Malika entrava em casa revoltada. -- Esse condomínio virou uma bagunça, viu? – a idosa foi logo dizendo – A portaria tá largada desde cedo e se não fosse o vizinho do 104 ter recebido minha encomenda, os Correios teriam ido embora! – segurava o embrulho – Fui dar queixa pro síndico, mas acredita que ele não tava em casa? – olhava para Nazira – Onde vamos parar desse jeito? – sentou-se na poltrona

 

--Ih, dona Malika, nem te conto! – colocou o celular sobre o braço da poltrona – A portaria tá vazia porque seu Pedro foi demitido! – revelou – O síndico deve tá é escondido dentro de casa, porque tem um monte de gente aí atrás dele pra acertar as contas! – gesticulava

 

--Demitido?! – surpreendeu-se – E que negócio é esse de acertar as contas? Não entendi!

 

--Seu Pedro andou roubando um monte de coisa aqui no prédio, desde pneu de carro, extintor de incêndio e gaiola de pintassilgo até os capachos dos apartamentos do último andar! E aí quem saiu lesado quer que o condomínio pague a conta e é por isso que o síndico se esconde. – fofocava – O que ele fez foi demitir seu Pedro e falar que não vai pagar o último mês de salário dele. – esclareceu – No mais, que cada um entube seu prejuízo.

 

--Ah! – estava pasma – E como é que você soube de tudo isso? – cruzou os braços intrigada

 

--Porque seu Pedro também tem ido lá na igreja buscar ajuda pra superar o problema dele. – pausou brevemente e desviou o olhar – Ele fez o que fez por... por causa da Beth!

 

--O QUE?? – arregalou os olhos – “Mas que mulherzinha salafrária!” – pensou revoltada

 

--Eu fiquei boba com o tanto de mulher e homem que tão buscando ajuda na igreja por causa da Beth! – contava o que viu – E é cada história tão cabeluda, dona Malika: -- preparou-se para enumerar nos dedos – casamentos desfeitos, gente que perdeu o emprego, gente que foi presa... – suspirou – Do que eu me livrei! – benzeu-se -- A senhora não sabe da missa a metade! – levantou-se do sofá – Agora deixa eu ir pra cozinha porque tá na hora de esquentar o almoço. – pediu licença e se afastou

 

--Mas será possível uma coisa dessas? – a idosa não entendia – O que tanta gente viu naquela bicha beiçuda das unhas de cavador? – estava pasma – O mundo tá perdido, misericórdia! – benzeu-se também

***

 

Yesmin e Rogério conversavam à noite no quarto do casal. A mulher andava de um lado para outro nervosamente.

 

--E o vídeo termina com as duas se abraçando cheias de amor pra dar, coraçãozinho voando por todo lado e todo mundo chorando ao assistir aquela cena fofinha! – a CEO reclamava em tom debochado – Parece até que a filha de Adma Zahia é Zaida, não sou eu! – passou a mão nos cabelos – Agora só falta Stefany chamar aquela sapatão de encruzilhada de mamãe!

 

Achou graça. – Ora, meu bem, não é pra tanto! – reparava na movimentação da esposa – Eu vi o vídeo e confesso que me emocionei também, sem contar que foi a primeira vez que nossa filha postou alguma coisa realmente valiosa. – comentou – Tudo bem que ela andou postando links com os filmes que sua mãe estrelou, além dos clipes de músicas, mas nada daquilo foi uma produção dela. O que Stefany fez foi puramente legendar e divulgar. – ajeitou-se na cama – Dessa vez, no entanto, a produção do vídeo foi inteiramente dela junto com o tal Samuca e ficou muito bom! – balançou a cabeça positivamente – Não à toa viralizou por aí.

 

--Ora, Rogério, -- olhou para o marido e colocou as mãos na cintura – eu não tô preocupada com o talento cinematográfico da nossa filha, tô me atentando é ao que está nas entrelinhas! – reclamou – Zaida ganhou espaço demais no meio da nossa família e eu não tô gostando disso! Tenho que cortar as asinhas dela, mas me pergunto como! – voltou a andar de um lado a outro – Tenho que fazer a coisa de um jeito que nem maama nem Stefany tenham motivo pra dar chiliques por aí e me fazer voltar atrás no que vier a decidir!

 

--Muito simples: não decida, force a decisão! – respondeu calmamente

 

--Como assim? – novamente olhou para o homem

 

--Agora sua mãe voltou a andar. Claro que ela não vai correr a maratona de hoje pra amanhã, mas vai se tornar cada vez mais independente. – pausou brevemente – Dentro de limites, lógico. – esclareceu – Mas o fato é que não se justifica mais que ela tenha duas cuidadoras o tempo inteiro. – olhava para a esposa – Pode ser somente uma num turno de 24h se alternando com outra num turno de 24h também. – explicou – Aí você manda sua maama decidir quem ela vai querer.

 

--Humpf! – fez um bico – É claro que ela vai querer Zaida, né? – cruzou os braços

 

--E de repente, lá pelas tantas Zaida vai se sentir sobrecarregada e depois de um tempo, pedir pra sair. – sorriu – Você sabe muito bem o que fazer pra deixar uma pessoa sobrecarregada, não sabe? – piscou para a esposa

 

--Até que não é má ideia... – considerou – “Faço uma visita pra maama em um dia que não seja turno daquela uma, vou acompanhando a evolução dela de longe e no momento certo informo que vamos ter que dispensar algumas cuidadoras!” – decidiu em pensamento

 

***

 

--Viralizou geral, vó! – Stefany contava empolgada – Fiquei sabendo que foi parar até no exterior, tá ligada? – sorria – Argentina, Uruguai, Chile, Portugal e até na terrinha, sabe qual é? – piscou para a idosa – Geral se emocionando e curtindo a música de fundo, que é simplesmente fodástica!

 

--Olha palavreado! – ralhou de cara feia – Será possível, aHHa! – reclamou

 

--Foi mal... – abaixou a cabeça brevemente – Mas ó: -- sorriu novamente -- minha professora de Redes Sociais me pediu pra conhecer a senhora! – olhava para a idosa – Partiu facul?

 

--O que? – não entendeu – Eu não partiu nada, muito menos esse coisa feia que você falou aí! – gesticulou

 

Achou graça. – Demorou conhecer a professora, vó? – perguntou de outra forma – O período tá acabando, já bombei na matéria dela, a vibe agora é terminar o ano divando junto com a minha gidda! – bateu uma palma

 

--Tem coisa que você fala e eu não entende nada! – acabou achando graça também – Mas tá bom, eu vai conhecer seu professora. – concordou – Marca num turno de Zaida. – falou mais baixo – Débora e Tamara são bonzinho mas eu prefiro Zaida e Wanderleya.

 

--Já é! – fez joinha com as duas mãos – Demorou, aí! – estava animada – Vamo fazer uma parceria, vó? – propôs – Tô pensando da gente cantar junto, tá ligada?

 

Adma gastou uns segundos calada até que soltou uma gostosa risada. – Ai, ai, menina... – balançou a cabeça – Você é muito louco! – respondeu brincalhona – Irado!

 

Riu também. – É isso aí, vó! Irado! – beijou repetidas vezes a cabeça da idosa

 

***

 

Zaida estava no mercadinho comprando alguns itens a pedido de Adma quando reparou que uma figura conhecida desfilava orgulhosamente com uma jovem e bela mulher.

 

--Espumante, amore! – a jovem colocava duas garrafas dentro do carrinho – Uma noite quente tem que ser regada! – piscou para a outra – Rola levar uns chocolatinhos também?

 

--Como você quiser, uai! – concordou de pronto – Vai colocando no carrinho os trem tudo que cê quer, porque hoje a noite promete! – deu-lhe um tapinha nas nádegas

 

--Mas você, hein, Vivi? – ralhou dengosamente

 

“Nossa, como a Vivi tá produzida!” – Zaida pensou admirada – “Desfilando com beldade, enchendo o carrinho de coisa cara...” – reparou discretamente – “Parece que madame Vivi tá fazendo sucesso!” – concluiu – “Bem, deixa eu desviar pra ela não me ver!” – decidiu

 

Vivinácia não reparou na presença de Zaida e ainda gastou uns minutos fazendo compras com a jovem. Ao sair, as duas mulheres pegaram um táxi e partiram falando alto e rindo animadas.

 

“Pra quem me amava tanto, ela soube me esquecer bem rápido...” – pensou decepcionada – “Ah, mas também, quem sou eu pra criticar?” – saía do mercadinho – “Quando não tenho sonhos eróticos com aquela nojenta da Yesmin, sonho com dona Adma jovem e a coisa fica quente!” – suspirou – “Eu tinha que arrumar uma namorada! Alguém pra conversar, pra dividir as experiências da vida, pra romantizar... mas nem tenho jeito pra isso; nunca tive!” – constatou – “Quem quer saber de uma mulher sem graça feito eu? Ninguém...” – seguia de volta para a casa da idosa – “E com que tempo e dinheiro eu vou sair pra ver se conheço alguém?” – questionava-se – “Acho que vou começar a frequentar aquela igreja perto de casa só pra ver se ao menos faço uma amizade. Não dá pra minha vida girar ao redor da dona Adma o tempo todo...” – ponderava – “Eu tenho que aprender a separar as coisas...”

 

***

 

--Nazira, olha, vamos tentar organizar o raciocínio aqui. – a psicóloga pedia gentilmente – Eu não vou poder te ajudar se minimamente não conseguir entender o que você me diz. – olhava para a outra – Então vamos tentar começar do começo. – pausou brevemente – Me fala de você, da sua origem. –cruzou as pernas – Conta como você foi parar como acompanhante da dona Malika, por exemplo?

 

--Acompanhante nada, eu sou governanta e pau pra toda obra! – retrucou de pronto – Cuido de uma casa como ninguém, sei cozinhar de um tudo e ainda bordo! – exibiu-se – Ponto de cruz, rechilieu, renascença... até me arrisco num tricô e num crochezinho básico! – bateu uma palma – Arruma aí uma almofada de bilro que eu improviso uma renda, simbora! – desafiou – E sei tirar mancha de tudo que é roupa, seja a mancha que for! Até de sangue de unicórnio eu dou conta, minha filha!

 

Achou graça. – Tudo bem, você é governanta da dona Malika. – concordou bem-humorada – Mas me conte, como você chegou até aqui? Quero conhecer a sua história de vida! – explicava-se – Diga-me quem é Nazira Faruk!

 

--Quem eu sou? – sentiu-se pega de surpresa – Ah, quem eu sou... – gesticulava – Sabe que você me lembrou aquele negócio de quem somos, de onde viemos e pra onde vamos? – cruzou as pernas –Também me remeteu à Arquivo X: -- mirou um ponto no infinito – the truth is out there! – recitou – Falei bem inglês? – queria saber – Sabia que sou descendente de libaneses e não falo patavina de árabe? – comentou – É habibis, quibe e esfiha e olhe lá!

 

Achou graça novamente. – Tá, então vamos começar daí, da sua descendência. – tentou outra abordagem – Fale-me sobre seus pais. – pediu

 

--Meus pais? – abaixou a cabeça e silenciou por uns instantes – Não conheci meu pai. Ele morreu num acidente antes do meu nascimento. – contava – Era caminhoneiro e as estradas são perigosas... – olhava para as próprias mãos – Minha mãe era empregada doméstica e morreu quando eu tinha 5 anos... – levantou a cabeça – Eu não me lembro mais dela... – afirmou com certo pesar – Minha madrinha vinha a ser a patroa dela e foi quem me criou até meus 17 anos. – pausou brevemente – Nunca soube nada sobre a família do meu pai ou da minha mãe. Se a madrinha sabia, ela nunca me contou.

 

Ouvia com atenção. – E por que você viveu com sua madrinha somente até os 17 anos? – perguntou com jeito

 

--Porque ela teve câncer de pulmão e morreu quando eu tava com essa idade. – respondeu de pronto – Ela fumava que nem um caipora, Deus que me defenda e a guarde onde ela estiver! – benzeu-se – Cigarro, charuto, cachimbo, não importava o que! Se a madrinha visse uma brasa, já pegava pra fumar! – lembrava – Já eu tenho horror a tudo isso, Ave Maria!

 

Balançou a cabeça em entendimento. – E como foi o seu convívio com ela?

 

--Ah, como foi... Como foi? – pensava em como responder – Ela dizia que me criou pra vida, né? – deixou a mente vagar em memórias do passado – Hoje eu sei que me criou mesmo...

 

“Nazira brincava silenciosamente sentadinha no meio da sala. Sem que esperasse, sua madrinha aparece fumando um cigarro.

 

--Eu na cozinha trabalhando que nem burro de carga e você aí perdendo tempo com boneca?? – cruzou os braços indignada – Menina, daqui a pouco chega a hora do jantar e tem que tá tudo pronto! – reclamou de cara feia – Não quero deixar meu marido e os amigos dele esperando pra comer! – deu um trago – Vê se tem consideração por seu padrinho!

 

--Mas eu queria brincar, madrinha... – a criança respondeu desanimada

 

Cuspiu fumaça no ar. -- Você já passou da idade pra isso, Nazira! – retrucou de pronto – Tá com 7 anos, é uma mocinha! Mocinhas não brincam, mocinhas trabalham!

 

--Puxa... – lamentou – “Eu odeio ser mocinha!” – pensou entristecida

 

***

 

--Madrinha, acabei de faxinar! – a menina anunciava – Posso ir pular corda com as meninas lá fora? – pediu esperançosa – É rapidinho!

 

--Que pular corda o que? – discordou prontamente – Nazira, entende uma coisa: -- aproximou-se da menina e se abaixou para ficar da altura dela – Essas meninas que ficam brincando em rua não têm futuro! – olhava nos olhos – São meninas que ninguém vai respeitar e nem pedir em casamento. Só vão servir pra serem usadas por um e por outro. – deu um trago no cachimbo e cuspiu fumaça – Você, ao contrário delas, é criada pra vida! Pra ser moça prendada, arrumar bom marido e casar! – ficou ereta novamente– Agora vá passar as camisas do seu padrinho que tão esperando dentro do cesto de roupa limpa, vá! – ordenou ao cuspir mais fumaça

 

“Esse negócio de arrumar bom marido dá muito trabalho!” – a menina pensou desanimada – Madrinha, mas eu ainda tenho que fazer minha tarefa de casa! – advertiu

 

--Humpf! – fez um bico – Mulher não precisa de muito estudo! – retrucou antes de dar um trago e cuspir fumaça – Se quer saber, os homens nem gostam de mulher que pensa que é homem e sai competindo vaga de emprego com eles por aí! – gesticulou – Mulher tem que ser bonita, prendada e recatada. Que saiba ler, escrever e fazer conta pra não gastar o dinheiro do marido em vão é o que basta! – cuspiu mais fumaça – Se não der tempo de fazer a tarefa de casa, não deu. – olhava para a menina – Agora vá trabalhar pra terminar logo que hoje à noite vou te ensinar a fazer ponto de cruz! – ordenou – É importante saber bordar!

 

--Tá bom, madrinha... – suspirou – “Tomara que ela se anime com a novela de noite e esqueça desse negócio de cruz!” – desejou mentalmente”

 

--Duas coisas no seu relato me chamaram a atenção. – a psicóloga comentou – Uma delas foi que você disse que foi criada por sua madrinha, mas havia um padrinho também. Por que não falou nele? – perguntou curiosa

 

--Porque ele raramente tava em casa. – respondeu de pronto – E raramente dormia em casa também. – lembrava – Diz que era porque ele era piloto de avião! – gesticulou – A madrinha vivia preocupada com arrumação de casa e comida feita esperando ele voltar, mas cadê que vinha? Meu padrinho era pior que o Bom Velhinho, que aparece só uma vez no ano, mas pelo menos todo mundo sabe quando vem! – salientou -- Por essas e outras que nunca fiz amizade com homem que voa, sabe? – olhava para a outra -- Eu mal me recordo da imagem dele... – ajeitou-se na cadeira – Acho até que ele nem foi no enterro... – considerou – Ou foi? – questionou-se – O filho deles já tava com 21 anos quando minha madrinha me pegou pra criar. Ele era militar e servia não sei onde aí! – contava – Também não me lembro dele direito, mas com certeza não foi no enterro!

 

--Hum... – prestava atenção ao relato – A segunda coisa que me chamou atenção é que sua madrinha parecia acreditar que o objetivo máximo de uma mulher é arrumar um marido.

 

--Claro que é! – respondeu de pronto – Fui criada pra isso e é dura a sina de uma mulher preparada pra ser uma boa esposa! – enfatizou – Nazira Faruk foi forjada no calor do forno e fogão, lavada e enxaguada com muito sabão em pó, alvejante e água sanitária, viu, amiga? – afirmou orgulhosamente – A madrinha se esforçou muito pra me ver casada antes de morrer; pena que não deu certo... – viajou no passado novamente

 

“--Madrinha, a senhora tem certeza disso? – a jovem Nazira perguntava incerta enquanto seguiam pela orla da praia

 

--Claro, querida! – respondeu de pronto – Mohamed é um atleta amador, rapaz educado e um ótimo partido! – elogiava – Você precisa acompanhar a corrida de 10 km que ele vai fazer hoje! – recomendava enquanto seguia com a moça – E de preferência, correndo junto com ele!

 

--O que?? – arregalou os olhos

 

--Por que você acha que te mandei vir vestida assim, criatura? – deu um trago no cigarro

 

Nazira usava uma calça de lycra, top, uma camiseta branca por cima e um par de tênis um tanto quanto apertados. “Ô, meu Pai, e agora?” – pensou preocupada

 

As duas mulheres encontraram Mohamed no Posto 6, próximo de onde seria a largada. Após uns poucos cumprimentos, a jovem foi devidamente empurrada por sua madrinha para estar no meio dos corredores.

 

--Você fez inscrição? – Mohamed perguntou desconfiado – Qual é seu número? Por que não está preso na sua camiseta? – reparava na moça – Você é mesmo acostumada a correr? – desacreditava – Sua madrinha me disse que você corre!

 

--Inscrição? Número? – não sabia o que dizer – “Será que ele tá pedindo o número do telefone lá de casa?” – pensou -- Correr eu corro... só não sei pra onde! – sorriu encabulada

 

--Humpf! – o rapaz fez um bico discreto – Presta atenção no tempo da prova, nos seus batimentos cardíacos e mantenha o foco! Fica perto das outras mulheres! Isso aqui é uma corrida livre, mas serve de treino! – aconselhou –Eu tenho planos pra maratonas futuras e tô me preparando pra São Silvestre! – começou a se aquecer

 

--Ah... – balançou a cabeça concordando – Eu me identifico mais com Santo Antônio, sabe?

 

Quando foi dada a largada, Nazira não soube o que fazer. Logo tropeçou e caiu no chão, derrubando mais dois corredores, um dos quais desequilibrou Mohamed que acabou caindo também. – Minha perna, minha perna!! – o rapaz gritava de dor

 

--Ai, meu Deus! – a moça levou uma das mãos ao peito – Acho que aleijei meu futuro marido!

 

***

 

--Leva isso aqui pra eles! – a mulher entregou a bandeja de lanche para a jovem – Samir é um jovem super fino, elegante, ele é habituado a ser servido assim. – aconselhou – Vá pra sala, caminhando de cabeça erguida e mantenha um lindo sorriso no rosto. – orientou – Nada de cabeça baixa, pelo amor de Deus! – cuspiu fumaça de charuto no ar

 

“Ô, meu Pai, andar com a cabeça dura e segurando uma bandeja não é pras fracas!” – a jovem pensou receosa – Tá bom, madrinha. – tentava equilibrar a bandeja – Que Deus e Santo Antônio me protejam! – desejou antes de ir para a sala

 

--Aí vem ela, a jovem Nazira! – a mãe do rapaz sorriu ao vê-la – Olha, filho, vem trazendo um lanche preparado cheio de carinho e elegância! – alcovitou

 

O rapaz olhou para a moça e nada respondeu. Agoniada com aquele silêncio, Nazira quis mostrar toda sua finesse e seguiu em câmera lenta. Parou diante da futura sogra e a serviu com maestria. Quando ia fazer o mesmo com seu pretendente, ouviu o elogio da mulher mais velha: --Samir, com uma mocinha dessas eu faço gosto de você até noivar, viu?

 

--Jura?? – perguntou empolgada ao olhar para a outra

 

--Ai, SUA LOUCA! – Samir se levantou nervosamente – ELA DERRUBOU CAFÉ QUENTE EM MIM, MEU DEUS! – cobriu a virilha com as duas mãos – ME QUEIMOU TODO, AH!

 

--Oh! – largou a bandeja e cobriu o rosto com as duas mãos – Foi sem querer, eu juro!

 

--NAZIRA, VOCÊ QUER MATAR MEU FILHO?? – a mulher perguntou apavorada – NÃO BASTASSE O CAFÉ QUENTE, DERRUBOU TUDO EM CIMA DELE! – correu para ajudar o rapaz

 

--Mas o que aconteceu aqui? – a madrinha surge na sala cuspindo fumaça como um trem

 

“Acho que invalidei meu futuro marido...” – Nazira pensou decepcionada”

 

--Eu sou meio muito atrapalhada, sabe? – confessou de cabeça baixa – Não escuto muito bem por causa de um rojão que explodiu perto de mim quando eu era mocinha... – confessou – Acho que por isso os planos da madrinha não deram certo e acabei virando governanta da dona Malika depois que ela morreu. – resumiu a história – E como dona Malika nunca se importou em me arrumar marido, o tempo foi passando e... continuo solteira. – levantou a cabeça rapidamente – Meu Deus, imagine fazer 30 anos solteira? – apavorou-se – Por isso que caí de boca na Beth, mas não me ajudou muito... Ela é só pra fazer a gente se perder naquela sedução toda...

 

“Eu até agora não sei se essa Beth é a plataforma de apostas ou alguém de carne e osso!” – a psicóloga pensou intrigada – E... com todas essas tentativas de arrumar um marido... nunca houve alguém? – pensava em como perguntar – Você já se envolveu com alguém na sua vida, Nazira? – pausou brevemente – Digo, com mais intimidade?

 

Não gostou da pergunta. -- Olha só, amiga, eu sei que é normal amigas trocarem confidências, mas esse negócio de psicologia é muito injusto, viu? – reclamou – Você fica só aí fazendo fofoca da minha vida, mas não me conta nada! – gesticulava – Não sei se você é casada, se tem filhos, se tá ganhando bem com essa vida de psicóloga, se tem cachorro em casa... – olhava para a outra – Aliás, tem algum solteiro interessante pra me recomendar? Nem isso você me fala!

 

A psicóloga deu um suspiro profundo e acabou achando graça. – Ai, Nazira... – balançou a cabeça negativamente – Então deixa eu te perguntar outra coisa. – olhava para a mulher – E o FalaGPiTaco? Como foi que ele entrou na sua vida? – prestava atenção nas reações – Às vezes me parece que você vê nele muito mais que uma IA generativa.

 

--IA generativa?? – indignou-se – O Pitaco é meu amigo do peito, viu? – gesticulou – E nem ouse querer me separar dele! – advertiu – Já me basta me separar da Beth, que é uma coisa que tá me doendo demais! – confessou – “Só Deus sabe a dor que foi desinstalar o aplicativo do meu celular!” – pensou

 

“Acho que eu vou ter que estudar um pouquinho mais pra dar conta dessa paciente!” – a psicóloga pensou

 

***

 

Nazira e Malika voltavam para casa caminhando silenciosamente. Relembrar o passado havia deixado a mulher mais jovem um tanto quanto desanimada e ela pensava na vida. Ao passarem perto do mercadinho próximo, ambas perceberam que estavam fazendo uma pequena comemoração ali. Pendurada na entrada havia uma faixa escrito: “Até mais, Beth! Sentiremos saudades!”

 

--Ih, olha isso! – Nazira comentou surpreendida – A Beth vai embora... – lamentou

 

--Hum... – prestou atenção na outra – E isso... deixa você triste? – perguntou com jeito

 

--Cada um com seu destino, né, dona Malika? – respondeu pensativa

 

Malika pensou um pouco e de repente parou de caminhar. Nazira estranhou e parou também. – Olha, eu lembrei de uma coisa que tá faltando. – mentiu – Vá pra casa que daqui a pouco eu tô lá. – ordenou – E não esqueça de encher o potinho de água pra Sultan assim que chegar. – advertiu

 

--Tá bom. – não questionou – Vou indo, então. – deu tchauzinho e seguiu em frente

 

--Agora somos nós! – a idosa esfregou as mãos e entrou no mercadinho

 

Beth usava um arco de cabelo com corações iluminados na ponta de duas anteninhas. Balões de gás adornavam o local e as pessoas conversavam animadamente. Logo ficou claro para Malika que Beth iria casar e se mudar para bem longe.

 

--Com licença? – a idosa abordou a jovem

 

--Oi, dona Malika, tudo bem? – respondeu sorridente – Veio se despedir de mim? – perguntou animada – E a Nazira, por que não veio me dar um abraço também?

 

“Mas é uma sujeitinha muito descarada essa aí!” – pensou revoltada – Deixe Nazira em paz, sua bicha sem vergonha! – respondeu de pronto – Você destrói a vida de um monte de gente, vira o bairro de cabeça pra baixo e depois ainda encontra uns bestas que te façam festinha porque a vampirona vai casar! – gesticulava com o dedo em riste – Infeliz do trouxa que aceitou ser sugado por você até que a morte os separe!

 

--O que?? – a jovem não entendeu nada

 

--Gente, o que é isso? – um homem perguntou surpreendido

 

--Do que ela tá falando? – duas mulheres cochicharam entre si – Beth é vigarista?

 

--Pois eu desejo que você desapareça daqui e nunca mais volte, viu? E que Deus te dê vergonha na cara!  – a idosa terminava de dar seu recado – Dito isso, fui! – olhou para os demais e saiu do mercadinho pisando firme

 

--O que diabos você fez com ela, Beth? – um colega de trabalho perguntou em choque – Conheço dona Malika há anos e nunca a vi agir assim com ninguém!

 

--Mas eu não fiz nada! – Beth respondeu na defensiva – Essa senhora é louca, gente!

 

“Dona Malika é cliente antiga e não quero perder!” – o dono do mercadinho pensava – “Graças a Deus que Beth vai embora!” – considerou – “Quero nem que ela complete o expediente hoje. Depois da festinha, pago o que devo e tchau e bênção!” -- decidiu

Fim do capítulo