Capitulo 7
Maeryn
O território de Skarn se revelou com a violência de um soco.
A paisagem mudava conforme avançávamos ao norte. As árvores tornavam-se mais altas, retorcidas pelo frio e pelo vento, como se resistissem ao próprio tempo. Os vales se estreitavam, transformando-se em gargantas de pedra, e as montanhas que cercavam a região pareciam observar tudo com olhos imutáveis. Nada ali era acolhedor. Nada suavizado. Skarn era feito de extremos, do gelo que mordia até os ossos, do céu sempre nublado, da terra que parecia nunca dormir.
Quando cruzamos a última ponte de pedra, guardada por sentinelas de armadura escura e mantos vermelhos, soube que havíamos chegado.
O domínio de Skarn se erguia entre as encostas como um colosso antigo: um castelo de pedra negra, com torres arredondadas e muralhas grossas que pareciam ter sido esculpidas da própria montanha. Não havia floreios. Nada de jardins. Nenhuma estátua celebrando reis mortos. Apenas força bruta e função. Vi brasões entalhados nos muros, machados cruzados, lobos com presas à mostra, um olho de fogo cercado por runas antigas. Tudo gritava violência. Domínio. Sobrevivência.
E eles nos esperavam.
A entrada do castelo estava tomada por guerreiros e criados. Havia pelo menos cinquenta deles, dispostos em silêncio militar, olhos duros nos encarando conforme atravessávamos o pátio principal. Nenhum aplauso. Nenhum sorriso. Apenas o som das nossas montarias e o farfalhar das peles e armaduras. Senti os olhares queimando minha pele, de cima a baixo, analisando cada detalhe como se pudessem descobrir, pela postura, se eu era digna de estar ali.
"Valmont", ouvi alguém sussurrar. "A filha do rei…"
"Frágil demais."
"Bonita demais."
"Estrangeira."
Quase sorri. Eles não sabiam quem eu era. E não sabiam o que eu trazia comigo.
Varka cavalgava em silêncio ao meu lado, o corpo tenso. Vi seu maxilar travado, os olhos semicerrados. Aquela era sua casa, mas não havia acolhimento nela. Ali, ela era mais guerreira do que filha. Mais loba do que irmã.
Descemos dos cavalos quando um homem se adiantou, alto, largo como uma muralha, a barba entrelaçada com anéis de ferro e o olhar como uma tempestade prestes a cair. Era Korgun. O rei bárbaro. O líder das tribos unificadas de Skarn.
Ele se aproximou como um urso. Cada passo pesava como um tambor de guerra.
(Korgun) — Então esta é a filha de Aldren.
A voz dele era como pedra arrastada no gelo. E ainda assim, soava quase… curiosa. Talvez por não me ver tremendo.
(Maeryn) — E o senhor é o rei que antigamente quase matou meu povo com aço e fogo.
O silêncio foi absoluto. Nem Varka respirou. E então, Korgun gargalhou. Um som rouco, animalesco, que ecoou pelas pedras do castelo.
(Korgun) — Pelo menos tem língua. Veremos se tem espinha.
Dravak desceu do cavalo logo atrás de mim e se postou ao lado do pai, o rosto tão imóvel quanto uma máscara de guerra. E junto dele, surgiram dois homens que eu ainda não conhecia.
Kael era um homem alto de cabelos negros, pele marcada por cicatrizes e olhos tão claros que pareciam quase cegos. Usava uma armadura pesada de placas escuras e tinha o símbolo do olho em chamas cravado no peito. Era o segundo mais novo, disseram-me depois. Estrategista. Frio como o norte. A semelhança com Varka era impressionante.
Jorun, ao contrário, tinha um sorriso cortante e olhos de predador. Com as mãos sempre no cabo das adagas e a língua mais afiada que uma lâmina bem forjada. Seus cabelos negros caíam até os ombros, presos por uma tira de couro, e havia algo de perigosamente encantador nele, o tipo de beleza que mata sorrindo.
Os três me estudavam com intensidade.
Fomos conduzidos para dentro do castelo. O salão principal era amplo, escuro, sustentado por colunas de pedra que mais pareciam árvores petrificadas. Chamas ardiam em grandes bacias presas às paredes. O calor era denso, pesado, misturado ao cheiro de couro, carne e fumaça. No centro, uma longa mesa de carvalho escurecido se estendia como um altar de guerra. Pelas laterais, os guerreiros de Skarn já se acomodavam, enquanto caçadores despejavam barris de bebida e pratos com carne recém-assada.
Eu me sentei onde me indicaram, à esquerda de Dravak, a direita de Varka, frente a frente com Kael e Jorun.
Korgun bateu o punho contra a mesa e o salão se silenciou.
(Korgun) — Valmont enviou sua filha. Um gesto de paz… ou uma armadilha. Isso será decidido nos dias que virão. — Ele me encarou, os olhos como brasas — Aqui, Maeryn, ninguém sobrevive sendo delicado. Aqui, a paz se conquista com coragem. Com sangue. Com respeito.
(Maeryn) — Então é bom que o senhor tenha coragem de escutar.
Houve uma pausa. Um ou dois guerreiros riram, mas foram silenciados pelo olhar de Kael.
(Maeryn) — Eu vim em nome de Valmont, sim. Mas não vim de mãos vazias. Trago comigo a palavra do meu pai, a aliança firmada com sangue dos nossos e dos seus. E se estou aqui, é porque acredito que ainda podemos evitar outra guerra entre nossos reinos e lutarmos juntos contra a que está nos cercando a meses.
Korgun a avaliou como se eu fosse um pedaço de caça ainda vivo.
(Korgun) — Falar… todos sabem. Veremos se também sabe agir.
Ele ergueu um cálice. O salão gritou em uníssono. Um brinde. Um rito. Um começo.
Eu bebi.
O vinho de Skarn queimava como fogo na garganta. E ainda assim, mantive o olhar firme.
Naquela noite, fui apresentada aos hábitos deles. Aos jogos brutos de mesa. Aos rituais de iniciação com sangue de javali. À música feita com tambores e ossos. À brutalidade disfarçada de honra. Skarn era uma terra moldada pelo frio e temperada pelo medo. Mas também… era fascinante em sua própria selvageria. Havia beleza na dureza. Lealdade nas rugas. Verdade nas cicatrizes.
Quando finalmente me retirei para os aposentos que me prepararam, sob as peles grossas e o teto de pedra, só uma coisa martelava em minha mente:
Eu estava dentro da cova dos lobos.
A madrugada estava tão silenciosa que até meu próprio respirar parecia alto demais entre as paredes de pedra do quarto. A lareira ainda queimava em brasa, lançando sombras trêmulas pelas peles penduradas, pelo tapete áspero no chão e pelas paredes frias daquele aposento esculpido como uma caverna.
Eu não dormia. Nem tentava. A cabeça latej*v* com tudo que havia vivido desde que cruzamos os portões de Skarn. O banquete, os olhares dos filhos de Korgun, a forma como o rei me avaliava como se cada gesto meu fosse uma peça num tabuleiro, como se estivesse sempre a um erro de ser descartada.
Mas eu não mostrava medo. Jamais mostraria. Como minha mãe me ensinou, uma princesa pode sangrar, mas o sangue deve escorrer por dentro.
Estava sentada na beira da cama, com uma manta sobre os ombros e os olhos fixos na janela pequena e gradeada, quando ouvi a batida. Uma. Duas. Secas. Quase desinteressadas. Como se quem estivesse do outro lado não soubesse se queria entrar ou só se fazer presente.
Levantei com o coração já acelerado. Eu sabia quem era antes mesmo de abrir.
Varka.
Ela entrou sem cerimônia, como sempre fazia. O capuz ainda cobrindo parte do rosto, a armadura leve por baixo de uma túnica de pele de lobo. Trazia o cheiro do vento, da floresta lá fora, do aço ainda morno das espadas recém-afiadas. O cheiro dela.
(Varka) — Ainda acordada?
(Maeryn) — E você?
Ela deu de ombros, fechando a porta atrás de si.
(Varka) — Não é porque estou em casa que durmo bem. — Se aproximou devagar, os passos lentos. — E achei que você também não conseguiria.
Deixei que o silêncio respondesse por mim.
Varka olhou ao redor, avaliando o quarto como quem entra em território neutro. Depois se encostou à parede, de braços cruzados.
(Varka) — Eles parecem monstros, eu sei. — disse. — Kael com aquelas cicatrizes todas… Jorun que ri como quem sempre esconde uma faca. Dravak então… é feito de gelo. E meu pai… bem… — ela suspirou, — ele é um rei do norte. Nunca teve tempo de ser pai.
(Maeryn) — E você? O que é?
Ela me olhou. Por um momento, vi algo brando em seus olhos. Um tipo de saudade que não pertencia a mim.
(Varka) — Uma peça fora do tabuleiro. Um erro útil.
Ri, amarga.
(Maeryn) — Útil pra quem?
(Varka) — Às vezes nem eu sei.
O silêncio se esticou entre nós. Eu odiava como ela fazia isso, entrar sem permissão, me desarmar com meia frase, e deixar todo o resto pairando no ar, como se palavras não fossem necessárias.
Ela se afastou da parede e se aproximou. Devagar. O olhar fixo no meu rosto, depois nas minhas mãos, no jeito como eu segurava a manta contra o peito.
(Varka) — Você se saiu bem hoje. Corajosa. Clara. Ninguém aqui esperava isso de uma filha de Valmont. Muito menos de uma dama. — Seus dedos roçaram a borda da mesa, distraídos. — Mas cuidado. Em Skarn, respeito não é dado de uma vez. Ele é conquistado a cada dia. A cada gesto.
(Maeryn) — E amor? — soltei, sem pensar. Ou pensando demais. — Também é assim?
Ela congelou por um instante. Depois abaixou os olhos.
(Varka) — Amor é outra coisa. Mais perigosa. Aqui… ele quase nunca sobrevive.
Aquelas palavras foram um corte frio. Como tudo nela.
Mas o problema não era o que ela dizia. Era o que não dizia. Era o que se escondia no modo como se aproximava agora, no jeito como seus olhos se demoravam nos meus, como se procurassem algo que também não sabiam nomear.
E mesmo assim, mesmo com o coração em carne viva, mesmo sabendo que tudo aquilo era um jogo desequilibrado… meu corpo ainda a desejava.
Era insuportável.
A maneira como ela ficava tão perto e não me tocava. Como seus dedos sempre pairavam, mas nunca pousavam. Como a voz dela entrava em mim como um veneno lento. E mesmo depois de tudo… mesmo sabendo que sou só um brinquedo nas mãos dela, mesmo entendendo que ela sempre vai escolher fugir, sempre vai preferir o aço ao afeto, eu ainda a queria.
Queria que ela me tomasse. Me rasgasse. Me dissesse que tudo isso significava alguma coisa.
Mas ela não disse.
Só ficou ali, entre a lareira e a minha vontade, até que o silêncio se tornou insuportável.
(Maeryn) — Se só veio me acalmar, Varka… pode ir.
A frase saiu mais dura do que eu queria. Mas não me arrependi.
Ela me olhou de novo, e dessa vez, havia algo ali. Algo que se quebrava. Talvez arrependimento. Talvez desejo. Ou talvez só o espelho do que eu sentia.
Ela deu meio passo, como se fosse se aproximar. Me tocar. Me puxar.
Mas não o fez.
(Varka) — Boa noite, Maeryn.
E virou as costas.
Quando a porta se fechou, o quarto pareceu mais frio do que antes. A lareira não bastava. A manta não bastava. Nenhum gesto bastava.
Fiquei ali, tremendo por dentro.
Me perguntando por quanto tempo ainda suportaria esse desejo que sempre termina do lado de fora da porta.
Não sei quanto tempo passou depois que ela saiu. Minutos? Horas? O tempo em Skarn tem outro ritmo, como se a própria terra medisse os segundos com a lâmina de um machado.
Fiquei sentada, ainda envolta na manta, o corpo em tensão. O peito ardendo como se algo tivesse ficado preso entre as costelas, um grito, talvez, ou só o nome dela. Tentei não esperar. Tentei me convencer de que ela não voltaria. De que era sempre assim: aparece, me acende, depois vai embora e me deixa lidando com as cinzas.
Mas então… a porta se abriu de novo.
Sem batida. Sem cerimônia. Apenas se abriu, como se o vento a empurrasse. E ali estava ela.
Varka.
Os olhos em brasa. A respiração curta. O capuz agora abaixado. As espadas jogadas no chão. E uma expressão no rosto… como se estivesse à beira de perder tudo que era.
Ela não disse nada. Nem eu.
Ela apenas entrou. Fechou a porta. E veio até mim.
Dessa vez, não hesitou.
Me puxou com força pela cintura, como quem não sabe pedir, apenas tomar. Minha boca colidiu com a dela num beijo urgente, feroz, faminto, que não pedia licença, e nem precisava. Era fogo represado demais, explodindo depois de dias de contenção, de palavras travadas, de olhares desviados.
Tudo em mim gritou.
O gosto dela era o mesmo que me assombrava nas noites em Valmont. Feroz. Quente. Um pouco salgado, um pouco ferroso, como a lembrança de uma batalha vencida. Suas mãos me despiram como se tivesse raiva das roupas que me cobriam, ou inveja. Como se cada camada de tecido fosse uma ofensa pessoal.
E eu deixei.
Deixei porque já não tinha forças pra negar. Porque o corpo pedia, implorava, suplicava. Porque Varka era guerra e desejo, destruição e abrigo, tudo ao mesmo tempo. E porque, no fundo, parte de mim sempre soube que, quando ela retornasse, não haveria espaço pra lógica.
Ela me deitou sobre as peles como quem crava uma bandeira em território inimigo. Mas o que havia em seus olhos era mais do que posse. Era fúria. Era ternura mal contida. Era o medo travestido de luxúria. E quando sua boca percorreu minha pele, da clavícula até o ventre, senti que estava sendo marcada, não com ferro, mas com a alma dela.
Fomos só som. Só toque. Só labareda.
Eram dedos apertando, dentes roçando, gemidos presos entre os dentes. Ela me fez esquecer onde estávamos, quem éramos, quantas paredes de pedra nos separavam do mundo. Cada movimento dela era como se dissesse: “Não sei amar, mas isso é o mais perto que consigo.” E eu aceitava. Aceitava tudo. Porque mesmo machucando, ainda era ela. E era real.
Ela me adorava como se quisesse me quebrar. E ao mesmo tempo… como se não suportasse a ideia de me ver quebrada.
Depois, ela permaneceu.
Deitada ao meu lado, a respiração ainda descompassada, o braço me envolvendo por trás, o nariz enterrado no meu pescoço. Senti sua pele suada encostar na minha. Seu coração ainda correndo. E por um momento, o mundo lá fora deixou de existir.
Eu não me mexi.
Não porque tivesse medo de que ela fugisse, embora, no fundo, sempre houvesse esse receio, mas porque sabia que, naquele instante, ela estava mais perto de mim do que jamais esteve de qualquer outra pessoa.
A mão dela deslizou pela minha cintura, suave dessa vez. E sua voz veio rouca, quase inaudível.
(Varka) — Eu devo ir embora.
(Maeryn) — Como sempre faz ...
Fechei os olhos. Uma lágrima escorreu, quente, misturando-se ao suor entre nós.
Ela não respondeu.
Eu não a pressionei. Nem me afastei. Apenas permaneci ali, sentindo o calor do corpo dela ainda colado ao meu, mesmo quando o silêncio crescia entre nós como uma sombra conhecida. Varka sempre carregava a fuga no olhar, mesmo quando ficava, mesmo quando me tocava com aquela intensidade brutal, como se quisesse esculpir com as próprias mãos a lembrança do que fomos.
Ela não respondeu. E, de certa forma, isso doía mais do que qualquer palavra.
O silêncio dela era o mesmo de sempre. Um muro. Uma trincheira. Mas também era o lugar onde ela se escondia do que sentia. Eu já conhecia aquela dança, ela vinha, me incendiava, me deixava em brasas… depois partia com as mãos sujas do meu desejo e o coração ainda fechado como punho em batalha.
Mas, dessa vez, ela não se moveu.
Ficou ali, com a testa encostada na minha nuca, o braço em volta da minha cintura, como se não soubesse o que fazer com aquele momento, com o fato de ter ficado. De ainda estar aqui.
(Maeryn) — Não precisa dizer nada, Varka. Só… só não mente com o corpo também.
Ela inspirou devagar, e senti o ar quente contra minha pele. A mão que antes me segurava com tanta força agora se aquietava, como quem tenta aprender um gesto novo.
(Varka) — Eu não sei o que isso é. — murmurou, depois de longos segundos. — Só sei que quando você olha pra mim desse jeito… eu esqueço de quem sou.
(Maeryn) — Talvez esse seja o problema. Você acha que precisa ser outra coisa pra estar aqui. Mas eu… eu só queria que você ficasse. Do jeito que é. Sem fuga. Sem culpa.
Ela se mexeu, um leve movimento, como se quisesse protestar, mas não tivesse força.
(Varka) — Eu fui feita pra destruir, Maeryn. E você… você foi criada pra durar.
(Maeryn) — E mesmo assim, aqui estamos. Depois de tantas muralhas, de tanta fuga, de tanta distância… você aqui, e eu aqui. Mais uma vez…
Ela virou o rosto. Senti sua respiração no meu ombro, um suspiro profundo. O tipo de suspiro que vem quando se está prestes a dizer algo que nunca se disse.
Mas, em vez disso, ela apenas me puxou para mais perto, enterrando o rosto nos meus cabelos.
Silêncio de novo. Mas dessa vez, não era um muro.
Era uma pausa.
Um espaço entre duas coisas prestes a colidir ou finalmente se entender.
Fechei os olhos.
Ali, naquela cama feita de peles e promessas não ditas, no frio de Skarn que não conseguia penetrar a chama entre nós, eu percebi o quão raro era aquele instante. Varka não sabia nomear o que sentia, e talvez nunca soubesse. Mas estava ali. Comigo. Fisicamente, sim, mas também de um jeito que ela sempre evitou estar, vulnerável.
E eu?
Eu ainda sentia medo. Não do que ela era, mas do que eu estava me tornando por ela. Porque cada toque, cada suspiro, cada silêncio pesado me puxava para um lugar sem mapa. Um lugar onde eu não era mais só filha de rei, herdeira de trono, diplomata de alianças. Um lugar onde eu era só… mulher. Amando outra mulher que nunca soube ser amada.
(Maeryn) — Eu vou quebrar se você fugir de novo.
Sussurrei contra o travesseiro, sem esperar resposta.
Mas ela ouviu. Eu sei que ouviu. Porque a mão dela apertou a minha com mais força, os dedos entrelaçados nos meus, e o corpo dela… aquele corpo marcado por guerra, por dor, por ausências… se entregou ao meu como nunca antes.
Ela não disse que ficaria.
Mas ficou.
A madrugada passou em silêncio. Nenhuma outra palavra foi dita. E eu não precisei mais de nenhuma. Porque o peso do corpo dela junto ao meu era uma resposta. A mais sincera que ela podia me dar.
Por enquanto, bastava.
Varka
O dia amanheceu em Skarn com um céu de chumbo e um vento cortante que fazia ranger as frestas das janelas. Eu estava ali, nos aposentos cedidos a Maeryn, os mesmos onde ela havia sido instalada como símbolo vivo de uma promessa de aliança, deitada ao seu lado, a pele dela quente contra a minha, o lençol emaranhado ao redor de nossas pernas.
A vontade de levantar e sair era como uma dor surda no peito. Eu não queria estar ali quando ela acordasse. Não queria ver o olhar dela procurando algum significado no que havíamos feito. O que aconteceu entre nós não era sobre amor ou destino. Foi necessidade. Carne. Uma válvula de escape no meio do caos que se acumulava como neve nos telhados de Skarn. Mas ainda assim… não consegui me afastar.
O corpo dela se mexeu primeiro. Um suspiro. A mão deslizou pelo meu abdômen, depois recuou como se tivesse lembrado onde estava. Seus olhos se abriram lentos, e por um instante, ficaram presos nos meus. Nem acusatórios. Nem doces. Apenas… lúcidos demais.
(Maeryn) — Então é assim que acordam os filhos do norte?
(Varka) — Quando a cama é quente, sim.
Ela arqueou uma sobrancelha, virou-se de lado, apoiando a cabeça na mão.
(Maeryn) — Não precisa parecer tão culpada, por estar aqui…
(Varka) — É mais fácil lidar com aço do que com isso.
(Maeryn) — E mais fácil fugir do que encarar o que se sente?
Ela dizia isso sem tom de acusação. Só constatava. E isso doía mais. Me levantei, buscando a roupa espalhada pelo chão. Quando olhei de volta, ela já estava de pé, cobrindo-se com as mesmas roupas que usava na noite anterior.
(Varka) — Vista-se. O rei espera todos no salão para o desjejum.
Atravessamos os corredores em silêncio. Eu caminhava à frente, e ela me seguia. Não por submissão, mas porque sabia que ali não era seu território. As paredes de pedra negra, a tapeçaria rala, o cheiro de fumaça e graxa, tudo era diferente demais de Valmont. E quando adentramos o salão, o contraste ficou ainda mais gritante.
Lá estavam os meus: o rei Korgun, imenso, barba espessa, cabelos trançados com os dentes de lobos que ele mesmo havia matado. Dravak, com o olhar cortante de sempre. Jorum, o mais arrogante, com uma frieza nos gestos que fazia parecer mais velho. Kael, já com um caneco na mão antes mesmo do sol subir direito no céu.
Korgun ergueu os olhos ao ver Maeryn e olhou com desgosto antes mesmo de abrir a boca.
(Korgun) — Então esta é a princesa diplomata de Valmont. Frágil demais para os ventos de Skarn. Espero que tenha encontrado as peles adequadas para a noite fria.
(Varka) — Ela se adapta.
(Korgun) — Hm. Como se adapta um veado entre lobos?
(Maeryn) — Observando os lobos. E esperando a hora em que brigam entre si.
O silêncio foi denso. Dravak deu uma risada seca, Kael chutou Jorum sob a mesa, e o rei sorriu. Um sorriso de desafio.
(Korgun) — Ao menos tem língua afiada. Isso serve para alguma coisa.
Nos sentamos. A mesa era farta, para padrões do norte. Carne seca, pão grosso, ovos com gordura, peixe defumado. Nada delicado. Nada digno de uma corte do sul. Maeryn comeu em silêncio, sem recusar nada, embora a tensão na mandíbula denunciasse o desconforto.
Após a refeição, a levei para fora. A luz era pálida, filtrada por nuvens que nunca deixavam o céu. As pedras sob nossos pés estavam úmidas, escorregadias, e ela ajeitava o manto grosso sobre os ombros como se fosse uma armadura de ferro.
(Maeryn) — Como conseguem respirar nesse ar? Ele entra como lâmina.
(Varka) — E limpa os pulmões. Ao menos é o que dizemos por aqui.
Caminhamos pelos pátios. A cidadela era viva apesar do frio. Mulheres afiavam facas, crianças corriam descalças na neve pisada, guerreiros treinavam com espadas de madeira. O cheiro era de terra, suor e fumaça. Nenhum perfume, nenhum canto de harpas.
(Maeryn) — O que pensam de mim?
(Varka) — Que você é uma moeda. Valiosa, talvez. Mas uma moeda.
Ela parou, virou-se para mim.
(Maeryn) — E você, Varka? Me vê assim também?
Demorei a responder.
(Varka) — Eu… tento não ver nada.
Seguimos. Mostrei a forja, onde o aço era moldado com gritos e martelos. O mercado, onde as peles e o sal eram trocados por armas ou caça. As casas simples, com portas reforçadas para o rigor dos ventos. Em cada canto, olhares sobre ela. Sussurros. A estrangeira. A sulista. A inimiga de ontem, ali, do lado de uma filha de Korgun.
No pátio de treino, ela parou. Observou dois jovens duelando com lanças.
(Maeryn) — Aqui não há lugar para fraqueza, não é?
(Varka) — Fraqueza é só uma forma lenta de morrer, em Skarn.
(Maeryn) — Então por que aceitam a paz?
(Varka) — Porque morrer em guerra também é uma forma. Mais rápida.
Ela se aproximou do muro de pedra. As mãos delicadas tocando a superfície bruta. Ficou em silêncio por um tempo, depois virou-se.
(Maeryn) — Em Valmont, as paredes são douradas. Mas escondem podridão atrás do brilho.
(Varka) — Aqui não escondemos nada.
(Maeryn) — Não. Vocês esfregam a dureza do mundo na cara de quem chega. Mas é só uma outra forma de orgulho.
Ficamos ali, expostas ao frio e aos olhares, mas nem uma nem outra recuou.
(Maeryn) — Sabe, pensei que odiaria isso tudo. E odeio. Mas também… invejo. A simplicidade. A ausência de máscaras.
(Varka) — Não se engane. Há máscaras em Skarn também. Elas só sangram quando caem.
Ela sorriu. Um sorriso que não chegava aos olhos.
(Maeryn) — E quando cair a sua, Varka… o que veremos por trás?
Não respondi. Porque eu também não sabia.
O dia seguiu, e o céu não clareou muito mais. Maeryn conheceu a muralha, as estrebarias, os túmulos antigos dos nossos mortos. A cada passo, o contraste entre nós parecia mais agudo. E, ainda assim, ela seguia. Não como prisioneira. Mas como alguém que já perdeu muito e agora se recusava a recuar por medo.
Talvez fosse por isso que eu não conseguia me afastar. Porque ela me lembrava, de alguma forma, que mesmo quem sangra por dentro pode continuar andando.
Estávamos retornando à fortaleza quando a noite começou a cair como um manto grosso sobre os ombros do mundo. O vento cortava mais forte naquela hora, assobiando entre as construções do vilarejo de pedra escura. À distância, o crepitar de tochas anunciava o acender da vida noturna dos homens do norte, risos, passos apressados, o tilintar de copos, o som abafado de músicas rudes.
Maeryn, como sempre, caminhava com a cabeça erguida, mesmo com o capuz puxado até quase cobrir os olhos. Seus olhos estavam atentos, mais do que eu gostaria. O vilarejo era um espelho cru de Skarn, sem filtros, sem verniz. Ela vinha da seda e dos salões dourados de Valmont, e embora não dissesse, cada fedor de fumaça, cada mulher armada, cada criança suja sob neve pareciam lhe provocar desconforto.
Foi então que passamos diante de uma construção baixa, de paredes reforçadas com madeira envelhecida, e janelas cobertas com peles grossas para abafar o som e reter o calor. Do interior vinha uma luz avermelhada, quente, acompanhada de vozes altas, gargalhadas de homens bêbados e o som inconfundível de corpos em movimento.
Maeryn diminuiu o passo.
(Maeryn) — O que é isso? — perguntou, franzindo o cenho.
(Varka) — Nada que valha a pena. — respondi, com a voz seca, e continuei andando, esperando que ela fizesse o mesmo.
Mas não fez.
Ela ficou parada diante da porta. Os olhos buscaram entender através das fendas, como se pudesse decifrar o que acontecia ali dentro com a força da curiosidade. Eu parei, respirei fundo.
(Varka) — É uma casa de prazeres. Um prostíbulo. É isso que quer saber?
Ela virou o rosto para mim, o queixo tenso.
(Maeryn) — Por que não me disse logo?
(Varka) — Porque achei que você entenderia que há lugares onde se entra com propósito. Não com curiosidade.
Ela estreitou os olhos. A voz veio firme, desafiadora:
(Maeryn) — E você já entrou com que propósito, Varka?
Não respondi. Apenas cerrei os punhos e a encarei. Por dentro, tudo latej*v*. Eu sabia o que viria. Sabia como aquilo terminaria.
Ela empurrou a porta.
Lá dentro, o calor era quase sufocante. Um fogo ardia na lareira ao fundo. O salão estava tomado por homens, soldados, caçadores, alguns comerciantes espalhados entre bancos rústicos, peles estendidas no chão e copos de barro. Mulheres com vestidos rasgados, algumas nuas até a cintura, circulavam entre eles, sentando-se no colo de uns, sussurrando nos ouvidos de outros, rindo alto, bebendo direto dos jarros. Havia cheiro de cerveja azeda, de corpos suados, de sex* recente.
Maeryn congelou na entrada. Eu estava logo atrás dela, com o maxilar travado. Esperei que ela recuasse, mas, em vez disso, ela deu um passo adiante.
As conversas cessaram por um instante. Todos olharam. A maioria não a reconheceu, mas a estranheza de vê-la ali, pele clara, postura nobre, a presença limpa demais para aquele lugar, fez o salão se calar por alguns segundos. Então, alguém me reconheceu.
(Rinna) — Varka! Por todos os deuses, achei que tivesse morrido em Valmont!
Era Rinna, cabelos ruivos, seios fartos à mostra, rindo com os olhos meio bêbados. Ela correu até mim, me abraçando sem cerimônia, as mãos escorregando pelas minhas costas.
(Rinna) — Está mais forte. Mais sombria. Aposto que tem história boa pra contar. Vai querer uma bebida ou só um corpo quente, como sempre?
Maeryn virou o rosto devagar, os olhos nela… depois em mim. Não disse nada. Ainda.
Outras mulheres se aproximaram. Algumas me cumprimentaram com beijos na bochecha, outras com tapas brincalhões no ombro. Uma delas, Yllena, uma das mais velhas e mais afiadas da casa, olhou Maeryn de cima a baixo.
(Yllena) — Então esta é a novata? — disse com um sorriso enviesado. — Parece uma bonequinha de salão.
Risos. Mais duas se aproximaram. A provocação não era cruel… mas era real. E Maeryn sentiu.
(Yllena) — Cuidado com ela, Varka — continuou — Essas meninas finas quebram fácil. Não aguentam puxão no cabelo, nem mordida no pescoço.
(Varka) — Ela não é… — comecei, mas fui interrompida.
(Maeryn) — Não sou o que vocês pensam. — disse Maeryn, a voz gelada. — E não vim aqui para ser medida por quem se deita por moedas.
Silêncio.
As mulheres pararam. Algumas ergueram o queixo, outras estreitaram os olhos. O clima ficou denso.
(Rinna) — Então veio fazer o quê? — perguntou Rinna, ainda com um meio sorriso. — Ver onde a sua guerreira passava as noites enquanto você sonhava com bailes e banquetes?
Eu toquei o braço de Maeryn, firme.
(Varka) — Já chega. Vamos sair daqui.
(Maeryn) — Não. — Ela virou o corpo todo para mim. — Não vamos fingir que isso não é parte de você.
Os olhos dela estavam brilhando, não por emoção, por raiva contida, por orgulho ferido.
(Maeryn) — E você… — disse, olhando em volta — ...isso é o que chamam de liberdade por aqui? Ser tocadas por homens sujos, rir de piadas que nem acham engraçadas, fingir prazer por migalhas?
(Yllena) — E em Valmont fingem pureza enquanto são compradas por alianças políticas. — respondeu Yllena. — Escolha sua máscara, querida. Pelo menos aqui, nós escolhemos quem montamos.
Maeryn ficou imóvel. Engoliu seco. E eu soube que, se ela tivesse uma espada, cortaria a língua de todas ali.
Tomei seu braço de novo.
(Varka) — Chega. Agora, Maeryn.
Dessa vez, ela não resistiu. Saímos, mas não sem sentir os olhares atrás de nós. Risos abafados. Palavras não ditas.
Quando a porta se fechou atrás, o frio voltou como um alívio. Ela se afastou de mim alguns passos, os punhos cerrados, o rosto lívido.
(Maeryn) — Você dormiu com todas elas?
Demorei. Depois, apenas assenti.
(Varka) — Muitas. Antes de tudo isso. Antes de você. Antes da maldita aliança.
Ela balançou a cabeça.
(Maeryn) — Isso não é ciúme. Que fique claro. — disse, tentando controlar a respiração. — Mas agora eu entendo por que você não quis que eu entrasse. Porque aqui, você é outra. É mais fácil ser essa Varka. Não precisa se importar. Não precisa sentir.
(Varka) — Não me envergonho do que fiz.
(Maeryn) — Não. Só de mim!
Ficamos ali, paradas, sob o céu noturno. A neve começava a cair outra vez, lenta e silenciosa.
(Maeryn) — Leve-me de volta à fortaleza. — ela pediu por fim.
Assenti. E caminhamos. Em silêncio.
E mesmo assim, senti o peso de tudo o que foi dito pairando entre nós. Como o frio, que nunca vai embora. Só aprende a conviver com ele.
O dia seguinte amanheceu cinzento e silencioso, como se o próprio céu ponderasse se valia a pena abrir os olhos. A neve da madrugada ainda cobria os parapeitos das janelas e as pedras do pátio, mas nem isso tornava Skarn mais bonito, só mais duro, mais frio, mais autêntico. Era o tipo de dia em que a gente se veste mais para suportar o peso das horas do que do clima.
Não a vi pela manhã.
No grande salão, enquanto os soldados comiam apressados antes do treinamento e meus irmãos discutiam as últimas movimentações na fronteira, Maeryn não apareceu. Pensei, por um instante, que tivesse decidido ficar trancada nos aposentos. Teria sido mais fácil. Mais prudente. Mas Maeryn não fazia escolhas fáceis.
Ela entrou já com o salão barulhento, sem cerimônia nem anúncio. Caminhou reta até a extremidade da mesa, onde sentou-se longe de mim. Usava um manto de pele escura que não combinava com sua postura ereta, era como se nem o frio merecesse dobrá-la. A cabeça erguida, os olhos sem pressa, mas também sem qualquer desvio na minha direção. Não me olhou. Não uma vez.
Fingiu que eu não existia.
As conversas ao redor engoliram tudo. Meu pai, sentado como um urso entronado em pedra, falava alto sobre a necessidade de reforçar os acordos comerciais com os clãs da costa. Kael zombava de Jorum por ter perdido uma aposta. Dravak não parava de encarar Maeryn com olhos inquisidores, como se tentasse descobrir onde ela escondia o veneno que todos presumiam que trazia.
E mesmo assim, ela permaneceu firme. Impassível.
(Jorun) — Olha só, a princesa voltou a respirar o mesmo ar que nós, os bárbaros. Será que sobrevive até o fim do mês?
Risos. Alguns disfarçados. Outros não.
(Kael) — Ela é teimosa como dizem os bardos do sul? Ou só está esperando o momento certo pra mandar um corvo de volta pedindo resgate?
Silêncio de novo. Todos esperando uma resposta. Ela ergueu o queixo.
(Maeryn) — Em Valmont, aprendemos que palavras de provocação só merecem resposta quando vêm de bocas que conhecem a honra. E o silêncio, às vezes, é mais nobre que o aço.
Foi como se ela tivesse cravado uma adaga no meio da mesa. Dravak sorriu de canto. Kael resmungou qualquer coisa entre dentes. Korgun, meu pai, soltou um som rouco, não se sabia se riso ou desprezo.
Mas nem nesse instante… ela me olhou.
A tarde se arrastou em meio a reuniões sobre logística, estocagem de alimentos, envio de peles para troca e, principalmente, o conselho de guerra. Maeryn foi convocada por protocolo, afinal, era o elo da aliança. Sentou-se calada entre os homens do norte. Observava, anotava mentalmente, mas não se intrometia. Quando era diretamente questionada, respondia com frases cortadas, secas, calculadas.
Eu tentava me concentrar. Em tudo. Nos mapas, nas rotas de suprimento, nas propostas de meu pai. Mas havia uma tensão em minha pele, como se algo me puxasse constantemente para o canto da visão onde ela se sentava. Maeryn estava ali, tão perto e ao mesmo tempo havia se tornado uma fortaleza mais impenetrável que qualquer muralha de Skarn.
Durante o jantar, a mesma cena se repetiu. Ela chegou por último. Sentou-se em outro banco. Evitou olhares. Quando eu abri a boca para falar com ela, apenas um cumprimento, talvez uma desculpa, ela levantou-se antes que eu terminasse a frase.
(Maeryn) — Peço licença. O vinho do norte é mais amargo do que minha vontade de sorrir esta noite.
E saiu.
Dravak me olhou, Kael meneou a cabeça, e meu pai… meu pai apenas rosnou, como se aquilo fosse mais uma confirmação do que pensava sobre alianças feitas com palavras ao invés de aço.
Eu fiquei. Porque fugir seria admitir que me importava mais do que queria. Mas o amargor na boca não era do vinho, era dela, do silêncio dela, do jeito como ela desfilava entre as feras como se não tivesse medo… mas também, como se eu tivesse morrido para ela.
E, de certo modo, talvez tivesse.
As horas passaram, e nem os sons do treino noturno ou da ventania conseguiram abafar o peso do que havia entre nós.
Ela estava presente em todos os espaços, mas nunca comigo.
Estava na fortaleza, mas fora do meu alcance.
E o pior de tudo… era que eu entendia. Ela me tratava como eu sempre quis ser tratada. Como qualquer um.
E pela primeira vez… isso doía.
A noite desceu de vez, espessa como o sangue coagulado na lâmina depois da batalha. Do alto da muralha oeste, observei as fogueiras do pátio crepitarem contra o vento. Os guardas faziam ronda em silêncio, o som das botas ecoando no gelo. O frio me mordeu os dedos mas não me mexi. Eu preferia o desconforto da neve ao calor vazio das câmaras.
Maeryn ainda não havia voltado a falar comigo. Não uma palavra, não um gesto. Passara o dia entre os corredores de pedra, os salões, os conselhos… e eu era invisível. Como se eu nunca tivesse tocado sua pele, nem ouvido sua respiração prender no instante entre o desejo e o medo.
Ela me apagava com uma precisão que só alguém muito ferido consegue alcançar. E o mais estranho era que ela não gritava, não explodia, não acusava. Simplesmente... me excluía. Era isso o que fazia doer. O silêncio dela era mais cortante do que qualquer lâmina que empunhei.
Desci da muralha quando o vento começou a levantar a neve do chão em redemoinhos. Atravessei os corredores vazios e pesados da fortaleza, ouvindo apenas o eco das minhas próprias passadas. Passei pela sala dos mapas, ela não estava lá. Nem no salão de armas.
Quando virei a esquina do pátio central, vi de longe uma sombra se mover sob a estrutura de pedra onde costumávamos amarrar os cavalos. Ela estava ali. Sozinha. Sentada sobre uma das pedras largas, o capuz caído sobre os cabelos, os olhos fixos no chão.
Hesitei.
Cada parte de mim dizia pra voltar. Pra respeitar o que ela escolheu. Mas algo… algo me arrastou até ela.
Parei a poucos passos. Não disse nada. Não precisava.
Ela falou primeiro, sem erguer os olhos.
(Maeryn) — Você quer que eu aceite. Que eu finja que não vi. Que não ouvi. Que não senti.
A voz dela não tremia. Era tão firme quanto seu olhar quando finalmente o ergueu para mim.
(Maeryn) — Mas não sou feita desse material, Varka. Não me escondo em peles, nem em camas alheias, nem atrás de silêncios.
Engoli em seco. Tentei me defender, mas nem as palavras vinham. Ela continuou:
(Maeryn) — E o pior… o pior não foi o lugar. Nem as mulheres. Nem os risos. Foi você. Ficar ali parada. Como se aquilo… não importasse.
(Varka) — E o que eu deveria ter feito? Bater em cada uma delas? Fingir que não fiz o que fiz?
(Maeryn) — Não. Só me olhar. Me olhar como alguém que entende o impacto da própria presença.
Me calei. Por um tempo, só ouvimos o vento. Depois, dei um passo à frente.
(Varka) — Eu sou o que Skarn fez de mim. Você… você é o que Valmont nunca conseguiu destruir.
Ela suspirou. Longo. Dolorido.
(Maeryn) — E mesmo assim… aqui estamos.
(Varka) — Maeryn, se espera de mim qualquer coisa parecida com doçura, com redenção, vai se decepcionar. Não sou feita dessas palavras.
(Maeryn) — Não quero sua redenção, Varka. Só queria que não fosse fácil demais… me apagar.
Ficamos ali, ol
hos nos olhos. Sem armas. Sem máscaras.
E talvez pela primeira vez… sem defesas.
Ela se levantou, ajeitou o manto nos ombros, e caminhou na direção do interior da fortaleza.
Dessa vez, não tentei impedi-la.
Mas ao contrário da última noite, agora eu sabia exatamente o que havia perdido.
E pela primeira vez, desejei não ser só filha de Skarn.
Desejei ser mais do que a mulher que o mundo endureceu.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: