Entre linhas por CarolF
Capítulo 4 - Fantasmas em Quadra
Os dias que vieram depois do torneio foram um arrasto, os minutos pareciam pesados demais pra passar, e tudo doía: os músculos, o orgulho, o peito.
Cris estava diferente. Não a “diferente” de quem tá triste era um tipo de desespero que se disfarçava de disciplina começou a chegar antes de todo mundo nos treinos, fazer mais voltas na quadra, repetir os chutes e forçar os movimentos até o corpo reclamar.
O treinador Júnior até elogiou no começo.
— Gosto de ver essa garra, Cristiane , mas vai com calma, tá?
Ela só assentiu, suada, com as mãos nos joelhos e os olhos vidrados na bola como se correr mais fosse curar o que estava quebrado por dentro , mas o rendimento não melhorava na verdade, piorava.
A bola escapava fácil e os passes perdiam precisão e os chutes perdiam força o olhar da Cris estava diferente como se ela não dormisse há dias.
As meninas começaram a comentar.
— Ela tá se matando à toa — disse a Júlia, num canto do vestiário.
— A Cris sempre foi intensa, mas agora tá demais — completou Ana Paula. — Parece que nem escuta mais a gente em quadra.
E era verdade.
Cris jogava sozinha mesmo em coletivo, corria mais do que precisava, brigava pela bola com as próprias companheiras, errava e se irritava, chutava o chão, xingava alto.
Na quarta-feira, houve a explosão.
Durante um treino de dois toques, ela errou um passe simples e Ana Paula reclamou alto:
— De novo, Cris? Tá errando tudo, cara!
Cris virou como um furacão.
— Então faça você! Vai, joga sozinha! — gritou, jogando o colete no chão.
As meninas pararam. O junior entrou no meio:
— Ei! Ei! O que está acontecendo aqui?
— Nada! — respondeu Cris, com os olhos cheios de lágrimas. — Só cansei de fazer tudo sozinha!
— Ninguém tá pedindo isso, garota — Ana Paula rebateu. — Mas tu acha que correr feito louca resolve? Tá queimando a gente inteira!
— Se eu não fizer, ninguém faz!
— Não é só sobre esforço! É sobre cabeça! E você perdeu a sua!
O Junior interveio, separou, mandou todo mundo pro chuveiro mas o clima já tinha azedado de vez.
Na saída, ninguém falou com Cris. ela recolheu o material sozinha, como sempre sentia os olhares pesando nas costas. O time começava a descolar dela, como uma pele se soltando do corpo.
E então veio o pior.
Na sexta, no intervalo da escola, viu Dani no pátio e estava com ele. O namorado.
Eles riam juntos de longe, Cris ouviu o som da risada dela, aquela mesma que já tinha ouvido ao pé do ouvido, enquanto dividiam um colchão na escola do torneio aquela risada que agora parecia de outra pessoa.
Ele a abraçou por trás Dani deixou e depois se virou e deu um beijo nela.
Cris parou no meio do corredor um passo antes do refeitório o mundo girou por um instante. Sentiu o estômago revirar a garganta e travar os olhos arderem.
Seguiu em direção ao banheiro antes que alguém visse e trancou a porta do banheiro e ficou ali por quinze minutos, lavando o rosto e tentando manter a calma.
Naquele dia a Cris não apareceu no treino e muito menos avisou.
Junior ligou, mandou mensagem e as meninas só comentaram que “ela surtou de vez”.
E Cris estava mesmo surtando em casa, trancada no quarto, repetia os vídeos dos jogos antigos os vídeos onde ela e Dani eram quase uma só em quadra os lances perfeitos os sorrisos de cumplicidade. Aquele tempo em que tudo era possível.
Agora, era só ela. E o vazio.
No espelho, encarou seu reflexo com raiva.
"Você é ridícula", murmurou.
Pegou o tênis e saiu pra correr sozinha a noite sem música, só o barulho da respiração falhando e o coração tentando acompanhar a dor. Ela corria como se pudesse fugir da imagem de Dani nos braços de outro mas não havia distância suficiente.
Na segunda-feira, Cris apareceu no treino.
Estava pálida, olheiras fundas, o moletom grudado no corpo suado antes mesmo do aquecimento começar o olhar dela não encontrava ninguém. Só a bola.
Junior a observou por alguns minutos, preocupado.
— Tá tudo bem, Cristiane? — ele perguntou.
— Tô ótima — ela respondeu sem olhar pra ele.
Era mentira, a voz dela estava rouca, e os olhos ardiam como se ela tivesse chorado o caminho inteiro até o ginásio, ainda assim, foi a primeira a entrar na quadra, a última a sair dos exercícios, a que corria até perder o fôlego.
As meninas evitaram comentar já sabiam que qualquer palavra era risco de explosão.
Durante o treino tático, Cris errou um passe, tropeçou no próprio pé e caiu levantou rápido, irritada, chutando a bola longe.
— De novo isso? — Dani estourou, do meio da quadra. — Tu acha que tá jogando alguma coisa assim?
Cris se virou num salto.
— Cala a boca, Dani. Você nem fala comigo, e agora quer dar palpite?
— Porque você se afastou! Porque virou outra pessoa!
— Eu virei? Eu? — a voz de Cris tremeu, embargada. — Você me beijou, Dani e depois voltou pra ele como se eu fosse um erro!
As meninas olharam umas pras outras, surpresas.
Dani deu dois passos à frente.
— Eu nunca prometi nada!
— Mas você sentiu eu vi nos teus olhos!
— E se eu senti… me arrependi! Tá ouvindo? Me arrependi!
A frase bateu no peito de Cris como uma pancada, ela riu de nervoso uma risada amarga, vazia.
— Claro. Se arrependeu… mas continuou me olhando e continuou me tocando no escuro. Você só tem vergonha do que é, Dani e desconta isso em mim.
— Você está doente, Cris.
— E você é covarde.
Junior interveio antes que escalasse mais.
— Chega! As duas! Agora!
O treino foi interrompido. Dani saiu, batendo a porta do ginásio. Cris ficou sentada no chão, com o peito subindo e descendo rápido, os olhos marejados e o rosto vermelho — de febre, de raiva, ou dos dois.
Mais tarde, no vestiário, Julia comentou em voz baixa com Ana Paula.
— Ela está queimando por dentro. Vai desabar a qualquer hora.
Na quarta, Cris apareceu no treino de novo, mesmo mais abatida, com o corpo suado sem nem ter começado a correr as mãos tremiam ao amarrar os seus tênis tossia o tempo todo. estava quente — mais quente que o normal e ainda assim, insistiu.
O treinador Júnior notou.
— Cris, você tá bem? Tá com febre?
— Tô bem — ela mentiu.
— Vai pro banco. Não vai treinar assim.
— Eu preciso treinar.
— Você precisa se cuidar. Vai descansar.
Ela ficou parada, os olhos marejados, o corpo oscilando entre obedecer ou implodir. Escolheu explodir.
— Se eu parar, eu quebro, professor! Se eu parar agora, eu não volto mais!
— Você já tá quebrada, menina — ele respondeu, a voz firme, mas sem raiva. — Não vê?
Ela abriu a boca, mas não disse nada, ficou sentada no banco de reservas, chorando de cabeça baixa, as outras ficaram em silêncio e ninguém soube o que dizer.
Na saída do treino, as meninas foram se aproximando devagar e Julia tocou no ombro dela.
— Cris… se cuida, por favor a gente gosta de você, mas assim… você vai se perder de vez.
Ela não respondeu foi embora com a mochila arrastando no chão, a cabeça baixa, e o corpo oscilando entre febre e vazio.
Em casa, trancou a porta do quarto, deitou na cama sem tirar o tênis, e chorou até dormir o celular vibrava, mas ela não olhava as notificações se acumulavam: do grupo do time, de mensagens não lidas, da vida passando lá fora enquanto ela apodrecia por dentro.
No espelho, ela já não se reconhecia pela primeira vez, teve medo de verdade: não de perder Dani. Mas de perder a si mesma.
As semanas seguintes transformaram o ginásio num campo de guerra.
Cris seguia treinando como se a dor fosse combustível já não tossia mais, mas parecia com febre todos os dias, olhos vermelhos e corpo lento, mas insistente e tinha perdido peso os braços pareciam mais finos, o rosto mais seco. E mesmo assim, era a primeira a chegar, a última a sair.
Mas o que mais doía não era o corpo, era o fato que a Dani ignorava sua existência.
Treinar juntas se tornaram insuportáveis e quando caíam no mesmo time durante os coletivos, o jogo travava e nada fluía, os passes vinham atrasados, os cortes malfeitos, os olhares trocados com rancor e ironia.
As outras sentiam o clima tentavam disfarçar, mas era impossível ignorar.
— Vocês tão sabotando o time inteiro — Júlia falou uma vez, na lateral da quadra. — Vão resolver isso ou saiam as duas.
Cris respondeu com um olhar gelado e Dani se afastou sem dizer nada.
Mas o pior era quando jogavam uma contra a outra.
Aí sim, o treino virava batalha.
Era disputa em cada bola, cotoveladas disfarçadas de trombada, carrinhos mais fortes que o necessário, chutes que iam direto na perna ao invés da bola era como se o jogo virasse desculpa pra dizer tudo que não conseguiam com palavras.
O Júnior tentou intervir.
— Vocês duas têm que lembrar que isso aqui é time se querem se matar, façam fora da quadra. Aqui, a prioridade é o jogo!
Mas nada mudava.
Cris queria provar que era melhor e Dani, que não precisava dela e a quadra virava um cenário velado de guerra entre as duas.
Em um treino especialmente tenso, Dani roubou uma bola de Cris e marcou um belíssimo gol, cavando a finalização na goleira e na comemoração, olhou direto para ela e sorriu de lado, provocando.
Cris atravessou a quadra como um raio na jogada seguinte, deu um carrinho seco, direto nas canelas da Dani.
O ginásio parou.
Dani caiu no chão com um grito se levantou rápido, furiosa.
— Tá louca?! — ela gritou.
— Joga direito, então — Cris rebateu, ofegante, com os olhos ardendo.
— Você não sabe mais nem o que é isso. Tá jogando contra todo mundo!
— E você tá se escondendo atrás de um namorado só pra fingir que não sente nada por mim!
As palavras ecoaram fortes e cruéis.
As meninas ficaram em silêncio e o treinador interrompeu o treino de novo e mandou as duas saírem da quadra.
Elas foram sem dizer mais nada.
No vestiário, Cris socou a parede chorando de raiva, de cansaço, de frustração as mãos tremiam o seu corpo doía inteiro.
Do lado de fora, ouviu Dani chorando baixo, sentada sozinha na arquibancada.
Mas não foi até ela não dessa vez.
Ela estava cansada de correr atrás de alguém que só a empurrava de volta pro abismo.
Cris sabia que estava afundando mas, por algum motivo, continuava cavando com as próprias mãos.
Na manhã seguinte, Cris apareceu no ginásio mais cedo do que de costume tinha passado a noite em claro, com febre, o corpo inteiro doendo o termômetro marcava 39,7 ºC, mas ela ignorou encheu a garrafa de água e colocou duas camadas de camisa para esconder os tremores.
O treino era físico, corrida, resistência, circuito e o treinador queria “gás”, e ela, desesperada, viu nisso a chance de provar para ela mesma que estava bem. A Dani quase não olhava pra ela nem mesmo na roda de aquecimento.
Durante os primeiros tiros de corrida, Cris já se sentia tonta a visão embaçava nas laterais, mas ela apertava os olhos, fincava o pé no chão e acelerava.
— Vamos, Cris! — Júnior gritava, sem perceber a gravidade.
Ela passava na frente de todo mundo, arfando, o som do próprio coração ecoando nos ouvidos como um tambor.
No circuito com bola, os erros começaram a aparecer chutes fracos, passes tortos, quedas sem motivo as meninas se entreolharam, preocupadas, mas Cris não queria ajuda, queria silêncio queria vencer aquilo.
No último exercício, o corpo simplesmente não respondeu.
Ela tentou girar em cima da bola, como sempre fazia, só que o pé travou e o mundo girou e então, tudo se apagou.
O som da bola batendo na parede sumiu e as vozes ficaram distantes Cris caiu de costas no chão, os olhos abertos, mas sem enxergar.
— Cris?! — Júlia gritou.
Dani foi a primeira a ajoelhar ao lado dela. — Cris! Me ouve, por favor!
O treinador correu, mandou buscar gelo, as meninas cercaram o corpo imóvel no chão.
Cris recobrou a consciência segundos depois, mas não conseguia falar tentava levantar, mas os braços não respondiam o corpo inteiro parecia feito de pedra.
— Fica deitada — Dani disse, com a voz embargada. — Para com isso você vai se matar desse jeito.
Os olhos das duas se encontraram e, naquele momento, havia medo, culpa, raiva… e algo que nenhuma das duas sabia como nomear.
Júnior, visivelmente abalado, mandou suspender o treino e chamou a mãe da Cris, que chegou pouco depois, apavorada.
Antes de ser levada embora, Cris olhou mais uma vez para Dani, que continuava ajoelhada, sem saber se queria abraçá-la ou fugir dali para sempre.
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Cris passou os dois dias seguintes em casa, de repouso obrigatório o médico disse que ela estava com infecção viral e exaustão extrema. “Você precisa parar”, ele avisou. “Ou vai acabar com o corpo e com a cabeça.”
Mas como parar, se era o treino que a fazia seguir em frente?
O grupo do time no celular estava em silêncio e ninguém mandava mensagem. Só Dani, no fim da noite, escreveu:
"Desculpa. Eu não queria que chegasse nesse ponto."
Cris viu a notificação, mas não respondeu.
Fechou os olhos, com a testa suando e o corpo ardendo.
O silêncio do quarto era a única coisa que ainda a abraçava de verdade.
Fim do capítulo
Olá… espero que vocês estejam gostando da estória, tem muita coisa para acontecer, mas gostaria de saber o comentário de vocês, que vocês estão achando ?
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CarolF Em: 01/08/2025 Autora da história
Muito obrigada!