Capitulo 5
Varka
O chão afundava sob nossas botas. A terra, encharcada pela tempestade da noite anterior, se agarrava aos calcanhares como se quisesse nos prender ali, ou talvez nos impedir de ver o que vinha adiante. Maeryn andava logo atrás de mim. Silenciosa. Mas eu ouvia sua respiração. Sentia o peso do medo no modo como ela pisava. Medo que não era covardia, mas consciência. E isso, no fundo, me assustava mais do que qualquer monstro forjado em contos de guerra.
Seguíamos pela margem ocidental do desfiladeiro, os olhos varrendo cada tronco quebrado, cada pegada meio desfeita. O sol tentava furar as nuvens lá no alto, mas o dia parecia preso num eterno cinza. Um aviso.
(Varka) — Aqui. — Abaixei-me junto a um arbusto, afastando os galhos com a lâmina. — Marcas de corda. Arrasto de corpo. E pegadas pesadas... botas grandes. Não são dos nossos.
Alric se aproximou.
(Varka) — Estão levando prisioneiros. Um ou dois no máximo. Os outros... ou escaparam, ou estão mortos.
Ele olhou para mim. Não disse nada. Não precisava. Sabíamos o que essa trilha significava. Não estávamos lidando com bandidos comuns. Eles tinham planejamento. Sabiam que lugar atacar, quando. Sabiam onde o tratado seria mais frágil.
Sabiam onde ferir.
O broche de Teyrion, a capa do príncipe, os rastros apagados — tudo jogado de forma meticulosa, como se quisessem que encontrássemos. Como se quisessem que viéssemos atrás.
E nós viemos.
Continuamos por horas. A trilha se estreitava, serpenteando por entre pedras afiadas e troncos caídos. A floresta parecia mais escura ali. As árvores, mais próximas, como se sussurrassem umas às outras. A presença da morte era sutil, mas constante, pequenos sinais de que algo havia passado por ali. Algo disciplinado, organizado, letal.
No meio da tarde, paramos para respirar. Os homens estavam exaustos. Maeryn sentou-se numa pedra coberta de musgo, removendo o capuz e limpando o suor da testa com as costas da mão. Mas os olhos dela não vacilavam. Desde que deixamos Valmont, ela não disse que queria voltar. Não hesitou uma única vez. Eu a observei, em silêncio.
Ela percebeu. Me encarou. E, pela primeira vez, disse:
(Maeryn) — Você acha que ainda estão vivos?
Pensei em mentir.
(Varka) — Não sei.
Ela assentiu, apenas. Como se fosse suficiente.
O céu começou a escurecer outra vez. Mas dessa vez, não era chuva. Era fumaça.
(Batedor) — Varka! — gritou um dos batedores. — Ao norte! Coluna de fumaça, não muito distante!
Alric veio correndo. Eu já estava em pé, a mão na espada.
(Alric)— Fogo?
(Varka) — Acampamento. — respondi. — Ou chamando atenção. De propósito.
Reunimos o grupo, reduzido a quinze. Alguns ficaram para trás com os cavalos. A floresta se adensava à medida que avançávamos, até que os ramos nos forçaram a seguir agachados, em silêncio total. O cheiro de madeira queimada se tornou mais forte. Fumaça fina entre as árvores. E então ouvimos.
Vozes.
Sussurros. E depois passos. Vários. Mas em ritmo baixo, cadenciado. Alguém se movia como patrulha.
(Alric) — Cercando o fogo — sussurrou Alric. — Querem que vejamos, mas não que entremos. Emboscada.
Alric fez sinal com a mão. Dividiu os homens em três grupos. Dois iriam pelas laterais. Eu e Maeryn seguiríamos por trás. Alric tomaria a dianteira com os arqueiros.
Movemo-nos como lobos em noite sem lua.
Ao alcançar a clareira, me abaixei entre os arbustos. A cena à frente me fez congelar por um segundo.
Um acampamento pequeno. Dois corpos amarrados a estacas. Roupas ensanguentadas de Valmont e Skarn. Um terceiro homem, encapuzado, jogava óleo sobre os gravetos debaixo deles.
Maeryn prendeu a respiração. Eu a segurei pelo ombro, firme.
(Varka) — Não — sussurrei. — Esperamos.
Os segundos foram eternos. O homem se afastou para pegar algo. Foi o suficiente.
Alric deu o sinal.
Setas voaram como fantasmas. Gritos. Corrida. Estouramos na clareira com as espadas em punho. Três deles caíram antes de sequer nos verem. O quarto correu. Mas Alric o alcançou.
Corri até os prisioneiros. Um era soldado de Skarn — conhecia seu rosto, nome era Brenn. O outro de Valmont. Jovem, machucado, mas vivo. Nenhum sinal do príncipe. Nenhum sinal de Ragan
.
(Brenn) — Eles foram levados. — Brenn sussurrou, a garganta seca. — O grupo maior seguiu para o leste. Um deles falou em "cruzar a garganta". Eles têm um plano. Sabiam que viriam atrás. Querem nos levar... pro outro lado.
(Varka) — Que outro lado? — perguntei.
(Brenn) — O lado de quem quer a guerra.
Olhei para Alric. Depois para Maeryn.
Ela segurava o broche de Teyrion de novo. Os olhos brilhando com algo entre raiva e medo.
(Maeryn) — Vamos atrás deles — ela disse.
O silêncio depois da batalha era quase um insulto. O cheiro de sangue e fumaça ainda ardia no nariz quando Alric se virou para nós. A raiva em seus olhos não era pelo inimigo, era por ela.
(Maeryn) — Vamos atrás deles — disse de novo, mais firme.
O broche de Teyrion agora preso com força na palma. Quase o esmagava.
(Alric) — Não. — A palavra cortou o ar como um machado. — Você não vai.
Maeryn deu um passo à frente, desafiadora. A luz da fogueira tremia em seu rosto, revelando mais do que ela queria. Os olhos marejados, o queixo firme, os punhos fechados.
(Maeryn) — Você quer que eu volte e espere sentada enquanto meu irmão sangra do outro lado da garganta?
(Alric) — Quero que fique viva. — Ele não gritou. Sussurrou com fúria contida. — Acha que Teyrion queria você enfiada em uma emboscada no meio do nada? Se você morrer, Valmont entra em guerra. Se te ferem, nosso tratado ruirá.
Ela se virou para mim.
(Maeryn) — Varka…
Baixei os olhos. Minha mão apertou o cabo da espada.
A decisão não era minha.
(Varka) — Não é o meu reino. Nem a minha irmã.
Ela respirou fundo. Eu podia ver o que custava aquele silêncio.
(Alric) — Você volta com cinco homens. Direto ao castelo. Leva os prisioneiros, diz ao rei o que vimos. Diz que iremos atrás de Ragan e Teyrion.
(Maeryn) — Isso é um erro. Vai seguir com menos soldados.
(Alric) — Pode ser. Mas é o meu erro pra cometer. E minha vida pra dar, não a sua.
Ela ainda hesitou. Queimava por dentro. Queria lutar, gritar, fugir com a espada desembainhada. Mas havia algo em Alric, não uma ordem, não uma súplica, mas uma angústia tão antiga quanto as muralhas que os criaram.
(Alric) — Maeryn… por favor. Se você morrer, o pai não vai ter que enterrar apenas um filho.
Essa frase partiu o mundo em dois.
Ficamos ali por um tempo, ouvindo o som dos cascos sumindo na distância. Não houve despedida. Nem para mim, nem para Alric. Apenas o ranger das armaduras, o baque das botas na terra molhada, e o silêncio pesado que ficou entre nós depois.
Maeryn não olhou para trás.
Não podia.
E eu… não ousei encará-la.
Quando ela sumiu por entre as árvores, algo em mim partiu junto. Mas não era meu papel lamentar. Eu era espada. Era gelo e aço. E Alric precisava de alguém que ainda pudesse manter os pés no chão.
Ele não disse nada por longos minutos. Apenas observava o caminho vazio, como se esperasse que ela voltasse galopando, e em segurança rumo ao reino de Valmont, para junto da família.
(Alric) — Vamos — disse ele, finalmente. A voz áspera, arranhada de cansaço e coisa pior.
Seguimos pela trilha que Brenn indicara. Marcas de roda. Pegadas. Rastros mal disfarçados. Quem os guiava não tinha pressa em se esconder. Era um convite. Ou uma armadilha.
A floresta mudou conforme avançamos. As árvores se tornaram mais retorcidas. O solo, mais úmido. O vento carregava umidade e silêncio demais. Não havia pássaros. Nem folhas movidas ao acaso. Tudo ali parecia conter a respiração.
Os homens que restaram conosco, quinze ao todo, contando Alric e eu, andavam atentos, lanças prontas, olhos alertas. Um deles, o mais jovem, tropeçou em um osso enegrecido semi-enterrado no barro.
Não era animal.
Não dissemos nada.
Avançamos.
A tarde caiu como um manto cinzento. E logo o céu ameaçou desabar. Quando os primeiros pingos começaram a bater no couro de nossas capas, Alric parou e ergueu a mão.
(Alric) — Ali — disse ele.
Avançamos em silêncio. Atrás de uma formação rochosa, o acampamento deles, três carroças encobertas por galhos, dois homens montando vigia, e mais adiante, sob uma lona improvisada, figuras sentadas. Uma delas tossia. Outra murmurava algo em um idioma que não reconhecemos.
Mas eu conhecia aquele cabelo escuro, a postura firme apesar das correntes.
Ragan.
Ele estava vivo.
E ao lado dele, caído, a cabeça baixa, o corpo dobrado de dor… Teyrion.
Alric rosnou entre os dentes. Sua mão foi direto ao arco, mas eu o segurei pelo braço.
(Varka) — Ainda não.
(Alric) — Estão feridos. Se esperarmos, podem ser levados de novo.
(Varka) — Se atacarmos sem estratégia, podem morrer aqui.
Os olhos dele encontraram os meus. Estavam vermelhos, mas não de choro. De fúria contida, de frustração engasgada. Ele queria fazer algo. Mas não tinha certeza do quê.
(Varka) — Esperamos a noite — falei. — Quando o fogo deles baixar. Quando a vigília dormir. Aí, caímos como lâminas no escuro.
Ele assentiu com relutância.
A chuva engrossou. Nos refugiamos entre pedras e raízes, olhos fixos no acampamento à frente. Ninguém falava. Cada um com seus fantasmas. Alric com o irmão preso. Eu com Ragan na mente e Maeryn nas veias.
Pensava no que faria se Ragan estivesse morto.
E ali, no frio, na lama, com o aço úmido e o coração em chamas, entendi que a guerra não viria com exércitos e bandeiras.
Ela começaria ali.
No silêncio.
Na espera.
Na escolha entre justiça… ou vingança.
Entramos como sombras, e saímos como monstros.
A noite caiu espessa, cobrindo o acampamento inimigo com um manto de breu e cinzas úmidas. O fogo deles, antes vívido, minguava em brasas mal cuidadas. Dois homens cochilavam de sentinela, cabeças tombadas, enquanto o resto dormia espalhado em leitos mal armados.
Foi o momento. E quando veio, veio com um sussurro.
(Varka) — Agora.
A lâmina saiu da bainha sem um som. Cada um sabia o que fazer. A ordem era silenciosa, entrar, resgatar os prisioneiros, sair — se possível.
Mas não foi possível.
Pisei como animal de caça. Corpo curvado, olhos fixos. Alcancei o primeiro, adormecido ao pé de uma carroça. Cobri-lhe a boca e cravei a adaga na base do pescoço. O corpo tremeu, depois parou. Ao meu lado, Alric fez o mesmo com o vigia.
Mas um dos cavalos relinchou.
Merda.
O inimigo despertou como um enxame. Gritos rasgaram o breu, e então tudo virou sangue e barro. As chamas reacenderam num clarão súbito, tochas arremessadas, aço batendo em aço, flechas zumbindo como abelhas raivosas.
O mundo virou ruído e velocidade.
Entrei no meio deles como tempestade. A primeira lança veio rente ao ombro, desviei com o giro do corpo e o impulso da perna, cortei o braço do atacante antes que sua boca terminasse o grito. Um segundo veio com um machado, pesado, brutal. Rolei no chão e surgi atrás dele, a espada curta riscando sua lombar como fogo em pergaminho.
Gritos. Mais gritos.
Sangue quente no rosto, nos dentes. O cheiro do ferro queimado se misturando ao da terra molhada.
Um dos homens tentou me agarrar por trás, foi rápido, forte. Mas eu era mais. Usei o impulso dele contra si, lancei o cotovelo no queixo, depois uma joelhada que partiu sua base. E antes que caísse, já estava cravando-lhe a lâmina no ventre.
Alric gritava ordens. Vi quando ele lutou ao lado de um dos nossos, tentando abrir caminho até a carroça onde estavam os prisioneiros. Mas eram muitos. Mais do que achávamos. Vinte? Trinta? Não. Quase o dobro. Emboscados pela própria pressa.
Vi Hallen cair, um dos soldados de Valmont, ainda jovem. Um golpe de espada lhe atravessou o peito e ele tombou com os olhos ainda abertos, sem som, como se não tivesse entendido.
Gritei. Não sei o quê. Só sei que avancei.
Dois vieram contra mim. Uma lança e uma espada longa. Ataque em pinça. Bloqueei o primeiro golpe com o antebraço envolto em couro, levei a dor sem pensar. Girei o corpo e desarmei o da espada com um chute alto no punho, depois mergulhei a adaga no flanco dele, duas vezes, rápidas, certeiras. O da lança hesitou. Hesitar é morrer.
Saltei em cima dele como fera. Usei meu peso e minha raiva. Caímos rolando, e quando parei, eu estava por cima. Apertei-lhe a garganta até os olhos saltarem. Só então o sangue me deixou respirar.
Mas outros vinham.
Vi quando Alric foi atingido, uma flecha de raspão na coxa. Cambaleou, mas continuou. Pegou seu irmão Teyrion e o empurrou para trás da carroça. Eu corri até lá, abrindo caminho como quem rasga véus com os dentes.
(Varka) — Cobertura! — gritei. — Saímos pelo sul! Agora!
Nos reunimos em torno da carroça, os poucos que restavam. Ragan já havia se soltado com a ajuda de Alric, e empunhava uma espada. Oito dos nossos haviam caído. Alric sangrava. Eu também, num corte profundo no ombro, mas não sentia. Ainda não.
O inimigo hesitava. Não esperavam tanta ferocidade. Não de tão poucos.
Aproveitamos.
Alric puxou o irmão como pode. Eu cobri a retaguarda, lado a lado com Ragan, dentes cerrados. Um deles tentou nos seguir, joguei o machado curto direto no peito dele. Ouvi o estalo seco quando caiu.
Corremos. Pela mata encharcada, pela noite que já não era mais silêncio.
E quando a distância foi suficiente, quando os gritos viraram ecos, só então caímos de joelhos. Respiração em farpas. Corpos cobertos de lama, sangue e dor. Mas vivos. Os prisioneiros vivos. Alric vivo.
Esperamos o silêncio nos encontrar de novo.
Caminhamos pela mata escura por mais tempo do que devíamos. O cheiro de sangue nos seguia como maldição, e cada galho que estalava sob os pés era um aviso de que ainda estávamos vulneráveis. Mas não havia escolha. Parar ali, tão perto do acampamento inimigo, seria pedir para morrer.
Só quando alcançamos o velho rochedo marcado, um ponto que Dravak e eu conhecíamos desde os tempos de treino, uma espécie de abrigo natural entre pedras cobertas de musgo e raízes antigas, é que nos permitimos parar.
Ali, respiramos.
E caímos de joelhos.
Ragan se apoiou numa árvore, as mãos ainda presas por tiras de couro cortadas às pressas. Tinha hematomas pelo rosto, cortes nos braços, mas os olhos… os olhos dele ainda tinham fogo. Alric se ajoelhou ao lado, os dedos tremendo, como se não acreditasse que havia o recuperado o irmão mais novo, Teyrion. Não chorou. Mas seu silêncio era uma coisa funda, como poço sem fundo.
(Alric) — Vamos buscar os cavalos — ele disse, a voz rouca. — Depois… depois pensamos.
Assenti.
Deixamos os feridos sob a guarda de dois homens e partimos eu, Alric e outro soldado, Arven, um arqueiro de Valmont com boa memória e passos leves. Atravessamos o mato, atentos, rastreando as pegadas deixadas por nossos animais quando os escondemos do combate.
Demorou. Mas achamos eles presos num velho tronco coberto de limo, atolados até os joelhos na beira de um riacho. Demoramos para acalmá-los, para tirá-los dali, mas conseguimos.
Voltamos ao esconderijo ainda antes do amanhecer, quando o céu ameaçava um cinza opaco no horizonte.
O frio da madrugada se infiltrava nas roupas rasgadas. Acendemos uma fogueira pequena, discreta, escondida sob galhos baixos. Tratamos os feridos como pudemos, arrancando tiras das capas, fervendo água em panelas de ferro fundido, usando vinho para limpar os cortes. Arven cuidou da coxa de Alric com a precisão de quem já fez isso antes. Algum tempo depois de ter tratado os ferimentos do príncipe Teyrion, que era o mais ferido. Eu mesma tratei Ragan.
Ele não disse nada enquanto costurava o ferimento do braço. Só observava. Às vezes para mim, às vezes para o vazio. A dor estava ali, mas ele não a mostrava.
(Varka) — Aguentou bem — murmurei, puxando o fio com força.
(Ragan) — Tive bons exemplos — disse ele, sem sorrir.
O resto da noite foi vigília e cochilos curtos. Cada som da floresta nos fazia apertar as armas. A fome roía os ossos, mas ninguém reclamava. Aquilo era Skarn, engolir a dor e continuar em frente. E agora Valmont, sabiam também como era.
Quando o dia enfim rompeu, não havia sol. Só uma luz pálida que mal atravessava a copa das árvores.
Montamos os cavalos com lentidão. Os feridos iam amarrados, presos com tiras nos flancos dos animais. Ragan, embora machucado, insistiu em cavalgar sozinho. Não aceitei de imediato, mas olhei nos olhos dele, e vi que negar seria feri-lo mais do que o corte em sua carne.
Então deixei.
Seguimos em silêncio. Rumo a Valmont.
Os caminhos estavam cobertos de lama, e o barro sugava os cascos dos cavalos como se quisesse nos manter ali. Por vezes tínhamos que descer e caminhar a pé, guiando os animais pelas beiradas, desviando de raízes traiçoeiras e galhos baixos. Mas não recuamos.
Ao meio-dia, paramos para beber água e reorganizar a formação. Alric, exausto, apenas assentiu quando me aproximei.
(Varka) — Quando chegarmos, o rei vai querer respostas.
Ele respirou fundo.
(Alric) — E vai ter. Mas não vai gostar de ouvir.
(Ragan) — Nem de ver quem sobreviveu.
Eu os encarei. Meus olhos deviam estar tão cansados quanto os deles. Mas havia algo diferente em mim. Não cansaço. Não culpa.
Fome.
Não de comida. Fome de vingança. Fome de verdade. Fome de fazer sangrar os que tentaram calar Skarn pela sombra.
Seguimos dias até que Valmont se revelou à distância, como uma promessa distante entre as árvores, muralhas altas, torres douradas, bandeiras ao vento.
Chegamos em silêncio, cobertos de barro, sangue seco e cansaço. As portas se abriram sem cerimônia quando os guardas nos reconheceram. Os olhos deles se arregalaram ao ver Alric, e mais ainda ao reconhecerem Teyrion entre os resgatados. Mas ninguém disse nada. Não havia espaço para palavras no meio daquele retorno.
Avançamos pela praça interna. O som dos cascos nas pedras reverberava como tambores fúnebres. Servos se aglomeravam nas janelas. Soldados abriam caminho. E então, antes que qualquer anúncio fosse feito, o próprio rei Aldren surgiu à frente do palácio, descendo os degraus com uma pressa que nunca pensei ver nele.
Seus olhos encontraram os filhos como um pai antes de um rei. O rosto endurecido pelas décadas e pela coroa desfez-se por um instante, um suspiro escapou-lhe quando viu Alric desmontar, mancando. E quando viu Teyrion, os joelhos quase lhe falharam.
— Teyrion…? — a voz dele partiu como madeira velha. Ele não esperava vê-lo. Muito menos vivo.
Os irmãos vieram logo atrás.
Corwin, correu até Alric e o abraçou sem se importar com o sangue na túnica. Elsera apertou os braços ao redor de Teyrion como se ele fosse sumir a qualquer segundo. Maeryn… Maeryn veio até nós também.
O olhar dela me atravessou como flecha. Havia medo ali, mas também alívio. Como se me ver de pé, mesmo coberta de cortes e exaustão, fosse o único sinal de que as coisas ainda estavam no lugar. Ela não me tocou, não se aproximou. Mas seus olhos disseram coisas que não consegui entender.
Aldren, passado o primeiro impulso, ordenou que levassem os feridos aos curandeiros. Criados e soldados vieram, pegaram os que não podiam andar, ajudaram os cambaleantes. Ragan se recusou a ser carregado. Disse que andaria e andou, mesmo que com dor. Orgulho de Skarn, mesmo em terra alheia.
Mas o rei não nos deu muito tempo.
(Aldren) — Varka. Alric. No salão principal em dez minutos.
Havia urgência na voz dele. Não raiva, ainda, mas algo mais tenso. Algo que se acumulava há dias, talvez semanas, e agora pedia vazão.
Seguimos pelo corredor de pedra, o som das botas ecoando alto demais. Alric ia ao meu lado, pálido, o ferimento na coxa mal estancado. Eu sentia o ombro latejar a cada passo, mas não reclamei. Não era hora de fraqueza.
As portas do salão principal se abriram diante de nós como mandíbulas. Guardas ladeavam as paredes. O brasão de Valmont reluzia no alto, dourado sob a luz das tochas. E no centro, entre colunas, diante do trono de carvalho negro, estava o rei.
O rei Aldren nos encarava, os punhos cerrados sobre os braços da cadeira, a mandíbula tensa. Ao seu lado estavam Corwin, de expressão fechada, e Maeryn, com os olhos atentos e postura firme, como se estivesse pronta para se colocar entre a lâmina e o ferro.
Alric caminhava a meu lado, o rosto endurecido como pedra. Eu sabia o que vinha. A fúria não viria apenas por termos voltado, mas pelo que nossas ações representavam.
(Aldren) — Então é isso? — disse Aldren, a voz ressoando pelo salão como o som de um sino fúnebre. — Vocês saíram sem permissão. Na calada da noite. Levando homens e armas. Levando minha filha.
O silêncio caiu pesado. Me mantive reta. Se havia algo que aprendi em Skarn era não curvar a cabeça, nem mesmo diante de um rei.
(Alric) — O príncipe Teyrion está a salvo — falou com a voz grave. — E o irmão de Varka também, Ragan. Estavam vivos, embora feridos, quando os encontramos. Estavam sendo transportados por homens de Dareth.
(Aldren) — E o acordo, Varka? — rosnou o rei, levantando-se. — A promessa feita diante dos deuses, dos conselhos, dos reinos… Você abandonou Valmont! Rompeu o tratado que selamos com sangue!
Senti o calor subir pela espinha, mas segurei firme. Ao meu lado, Alric mantinha o queixo erguido, mas sua mão tremia, quase imperceptível. Ele sabia o que viria.
(Varka) — Não rompi nada — respondi. — Segui os rastros de um crime que poderia desmantelar toda esta aliança. Agi para impedir uma guerra entre os nossos reinos.
Aldren riu. Um riso seco, amargo.
(Aldren) — Uma Skarn agindo por conta própria. Quão conveniente. No meu reino.
Então seus olhos se voltaram para Alric. E o peso do olhar do rei caiu como uma sentença.
(Aldren) — E você — disse, a voz gélida —, meu filho, príncipe de Valmont… você traiu seu reino. Traiu sua linhagem. Agiu nas sombras, sem palavra, sem ordem, e pior, levou sua irmã com você. Uma dam. Você colocou Maeryn em risco. Ela poderia ter morrido.
(Maeryn) — Pai — começou Maeryn, adiantando-se, os cabelos soltos sobre os ombros —, fui porque quis. Ninguém me forçou. Se alguém merece repreensão aqui, sou eu.
Mas Aldren não a ouviu. Ou não quis.
(Aldren) — Silêncio, Maeryn. Você não compreende o que está em jogo. — Sua voz tremeu de raiva. — Cada passo que damos fora desta corte ressoa entre fronteiras. Cada decisão errada pode reabrir feridas que sangram há gerações. E você, Alric, se acha acima disso?
(Alric) — Eu segui meu instinto — respondeu Alric, firme, mas ferido. — Sabia que não haveria tempo para reunir um conselho, para votos ou bênçãos. Se Teyrion ou Ragan morresse, o tratado morreria com eles.
(Aldren) — E se Maeryn morresse, o que restaria de mim? — gritou o rei. — Ela não foi feita pra guerra!
O salão todo pareceu silenciar. Até os guardas, imóveis, pareciam conter o fôlego.
Maeryn se aproximou do pai, os olhos firmes como lâminas. Tocou levemente o braço dele.
(Maeryn) — Estou viva. E se estou, é porque Alric cuidou de mim. Ele e Varka lutaram lado a lado. Agora sabemos que podemos confiar uns nos outros e que o inimigo é real.
O rei a olhou por um longo momento, e sua fúria se quebrou, não em calma, mas em um silêncio contido. Como quem afoga um grito no fundo do peito.
Então ele virou o rosto, recuando um passo em direção ao trono.
(Aldren) — Que os curandeiros tratem os feridos — disse, a voz agora baixa, mas ainda carregada. — E que todos os que tomaram parte nesta loucura permaneçam no castelo até segunda ordem.
Suas palavras eram aço frio.
(Aldren) — Amanhã falaremos diante dos conselheiros. E das famílias das vítimas. Então saberei o que fazer com esta… desobediência.
Ele se sentou novamente, como um homem que se obriga a não cair.
E foi assim que saímos do salão, não como heróis, nem como traidores. Mas como algo entre o necessário e o imperdoável.
Maeryn
Depois da discussão no salão principal, o grupo se dispersou em silêncio. Cada um tomado por sua própria tensão, carregando o peso das palavras que ficaram no ar como cinzas após um incêndio. O rei Aldren sequer olhou para mim ao sair, e isso doeu mais do que se tivesse gritado de novo. Ele sempre foi severo, mas não cego ao que faço. Até hoje.
Fiquei ali por um momento, no centro do salão vazio, sob o brasão de Valmont, com as tochas crepitando nas paredes como testemunhas impassíveis. Tentei respirar fundo. O ar ainda cheirava a fumaça, couro molhado e suor. A raiva do meu pai parecia ter se impregnado no mármore, como se cada pedra da sala ecoasse a acusação.
Saí dali sem dizer uma palavra. Os corredores estavam escuros, frios, com ecos de passos distantes. Meus pés sabiam o caminho mesmo que minha mente vagasse. Não fui até meus aposentos, não queria o silêncio das tapeçarias bordadas, nem os espelhos que me encaravam. Fui até os jardins cobertos pela noite.
As folhas sussurravam ao vento como vozes que nunca cessam. Era lá que eu ia quando criança, quando minha mãe me deixava sozinha por tempo demais, quando meu pai passava dias em reuniões diplomáticas e intermináveis.
Sentei no banco de pedra sob o velho salgueiro, o mesmo em que costumava treinar feitiços de luz às escondidas. Toquei a madeira retorcida do galho mais baixo. Estava fria. Como tudo.
Tentei acalmar a
respiração. Não consegui. As palavras do meu pai martelavam dentro de mim.
“E se Maeryn morresse, o que restaria de mim?”
Ele não me viu como alguém capaz de fazer escolhas, mas como algo a ser preservado. Um símbolo. Um sangue. Nunca alguém inteiro. Por mais que lute, que estude, que me prove. Ele vê o risco. Nunca o valor.
E eu quis gritar.
(Varka) — Você está fugindo — ouvi uma voz às minhas costas.
Varka.
Ela se aproximava devagar, como uma fera cautelosa que respeita o espaço de outra ferida. A luz da lua tocava as tatuagens do braço dela, fazendo-as parecer escritas vivas em sua pele marcada. As cicatrizes antigas, as recentes, o sangue ainda seco em sua túnica. Parou a poucos passos de mim. Não se sentou. Apenas me observou.
(Maeryn) — Não — respondi, olhando para as mãos. — Só estou cansada de escutar.
Ela não retrucou. Sentou no chão, à minha frente, com os braços sobre os joelhos.
(Varka) — Meu pai também me olhava como um erro esperando acontecer — disse. — Só que ele não disfarçava com carinho.
Sorri, ainda que sem força.
(Maeryn) — O meu disfarça com medo. Como se amar fosse sempre arriscar perder.
O silêncio entre nós não era incômodo. Era como uma pausa respirada antes da próxima dor. Ficamos ali por um tempo, sem mais palavras, até que os passos pesados de Alric se aproximaram.
Ele nos olhou, mas falou apenas comigo.
(Alric) — Maeryn… — disse, e havia algo no tom dele que eu reconheci. Culpa. — Eu devia ter deixado você aqui. Nunca devia ter aceitado que fosse.
Levantei, caminhando até ele.
(Maeryn) — Eu insisti…
Ele assentiu. Fraco. Como alguém que não discute o que sabe ser verdade.
(Alric) — Ele vai nos reunir amanhã — disse. — E vai querer respostas que nos culpem. Ele precisa disso. Para manter o controle. Para proteger o trono. Mas eu...
Ele parou. Por um momento, o irmão que cresceu comigo desapareceu, e diante de mim estava o homem que foi forçado a carregar a coroa antes da hora.
(Alric) — Eu só queria salvar Teyrion.
(Maeryn) — E salvou — respondi. — É nosso pai vai te perdoar por isso. Vai perdoar a todos nós.
Ele desviou os olhos.
(Alric) — Talvez…
Nos abraçamos, longamente, em silêncio. Não como príncipe e princesa. Não como peças de um tabuleiro. Mas como irmãos. Dois náufragos do mesmo naufrágio.
Quando ele partiu, Varka já tinha sumido, sem deixar rastro, como da única vez que estivemos juntas.
.
A noite caiu espessa sobre Valmont como um manto silencioso, abafando os sons da fortaleza. Do lado de fora, o vento zumbia entre as torres e muralhas, carregando o cheiro das chuvas recentes e o frio das montanhas. Mas ali, entre as pedras antigas do castelo, era outro tipo de tempestade que se formava dentro de mim.
Deitei-me, mas não consegui repousar. Meu corpo estava quente, inquieto, e a mente mais ainda. Meus pensamentos giravam em círculos, tudo que havíamos vivido nas últimas semanas, o sangue derramado, os homens perdidos, as decisões difíceis, o peso do nome que carrego. Mas nada, absolutamente nada, me torturava mais do que a lembrança de Varka.
Ela se fez presente em mim como uma chama branda, ardendo sob a pele. Eu ainda sentia o peso do seu corpo contra o meu, o cheiro de couro, do suor, os dedos calosos segurando meu rosto como se o mundo ao redor não existisse. Mas ao mesmo tempo… o vazio. O silêncio depois. Ela partira como se tudo aquilo tivesse sido apenas um momento, e talvez para ela tenha sido mesmo. Talvez eu tenha sido só mais uma noite entre as cicatrizes da sua guerra. E ainda assim, maldição, eu a queria. Como se algo em mim tivesse sido tomado e deixado em suas mãos.
Me sentei na cama, encolhi as pernas, abracei os joelhos. Não queria ser fraca. Não queria ceder. Mas aquela ausência latej*v* como um corte mal curado, e minha pele parecia faminta. Me vesti em silêncio, túnica leve, capa escura. Prendi os cabelos. Saí do quarto como um sussurro.
Pelos corredores, as tochas crepitavam em silêncio. Os poucos guardas que vigiavam os andares noturnos fingiam não notar minha presença. Baixavam os olhos quando eu passava, como se sentissem o que me movia. Ou talvez simplesmente entendessem. A dor tem formas que todos reconhecem. A necessidade também.
Subi os degraus de pedra, guiada pelo instinto mais do que pela memória. Cheguei diante da porta dos aposentos de Varka com o coração disparado, a respiração presa na garganta. Hesitei. A madeira da porta era áspera ao toque. O cheiro que escapava dali era quente, um leve traço de óleo de ervas, fumaça e o sal do sangue seco.
Empurrei devagar.
A luz do braseiro iluminava as pedras do chão em tons avermelhados. As sombras dançavam nas paredes como espectros. E ali, em pé diante do braseiro, Varka estava de costas. Seu cabelo ainda molhado pelos ombros nus. As costas largas revelavam um emaranhado de cicatrizes antigas, mas agora havia outras. Novas. Profundas. Um corte cauterizado atravessava seu flanco, inchado e vermelho. Outro, no ombro, parecia ter sido queimado com a lâmina aquecida de uma espada, o traço era irregular, ainda fumegante ao redor das bordas. Ela vestia apenas um pano em volta dos quadris, e o resto de si era pura brutalidade exposta.
E mesmo assim… linda. De uma beleza crua, ferida, como uma fera que sobreviveu à caçada.
Ela ouviu meus passos. Virou-se lentamente. Os olhos me encontraram sem surpresa. Apenas um silêncio, um reconhecimento. Não disse nada. Eu também não. Não precisava.
Aproximei-me, sentindo o calor do ambiente misturar-se ao meu. A cada passo, minha respiração falhava. Ela não recuou. Deixou que eu a visse por inteiro. As marcas, os hematomas, os vincos do cansaço. Seus olhos carregavam a sombra de batalhas que eu não saberia nomear. E ainda assim, estavam calmos.
(Varka) — Você não devia estar aqui — murmurou.
Mas sua voz não afastava. Era quase um convite envergonhado. Ou um aviso. Um daqueles que a gente escolhe ignorar.
(Maeryn) — Eu não consigo evitar — respondi, e minha voz soou mais fraca do que eu queria.
Ela inclinou o rosto, estudando-me como quem tenta medir o alcance de uma ferida. Então soltou a espada que ainda segurava, deixando-a cair ao lado do braseiro. Aproximou-se, e o cheiro dela me atingiu, ferro, fumaça, e algo mais primitivo. Meu corpo estremeceu.
(Varka) — Não sou feita pra promessas, Maeryn — disse, a voz rouca.
(Maeryn) — Eu não vim pedir nenhuma.
E naquele instante, não houve mais espaço para palavras.
Ela me puxou com firmeza, mas sem pressa, como quem segura algo precioso demais para quebrar. Suas mãos, ainda quentes da espada, pousaram em minha cintura, e meu corpo cedeu como se tivesse esperado só por aquilo. Senti o calor da pele marcada, as feridas vivas, o tremor contido de quem ainda sangra por dentro e por fora. O beijo veio denso, desesperado, como se quisesse apagar a dor ou imprimi-la em mim.
Meus dedos correram por suas cicatrizes como se decifrassem um mapa de dores. Ela gem*u baixo, contida. E mesmo naquela brutalidade, havia ternura. Um cuidado entre uma batalha e outra.
Ela me puxou com as mãos calejadas, e eu fui, inteira, entregue, sem resistência. Não havia mais filha, princesa ou guerreira ali. Só
o corpo em chamas que eu habitava, e a besta marcada que me tomava como se eu fosse terra queimada que ela precisava semear de novo.
Varka me empurrou contra a parede fria de pedra, como da primeira vez, e o choque do frio contra minhas costas me fez arquear o corpo, soltando um suspiro que mal reconheci como meu. Seus olhos estavam acesos, selvagens, famintos. Não havia doçura ali. Não havia hesitação. Havia só uma brutalidade urgente, uma fúria cravada de desejo, como se o que ela sentisse por mim fosse uma guerra que ainda não terminara, e agora explodia nas margens do nosso toque.
Ela puxou minha capa para o chão com um gesto seco. Os dedos rasgaram a túnica sem cerimônia. O tecido cedeu como papel molhado, e o ar da noite cortou minha pele nua, deixando tudo ainda mais vivo. O calor das feridas dela encontrava o meu arrepio, e o contraste me fez estremecer.
(Varka) — Fala porque você me quer — ela rosnou, com os lábios colados ao meu pescoço. Sua respiração era quente, o peito subia e descia num ritmo animalesco.
(Maeryn) — Eu... — comecei, mas ela mordeu minha clavícula com força suficiente pra deixar a marca, arrancando um gemido que afogou qualquer resposta.
Varka me devorava. Não havia outro verbo. Seus dentes, suas mãos, sua língua, tudo nela era fome. Uma fome que me partia em mil pedaços e, ao mesmo tempo, me costurava de novo. Cada toque dela era rude, impreciso, intenso. As mãos agarrando minha cintura, me erguendo com facilidade como se eu pesasse nada, me prendendo contra a parede como quem marca território.
Ela lambeu meu seio com violência e prazer ao mesmo tempo, sugando com vontade, deixando a pele latejando atrás de cada gesto. Seus dedos me penetraram como quem invade, sem aviso, sem perdão e eu gritei. Um som rouco, abafado pelo próprio prazer. Era insano, e eu queria mais. Queria até doer. Queria que ela me quebrasse, se fosse isso que a fizesse ficar.
Me tornei som, suor, grito abafado contra seu ombro. Sentia o calor escorrer entre minhas pernas, e cada movimento dos dedos dela arrancava de mim um pedaço de juízo. E Varka sabia. Me olhava como uma caçadora que saboreia a presa que se oferece.
Ela me jogou na cama como se fosse um fardo de feno, mas com uma precisão que dizia tudo, ela sabia exatamente onde me ferir, e onde me salvar. Subiu por cima de mim, com o corpo coberto de suor, as cicatrizes brilhando sob a luz do braseiro. Por um instante, me olhou. O rosto austero, sujo de sombra e desejo.
E me lambeu. De cima a baixo. Da base do pescoço até o umbigo, deixando um rastro úmido e quente que me fez arquear os quadris. A língua desceu ainda mais, e quando finalmente me tocou onde eu mais ardia, meu corpo tremeu inteiro. Ela não parava. Me ch*pava com avidez, sem pausa, como se ali estivesse enterrada sua redenção ou sua danação. E talvez estivesse.
Me desfiz embaixo dela. Uma, duas vezes, até perder a conta. E mesmo quando os espasmos me venciam, Varka me puxava de volta pro abismo com a boca entre as minhas coxas, com os dedos apertando meu quadril pra me manter ali, exposta, vulnerável, toda dela.
Quando finalmente parou, meus olhos estavam marejados, as pernas trêmulas, o peito arfando como se eu tivesse voltado da guerra. Ela subiu, deitou sobre mim, apoiando o peso sem esmagar. Seu rosto encostado no meu, o nariz roçando minha bochecha.
(Varka) — Não sou feita pra amar — ela sussurrou, quase cansada.
(Maeryn) — Eu também não — menti.
Mas nenhuma de nós acreditou.
Naquele silêncio quente, entre o cheiro de ferro, suor e prazer, fechei os olhos e deixei que minha mente flutuasse. Amanhã, seríamos outra vez Maeryn e Varka. Duas peças num tabuleiro que sangra. Mas ali, naquela cama quente, éramos só duas mulheres que se recusavam a morrer sozinhas.
O amanhecer chegou como uma lâmina fria, cortando o pouco de paz que ainda me restava. A luz atravessava as frestas das janelas pesadas dos aposentos de Varka, tingindo o chão de um dourado pálido que nada tinha de acolhedor. A brasa do braseiro havia se apagado, deixando apenas um calor morno no ar, e ao meu lado, nada. Outra vez, nada.
Varka havia partido antes da aurora.
De novo, como da primeira vez, eu acordava sozinha. Mas agora era pior. Porque desta vez eu sabia o que esperar, e mesmo assim, havia desejado que fosse diferente. A ausência dela era tão brutal quanto sua presença na noite anterior. A cama ainda guardava o calor do corpo dela, o travesseiro ainda carregava o cheiro dos seus cabelos úmidos e do óleo que usara para as feridas. E mesmo assim, o espaço ao meu lado era um abismo.
Deitada ali, nua sob a capa que resgatei do chão, a túnica em pedaços ao pé da cama, senti uma vergonha que me queimava por dentro. Vergonha não do prazer, não do desejo, mas de mim. Por esperar. Por ter imaginado que talvez ela ficasse. Que talvez houvesse um gesto, uma palavra… qualquer coisa.
Mas Varka era Varka. Uma tempestade que não se explica, só se sobrevive.
Levantei devagar, sentindo as pernas trêmulas, o corpo dolorido, não só pelo que ela fizera comigo, mas pelo que aquela ausência já começava a fazer. Vesti o que restava da túnica, rasgada no lado esquerdo, pendendo dos ombros como um trapo, e envolvi-me na capa com pressa. O tecido cheirava a fumaça e couro, e aquilo me atingiu mais forte do que deveria. Quis chorar, mas não ousei.
Não agora.
Saí do quarto devagar, os passos quase mudos sobre as pedras frias do corredor. A esta hora, poucos estavam acordados. O castelo ainda dormia em sua respiração profunda, entre guardas sonolentos e ecos de corvos distantes. Eu me movia como uma sombra entre sombras, desviando dos poucos que cruzavam os corredores, criados, sentinelas, rostos que evitavam o meu com o mesmo zelo com que eu evitava os deles.
Mas a vergonha não é uma fera fácil de esconder. Ela cresce por dentro, encurva a postura, pesa no olhar. E foi assim, com o queixo abaixado e a capa mal cobrindo os joelhos, que virei o corredor do salão leste, e dei de frente com Alric.
Ele parou de imediato. E eu também.
O olhar dele percorreu minha figura de cima a baixo. Primeiro os olhos, arregalados de surpresa. Depois a boca, que se fechou numa linha dura. Ele viu a túnica rasgada, as marcas no pescoço, os cabelos soltos e desalinhados. E entendeu tudo.
Tudo.
(Alric) — Maeryn — ele disse, e o nome soou como uma repreensão amarga.
Não havia onde me esconder. Nem desculpas. Nem força suficiente para fingir que eu era a mesma de ontem.
(Maeryn) — Não — sussurrei. Era tudo que consegui dizer.
Ele se aproximou um passo. Só um. Mas era o bastante para me fazer recuar instintivamente. O rosto dele era uma máscara de frustração, incredulidade, talvez até decepção. Mas havia também algo mais: medo. Um medo tenso, silencioso, de quem percebe o quanto estamos nos afastando. Eu e ele. Irmãos, sempre fomos. Mas agora... havia um abismo entre nós.
(Alric) — O que você está fazendo? — perguntou, a voz baixa, como se a verdade fosse algo perigoso demais para se dizer em voz alta.
(Maeryn) — Tentando respirar — respondi, sem pensar. A voz saiu seca, rouca. Como se eu estivesse voltando de um campo de batalha.
Ele balançou a cabeça devagar, descrente. O silêncio entre nós era denso, sufocante. Ele não ousou me tocar, e eu fui grata por isso. Se o fizesse, talvez eu desabasse ali mesmo.
(Alric) — Ela não é pra você — disse por fim.
(Maeryn) — Eu sei — sussurrei.
E passei por ele. Não esperei resposta. Não olhei para trás. O nó na garganta ameaçava estourar, e eu precisava de um lugar seguro, qualquer lugar onde eu pudesse ser só Maeryn, despida de tudo: do nome, do sangue real, do orgulho. Só alguém tentando seguir em frente com o corpo marcado, o coração desfeito, e a vergonha pesando mais do que qualquer armadura.
O sol começava a subir, dourando as muralhas com indiferença.
E eu, envolta na capa que carregava o cheiro de outra mulher, descia os degraus com a certeza cruel de que a guerra não havia terminado.
Nem dentro.
Nem fora.
Desci os degraus como quem carrega o próprio cadáver nos ombros. Meus pés pareciam mais pesados a cada passo, como se as pedras tivessem decidido me lembrar do que eu era: fraca. Ridícula. Sozinha.
A raiva veio primeiro, quente, ácida, feroz. De mim para mim mesma. Por tê-la procurado, por ter deixado que me tocasse de novo, por ter acreditado, mesmo que só por um instante, que talvez, talvez, houvesse ternura naquela brutalidade. Como se em algum canto daquelas mãos ásperas e do olhar sombrio houvesse um espaço pra mim que não fosse feito só de carne e calor.
Idiota.
A capa que ainda estava sobre meus ombros, pesada como uma lembrança recente demais. Ela não teve sequer o cuidado de me acordar. Nenhuma palavra. Nenhum gesto. Como se tudo o que vivemos fosse apenas o estalo de um fósforo na escuridão, breve, ardente, e inútil.
Meus olhos ardiam, mas eu não chorava. Não podia. As lágrimas, naquele momento, seriam uma confissão. E eu ainda tinha um resto de dignidade tentando manter-se de pé dentro de mim. Era um esforço inútil, eu sabia, mas era tudo que restava.
A frustração se enroscou na raiva, como uma corda apertando meu peito. Cada passo ecoava entre as paredes como uma afronta. Os olhares que cruzavam o meu, mesmo os que fingiam não ver, pareciam saber. Saber demais. E isso me fazia querer gritar. Queria arrancar aquela capa, jogá-la no chão, pisar em cima, cuspir nela. Mas não fiz. Porque no fundo, ainda havia algo de mim agarrado àquele cheiro, àquela lembrança.
E então veio o medo.
Não o medo do que diriam. Eu aguentaria os sussurros, os olhares atravessados, o julgamento. Já havia aguentado pior. Mas o medo que me consumia era outro. Era o de não conseguir sair dela. O medo de continuar desejando alguém que não me queria de verdade. Alguém que não sabia ficar. Que não sabia ser leve.
O medo de me perder nela.
Como posso querer tanto alguém que não me dá nada? Como posso, mesmo agora, mesmo ferida, mesmo sozinha, ainda desejar o toque dela? A boca dela? O peso do corpo dela sobre o meu?
Senti meu estômago revirar. As mãos estavam frias, o peito arfava como se eu tivesse corrido. Entrei pelos corredores laterais do castelo tentando fugir dos criados, dos olhos, do mundo. Me encostei numa das colunas de pedra e ali, na sombra de tapeçarias antigas, permiti que o corpo desabasse só um pouco. Apenas por segundos.
Respirei fundo. O cheiro do lugar era velho, seco, de pedra e poeira e objetos antigos. Aquilo me fez lembrar onde eu estava. O que eu era. E o que precisava continuar sendo.
Princesa. Diplomata. Herdeira.
Não uma mulher com o corpo ainda marcado de desejo e o coração em pedaços.
O castelo seguia em seu ritmo. Guardas trocavam turnos. Corvos voavam. A guerra ainda ameaçava bater à porta. E eu? Eu precisava vestir outra vez a armadura do dever. Mesmo que por dentro tudo estivesse em ruínas.
Voltei aos meus aposentos em silêncio. Quando fechei a porta, tirei a capa devagar. Dobrei com calma. Quase com reverência. Como se o tecido ainda guardasse alguma memória de Varka. De nós. Coloquei-a sobre a cadeira ao lado da lareira, sem coragem de escondê-la. Sem coragem de continuar olhando.
Sentei à beira da cama. Olhei para as mãos. Estavam sujas. De tudo. Da noite. Da entrega. Da ausência.
E me perguntei, mais uma vez, até quando eu suportaria desejar o que me fere.
Até quando eu suportaria amar alguém que não sabe ficar.
A sala de conselhos estava mergulhada naquela luz fria da manhã que atravessa os vitrais altos como dedos de vidro, colorindo as pedras antigas com tons de sangue e ouro. O silêncio ali dentro era espesso, denso como o ar antes de uma tempestade. Só o ranger ocasional da madeira sob os passos de alguém quebrava o manto de expectativa.
Eu já estava sentada quando eles chegaram. Primeiro Corwin, sempre composto, o rosto impassível, as mãos entrelaçadas nas costas, como se carregasse nos ombros o peso de ser o mais controlado entre nós. Depois Alric, o irmão que sempre caminhava com raiva nas veias, mesmo quando se esforçava para escondê-la. Sentou-se ao meu lado sem dizer uma palavra, mas eu sentia a tensão em seu maxilar, no modo como evitava me encarar desde o corredor horas antes.
Então, Varka entrou.
Não precisei olhar para saber que era ela. Meu corpo soube antes. A pele se arrepiou, o estômago revirou, o coração bateu mais forte, e mais baixo. Como se tentasse se esconder de si mesmo. Caminhava com aquela força contida que a definia: os passos firmes, o ombro coberto por couro gasto, as tatuagens visíveis por baixo da camisa aberta no colarinho. As feridas recentes ainda marcavam sua pele, e mesmo assim ela se movia como quem não devia nada à dor. Estava inteira. Selvagem. E intocável.
Ao lado dela, Ragan, seu irmão mais novo, que carregava no rosto a mesma dureza, mas com algo mais, uma arrogância juvenil, ainda não moldada pelas perdas. Ele nos olhava como quem mede inimigos, não aliados. Mas naquele momento, isso não importava.
Nosso pai já estava ali. O rei Aldren.
Sentado à cabeceira da longa mesa de carvalho, os dedos tamborilando de leve contra o braço do trono menor que usava para os conselhos. Não era o trono do salão principal, mas ainda assim impunha respeito. Ainda assim lembrava a todos nós quem éramos e quem ele era.
Só que hoje, ao vê-lo ali, senti algo diferente.
O rei estava envelhecendo.
Não só nas rugas profundas, nas mãos um pouco trêmulas, no olhar mais cansado. Mas no modo como respirava. No silêncio prolongado antes de começar a falar. Como se soubesse que as palavras que diria talvez não moldassem mais o mundo como antes.
Ele nos olhou, um por um. Seus olhos repousaram em mim um pouco mais do que nos outros. Não sei se por pena, decepção ou algo que eu não soube nomear.
(Aldren) — Vocês saíram pelas portas do castelo enquanto o reino ainda dormia — disse ele, finalmente. A voz ainda era firme, mas não cortava como antes.
— Fizeram isso às escondidas. Desobedecendo ordens diretas. E levando consigo um nome que pesa — os olhos voltaram a mim, então a Alric.
Alric ergueu o queixo, pronto para rebater. Corwin permaneceu em silêncio, como se já esperasse tudo. Ragan bufou com impaciência. E Varka… ela apenas cruzou os braços, o olhar fixo no rei como se nada pudesse intimidá-la.
Eu fiquei imóvel.
(Aldren) — Mas não os reuni aqui para puni-los — disse ele, num tom inesperado.
As palavras pairaram no ar como uma neblina. Até Alric pareceu surpreso.
(Aldren) — A verdade é que os tempos mudaram. E talvez, por mais que me custe admitir… nós mudamos também.
Olhou para Varka e Ragan.
(Aldren) — Antigamente, eu teria dito que alianças forjadas com sangue são frágeis demais para se manter. Mas agora vejo que talvez sejam as únicas que resistem.
Fez-se um silêncio tenso. O velho rei respirou fundo, como quem mede cada sílaba.
(Aldren) — O que vocês fizeram foi imprudente. E sim, colocou muita coisa em risco. Mas trouxe respostas. Trouxe os nossos de volta, e abriu uma nova estrada para o que está por vir.
Ele pousou as mãos na mesa. Olhos cansados, mas lúcidos.
(Aldren) — Varka de Skarn. Ragan, filho de Korgun. Sejam bem-vindos à nossa mesa.
Aquilo foi tudo. Uma aceitação. Um gesto de confiança pública. Política. Mas eficaz. E talvez até sincero.
Alric permaneceu tenso. Corwin não se moveu. Eu, por outro lado, fui invadida por uma onda de emoções que não consegui ordenar.
Senti orgulho, sim. Por meu pai não agir com tirania. Por ele ver o que talvez eu mesma estivesse cega demais para enxergar. Mas também senti raiva. Porque a presença dela, tão perto, tão imóvel ao meu alcance, era uma tortura muda. E porque ela não me olhava. Nem uma vez sequer.
A lembrança da noite ainda latej*v* na minha pele, e ali estávamos, sentados um ao lado do outro como aliados políticos, fingindo que nada acontecera. E talvez fosse isso que ela queria. Fingir. Esquecer.
Mas eu não conseguia.
Cada vez que ela cruzava as pernas, cada vez que sua voz grave cortava o ar com alguma observação seca, eu sentia minha raiva crescer como uma fogueira contida. Como se houvesse algo dentro de mim que queria explodir e queimá-la junto.
Não pelo prazer. Mas pelo silêncio depois dele.
O conselho prosseguiu. Falaram sobre os prisioneiros, sobre a movimentação no norte, sobre reforços nas fronteiras. Mas eu não consegui ouvir metade. As palavras vinham como ecos distantes. Meu olhar, às vezes, se desviava e caía sobre o perfil dela. E então voltava para o vazio da mesa. Para as minhas mãos entrelaçadas. Para
a memória do toque que agora doía mais do que me aquecia.
No fim, quando o rei nos dispensou, Varka se levantou sem uma palavra. Passou por mim. E continuou andando.
Como se eu fosse só mais um nome na sala.
E talvez… talvez fosse mesmo.
Fim do capítulo
Mais um capítulo pra vocês, espero que gostem.
Comentar este capítulo:
HelOliveira
Em: 04/08/2025
Perfeito, aguardando o próximo
Parabéns as história está muito boa
Natalia S Silva
Em: 06/08/2025
Autora da história
Oii. Acabei de atualizar.
Se divirta.
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Antonia
Em: 03/08/2025
Excelente!!! Esperando o próximo com ansiedade!
Natalia S Silva
Em: 06/08/2025
Autora da história
Oii. Acabei de postar, vai lá matar sua ansiedade
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