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Dois Reinos por Natalia S Silva

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Palavras: 6810
Acessos: 566   |  Postado em: 12/08/2025

Capitulo 9

Maeryn 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O silêncio veio antes da luz.

 

Ele não foi repentino. Foi um cessar gradual, como se a própria morte tivesse se afastado dos portões de Skarn aos poucos, deixando para trás o eco daquilo que não pôde levar. Os gritos tinham parado. O som das armas, o uivo das flechas, os brados de guerra… tudo havia sumido, engolido por uma quietude espessa, desconfortável, cheia de perguntas que ninguém ousava fazer.

 

Quando as portas do esconderijo se abriram, o frio invadiu como uma lâmina.

 

As mulheres e crianças ao meu redor se encolheram, algumas sussurrando orações esquecidas, outras apertando com mais força os filhos contra o peito. Os velhos se erguiam com dificuldade, os olhos úmidos, rugas tremendo de cansaço, medo e resignação.

 

Eu fui a primeira a sair.

 

O corredor de pedra que dava acesso ao abrigo se abriu para a parte baixa da fortaleza.

E o que vi…

Deveria ter me preparado.

Mas não há preparação possível para aquilo.

 

Skarn estava coberta de sangue.

 

O pátio principal parecia um campo de execuções. Corpos por toda parte, empilhados, espalhados, estirados de formas que o corpo humano nunca deveria assumir. Havia marcas profundas na terra, sulcos feitos por rodas, botas, garras, o peso da morte.

 

O cheiro.

 

Meu Deus, o cheiro.

 

Era como um peso vivo nos pulmões. Sangue, carne queimada, urina, suor, óleo queimado, morte.

Tive que tampar a boca com a manga do manto. Outras atrás de mim vomitaram ao sair.

 

Os estandartes de Skarn ainda estavam de pé, manchados, rasgados mas de pé. E isso dizia algo.

Dizia que vencemos.

Mas não sem pagar um preço alto.

 

Tropas ainda caminhavam entre os mortos, tocando com as lanças para garantir que nenhum respirava. Outros recolhiam os nossos, identificando os que podiam ser salvos, carregando os que já não voltariam.

Vi um rapaz, devia ter idade pra ser escudeiro, sentado ao lado do corpo do pai. Os dois estavam cobertos pelo mesmo manto, como se a morte tivesse os costurado num último abraço.

 

Segui mais adiante, cambaleando.

 

Cada passo era uma luta contra o impulso de voltar, me esconder, fingir que não vi.

Mas eu precisava encontrar alguém.

 

Eu precisava encontrar ela.

 

 

(Maeryn) — Varka. — sussurrei. — Onde você está?

 

 

Avancei pelo pátio, olhando os rostos de cada guerreiro tombado.

Nenhum era o dela.

Mas também não a via entre os vivos.

 

Esbarrei em um dos soldados. Trazia um ferimento horrível no braço, mas me fez um gesto de cabeça.

 

 

(Soldado) — Deveria voltar pra dentro. Ainda não está seguro.

 

 

(Maeryn) — Onde está Varka? — perguntei, sem rodeios.

 

 

Ele hesitou.

 

 

(Soldado) — Ela… ela estava no centro da linha. Disseram que segurou a muralha sozinha até o último ataque.

 

Meus pés se moveram antes que eu pensasse.

Corri.

Atravessei os corpos, pulei sobre escudos partidos, desviei de tochas tombadas.

Meus olhos buscavam entre a multidão dos feridos, entre os curandeiros ajoelhados, entre os guerreiros tombados.

 

E então a vi.

 

Deitada perto da entrada da fortaleza, meio envolta num cobertor encharcado de sangue. Duas curandeiras ajoelhadas ao lado dela. Uma pressionava um pano contra o ombro, outra verificava seus batimentos com a testa colada ao peito. Kael estava ao seu lado, tenso.

 

Meu coração parou.

 

Corri até ela, e me ajoelhei com tanta força que senti as pedras rasgarem a pele dos meus joelhos.

 

 

(Maeryn) — Varka…

 

 

Ela não respondeu.

 

Pálida.

Os cabelos embaraçados, grudados no rosto.

O machado ao lado, ainda sujo de sangue e barro.

 

 

(Maeryn) — Ela vai sobreviver? — perguntei às curandeiras.

 

 

(Curandeira) — Perdeu muito sangue. Não sabemos de quantos ferimentos. Lutou até o fim… depois caiu, desmaiou antes que pudéssemos trazê-la. Ela está viva. Mas… fraca.

 

 

Fechei os olhos.

Apertei os lábios.

 

Viva.

 

Viva.

 

Por um instante, quis abraçá-la, chorar, gritar.

Mas havia gente ao redor.

E eu era Maeryn de Valmont.

 

Então, apenas me curvei sobre ela, e toquei sua testa com a mão. Tímida, mas ignorando todo meu orgulho ferido de um dia antes.

Ali, ajoelhada entre os mortos e os feridos, o mundo se dividia em duas verdades:

Skarn resistiu.

E Varka, mesmo inconsciente, ainda era a muralha entre a queda e a sobrevivência.

 

 

 

 

 

 

Levaram-na nos braços de dois guerreiros, um de cada lado, com o corpo de Varka tombado como o de alguém que carregava o peso de um mundo inteiro nas costas.

 

Eu fui atrás. Ninguém disse uma palavra. Ninguém me impediu de segui-los até os aposentos dela. Talvez por respeito. Talvez por medo. Ou talvez porque, depois de tudo, até os brutos de Skarn aprenderam a reconhecer laços que vão além do que a guerra pode quebrar.

 

O quarto estava escuro, o chão ainda sujo de barro trazido pelas botas. Era frio, austero, como tudo ali, mas quando depositaram o corpo de Varka sobre a pele de urso no leito, pareceu por um instante que aquela mulher, sempre de pé, sempre de ferro, era apenas… humana.

E frágil.

Tão frágil.

 

As curandeiras entraram logo em seguida, carregando bacias de água quente, toalhas, jarros com ervas, potes com cinzas e óleo, ferros de metal e brasas acesas. Fechei a porta atrás de mim.

Elas me olharam, mas não disseram nada.

Eu não disse que ficaria.

E elas não pediram que eu saísse.

 

Então fiquei.

 

Varka estava inconsciente, mas seu corpo reagia. Contrações involuntárias. Um tremor constante no ombro direito. A respiração, rasa, falhada, vinha com um assobio leve.

As curandeiras começaram o trabalho em silêncio.

 

Retiraram suas roupas sujas com cuidado, cortando os pedaços de couro rasgados, desamarrando as fivelas com mãos firmes. E eu vi.

 

Vi os ferimentos.

Os cortes no ventre, profundos e irregulares, como se tivessem tentado abrir suas entranhas.

Dois furos de lança na lateral da coxa, ambos ainda sangrando lento, escuro.

O ombro direito estava dilacerado por uma mordida que só podia ter sido feita por alguma fera, os dentes haviam atravessado a carne.

As costas tinham hematomas negros, do pescoço até a lombar.

E havia queimaduras também, no flanco esquerdo, onde o metal quente da armadura deve ter ficado tempo demais sob ataque.

 

Lavaram o sangue.

Esfregaram com panos ásperos.

Limparam barro, pedaços de tecido.

E, por fim, queimaram os cortes mais profundos.

Usaram ferro em brasa.

 

Varka acordou nessa hora.

Mas não por completo.

 

Gritou.

Um grito que nunca vou esquecer.

Não era de dor apenas, era de raiva, de desespero, de alguém que lutava até mesmo contra a própria fraqueza.

Suas mãos bateram no ar, os olhos abertos e sem foco.

Ela chamava… por algo. Ou alguém.

Palavras soltas, misturadas em delírio. Algumas em skarniano antigo, outras sem sentido.

Mas ouvi um nome, mais de uma vez.

O meu.

Murmurado.

Quase um lamento.

 

Fiquei ali.

Sem desviar os olhos.

Sem me mover.

 

A água escorria de sua pele misturada a sangue e suor.

As costelas apareciam entre os hematomas.

Os músculos retesados em dor, os cabelos grudados na testa.

A guerreira feroz estava ali, mas aberta, partida.

E mesmo assim, jamais vi alguém tão… viva.

 

As curandeiras terminaram por fim, cobrindo o corpo com mantos limpos e amarrando faixas com ervas amargas nas feridas.

Ela ainda respirava com dificuldade, mas dormia outra vez.

 

E foi nesse momento que a porta se abriu.

Kael entrou.

 

Carregava uma atadura improvisada no peito, o rosto com um corte que ia da têmpora até o queixo.

Parou ao me ver.

Não zombou. Não sorriu.

Apenas me observou em silêncio por um momento, o maxilar tenso.

 

 

(Kael) — Ela não devia ter ficado tanto tempo na linha de frente. — disse por fim, a voz rouca.

 

 

(Maeryn) — Mas ficou… — resmunguei.

 

 

(Kael) — Essa é a Varka. — ele respondeu, e pela primeira vez, não havia orgulho arrogante na voz. Havia peso. Dor.

 

 

(Maeryn) — Você se importa com ela.

 

 

Ele assentiu, vagamente.

 

 

(Kael) — De um jeito diferente do seu. — disse, sem rodeios. — Mas sim. Ela é a melhor de nós. A mais tola também. Sempre se jogando no meio da tormenta.

 

 

Nos calamos por um momento.

Ele se aproximou do leito, olhou a irmã com cuidado.

A raiva antiga nos olhos dele parecia ter murchado.

Havia algo… quebrado. Mas mais humano.

O mesmo Kael, mas menos lobo, mais homem.

 

 

(Kael) — Nunca vi alguém ficar ao lado dela assim. — ele falou, sem olhar pra mim. — As mulheres que ela teve fugiam na primeira tempestade. Na maioria das vezes ela fugia sem explicação também.

 

 

Eu não respondi. Não estava fingindo meus sentimentos o suficiente.

 

 

(Kael) — Você é uma princesa de Valmont.

 

 

(Maeryn) — Sim…

 

 

(Kael) — E mesmo assim está aqui, cercada de sangue, de dor, de gente que te despreza.

 

 

(Maeryn) — Ela foi boa pra mim.

 

 

(Kael) — Entendo.

 

 

Me encarou, de verdade, pela primeira vez.

 

 

(Kael) — Se ela viver… — ele disse, a voz mais baixa — …vai tentar te afastar. Ela sempre tenta. Nunca achou que merecia coisa alguma por ser diferente. 

 

 

Respirei fundo.

 

 

(Maeryn) — Talvez me afastar seja o certo.

 

 

(Kael) — Talvez. Ou não. — ele deu de ombros. — Mas ainda assim… ela vai tentar.

 

 

Fez menção de sair, mas parou na porta.

 

 

(Kael) — Cuide dela, se puder. Ela vai ficar furiosa quando acordar, mas, ela merece.

 

 

E então ele se foi.

 

Voltei os olhos pra ela.

 

Varka dormia. O rosto ainda tenso, as sobrancelhas franzidas como se lutasse até nos sonhos. Mas a respiração vinha mais estável agora.

E eu ali, sentada ao lado do leito, observava cada suspiro como quem vigia o fogo da última tocha acesa num mundo cercado de escuridão.

 

Talvez eu nunca entenda essa terra.

Mas sei que, de alguma forma, parte de mim… já pertence a ela.

E parte de mim… já pertence a Varka.

 

 

 

 

 

 

 

O amanhecer em Skarn não trouxe alívio.

 

As nuvens baixas, pesadas como chumbo, pareciam carregar o luto e a tensão sobre as muralhas da fortaleza. O cheiro de sangue ainda impregnava o ar, misturado ao do ferro oxidado e da terra revirada. Gritos ecoavam em corredores distantes, ordens, pedidos de ajuda, gritos de dor. As pedras do pátio estavam manchadas, os corpos já tinham sido recolhidos, mas as marcas ficaram: rastros arrastados, manchas escuras e secas, pedaços de tecido, lanças partidas, escudos rachados.

 

Soldados iam e vinham em passos apressados. Alguns mancavam, outros carregavam bandejas com suprimentos, baldes com água fervente, flechas, cordas, reforços de madeira para as portas danificadas. Os curandeiros não paravam, vi dois deles, cobertos de sangue seco, amparando um jovem com as costelas expostas, e mais adiante, três homens carregando uma pira para os corpos que não podiam mais esperar enterro.

 

As muralhas estavam sendo reforçadas, dobrando a guarda. Catapultas voltavam a ser erguidas. Arqueiros, com os dedos enfaixados e os olhos cansados, treinavam à exaustão. Havia algo de desesperado naquele movimento constante, não era apenas reconstrução, era medo. A certeza de que aquilo não havia acabado. Que a próxima onda viria.

 

E ela viria.

 

Diziam que os espiões tinham captado movimentação nas trilhas do norte. Mais tropas. Provavelmente mercenários ou clãs renegados atraídos pela promessa de ouro ou pela chance de destruir Valmont e Skarn de uma vez. Não havia tempo para luto, nem para repouso. A guerra não esperava.

 

Mas ali dentro… naquele quarto escuro, onde o mundo parecia suspenso, o tempo corria de outro jeito.

 

Varka ainda lutava.

 

O suor encharcava suas têmporas. Os lençóis sob ela já haviam sido trocados duas vezes por causa do sangue que continuava a vazar das feridas mais profundas. As faixas, que antes estavam limpas e apertadas, agora mostravam tons escuros de sangue coagulado, tingidas por um vermelho denso que não cessava. As curandeiras voltaram três vezes. Reabriram pontos, aqueceram óleo, murmuraram preces em skarniano antigo. Uma delas desenhou símbolos com cinzas na madeira ao lado do leito. Era uma antiga superstição, marcas de proteção para evitar que os mortos em agonia levassem a alma dos vivos com eles.

 

Mas Varka não cedia.

 

Seu corpo se contorcia de tempos em tempos, como se algo dentro dela ainda resistisse. E eu via. Cada músculo rígido, cada suspiro arfante, cada gemido que escapava dos lábios entreabertos.

 

Ela não falava mais, mas se movia como quem sonha com guerra.

 

Em um momento, sua mão se ergueu do lençol, os dedos crispados, como se empunhassem uma espada invisível. Depois caiu, pesada, exausta. A respiração voltou a falhar. Um chiado no peito. Eu me inclinei, toquei sua testa: estava febril.

 

As curandeiras diziam que a infecção era inevitável com feridas tão expostas. E mesmo com toda a experiência que tinham, não sabiam se ela aguentaria. O ferro queimara a carne, mas talvez fosse tarde demais.

 

Fora dali, as notícias eram um turbilhão. Os reforços prometidos não haviam chegado. Havia relatos de traição entre os clãs menores, que se recusavam a ceder homens para defender Skarn. Alguns diziam que já haviam escolhido um lado.

 

E eu? Continuava ao lado dela.

 

Tentei sair uma vez, apenas uma. Dei dois passos em direção à porta e ouvi um som, baixo, gutural, um lamento inconsciente vindo da garganta dela. Voltei imediatamente. Segurei sua mão. Era áspera, os nós dos dedos marcados por calos e cicatrizes antigas. Mas quando a minha fechou sobre a dela, por um segundo, juro, ela apertou de volta.

 

Fiquei ali.

 

A dor no mundo lá fora não me parecia tão diferente da dor que via ali dentro. A diferença era que, ali, ao lado de Varka, eu podia pelo menos tentar impedir que algo se perdesse por completo. Que ela se perdesse.

 

E mesmo se ela não soubesse… Mesmo se, ao acordar, me mandasse embora… Eu ficaria mais um pouco.

 

Só mais um pouco.

Até que ela voltasse.

Ou até que o mundo acabasse.

 

 

 

 

O dia seguinte chegou como uma sombra arrastada pelo chão.

 

Lá fora, os sons da fortaleza não cessavam. Marteladas, gritos de ordem, o tilintar de metal sendo forjado, a vida continuava, forçada a seguir em frente mesmo quando os corpos ainda estavam quentes. O tempo não parava por ninguém. Nem por reis, nem por generais. Muito menos por uma mulher como Varka.

 

Mas dentro daquele quarto, o tempo ainda era outro.

Suspenso.

Silencioso.

Denso.

 

Ela ainda dormia. Ou talvez… estivesse entre mundos. Nem viva o bastante para sorrir, nem morta o bastante para ser pranteada. Apenas ali, presente na dor, ausente no resto.

 

Eu não saí do seu lado.

 

Fiz o que pude. Ajudei como pude. Troquei panos, empurrei a febre com compressas frias, sussurrei preces que nem sabia se acreditava. Às vezes falava com ela, só pra manter o som da minha voz no ar. Às vezes, só a olhava.

 

E quanto mais eu olhava… mais me via perdida.

 

Como pode alguém amar o que não se pode tocar sem medo? Como pode o coração correr atrás de quem pisa nele com botas sujas e olhos distantes? Ela me ignorava. Me usava quando queria. Depois me deixava com palavras cortantes ou, pior, com silêncio.

 

E mesmo assim… eu estava ali.

Mesmo assim… queria que ela vivesse.

Mesmo assim… amava.

 

Olhei seu rosto por horas, os traços endurecidos pela febre e pelas marcas de luta. Havia cortes ali, hematomas sob os olhos, os lábios rachados, o maxilar tenso até mesmo adormecida. Mas havia também beleza. Tanta que doía.

 

O tipo de beleza que não se pede. Que não se tem. Que se admira de longe, como fogo. Como tempestade.

Como uma força que destrói tudo e ainda assim nos atrai pra dentro dela.

 

Eu me odiava um pouco por isso.

E a amava ainda mais.

 

Os ferimentos não sangravam mais. A febre, ainda presente, parecia mais branda. As curandeiras disseram que se ela sobrevivesse até a próxima noite, talvez tivesse alguma chance. E assim fiz: esperei. Com o corpo cansado, as emoções à flor da pele, a alma rasgada. Esperei.

 

Então, na noite seguinte, algo mudou.

 

No começo foi só um movimento. Pequeno. Um dedo que se mexeu de leve. Depois, um suspiro mais profundo, um estremecer dos ombros. Eu me aproximei, com o coração disparando no peito como um tambor desgovernado.

 

Seus cílios tremularam. As pálpebras se ergueram devagar, como se o próprio peso de acordar fosse demais. Os olhos… estavam turvos no começo, perdidos. Depois focaram. Em mim.

 

E eu não sabia o que dizer.

 

 

(Maeryn) — Você está viva…

 

 

Foi tudo o que consegui murmurar.

 

Ela piscou devagar. O rosto ainda pálido, suado, mas os olhos… estavam lá. Aqueles olhos frios, firmes, que me encararam tantas vezes como se eu fosse só mais uma peça num jogo maior. Mas, dessa vez, não havia jogo.

 

 

(Varka) — Porr*… — sussurrou, com a voz rouca como pedra raspando metal. — Doeu.

 

 

Soltei um riso abafado, entre o alívio e o desespero.

 

 

(Maeryn) — Você gritou tanto que assustou até os fantasmas de Skarn.

 

 

Ela fechou os olhos de novo, por um instante. A respiração lenta, dolorida.

 

 

(Varka) — Devia ter morrido…

 

 

(Maeryn) — Não diga isso.

 

 

(Varka) — Seria mais fácil. Pra todo mundo.

 

 

Me aproximei, peguei sua mão, fria, mas viva. Meus dedos entre os dela. Ela não afastou.

 

 

(Maeryn) — Talvez pra você. Mas não pra mim.

 

 

Ela me olhou de novo. E, por um momento, vi algo ali… que não era arrogância. Nem sarcasmo. Nem escudo. Era só ela. Fraca. Humana. E assustada.

 

 

(Varka) — Não precisa estar aqui.

 

 

Assenti, sentindo as lágrimas ameaçarem.

 

 

(Maeryn) — Eu quis.

 

 

(Varka) — Por quê?

 

 

(Maeryn) — Porque, mesmo depois de tudo… mesmo depois de você me ignorar, me afastar, se deitar com outras… eu ainda quero você viva.

 

 

Ela não respondeu. Mas seus olhos brilharam com uma umidade que ela tentava esconder até no leito de morte.

 

 

(Varka) — Você merece mais...

 

 

(Maeryn) — Não importa.

 

 

O silêncio se espalhou entre nós, pesado e cheio. Mas não era um vazio. Era o espaço exato entre dois mundos tentando se encontrar.

 

Ela não disse mais nada. E eu também não.

 

Segurei sua mão até que o sono a levasse de novo.

E prometi a mim mesma:

Enquanto ela lutar…

Eu estarei ali.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Varka

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Quando acordei de novo, a dor ainda estava lá, estúpida, latejante, queimando sob a pele como se quisesse lembrar a cada segundo que eu devia estar morta.

 

Mas não estava.

 

A luz filtrava pela fresta da janela, fina e branca, o suficiente pra me fazer cerrar os olhos. Tentei me mover e o corpo protestou. Os músculos endurecidos, as feridas pulsando como bocas abertas. Uma delas, na lateral da coxa, parecia que tinha sido cravada com ferro quente. Provavelmente tinha sido.

 

E então a vi.

 

Maeryn. Sentada ao meu lado, a cabeça tombada sobre os braços cruzados no encosto da cadeira. Dormia mal. Um dos ombros estava caído, e o rosto, mesmo em descanso, carregava a exaustão de quem segurou o mundo nas mãos por tempo demais. O cabelo bagunçado, as olheiras fundas, a boca entreaberta como quem esqueceu como respirar com calma.

 

Ela estava ali.

Ainda ali.

 

E eu não entendi.

 

Não entendi por que ela ficou.

Não entendi por que me olhava como se ainda houvesse algo em mim que valesse a pena.

Não entendi por que eu não a mandei embora quando tive chance.

 

Talvez fosse o sangue.

Ou o medo.

Ou o amor, aquele maldito amor que a gente finge que não vê.

 

Fechei os olhos de novo por um instante, mas quando abri, ela já havia percebido. Se ergueu com um sobressalto.

 

 

(Maeryn) — Oi...

 

 

Assenti, quase imperceptível. A garganta doía, seca como areia.

 

 

(Varka) — Você não devia estar aqui.

 

 

Ela soltou um riso curto, sem humor.

 

 

(Maeryn) — Já está tentando me afastar?

 

 

Suspirei. Doeu. Mas doeu menos que o que eu sentia por dentro.

 

 

(Varka) — Eu… não mereço isso. Você sabe…

 

 

Ela ficou em silêncio. Por um segundo, pensei que diria que eu estava certa. Que era mesmo uma tola por permanecer ali, sentada ao lado de uma mulher que a empurrou tantas vezes.

 

Mas ela apenas disse:

 

 

(Maeryn) — E ainda assim, estou aqui.

 

 

A porta se abriu e as curandeiras entraram.

 

Não tive tempo de fingir qualquer dignidade antes que elas começassem de novo: retiraram as faixas encharcadas, examinaram os ferimentos, e uma delas assentiu devagar, ainda havia pus em dois cortes profundos. Trouxeram o ferro. O cheiro do metal em brasa me atingiu antes da dor.

 

O mundo se dissolveu por um instante.

Grunhi, apertei os dentes, praguejei em voz baixa.

A queimadura me trouxe de volta à vida com violência.

 

Maeryn observava, olhos arregalados.

Não disse nada.

 

Depois veio o bálsamo, um chá espesso, amargo, feito com raízes negras e um tipo de seiva que arde na pele. Passaram nas queimaduras com toques firmes, rápidos. Eu suava. O corpo tremia. Mas fiquei ali. Calada.

 

Naquela mesma manhã, meu pai veio me ver.

 

Ele entrou com passos pesados, as botas ainda sujas de barro, o semblante endurecido pela tensão da guerra. Kael, Dravak e Corwin vinham logo atrás.

E então… todos pararam.

 

 

Maeryn estava ali. Ao meu lado. Retirando as compressas de mim.

 

O rei franziu o cenho. Kael não disse nada, Dravak olhou-a surpreso. Corwin só desviou o olhar. Eles sabiam o que aquilo significava. E, mesmo sem palavras, sentiram o peso do gesto.

 

 

(Varka) — Eu não pedi pra ela ficar. — murmurei, tentando justificar algo que nem eu mesma entendia.

 

 

O rei não respondeu. Afastou-se em silêncio, talvez pela primeira vez sem saber o que dizer. Meus irmãos vieram mais perto. Kael tocou meu ombro com leveza, e pela primeira vez em muito tempo, havia ternura em seu toque. Uma pergunta muda: Você vai aguentar?

 

Assenti, sem forças para mais.

 

Depois que eles saíram, olhei Maeryn com firmeza. A garganta ainda arranhando, a dor em cada respiração.

 

 

(Varka) — Vá. Você precisa descansar. Comer. Dormir. Não posso te pedir mais do que já tirou de si por mim.

 

 

Ela hesitou.

 

 

(Maeryn) — Eu posso comer aqui…

 

 

(Varka) — A guerra ainda não acabou. E se você não estiver bem, eu não vou ter forças pra te levar pro refúgio.

 

 

Vi em seus olhos o quanto lhe custava sair. Mas ela foi.

 

E eu fiquei ali, sozinha, com o som dos ecos da guerra do lado de fora e o silêncio cortante do quarto.

 

 

 

 

 

 

 

Na manhã seguinte, me levantei.

 

Cada movimento era uma maldição. A coxa ardia, o ombro latej*v*, a cabeça pesava como se tivesse engolido chumbo. As curandeiras protestaram, claro. Quase me empurraram de volta pra cama. Mas eu não aceitei.

 

 

(Varka) — Não vou ser útil deitada quando eles voltarem.

 

 

O corpo ainda não estava pronto, mas a alma… a alma gritava por algo que não era repouso. Eu precisava ver com meus próprios olhos o que ainda restava da nossa força. Precisava saber se ainda era guerreira ou só mais uma sombra.

 

As dores me lembravam que eu sobrevivi.

As cicatrizes me lembravam por que lutei.

E o fato de Maeryn ter ficado… me lembrava que, por mais que eu tenha negado, mentido ou fugido… talvez ainda houvesse algo em mim que valesse a pena ser salvo.

 

Mesmo que eu mesma não acreditasse nisso ainda.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Me vesti com o cuidado de quem não queria chamar atenção, mas também não desejava parecer frágil. As ataduras me limitavam os movimentos, e cada dobra do tecido contra as feridas ainda ardia. O frio da manhã me atingiu como um tapa ao sair do quarto, mas eu precisava ver com os próprios olhos os estragos da batalha.

 

O pátio estava coberto por uma névoa baixa e restos de cinzas, e o cheiro de fumaça ainda impregnava tudo. Alguns soldados limpavam os escombros, uma das torres menores com a base enegrecida, e parte do muro norte estava partido. Mesmo assim, Valmont permanecia de pé. Sempre de pé.

 

Caminhei com cautela, sentindo o solo irregular sob os pés, até parar perto do velho carvalho ao centro do pátio. Foi ali que Kael me encontrou.

 

 

(Kael). — Sabe que não devia estar fora da cama — disse ele, sem tom de repreensão. Apenas uma constatação.

 

 

Dei de ombros.

 

 

(Varka) — Estou cansada de cama. Preciso ver o que sobrou.

 

 

Ele me observou com aquele olhar sempre atento, como se me estudasse. Eu não sustentei o olhar por muito tempo.

 

 

(Kael) — Maeryn se preocupou com você. — As palavras dele vieram como quem joga uma pedra em água parada.

 

 

(Varka) — Sou a única aqui que ela conhece a mais tempo… — fingi desinteresse, olhando para os homens que arrastavam uma viga quebrada.

 

 

(Kael) — Sim. — Ele hesitou. — Percebi que você a conhece melhor nós.

 

 

Fingi não entender. Desviei os olhos, endureci a expressão.

 

 

(Varka) — Não sou boa com alianças políticas. — Minha voz saiu seca.

 

 

Kael bufou, como se esperasse exatamente essa resposta.

 

 

(Kael) — Não seja covarde. Ninguém vai julgar você!

 

 

Não respondi. Apenas comecei a andar. Ele me seguiu, e em silêncio seguimos até o salão inferior, onde o desjejum estava sendo servido. A comida não era farta, mas quente e suficiente. Os conselheiros se distribuíam em mesas menores, trocando palavras baixas sobre rotas, reforços e perdas. Meus irmãos já estavam ali, Dravak, com o semblante endurecido e um prato quase intocado à frente; Jorun comendo como se não tivesse visto comida em dias, rindo com alguém que mal prestei atenção.

 

Meu pai estava sentado à cabeceira, falando com dois dos generais mais antigos. Seu olhar me alcançou, mas não veio com o peso de outras vezes. Havia surpresa nele. E talvez... alívio.

 

Não me juntei a eles. Escolhi um canto à sombra de uma coluna, perto de uma janela aberta onde o vento frio tocava meu rosto e me mantinha desperta. Trouxeram um pouco de pão, frutas, algo que parecia chá. Comi pouco. Ouvi muito. Comentários sobre reforços vindo do sul. Sobre o estado das muralhas. Sobre alianças que se mantinham em silêncio por tempo demais.

 

Alguém mencionou Valmont. Alguém mencionou Maeryn. Fingiram não notar que eu estava ali.

 

 

Não me envolvi nas conversas. Nem queria. Eu era apenas mais um vulto na borda da guerra que se aproximava. Ainda não sabiam o que fazer comigo, se me usar, se me esconder, se me agradecer. Talvez nem eu soubesse. Só sabia que havia coisas demais ainda queimando por dentro. E que, mesmo coberta por panos escuros e silêncios, eu jamais passaria despercebida por completo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Estava comendo devagar, mastigando mais por hábito do que por fome, quando o salão pareceu mudar de ar. Foi como se uma brisa mais fria tivesse atravessado as portas, seguida de um sussurro coletivo alvoroço contido.

 

Levantei os olhos da tigela e lá estava ela.

 

Maeryn de Valmont.

 

 

Atravessava o salão com aquele porte que parecia herdar das lendas, elegante, altiva, cada passo firme, o queixo erguido, como se fosse imune ao julgamento dos homens, embora eu soubesse que cada olhar a ferisse como uma flecha. O vestido azul-escuro a marcava com sobriedade, o cinto de couro claro desenhava sua silhueta, e a capa curta repousava sobre um dos ombros, presa por um broche prateado em forma de falcão. Tudo nela falava de controle, de força contida. Mas, naquele dia, algo a traía.

 

A tensão no rosto. O olhar que varria o salão sem encontrar o que procurava.

 

Ela ignorou os olhares dos homens como se fossem pedras no caminho. Os conselheiros a fitaram como se ela fosse uma intrusa, como se seu lugar ali ainda estivesse em julgamento. Mas ela não parou. Cruzou o salão até a mesa principal onde meu pai conversava com os generais e meus irmãos. Dravak ergueu as sobrancelhas com o súbito aparecimento dela. Jorun apenas observou com interesse, mastigando uma maçã.

 

Maeryn parou diante do rei.

 

 

(Maeryn) — Majestade — disse, firme, mas sem a arrogância que muitos atribuíam a ela. — Não encontrei Varka em seus aposentos. Ninguém me soube dizer onde está. Eu temo o pior.

 

 

Meu pai ergueu uma sobrancelha, levando o cálice aos lábios. Depois o pousou na mesa com exagero dramático. Os olhos percorreram o salão, e então pararam em mim, no canto sombrio onde eu me sentava. Ele sorriu. O tipo de sorriso que anuncia crueldade travestida de humor.

 

 

(Korgun) — Ora, ora… — disse o rei, alto o bastante para que todos ouvissem. — Vejam só a aflição da princesa de Valmont… achando que minha filha caiu de um penhasco ou foi levada por demônios!

 

 

Alguns dos homens riram. Não um riso leve, era um som rouco, zombeteiro, o tipo de gargalhada que veste de escárnio tudo que toca.

 

 

(Korgun) — Ela está ali, menina. — Ele apontou para mim com o indicador grosso. — Sentada feito corvo de maus presságios, comendo mingau. Quase uma dama. Quase.

 

 

O salão explodiu em risos. Dravak abaixou a cabeça, fingindo coçar a barba para disfarçar o riso contido. Jorun não se deu ao trabalho, gargalhou sem pudor. Até os conselheiros à mesa riram, com olhares de escárnio e desdém voltados para Maeryn.

 

 

Ela ficou ali parada. O rosto queimado de rubor. Não o rubor suave da timidez, mas aquele que nasce da humilhação contida. Os olhos dela, sempre tão firmes, baixaram por um instante, como se as palavras do meu pai tivessem sido uma bofetada pública. Depois os ergueu de novo, duros como aço recém-forjado.

 

Mas era tarde. O riso ecoava pelo salão como uma vitória cruel.

 

Eu me limitei a observá-la. Não me levantei. Não fui até ela. Era como se minhas pernas estivessem cravadas no chão. Parte de mim queria levantar e mandar todos calarem a boca. Parte de mim queria desaparecer sob a mesa. E outra parte… aquela parte sombria, magoada, amarga… queria que ela sentisse na pele o que era ser olhada como erro. Como farsa. Como inadequada.

 

Mesmo assim, doeu.

 

Doía vê-la ali, sozinha, tentando proteger o pouco de dignidade que ainda conseguia sustentar. Doía vê-la me procurar, se preocupar, e ser recebida com sarcasmo. Doía, porque parte de mim sabia que ela estava ali por minha causa. Sabia o quanto ela se importava. E eu… eu a deixava sangrar na frente de todos. Sem mover um dedo.

 

Porque não sabia o que fazer com o que sentia. Porque ainda ardia. E porque, talvez, eu também quisesse que ela soubesse o gosto da minha vergonha em Valmont.

 

 

 

 

 

 

Maeryn não disse nada.

 

Ficou ali, com os olhos ainda presos em mim, como se esperasse que eu a salvasse daquilo. Que eu me levantasse, dissesse algo, que quebrasse o feitiço cruel que pairava no ar. Mas eu não me mexi. Nem uma palavra. Só segurei o olhar dela, tentando não transparecer o que fervia por dentro.

 

Então ela respirou fundo. Um gesto pequeno, quase imperceptível, mas que vi com clareza. Um instante de contenção. Ela ergueu os ombros, o queixo, como se vestisse novamente a máscara de realeza que a mantinha em pé, mesmo cercada por chacais.

 

Virou-se devagar, o vestido balançando com leveza enquanto seus passos a afastavam da mesa do rei. Mas antes que conseguisse dar mais de três passos, as provocações começaram.

 

 

(Conselheiro) — Que dama devotada! — gritou um dos homens da mesa dos conselheiros, a voz pastosa de vinho barato. — Vem procurar a amante perdida nos corredores?

 

 

(Guarda) — Achou que ela tinha fugido com outra, princesa? — disse outro, rindo com crueldade. — Se quiser, posso eu me esconder nos seus aposentos hoje à noite!

 

 

(Guerreiro) — Ou talvez a nobre dama prefira os chicotes de Valmont! 

 

 

As gargalhadas aumentaram, ecoando pelas paredes como uma tempestade suja. Era como estar de volta ao campo de batalha, mas em vez de espadas e sangue, eram palavras afiadas e olhares de escárnio que se lançavam como lâminas.

 

Maeryn parou. Por um instante, achei que ela responderia. Que sacaria uma adaga e cravaria no pescoço do mais ousado. Mas ela apenas fechou os olhos por um segundo e continuou andando. Cada passo dela era um grito silencioso. Um insulto devolvido sem precisar de som.

 

E ainda assim, aquilo me corroía. A culpa latej*v* sob minha pele como um segundo coração.

 

Levantei devagar. Os homens ainda riam quando deixei a tigela sobre a mesa de pedra e atravessei o salão. Passos firmes, mesmo que o corpo doesse por dentro. Silêncio absoluto ao meu redor. Ninguém riu agora. Talvez por medo, talvez por surpresa. Talvez porque nunca souberam o que esperar de mim. Nem eu mesma sabia.

 

Passei ao lado da mesa do meu pai sem olhar para ele. Só senti o peso de seus olhos nas minhas costas, como um espinho afundado entre as vértebras. Cheguei à porta por onde Maeryn saía, e a chamei:

 

 

(Varka) — Maeryn.

 

 

Ela parou. Virou-se com rigidez, o rosto impassível. Mas os olhos… os olhos ainda estavam feridos. Vermelhos de raiva ou vergonha, não sei dizer.

 

 

(Varka) — Você devia ter ficado no quarto — disse, minha voz rouca, baixa, só para ela. — Não precisava ouvir isso.

 

 

Ela me encarou por um longo momento, e quando respondeu, sua voz era tão fria que quase queimava:

 

 

(Maeryn) — Não é a primeira vez que ouço. E não será a última.

 

 

Respirou fundo e desviou o rosto. Começou a se afastar de novo, e a dor em meu peito se tornou insuportável.

 

 

(Varka) — Você veio por mim? — perguntei, sem pensar. Não como provocação. Mas como uma súplica contida.

 

 

Ela parou mais uma vez. As costas rígidas. Não respondeu de imediato.

 

 

(Maeryn) — Achei que alguma coisa tivesse acontecido durante a noite. — disse, por fim, sem se virar. — Mas você estava bem. Sentada entre hienas.

 

 

E então se foi.

 

Fiquei parada ali por um tempo. Atrás de mim, as vozes retomavam seu fluxo, mais baixas agora, como se o encanto tivesse sido quebrado. Alguns ainda cochichavam, mas já não havia riso. Porque agora eu estava em pé. Porque agora sabiam que eu ouvira tudo. E porque eu deixara que ela também ouvisse.

 

E nenhum deles podia imaginar o quanto isso me feria mais do que qualquer provocação que pudessem lançar.

 

 

 

 

 

 

Meus punhos aindaestavam cerrados, os músculos doíam por dentro das ataduras. Queria gritar. Queria quebrar algo, alguém. Mas tudo o que fiz foi fechar os olhos por um instante e conter a raiva que subia em ondas, queimando mais do que qualquer ferida em meu corpo.

 

Voltei ao salão em silêncio. Os risos haviam cessado, mas o ambiente ainda carregava o cheiro de escárnio e de covardia. Aqueles homens, tão prontos a rir quando ela estava sozinha, agora desviavam o olhar. Uns fingiam interesse na comida, outros se voltaram para seus companheiros como se nada tivesse acontecido.

 

Sentei novamente no meu canto, embora o gosto da comida tivesse se transformado em fel. Meu pai continuava à cabeceira, o cálice ainda na mão, olhos presos em mim. Sabia que ele esperava alguma reação. Uma palavra. Um rompante. Mas não dei o gosto.

 

Dravak foi o primeiro a quebrar o silêncio que restava.

 

 

(Dravak) — Não devia deixá-la vagar pelo castelo sozinha — disse, num tom quase fraterno, mas havia censura ali.

 

 

(Varka) — Ela é livre pra andar onde quiser — respondi, sem olhá-lo.

 

 

(Dravak) — Não aqui. Não entre homens como esses. — A voz dele agora era mais baixa. — Ela não é como nós.

 

 

Ri pelo nariz.

 

 

(Varka) — Nenhum de nós é. Só fingimos melhor.

 

 

Dravak não respondeu. Apenas voltou ao seu lugar, ao lado com Jorun, mas percebi que a fome dos dois havia cessado. Meu pai ainda me observava. Como se quisesse medir até onde eu aguentaria. Kael permanecia de cabeça baixa, maxilar travado.

 

Terminei o que havia no prato, mesmo sem vontade. Me forcei a mastigar, a engolir, a sustentar o olhar de quem ousasse me encarar por tempo demais. Não seria a mulher que sangra no meio da mesa. Já bastava o que tinha deixado acontecer com Maeryn.

 

Quando deixei o salão, os corredores estavam frios, vazios. O sol entrava pelas frestas das janelas altas, mas não aquecia. Fui direto para o pátio, onde a muralha sombreava as estátuas quebradas e os bancos de pedra molhados pelo orvalho.

 

Maeryn estava ali.

 

De costas, os braços cruzados, olhando o movimento no pátio. Ela não se virou quando me ouviu chegar. Não fugiu. Mas também não disse nada.

 

Me aproximei devagar.

 

 

(Varka)— Aqueles homens… — comecei, mas ela me cortou, sem tirar os olhos das rosas.

 

 

(Maeryn) — Não me importa o que dizem. Me importa o que você faz quando dizem.

 

 

Aquilo me acertou como um punhal.

 

 

(Varka) — Eu não queria que fosse assim — sussurrei.

 

 

(Maeryn) — Querer não muda nada, Varka. — Agora ela se virou, e os olhos dela estavam brilhando com lágrimas contidas, mas a voz seguia firme. — Você me olhou. Você ouviu. E ficou sentada. Como se eu merecesse aquilo.

 

 

(Varka) — Eu não fiquei por covardia. — Engoli em seco. — Fiquei porque não sabia o que fazer sem piorar.

 

 

(Maeryn) — E acha que não piorou?

 

 

O silêncio entre nós foi cruel.

 

 

(Varka) — Você veio por mim — eu disse, mais uma vez. — Mas eu não pedi pra fazer isso.

 

 

(Maeryn) — Vim porque me importo. Vim porque achei que estivesse ferida de novo. Vim porque sou estúpida o bastante pra achar que você… — Ela parou, respirou fundo. — …que você se importaria também.

 

 

(Varka) — Eu não sou esse tipo de pessoa, Maeryn…

 

 

Ela fechou os olhos. O vento moveu uma

mecha do seu cabelo, e quando abriu os olhos de novo, algo neles estava diferente. Menos raiva. Mais cansaço.

 

 

(Maeryn) — Acho que eu prefiro o seu silêncio. — Ela virou-se para ir embora. 

 

 

E ali fiquei. Sozinha no jardim, entre espinhos e flores, tentando entender como se cura uma ferida que fui eu mesma quem abri.

 

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Demorei kkkk

Trabalho me enlouquecendo ultimamente.

Espero que gostem


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