. Um abrigo ideal para quem foge da guerra. Mas era também um lugar de exílio. De esquecimento. Ninguém ali era lembrado. Ninguém ali voltava para lutar.

 

Desci do cavalo, sentindo a rigidez dos músculos e a exaustão que finalmente me alcançava. Meus pés afundaram na lama fofa. Os ossos doíam. O corpo pedia descanso. Mas a mente, a mente só rodava em círculos.

 

Rinna se aproximou, a voz neutra:

 

 

(Rinna) — Tem uma cabana separada. Com cama, lenha e água limpa. Vai poder descansar.

 

 

Assenti, sem agradecer. Ela também não esperava.

 

Segui até a casa indicada. Empurrei a porta. Estava escuro, mas quente. Um fogo pequeno ardia na lareira. O silêncio ali era denso, quase sufocante. Fechei a porta atrás de mim. Me apoiei nela por um segundo.

 

E desabei.

 

Mas não chorei.

 

Apenas deixei o corpo escorregar até o chão. Sentei no frio da madeira. O peito apertado, a garganta seca, os olhos ardendo. Não era tristeza apenas. Era a sensação de estar em um lugar onde tudo havia sido decidido sem mim.

 

Fui salva.

Fui tirada da guerra.

Mas não foi escolha minha.

 

E eu sabia que, a partir daquele momento, nada mais seria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O dia chegou devagar, como uma dor que não acorda de uma vez, mas vai se espalhando pelos músculos, pelos ossos, até tomar conta de tudo.

 

O sol mal entrava pela janelinha coberta por tecido grosso e sujo. A cabana era fria, apesar do fogo que alguém acendeu antes do amanhecer. Ainda havia brasas na lareira e uma panela de barro sobre as pedras. Um cheiro estranho no ar, aveia fervida, talvez. Ou alguma raiz local. Meu estômago reclamou, mas eu o ignorei. A fome era um lembrete incômodo de que eu continuava viva, mesmo sem querer.

 

As roupas ainda estavam sujas da viagem, e meus músculos protestavam a cada movimento. Deitei vestida, encolhida na cama dura, as botas penduradas ao lado. Com a garganta seca e a mente ainda pesada. Por alguns segundos, me esqueci de onde estava. Esperei ouvir o som das vozes na fortaleza de Skarn, o farfalhar das túnicas das curandeiras nos corredores, o bater de armaduras. Mas só havia silêncio. Um silêncio esmagador.

 

Levantei como quem se arrasta de um sonho ruim. Não por vontade, mas porque ficar deitada fazia doer mais. A porta rangeu quando a abri, e a luz da manhã me cegou por um instante.

 

O vilarejo parecia o mesmo da noite anterior. Pequeno, úmido, escondido. O chão ainda coberto de lama fofa e folhas apodrecidas. Algumas mulheres carregavam cestos, cabisbaixas. Um velho cortava lenha num canto. Crianças pequenas espiavam das janelas. Ninguém falava comigo. Ninguém sequer perguntava quem eu era. Como se, naquele lugar, todos soubessem que os forasteiros vinham apenas para desaparecer.

 

E então, é claro, havia ela.

 

Rinna.

 

Estava parada ao lado de uma pilha de lenha, com as mangas arregaçadas e uma tigela nas mãos. Olhou pra mim como se já me esperasse. O sorriso dela era uma faca bem afiada: curto, preciso, feito pra cortar onde mais doía.

 

 

(Rinna) — Dormiu como uma dama, espero — disse, entregando a tigela sem que eu tivesse pedido. — Está magra demais pra aguentar a floresta.

 

 

(Maeryn) — Não estou com fome.

 

 

(Rinna) — Ótimo. — Ela encolheu os ombros. — Menos trabalho pra mim.

 

 

Me afastei, mas ela me seguiu, como um mosquito incômodo.

 

 

(Rinna) — Os guerreiros foram embora ao nascer do dia — comentou, como quem joga sujeira sobre uma ferida. — Voltaram pra guerra. Pra morrer, provavelmente. Mas são leais à Varka, então não me surpreende. Ela tem esse… dom, digamos. Pra fazer os outros se jogarem nas chamas por ela.

 

 

(Maeryn) — Você está se escutando? — perguntei, girando o corpo com raiva. — Consegue passar um só instante sem lembrar que se deitou com ela?

 

 

Rinna ergueu uma sobrancelha, fingindo surpresa. Mas havia algo no rosto dela, uma sombra mais sóbria, que durou só um segundo antes do sarcasmo retornar.

 

 

(Rinna) — Se quisesse que ela fosse só sua, devia ter amarrado.

 

 

(Maeryn) — Eu não preciso te ouvir.

 

 

(Rinna) — Mas precisa de mim — retrucou, e o tom mudou. Menos zombeteiro. Mais direto. — Aqui ninguém te conhece, Maeryn. Ninguém vai te defender se você tropeçar. Eu sou a única coisa que sobrou entre você e o nada. Os homens se foram. As passagens estão sendo vigiadas. Se sair sozinha, vai morrer antes de chegar à próxima colina.

 

 

Fiquei em silêncio. Por mais que doesse, ela estava certa. Varka me colocou ali sem me dizer como ou quando voltaria. Me colocou aos cuidados de alguém que não tinha obrigação nenhuma de gostar de mim.

 

Rinna suspirou e largou a tigela no degrau da porta da cabana.

 

 

(Rinna) — Não estou aqui pra ser sua amiga. Nem sua rival. Estou aqui porque Varka pediu. E porque, queira você ou não, esse é o único lugar seguro que sobrou pra nós.

 

 

Ela se virou para sair. Mas parou, de costas pra mim, e disse, sem ironia:

 

 

(Rinna) — Quando a fome for maior que o orgulho, a comida vai estar aí.

 

 

E foi embora, deixando apenas o cheiro de mingau morno e a vergonha amarga na minha garganta.

 

Fiquei ali, olhando para a tigela como se fosse veneno.

 

Não sabia onde estava. Não sabia o que viria. Só sabia que a mulher por quem eu estava disposta a morrer me deixou longe de tudo, e ainda escolheu como guardiã alguém que me fazia arder de raiva só por existir.

 

E a guerra, aquela maldita guerra…

Continuava sem mim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Varka

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O túnel parecia mais estreito na volta. As paredes úmidas, o cheiro de mofo, os degraus irregulares, tudo me sufocava. A cada passo, sentia a dor pulsar sob as ataduras, costelas queimando, o sangue ainda fresco sob a túnica. O ferimento na coxa reabria em silêncio, mas não parei. Não podia parar. O mundo desabava do lado de fora da muralha e eu precisava estar lá. Meu pai e meus irmãos estavam na linha de frente. Eles não tinham o direito de cair, não enquanto eu ainda respirava.

 

Cheguei ao salão inferior pelo acesso de pedra e fui envolvida de imediato por fumaça e vozes em pânico. Curandeiras gritavam nomes, homens carregavam feridos, o chão manchado de sangue formava um rastro escuro e pegajoso até os corredores principais. Lá em cima, o som da batalha já alcançava as torres, lanças se quebrando, homens urrando, os estalos secos das flechas contra escudos. Skarn estava ruindo. Mas resistia.

 

A dor me puxava pelos nervos, mas eu me obriguei a seguir. Os degraus da escada me pareciam infinitos. Apoiei a mão na pedra fria, puxando o corpo como podia, mancando, arfando. Ninguém me deteve. Talvez achassem que eu era só mais um fantasma movido pelo dever.

 

Quando cheguei ao alto da muralha, o mundo explodiu em frente aos meus olhos.

 

O campo abaixo era um inferno.

 

Fogueiras se espalhavam pelas laterais da encosta. Os portões tremiam com os impactos dos aríetes. Guerreiros inimigos escalavam as cordas com ganchos, enquanto nossos arqueiros os derrubavam antes que alcançassem as ameias. Barris de óleo fervente eram virados, lanças voavam como enxames de abelhas. A noite havia se tornado uma fornalha de aço, gritos e fumaça.

 

Apoiei o ombro na muralha e respirei fundo. Doía. Tudo doía. O sangue pulsava na lateral do meu corpo como tambor descompassado. Não conseguiria levantar uma espada. Nem me manter de pé em combate direto. Eu era um peso.

 

Mas ainda podia mirar.

 

Apanhei uma balestra encostada à muralha, deixada ali por um guarda que talvez não tenha resistido ao impacto anterior. Era pesada. Desajeitada. Mas com algum esforço, consegui encaixar a primeira flecha, deitar o corpo sobre a muralha e mirar.

 

A primeira disparada pegou um inimigo no ombro. Ele cambaleou para trás, derrubando outro que subia pela mesma corda. A segunda foi certeira, entre as costelas, abaixo do escudo. A terceira falhou. As mãos tremiam.

 

Continuei mesmo assim. Mecânica. Automática.

Como se atirar significasse adiar o pensamento.

 

Porque se eu pensasse, ela voltaria. E voltou.

 

Maeryn.

 

O rosto dela me atravessava por dentro da mente, mesmo ali, no meio do caos. O olhar arrogante. A aparência sempre tão calma, até quando me odiava. O nariz empinado, as sardas suaves que só apareciam ao sol. Eu sabia cada traço. Cada silêncio. Cada gesto.

 

E era isso que doía mais.

 

Ela já devia ter cruzado o rio agora. Devia estar a salvo. Longe de tudo isso. Longe de mim.

Fiz com que ela fosse. Planejei. Combinei com Rinna dias antes do primeiro ataque, antes que a primeira torre desabasse, antes que o sangue molhasse os degraus do castelo. Rinna devia lealdade a mim, de um jeito sujo, carnal, mas confiável. E ela conhecia caminhos que nem os mapas ousavam desenhar.

 

Eu sabia o que fazia. Sabia o que era necessário.

 

Ela precisava ir. Porque Maeryn não foi feita para morrer entre muralhas queimadas. Não merecia ver homens sendo partidos ao meio, não merecia se tornar lembrança nas canções de guerra. Ela merecia vida. Terra limpa. Céu azul. Vento leve nos cabelos. Coisas que nunca encontraria aqui. Nem comigo.

 

Porque eu, bárbara como me chamam, selvagem como me veem, não tenho mãos pra segurar alguém como ela. Eu carrego espada, não promessas. E as minhas mãos, quando tocam, deixam marcas que demoram pra sarar.

 

Então a mandei embora. Por amor. Mas não ousei chamá-lo assim.

 

A balestra rangeu mais uma vez. Mirei. Disparei. Acertei.

 

Enquanto isso, o nome dela martelava na minha cabeça.

Maeryn.

Maeryn.

Maeryn.

 

E mesmo sem dizê-lo em voz alta, era por ela que eu estava ali.

 

Disparando.

Resistindo.

Sangrando.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A balestra se tornara uma extensão do meu braço. Eu já não sentia o peso dela, nem o esforço dos músculos a cada recarga. Era só mira, disparo, respira. Mira. Disparo. Respira. A dor já havia se dissolvido num canto do meu corpo, abafada pela adrenalina, pela raiva e pela culpa.

 

O céu começava a clarear, tingido de cinza e vermelho. O fedor da carne queimada e do sangue fresco tornava o ar irrespirável, mas ninguém se importava. Lá embaixo, a terra se tornava lama viva, misturada à carne e aos gritos.

 

Vi um dos nossos arqueiros cair com uma lança atravessando a garganta. A cabeça dele tombou de lado e o corpo escorregou pela muralha como um saco vazio. Ninguém teve tempo de chorar. Outro já ocupava o espaço.

 

Disparei. Acertei um homem que escalava com um machado na mão. Ele caiu pra trás, atingindo dois dos seus. Outro tentou subir pela corda do lado oposto, mais uma flecha. Outro. Outro. Quantos consegui alcançar? Não sei. Parei de contar quando o sangue dos inimigos já cobria parte da muralha como tinta escura, espessa.

 

Uma flecha roçou meu ombro. Rasgou a pele e a túnica. O impacto me jogou contra a parede de pedra. Trinquei os dentes pra não gritar. Sangue escorreu quente, lento. O braço esquerdo perdeu parte da força, mas continuei. Com a outra mão. Com o que restava.

 

O rosto de Maeryn surgia entre um disparo e outro, como maldição. Loira. Olhos verdes. Altiva até o fim. Eu a imaginei olhando pela janela do esconderijo, tremendo de medo. Ou de raiva. Talvez me odiasse. Devia me odiar. Porque a mandei embora. E não com qualquer um, com Rinna.

 

Talvez tenha sido essa a crueldade final. Confiar a mulher que eu amava à pessoa que aqueceu meu corpo por tantas noites. Foi o melhor que pude oferecer. E o mais baixo que poderia ter feito.

 

Quando o sol enfim subiu por completo, os invasores recuaram. Não como quem desiste, mas como quem aguarda o próximo golpe. Mais uma vez havíamos resistido. E mais uma vez, mal conseguíamos levantar a cabeça pra chamar isso de vitória.

 

Eu ainda estava no alto da muralha quando os sinos silenciaram.

 

Abaixo, os corpos estavam sendo arrastados, separados em montes. Os nossos e os deles. As poças de sangue se espalhavam por todo o pátio interno. As curandeiras corriam, as mãos vermelhas, os olhos vazios. Vi uma delas cair de joelhos, esgotada. Um dos soldados a levantou como quem levanta um saco de farinha. Ninguém era poupado. Ninguém estava bem.

 

Desci apenas quando minhas pernas ameaçaram ceder. Passei por cima de escadas molhadas de sangue e trincheiras improvisadas com escudos e cadáveres. Os portões estavam seguros, por enquanto. Mas o som do mundo era só gemido e madeira rangendo.

 

Encontrei meu pai no salão inferior, com o braço envolto em faixas encharcadas. Ele sangrava de um corte na costela, mas ainda assim gritava ordens como se tivesse vinte anos. Dravak estava ali, também ferido, mas lúcido. Kael ajudava uma curandeira a costurar um dos homens que perdera metade da mão. E Jorun, Jorun estava sentado num banco, pálido, mas inteiro. Não havia lutado dessa vez. Apenas comandado. Melhor assim. A última batalha quase o matou.

 

 

(Korgun) — Onde ela está? — perguntou meu pai, assim que me viu. O tom ríspido. Sem tempo pra jogos. — Maeryn. Onde está?

 

 

Fiquei em silêncio por um momento. Depois respondi:

 

 

(Varka) — No abrigo ao norte. Rinna a levou. — respondi esperando que perdesse a razão.

 

 

Ele assentiu, mas os olhos buscaram os meus, como se pudessem atravessar meu medo.

 

 

(Korgun) — O esconderijo foi atacado.

 

 

O chão se abriu por baixo dos meus pés.

 

 

(Varka) — O quê?

 

 

(Korgun) — Antes do recuo inimigo. Mandaram um destacamento procurando por brechas. Mulheres foram mortas. Crianças também. — A voz dele endureceu. — As que sobreviveram fugiram. Estamos tentando localizar os demais. Ainda não sabemos quem estava lá no momento do ataque.

 

 

Meu estômago virou pedra.

 

Não disse nada. Não podia. A dor no ombro parecia distante agora. Tudo dentro de mim se reduzia a uma coisa só:

Ela.

Se tivesse seguido as ordens do meu pai, talvez agora ela estivesse morta também.

 

 

Ajoelhei, não por fraqueza, mas por necessidade. Precisava de chão, de algo sólido, de algo que me impedisse de cair de vez. O medo era real. Vivo. Um bicho dentro da minha garganta.

 

Maeryn.

Por todos os deuses… Maeryn.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O dia inteiro foi feito de sangue seco, fumaça e exaustão. Skarn parecia ter resistido apenas por teimosia. As muralhas estavam manchadas, o chão irregular coberto de corpos e cascos quebrados, e o céu, mesmo claro, parecia pesar sobre nossas cabeças como pedra prestes a desabar.

 

Trabalhei. Mais do que devia. Mais do que podia.

 

A dor era uma constante, algo que latej*v* sob as ataduras como um tambor doente. As curandeiras me obrigaram a parar por algumas horas no meio da manhã. Reabriram os curativos, costuraram a pele com mãos firmes e olhos aflitos. Uma delas praguejou quando viu o estado do meu ombro, mas não disse nada, apenas apertou as faixas com mais força do que o necessário, como se a dor me fizesse lembrar que eu ainda estava viva.

 

Tentei vestir a armadura, e quase caí. Um dos escudeiros me ajudou a erguer os ombros enquanto outro puxava as correias. Cada dobra do couro contra a carne era um lembrete cruel de que eu ainda não estava pronta. Mas os outros também não estavam. Então pouco importava.

 

Na metade da tarde, os corvos chegaram.

 

O brasão de Valmont me gelou por dentro assim que vi o selo no papiro. Meu pai leu em voz alta, sem cerimônias, reunido com os meus irmãos e dois dos capitães sobreviventes.

 

O rei Aldren agradecia por termos enviado aviso imediato, e por termos tomado as providências antes que os muros ruíssem. Informava que tropas estavam a caminho, três esquadrões completos, cavaleiros de Valmont, bem armados, experientes. Disse que marchariam dia e noite até alcançar Skarn.

 

E então, a parte que me fez prender a respiração: ele perguntava sobre Maeryn.

 

Com urgência. Com medo.

Com um tom que soava apenas como o de um pai preocupado com a filha. Não de um rei.

 

 

Meu pai, para minha surpresa, se calou por alguns segundos depois de ler. Passou os dedos pela barba, o olhar perdido em algum ponto da lareira.

 

 

(Korgun) — Ele a quer viva — disse, enfim. — Já era de se esperar. 

 

 

(Varka) — Pela aliança — arrisquei.

 

 

Ele me olhou. Frio. Eu sabia que seus pensamentos não eram só por isso.

 

 

(Korgun) — Ele devia ter mandado um filho homem…

 

 

Permanecemos em silêncio. O nome de Maeryn parecia pesar no ambiente mais do que o de qualquer soldado morto. Ninguém ousou discutir.

 

No dia seguinte, antes do sol nascer, meu pai me chamou na tenda do conselho. Estava de pé, já armado, com os mapas de fronteira abertos e dois mensageiros prontos para partir.

 

 

(Korgun) — Vamos mandar um grupo até o vilarejo escondido. Você lidera.

 

 

(Varka) — Maeryn?

 

 

(Korgun) — Se ela estiver viva, vai encontrá-la. Se não, vai nos trazer o corpo. De qualquer forma, Valmont precisa de resposta. — Fez uma pausa. — E eu preciso saber que você está fora das muralhas até se recuperar.

 

 

A raiva me subiu como brasa.

 

 

(Varka) — Eu posso lutar.

 

 

(Korgun) — Não pode. — O tom dele foi uma pedra. — Está caindo aos pedaços. Sua lealdade não me serve se você tombar na próxima investida.

 

 

Fiquei em silêncio, os punhos cerrados, a respiração contida.

Ele não estava me punindo. Estava me tirando dali. Me poupando.

 

 

(Varka) — E se eu me recusar?

 

 

(Korgun) — Então mando Kael. Ou Dravak. Mas não vou discutir com uma filha teimosa quando o rei de Valmont pergunta por sua herdeira.

 

 

Aquela frase me atingiu mais do que qualquer golpe do dia anterior.

 

A decisão estava tomada. Um pequeno grupo seria montado. Viagem rápida. Meu pai exigiu discrição. Se Maeryn estivesse viva, e tudo em mim ainda gritava que ela estava, minha missão era levá-la de volta a Valmont. Como sinal de gratidão. Como símbolo de respeito. Como moeda viva numa guerra que não nos deixaria espaço para erros.

 

Na noite anterior à partida, fui até as muralhas. Olhei o horizonte, agora escurecido pelas cinzas das fogueiras que nunca cessavam. O vento cortava forte e trazia o cheiro podre da guerra. Tentei encontrar silêncio. Não consegui.

 

Pensava nela.

 

O tempo todo.

Desde que mandei Rinna levá-la. Desde que vi seus olhos feridos me julgando em silêncio.

Ela devia me odiar. E com razão.

 

Mas foi o melhor que pude oferecer.

Meu melhor sempre foi pouco demais pra ela.

 

No dia seguinte, partimos antes do primeiro corvo cantar.

Mas o peso dela, o nome, a ausência, a lembrança, esse já estava comigo desde muito antes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A cavalgada foi longa, mais longa do que deveria. Não pelas léguas percorridas, mas pela dor que latej*v* a cada passo do cavalo sob mim. Cada sacolejo reabria as costuras, cada lufada de vento trazia lembranças que eu lutava para empurrar para o fundo da garganta. Não deixei que os homens vissem, não podia. Comandei o grupo como se ainda fosse inteira, como se a carne sob as faixas não queimasse, como se o peso da ausência dela não cavalgasse ao meu lado desde que partimos de Skarn.

 

Eu conhecia o caminho.

 

Já havia estado ali. Na escuridão da noite, com o rosto coberto e o nome calado. Rinna me mostrara o vilarejo tempos atrás, quando a guerra era apenas um aviso e os muros ainda estavam de pé. Ela o chamou de “terra esquecida”, e estava certa. Era um recanto apagado do mundo, onde a guerra ainda não tinha nome. Escolhi aquele lugar porque, se havia algum ponto do mapa onde Maeryn podia estar a salvo, era ali. Mesmo que fosse longe de mim.

 

O sol se punha quando os telhados disformes surgiram entre os galhos tortos das árvores. Uma névoa rasteira envolvia o chão, e os últimos pássaros piavam baixo, como se temessem fazer parte daquilo. As casas pequenas, os cercados quebrados, o lago escuro no centro, tudo igual à última vez. Mas o silêncio estava diferente. Carregado. Tenso.

 

Descemos dos cavalos diante da primeira casa com luz, e eu desmontei com mais dificuldade do que queria admitir. Um dos soldados me lançou um olhar rápido, mas desviou. Todos sabiam que minha resistência era um jogo de aparência. E eu precisava mantê-lo até o fim.

 

Rinna veio ao nosso encontro antes que eu pedisse.

 

Trazia um casaco de pele jogado sobre os ombros, o cabelo preso num nó improvisado e aquele olhar que sempre misturava ironia com astúcia. Mas, dessa vez, havia algo mais ali, talvez cansaço. Ou peso.

 

 

(Rinna) — Trouxe reforços? — disse, olhando para os homens. — Pensei que viria sozinha.

 

 

(Varka) — Vim buscar Maeryn.

 

 

Ela não sorriu. Apenas assentiu com o queixo.

 

 

(Rinna) — Está na casa da minha mãe. Dormiu mal, mas está viva. Assustada. Com raiva, talvez. Mas viva.

 

 

Engoli em seco. A raiva dela eu podia suportar. A ausência, não.

 

 

(Varka) — Obrigada — disse, sem ironia, sem amargor. — Por tê-la trazido. Por não deixá-la só.

 

 

Rinna não respondeu de imediato. Apenas me encarou. Depois disse, baixa:

 

 

(Rinna) — Ela não é feita pra isso aqui. Mas pelo menos ela não foi enterrada com os outros.

 

 

Fez menção de ir embora, mas parou ao meu lado e murmurou:

 

 

(Rinna) — Ela esperou. Mesmo que não diga isso.

 

 

Não reagi. Só continuei andando.

 

A casa era pequena, de madeira antiga, coberta por musgo. Uma lamparina tremeluzia na janela. O som do vento nas árvores era o único som além dos meus próprios passos.

 

Não bati à porta. Apenas entrei.

 

O calor do fogo me atingiu primeiro. Depois o cheiro de chá de raiz e lenha. E, por fim, ela.

 

Maeryn estava sentada perto da lareira, as pernas dobradas sob o corpo, a cabeça baixa, os cabelos soltos caindo como um véu claro sobre os ombros. Parecia imóvel, mas eu sabia que não dormia. O corpo dela estava tenso, como de quem ouve tudo, sente tudo, até demais.

 

A madeira rangeu sob meu peso. A porta fechou atrás de mim com um estalo abafado.

 

Ela virou o rosto devagar, os olhos encontrando os meus no mesmo instante. E o que vi ali… não era só surpresa. Era um terremoto inteiro contido em dois olhos verdes.

 

Ela se levantou num salto, o corpo rígido, a respiração entrecortada. Ficou alguns segundos em silêncio, como se a própria presença fosse insuportável demais pra digerir de imediato. Depois, a tempestade veio.

 

 

(Maeryn) — Está aqui?!

 

 

A voz dela foi um rasgo. Baixa no começo, depois alta, amarga, embargada.

 

 

(Maeryn) — Você teve a coragem de vir só agora? Depois de me abandonar naquele lugar maldito, com aquela… aquela… mulher?!

 

 

Não respondi.

 

 

(Maeryn) — Você me largou como se eu fosse peso morto! Me mandou embora no meio do caos como se eu fosse uma prisioneira!

 

 

Ela avançou um passo, os punhos cerrados, o rosto vermelho, os olhos úmidos. E mesmo com toda a raiva, eu só conseguia ver que ela estava viva. Inteira. E ali.

 

 

(Maeryn) — E por quê? Pra me proteger?! — cuspiu a palavra como veneno. — Eu não pedi sua proteção, Varka. Eu pedi que ficasse. Que confiasse. Que pelo menos… me enxergasse como igual.

 

 

O som da voz dela era um açoite contra a pele. Não desviei. Não recuei. Deixei que as palavras me atingissem como lanças. Eu merecia cada uma.

 

 

(Maeryn) — Você me colocou nas mãos daquela mulher como quem se livra de um problema. E foi isso que eu fui pra você, não foi? Um problema. Um erro que não pode ser nomeado.

 

 

A palavra ficou suspensa no ar. Silêncio. Só o estalo do fogo queimando devagar.

 

Os ombros dela começaram a tremer. Os olhos ainda estavam fixos em mim, mas já não eram fogo. Eram água.

 

 

(Maeryn) — Eu odiei você.

 

 

As palavras saíram pequenas agora. Fracas.

 

 

(Maeryn) — Juro pelos deuses, eu odiei você com tudo o que eu tinha. Pela humilhação. Pela dor. Pelo medo que senti. Por me fazer amar alguém que não teve coragem de ficar.

 

 

E então ela desabou.

 

Como uma criança.

 

Como se todo o orgulho, toda a força, toda a armadura que carregava tivesse rachado de vez. O corpo dela caiu sobre a cama, sentada na beirada, as mãos cobrindo o rosto. E o som que saiu dali não era bonito. Era bruto. Cortado. Um soluço que feria mais do que qualquer arma.

 

Eu não me movi.

 

Não porque não quisesse. Mas porque não sabia como. Não havia gesto que pudesse desfazer aquilo. Nenhuma palavra no mundo que merecesse ser dita diante de um amor ferido como o dela.

 

Fiquei ali, parada, sentindo o cheiro da lenha, o peso da culpa e o som dela se partindo, sem que eu pudesse segurá-la.

Talvez porque eu fosse quem a deixou cair.

 

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Dois é bom né?


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Comentários para 10 - Capitulo 10:
HelOliveira
HelOliveira

Em: 13/08/2025

Dois é bom demais.....não caberia tantas emoções em apenas um capítulo.....

Ufffs foram maravilhosos.....Varka amor ou raiva....mas o importante estão vivas ainda...

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