Capitulo 2
Varka
As tochas crepitam nas colunas do salão de pedra. O grande fogo central arde, lançando sombras dançantes sobre os rostos marcados dos filhos de Korgun. O teto, sustentado por vigas antigas, parece segurar o próprio céu com mãos de carvalho e ferro. Ao fundo, tambores ecoam ritmos lentos, graves, como batimentos do coração de Skarn.
Meus irmãos estão todos aqui. E isso, por si só, já é um presságio.
Dravak, de pé, diante do mapa de couro estendido sobre a mesa, não fala. Apenas observa. Suas mãos repousam sobre o cabo de seu machado. As runas entalhadas na lâmina brilham ao reflexo do fogo. Sua presença pesa como pedra. Quando Dravak entra numa sala, o silêncio o precede e o respeito o segue.
(Dravak) — Há sinais demais para serem ignorados. — ele diz por fim, com a voz rouca como pedra arrastada. — As vilas de fronteira... sumiram. Rastros queimados. Nenhum sangue, nenhum corpo. Somem como se engolidas pela noite.
(Jorun) — Ou por covardes de Valmont. — rosna Jorun, cuspindo no chão de pedra. — Sempre tiveram medo da guerra, agora devem estar se matando entre si. Nós devíamos marchar, Dravak! Aproveitar a fraqueza. Invadir antes que ergam mais muralhas.
(Varka) — Você fala de guerra como se ela fosse caçada. – rebato, apoiando-me em uma pilastra de basalto. — Mas mesmo o lobo mais faminto não corre para a armadilha com alegria. Algo se mexe no noroeste, e não é só o medo dos camponeses.
(Kael) — Você também acredita nisso, irmã? — pergunta Kael, sua voz baixa, fria. Ele está recostado no fundo da sala, meio as sombras, os olhos fixos em mim.
(Varka) — O desconhecido me incomoda mais do que mil soldados marchando contra nós.
Kael se aproxima. Em sua mão há um pedaço de pergaminho amassado, sujo de barro seco. Desenhos grosseiros, marcas de vilarejos que já não existem. Um círculo riscado com pressa no noroeste, onde nem estrada chega.
(Kael) — Ouvi coisas em Valmont. — diz ele. — Crianças desaparecidas. Homens voltando mudos das montanhas. Isso antes mesmo do frio descer. Eles negam, é claro. Falam em pragas, em superstições. Mas suas patrulhas dobraram. Eles temem o que não compreendem.
(Jorun) — Eles temem tudo. — retruca Jorun com desdém. — Por isso escondem-se atrás de tratados. Por isso nos chamam de bárbaros.
(Ragan) — Somos bárbaros. — diz Ragan com um sorriso torto, mas há dúvida em seus olhos jovens. — Mas não somos cegos. Nem surdos. Eu vi os pássaros fugindo das Montanhas. Vi um os vilarejos queimados até o chão.
Todos olham para ele. Mesmo Dravak ergue os olhos. Ragan raramente fala de maneira séria, é o caçula, o de riso fácil. Mas suas palavras agora gelam mais que o inverno lá fora.
(Ragan) — Não é um inimigo como Valmont, eles, nós conhecemos, sabemos suas forças e fraquezas. Já o que vem do noroeste é um mistério…
(Jorun) — Então, o que fazemos? — pergunta Jorun, impaciente. — Ficamos aqui como velhas tecendo lendas? Ou vamos arrancar a verdade dos ossos de quem sobrou no noroeste?
(Dravak) — Agir sem pensar é morrer cedo. — diz Dravak.
Kael aproxima-se do fogo e joga o mapa sobre ele. As chamas devoram o couro lentamente.
(Ragan) — E o pai? – pergunta Ragan. –Ele acredita?
(Varka) — O pai escuta, mas não teme. — digo. — Talvez não tema o suficiente.
Dravak ergue o machado e crava-o com força na mesa. As brasas tremulam. O som reverbera pelo salão como trovão.
(Dravak) — Faremos nossas próprias patrulhas. — decide. — Sem bandeiras. Sem estandartes. Vamos às vilas fantasmas. Ver com nossos próprios olhos. Ouvir com os ouvidos dos que sabem escutar.
Kael assente. Ragan sorri, nervoso. Jorun se afasta, já apertando os punhos. Eu apenas encaro o fogo. Sinto que a guerra que se aproxima não é feita de homens. É feita de ausências. De silêncios. E quando ela vier, será como um sussurro no escuro.
Não para lutar, mas para consumir.
Partimos antes do sol nascer, sob o frio cortante que desce das encostas como lâmina de gelo. A neve ainda não cobria o solo, mas a terra já rangia dura sob as botas. Eu, Dravak e Kael. Três sombras entre tantas que Skarn já produziu. Cavalgando rumo a noroeste dia e noite. Nenhum escudeiro, nenhuma bandeira. Apenas aço, peles e silêncio.
O norte de Skarn é desolado, não por abandono, mas por respeito. Essas terras nunca foram feitas para o conforto. São de quem sobrevive, não de quem manda. Cada povoado distante que passamos mostrava sinais do medo que crescia. Portas trancadas antes mesmo do anoitecer. Fogueiras apagadas, olhares desconfiados pelas fendas nas janelas.
Quando enfim chegamos à primeira vila destruída, chamada Torgund, o silêncio era completo. Não como o silêncio natural das florestas, mas um silêncio forçado, violento, como se o lugar tivesse sido sufocado. Havia cinzas nos telhados, e o cheiro de fumaça antiga ainda pairava no ar. As casas estavam queimadas com precisão, não incêndios aleatórios, mas destruição metódica. A madeira chamuscada dos umbrais denunciava óleo queimando com intenção. Não havia restos de corpos. Nem gente, nem animais.
(Kael) — Não fugiram... foram levados — disse Kael, agachado junto a uma carroça virada. Apontou para marcas no solo, apagadas pelo tempo, mas ainda visíveis para quem sabe ler o chão. — Passos pesados. Muitos. Botas reforçadas. E não são nossas.
Dravak se abaixou ao lado dele, passando a mão por sobre uma rachadura na pedra do poço.
(Dravak) — Alguém tentou resistir. Aqui teve luta.
Encontrei uma faca caída entre as cinzas, a lâmina partida. Era simples, artesanal, feita para defesa. Nenhum guerreiro de verdade usaria aquilo, era arma de camponês. E havia sangue seco no cabo, misturado à fuligem.
(Varka) — Eles tentaram lutar antes de tudo.
Seguimos para outras vilas próximas, Bravenholt, Udirk, Lasmar. Todas iguais. Queimadas, saqueadas, vazias. E em todas elas, o mesmo padrão, precisão. Queimavam celeiros, mas deixavam os poços intactos. Não destruíam tudo, apenas o suficiente para paralisar. Os poucos vestígios de luta sempre apontavam para resistência doméstica. Não era guerra. Era limpeza. Cirúrgica e fria.
Em Lasmar, Kael encontrou uma pista mais clara, uma flecha cravada num pilar intacto. Não era flecha skarnesa. Era mais leve, menor. Ponta larga, feita para rasgar carne, não atravessar armadura. Típica das tribos mercenárias que circulam entre Valmont e as colinas sem dono ao oeste.
Dravak rangeu os dentes. Vi a mandíbula endurecer. Não pela raiva. Mas por algo pior: dúvida. E isso em Dravak era raro.
Mais tarde, no alto do desfiladeiro de Orgrun, encontramos os sinais mais recentes, uma fogueira ainda morna, pegadas descendo rumo ao oeste, marcas de arrasto, peso de carroças ou prisioneiros. Pedaços de tecido rasgados num galho. Sangue seco na neve. E uma pulseira de ferro, com inscrições em idioma de Valmont, usada para marcar escravos.
(Varka) — Não são ataques sem rosto. — murmurei. — São caçadores.
(Dravak) — Caçadores de gente. — completou Dravak, a voz rouca. — Pagos por alguém. Para limpar as bordas do reino. Para enfraquecer Skarn sem precisar de guerra aberta.
Kael permaneceu imóvel, observando o horizonte. Depois apontou para o oeste, além dos campos mortos.
(Kael) — Eles estão organizando algo. Talvez um novo poder. Ou uma aliança que nasce nas sombras de Valmont. Mas não é Valmont. Não diretamente. Isso é sujo demais até para eles.
(Varka) — Ou talvez nem saibam. — disse, engolindo seco. — Talvez estejam sendo usados tanto quanto nós.
A noite caiu e acampamos ali mesmo, sem fogo, cobertos com as peles e o silêncio. Os olhos atentos, os ouvidos nas árvores. Não pelos uivos de lobos, mas pelos passos que se arrastam na escuridão. Não há monstros do além. Não há maldições antigas.
Há homens. Homens pagos para destruir.
E isso, mais do que qualquer demônio, é o que realmente deve nos assustar.
Voltamos ao cair da noite, depois de dez dias de viagem, cansados, mas certos de que não poderíamos nos dar ao luxo de descanso. O frio cortava a pele como lâminas finas, mas já não era apenas o inverno precoce que nos preocupava. Tínhamos visto demais. Sabíamos demais.
Kael foi à frente, como sempre fazia, calado e atento. Dravak cavalgava ao meu lado, a mandíbula cerrada e os olhos cheios de raiva contida. Eu sentia o peso das palavras que levaríamos ao salão de pedra, onde nosso pai nos esperava.
Assim que cruzamos os portões da cidadela, fomos direto até ele. Korgun estava reunido com dois dos capitães mais antigos, discutindo os estoques de suprimentos. Quando nos viu, dispensou os homens com um aceno. Sentamos ao redor da grande mesa de carvalho, onde os mapas repousavam sob pedras para não voarem com o vento gelado que atravessava as frestas da muralha.
(Korgun) — Falem — disse ele, direto. A voz era firme, mas havia tensão nos olhos.
(Dravak) — Três vilarejos ao norte não existem mais — começou Dravak, e sua voz soava como pedra quebrando dentro do salão. — Queimados. Não saqueados, não ocupados. Reduzidos a cinzas.
O silêncio que se seguiu foi espesso, carregado de fumaça invisível.
Kael desenrolou um pedaço de pano chamuscado sobre a mesa. Era parte de uma faixa de criança, manchada de fuligem e sangue seco. Korgun olhou para o tecido, mas não o tocou.
(Varka) — Encontramos pegadas — continuei, a garganta seca. — Homens. Muitos. Usam botas pesadas, semelhantes às nossas, mas mais largas, reforçadas de metal nos calcanhares. Marcham em fileiras, cobrem as pegadas com neve ou terra, mas não o suficiente. Encontramos sulcos de rodas grandes, carruagens ou máquinas de carga. E marcas de açoite em árvores.
Kael assentiu.
(Kael) — E nenhuma bandeira. Nenhum estandarte hasteado. Eles escondem a origem. Mas são disciplinados. Sabem o que fazem.
Korgun permaneceu em silêncio por um longo tempo. Seus dedos tamborilavam lentamente na madeira da mesa. Era um som quase imperceptível, mas nós, seus filhos, reconhecíamos como o prenúncio de decisões severas.
(Korgun) — São mercenários? — perguntou, por fim.
(Varka) — Não sabemos. — respondi, firme. — Mas são soldados. Treinados, organizados. Comandados por alguém que conhece táticas de cerco e invasão. Eles não estão pilhando... estão preparando terreno.
Dravak então jogou sobre a mesa algo mais pesado: um elmo negro, deformado nas laterais, mas ainda inteiro. Tinha inscrições nas bordas, antigas, não do nosso povo. Mas as runas não mentiam, aquilo vinha de além das terras dos dois reinos.
(Kael) — Alguém está unindo homens do noroeste — disse Kael. — E armando-os com equipamentos melhores que os nossos batedores.
(Varka) — Ouvimos rumores nos campos próximos a Sorlin — acrescentei. — Camponeses falam de homens que oferecem moedas em troca de silêncio, ou ameaças para que deixem suas casas. Alguns desaparecem durante a noite.
(Korgun) — E ninguém reage? — perguntou o rei, com a voz tensa.
(Dravak) — Não sabem a quem recorrer. Alguns acham que são soldados de Valmont disfarçados. Outros juram que são desertores que formaram um exército rebelde nas sombras. Mas todos estão com medo.
Korgun se ergueu. O crepitar da lareira parecia mais distante quando ele falou:
(Korgun) — O medo é o primeiro passo da submissão. Se permitirmos que o medo avance, entregamos nossa terra sem luta.
Ele olhou para cada um de nós, como se pesasse o valor de nossas palavras e também nossas espadas.
(Korgun) — A partir desta noite, o número de guardas será dobrado nas fronteiras do norte e do oeste. As patrulhas serão constantes, e quero que cada comandante jure pela sua espada que não há fraqueza entre os nossos.
(Kael) — E os mensageiros? — perguntou Kael.
(Korgun) — Serão enviados para todos os clãs sob meu estandarte. Vamos convocar os juramentados. Mesmo aqueles que tentam evitar a capital no inverno. Se essa ameaça vier marchando contra nós, não nos encontrará de joelhos.
Dravak sorriu, sombrio.
(Dravak) — Finalmente uma guerra digna.
Mas eu não sorri. Porque não era apenas uma guerra. Era algo mais lento, mais paciente. Uma força que se escondia nos cantos gelados do mundo, esperando que nos distraíssemos com disputas menores.
(Varka) — E Valmont? — perguntei, sabendo que pisava em solo frágil. — Se eles acharem que somos nós por trás disso...
Korgun, nosso pai, assentiu, sem alterar o tom.
(Korgun) — Mandaremos um corvo. Apenas um. Diremos o que vimos. Que escolham se querem ignorar. Mas nossa fronteira será fortificada. E se alguém ousar atravessá-la sem estandarte... não voltará para contar.
A noite seguiu longa. Nenhum de nós dormiu.
A guerra não havia começado oficialmente. Mas nós a sentimos no ar.
Como o cheiro da madeira antes de arder.
O corvo retornou três dias depois, com as penas arrepiadas do frio e um pequeno cilindro de couro amarrado às patas. Eu mesma o retirei e entreguei ao nosso pai, no salão de pedra. A lareira ardia, mas o calor ali nunca parecia suficiente para derreter o gelo que se formava entre os reinos. Korgun leu a mensagem uma vez, depois outra, e sua expressão endureceu como o granito das montanhas.
(Korgun) — "Besteiras", ele diz… — murmurou, os dedos apertando o pergaminho como se fosse a garganta do próprio rei Aldren. — "Boatos", "medo de sombra", "guerreiros vendo fantasmas no meio da neve".
Ele atirou a carta contra a mesa, onde ela repousou entre os mapas e os elmos riscados. Dravak a pegou e leu rapidamente. Seus olhos se estreitaram.
(Dravak) — Ele duvida de nós.
(Kael) — Sempre duvidou — disse Kael, com a voz baixa. — Valmont nunca acreditou que nossos olhos enxergam mais longe que os deles.
Nosso pai se afastou da mesa e caminhou até as janelas estreitas da muralha. Do lado de fora, a nevasca começava a engrossar, soprando em redemoinhos que cobriam os campos e apagavam pegadas. Era assim que nossos inimigos marchavam: escondidos pelo tempo, pelas dúvidas, pela descrença. E agora, pelas palavras de um rei que preferia manter a ordem aparente a encarar a verdade dura.
(Korgun) — Ele quer uma reunião oficial — resmungou nosso pai. — Quer que marchemos até Valmont, sentemos em círculo e conversemos como velhos mercadores no mercado. Enquanto isso, os nossos morrem queimados e arrastados nas bordas do mundo.
(Dravak) — Mas se recusarmos — disse Dravak, sério. — pareceremos nós os mentirosos. Ou os provocadores.
(Kael) — Ele armaria as muralhas e prepararia os arcos — disse Kael. — E chamaria isso de precaução.
Korgun se virou, os olhos brilhando com a chama refletida do fogo, mas a alma acesa por outra coisa, orgulho, raiva e algo mais profundo, o medo de estar certo e ainda assim impotente.
(Korgun) — Maldito seja Aldren e sua diplomacia de fachada — rosnou. — Mas... ele não está errado. Não agora. Se rompermos a frágil ponte entre nossos reinos com gritos e aço antes da hora, seremos esmagados por um inimigo que ainda não se revelou por completo.
Então, ele se calou por um instante, olhando para nós três como se avaliasse espadas em uma mesa antes de escolher a que usaria para um duelo importante.
Seus olhos se voltaram para mim.
(Korgun) — Varka — disse, com a firmeza de uma sentença. — Você irá.
Dravak abriu a boca, mas se conteve. Kael apenas abaixou os olhos, resignado. Eu assenti, mesmo com o estômago revirando.
(Varka) — Sim, meu rei.
(Korgun) — Levará poucos homens, mas capazes. Irá como filha, mas também como mensageira e sentinela. Falará em meu nome. Contará o que vimos, mas também ouvirá. Quero saber o que os olhos de Aldren evitam. E os olhos dos filhos dele também.
(Varka) — Se Aldren duvidar de mim como duvidou do senhor? — perguntei.
(Korgun) — Então faça-o ver. Com firmeza, mas sem insulto. Valmont precisa de tempo para entender que as sombras não se curvam à lógica dos nobres.
Korgun se aproximou, me encarou nos olhos e pôs a mão sobre meu ombro. Pela primeira vez naquela noite, sua raiva cedeu um pouco, e o que vi ali foi cansaço. Mas também confiança.
(Korgun) — Confio mais em sua palavra do que em qualquer juramento de aliança. Mantenha a paz, mas leve consigo a força de Skarn. Se eles nos tratarem como tolos... então que ao menos saibam que nossos tolos carregam espadas.
Na manhã seguinte, partimos antes do sol subir. A neve rangia sob os cascos dos cavalos, e a névoa encobria os rostos como véus de luto.
Eu não levava bandeira de guerra, mas cada batida do meu coração era um aviso, o gelo está rachando.
E o que vier de dentro dele, nenhum reino estará pronto para enfrentar sozinho.
Maeryn
O corvo chegou em uma manhã de céu encoberto, com as asas pesadas de gelo e os olhos escuros como carvão molhado. Desceu sobre a torre mais alta do palácio, como se tivesse atravessado mundos para estar ali, trazendo um sopro gelado das montanhas do norte.
Eu estava nos jardins internos, observando os servos retirarem as folhas secas do outono tardio. Quando fui chamada à presença de meu pai, o Rei Aldren, já sabia que era algo do reino de Skarn. Não havia outro lugar de onde pudesse vir um corvo tão soturno.
A mensagem era curta, marcada pela mão firme de Korgun, o lobo do norte, como muitos aqui o chamavam. Contava sobre ataques em vilarejos distantes, homens desconhecidos marchando sob o silêncio da neve, rastros de violência sem bandeiras ou glória. Palavras como "ameaça real", "noroeste", "organização militar" estavam sublinhadas.
Meu pai leu a carta em silêncio. Depois, recostou-se no trono, com a expressão de quem acabara de ouvir uma lenda infantil recitada com muita convicção.
(Aldren) — Paranoias. — Ele disse, com a voz entediada. — Os bárbaros veem sombras em cada árvore seca. Um incêndio, um saque, e já pensam que o fim do mundo marcha contra eles.
(Maeryn) — Mas se estiverem certos? — perguntei. — E se o inimigo for real?
Já tínhamos ouvido tantos boatos.
(Aldren) — Então que venha até nossas muralhas. Prefiro vê-lo com os olhos antes de chamar isso de verdade.
Ainda assim, ele respondeu à carta com um gesto diplomático, propôs uma reunião entre os reinos. Oficial, sob proteção e protocolos, como manda a paz ainda mantida entre nós.
E então o tempo passou.
As semanas se escoaram devagar, como o mel grosso das colmeias do sul. As neves começaram a alcançar os limites de nossas estradas. Os mercados ficaram mais calados, os olhos nas praças mais atentos. E então, ao alvorecer de um dia sem sol, os portões de Valmont se abriram para receber o grupo vindo de Skarn.
Estavam envoltos em mantos pesados, peles de lobo cinzento e couro escuro, os rostos marcados pelo vento das montanhas. Eram poucos, mas a presença deles parecia encher a praça como se tivessem chegado com um exército.
No centro do grupo vinha ela — Varka.
Eu a reconheci assim que desmontou. Postura ereta, olhos duros, pele como pedra exposta ao vento. Não era uma cortesã com palavras doces, nem uma dama criada para sorrir entre tapeçarias. Era filha de Korgun. E era evidente. Ouvimos falar tanto deles.
Vi o modo como os guardas hesitaram diante dela. Não por medo, ainda não, mas por desconforto. Como se a presença dela os obrigasse a recordar que o mundo lá fora é maior e mais frio do que os salões dourados de Valmont costumam lembrar.
Fui encarregada de recebê-los, ao lado do chanceler, como ordenou meu pai. Quando me aproximei, Varka tirou o capuz com um movimento breve. Seu olhar encontrou o meu com firmeza, mas sem desafio. Havia ali algo silencioso, algo de pedra bruta, mas que sabia ouvir o vento antes de falar.
(Varka) — Princesa Maeryn. — Sua voz era mais grave do que imaginei, mas não rude.
(Maeryn) — Varka de Skarn. — Respondi, e por um instante, esqueci o protocolo. Esqueci o sorriso educado. Apenas a observei. E entendi, com um desconforto súbito, que aquela mulher não estava ali apenas para falar de rumores.
Ela carregava em si o peso do norte.
Dois mundos se encontravam ali, sob o frio crescente de um inverno antecipado.
Um nascido entre tapeçarias e jantares cerimoniais.
Outro forjado na muralha contra a morte.
E eu, ali no meio, sentia o gelo subindo pelas raízes do meu reino.
Talvez não fossem apenas rumores.
Talvez as sombras do norte tivessem começado a se mover.
E talvez fosse com ela, Varka, que teríamos que aprender a escutar antes que fosse tarde.
Conduzi Varka e seus homens através dos corredores de pedra do palácio, onde o calor das lareiras parecia insuficiente diante do frio que entrara conosco. Era como se Skarn tivesse trazido consigo seu próprio inverno, silencioso e denso. Os passos deles ecoavam de forma diferente. Não havia pressa, nem hesitação, apenas o peso constante de quem está sempre em terreno hostil.
Eu a observava sem disfarce. Varka não era como as mulheres de Valmont, nem mesmo como as guerreiras de nossa guarda pessoal. Ela andava como alguém que nunca duvidou da própria força. A cabeça erguida, os ombros firmes, os olhos sempre atentos. Não era arrogância, era sobrevivência.
No salão de recepção, aguardavam conselheiros e oficiais, além de meu pai, e meus irmãos. Sentado no trono menor, aquele que usava para tratar assuntos diplomáticos. Ele vestia um manto carmesim, bordado com o emblema da águia dourada, o símbolo de Valmont. Diante de si, mantinha as mãos cruzadas sobre o cetro, como se esse gesto bastasse para lembrar a todos de sua autoridade.
Varka entrou, sozinha, com os homens esperando do lado de fora. Caminhou até o centro do salão e se ajoelhou com uma precisão que parecia mais ritual do que submissão. Meu pai apenas assentiu, dispensando formalidades.
(Aldren) — Levante-se, filha de Korgun — disse ele. — Estamos aqui como reinos em paz.
Ela se ergueu, e seus olhos, ao encontrarem os dele, não recuaram um milímetro.
(Varka) — Trago palavras do norte — disse, com voz firme. — E o aviso de que a paz que conhecemos pode estar sob ameaça.
(Aldren) — Sim, os rumores. — Meu pai se recostou. — Vilarejos queimados, homens sem estandartes, marcas de rodas e pegadas no gelo... Ouvimos tudo isso. Mas rumores são sombras, e governar exige luz.
Varka não respondeu de imediato. Ela retirou de dentro do manto um mapa, marcado com linhas escuras e pequenos pontos vermelhos. Entregou a um dos conselheiros, que levou até o rei.
(Varka) — Estes são os locais que visitamos — ela explicou. — Três vilarejos destruídos. Nenhum sinal de sobreviventes. Os corpos não estavam lá. Nem ossos, nem sangue. Tudo levado ou queimado. Como se apagassem traços.
Meu pai examinou o mapa. Franziu o cenho.
(Aldren) — E acredita que isso seja obra de um exército oculto?
(Varka) — Acredito que alguém está se preparando para uma guerra. Não somos tolos, rei Aldren. Sabemos a diferença entre bandidos e soldados. Entre saqueadores e estratégia.
Houve silêncio. O tipo de silêncio que carrega tensão e orgulho em partes iguais.
Eu observava tudo com o coração dividido. Parte de mim queria apoiar meu pai, defender Valmont contra o que ele via como exagero e paranoia. Mas a outra parte, a que escutava cada palavra de Varka com atenção crescente, começava a reconhecer algo mais profundo, a convicção.
Ela não tentava convencer, nem seduzir, nem manipular. Apenas dizia a verdade como a vira.
(Aldren) — E o que esperam de nós? — perguntou meu pai.
(Varka) — Que preparem suas fronteiras — respondeu Varka. — Que vigiem o oeste com olhos novos. E que reconheçam que não podem fazer isso sozinhos. Se Skarn cair, o próximo serão vocês.
Meu pai manteve o semblante fechado.
(Aldren) — Alianças baseadas no medo costumam ruir com facilidade.
(Varka) — Então que seja baseada em sobrevivência — rebateu ela, com firmeza. — Ou na lembrança de que não somos inimigos.
Houve um leve murmúrio entre os conselheiros, mas meu pai ergueu a mão e silenciou todos.
Depois de um instante, ele se levantou.
(Aldren) — Ficará conosco por uns dias, Varka de Skarn. Como hóspede. Não como embaixadora. Ainda não.
Ela assentiu, sem protestar.
(Varka) — Como desejar.
A reunião terminou, mas o assunto não. As palavras dela ficaram em mim como espinhos sob a pele.
Naquela noite, fui até os jardins. O céu estava claro, por fim, e as estrelas pareciam mais próximas do que nunca. Senti o frio no rosto, mas não fugi dele. Valmont estava aquecida por tapeçarias e palavras bonitas, mas o mundo lá fora era outro. E ele estava vindo.
Ao longe, vi a silhueta de Varka à beira da muralha, sozinha, observando o horizonte. Fui até ela sem saber exatamente por quê. Talvez porque algo nela me inquietava. Ou porque, mesmo sem dizer, ela parecia carregar algo que também me pertencia,
a dúvida de que o que herdamos seja suficiente para o que está por vir.
Ela não se virou quando me aproximei. Estava imóvel, braços cruzados sobre a pedra fria, o olhar perdido além da muralha, como se enxergasse algo que os olhos de Valmont ainda não conseguiam captar. A noite estava silenciosa, mas viva, o vento soprava pelas ameias como um sussurro antigo, trazendo cheiros de neve, fumaça distante e talvez medo.
(Maeryn) — Estão vindo do noroeste. São seus vizinhos. — eu disse, quando parei ao lado dela.
Varka não se virou. Apenas ajeitou o capuz mais firme sobre a cabeça, como se o frio pudesse distrair o que ela via. Ou o que tentava entender. O vento ali em cima da muralha vinha de longe e gelava os ossos, mas ela parecia não sentir.
(Varka) — Eu sei — respondeu, por fim. A voz dela não tinha surpresa, nem raiva. Só uma dureza que me incomodava, como se já tivesse aceitado algo que o resto de nós ainda recusava. — Mas ninguém faz nada.
(Maeryn) — Fazem o mínimo — corrigi, sem esconder a ironia. — Mandam vigias, dizem que vão reforçar os postos avançados. Mas só dizem. Só olham. Esperam.
(Varka) — Esperam o quê? — ela se virou então, com os olhos semicerrados. — Um mapa feito com sangue? Esperam que o inimigo bata à porta com bandeira hasteada? Não vai acontecer assim. Eles não anunciam nada. Só apagam.
Ela falou “apagam” como quem fala de incêndios ou de doenças. Eu entendi. Ela fala do que restou de alguns vilarejos, não saqueados, mas simplesmente... sumidos. Restos carbonizados, marcas profundas no solo, mas nenhuma explicação.
(Maeryn) — Me disseram que os moradores fugiram. Que ouviram rumores e foram embora antes que acontecesse o pior — comentei, sabendo que soava vazio.
(Varka) — Fugiram? E deixaram tudo pra trás? Ferros ainda no fogo? Pratos sobre as mesas? Aquilo não é medo. É morte.
Havia algo na maneira como ela disse aquilo que me deixou desconfortável. Não era exagero. Não era drama. Era constatação. E isso era pior.
(Maeryn) — Valmont ainda discute se é ameaça real — eu disse, com esforço. — Há conselheiros dizendo que são grupos rebeldes, talvez desertores. Outros acham que Skarn está por trás, movendo peças enquanto finge ignorância.
(Varka) — E em Skarn dizem que Valmont está fingindo ser vítima — ela retrucou de imediato. — Que essas vilas eram refúgio de traidores, e que a destruição é consequência de algo que começou com vocês.
(Maeryn) — Então é isso? — perguntei, sem esconder o azedo na boca. — Vamos nos acusar enquanto a sombra cresce? Jogar culpa, apontar dedos, enquanto os mortos somem e os vivos não falam?
Varka respirou fundo. Finalmente afastou-se da muralha e caminhou até onde as tochas iluminavam um pouco mais. Ali, com a luz tremulando sobre seu rosto, percebi que ela estava cansada. Não do corpo. Da espera.
(Varka) — Eu não vim aqui pra convencer ninguém — ela disse, sem me olhar. — Vim pra ver com meus próprios olhos. E vi. E já sei que quando a coisa começar de verdade, vai ser no escuro, com gritos, e ninguém virá em nosso socorro. Nem Skarn. Nem Valmont. Seremos nós. Os que estiverem aqui.
Ela me olhou então. De frente, com aquele olhar que parecia atravessar carne e política.
(Varka) — E você? Acha que seu pai vai agir a tempo?
Engoli em seco. Eu queria dizer que sim. Queria repetir as palavras que ouvira nas salas douradas do castelo, os planos contidos, os relatórios sendo lidos, as promessas de reforços. Mas naquele momento, ali ao lado dela, tudo isso soava frágil. Inútil.
(Maeryn) — Eu acho que ele quer acreditar que o trono protege mais do que protege de fato — respondi. — E talvez eu também.
O silêncio que se seguiu não foi confortável. Mas foi necessário.
(Varka)— Se for assim — disse Varka, num tom mais baixo —, então prepare-se. Porque o trono não sangra, mas vocês sim.
Ela virou-se e começou a descer da muralha, passos firmes na pedra gasta.
Fiquei ali por um tempo, vendo seu vulto desaparecer na curva da escada, com a certeza de que algo se movia lá fora, algo que não esperaria pelos nossos debates, pelos nossos títulos, nem pelas nossas juras de paz.
E quando viesse, como ela dissera, não viria com avisos. Viria no escuro.
Permaneci ali, debruçada na beirada da muralha, com o vento frio batendo no meu rosto, remoendo cada palavra daquela pequena conversa, relembrando dos seus seus traços rudes e fortes.
Varka tem a beleza austera das montanhas do norte, áspera à primeira vista, mas impossível de ignorar. Alta e de postura ereta, caminha como quem não precisa pedir espaço, ela o ocupa naturalmente. Os ombros largos denunciam anos de treino com armas pesadas, e os braços são marcados por cicatrizes finas, antigas, memórias de combates que ela não faz questão de esconder.
Sua pele é clara, constantemente exposta ao vento e ao frio, o que lhe dá um tom quase pálido, endurecido pelo tempo. O cabelo, negro como a noite sem lua, é preso despretensiosamente, sem adornos, só uma fita escura amarrada.
Mas são os olhos que mais impressionam, azuis cinzentos, frios, como aço temperado. Não há doçura neles, nem charme. Há julgamento. Há vigilância. Quando ela olha, parece pesar quem você é e o que carrega por dentro. E se você fraquejar, ela verá.
A boca é firme, o maxilar tenso, como quem está sempre se contendo, sempre à beira de dizer algo que decide guardar. Poucos sorrisos, nenhum riso. Vestida de tons escuros, couro reforçado e peles, mistura utilidade com uma estranha forma de elegância crua. Sem joias, sem vaidades.
Os dias que se seguiram foram longos, pesados, como se o próprio tempo hesitasse em seguir. O castelo de Valmont, que sempre pulsava com uma espécie de orgulho silencioso, esse orgulho de quem nunca foi tomado, nunca se curvou, agora parecia contido, vigiando a si mesmo. A brisa que vinha do sul já não trazia cheiro de flores nem o calor das feiras nas vilas vizinhas. Trazia poeira, silêncio e rumores. E tudo que era rumor, cedo ou tarde, virava veneno.
Varka permaneceu em Valmont mais tempo do que eu esperava. Não se hospedou entre os nobres nem buscou o conforto das câmaras que lhe foram oferecidas. Pediu um quarto simples no andar mais baixo da ala norte, frio, úmido e discreto. Eu a via pouco durante o dia, mas sempre a encontrava ao entardecer, na muralha ou nas estrebarias, conversando com os batedores, observando mapas, cruzando informações com os soldados que ela trouxe consigo e até mesmo, os nossos soldados. Era como se ela não confiasse em ninguém... e talvez não confiasse mesmo. Ainda assim, sua presença ali era um lembrete constante da urgência que muitos fingiam não ver.
Meu pai, seguia escutando seus conselheiros. Os mesmos homens que usavam palavras como “precaução” e “prudência” para esconder o medo da decisão. O salão do conselho tornara-se o campo de batalhas das palavras. Lá dentro, tudo era voz alta, dedos sobre mapas, relatórios de patrulhas destruídas, comparações com antigas revoltas, especulações sobre Skarn. E ainda assim, nada era feito com peso. Como se agir fosse abrir uma porta sem saber o que há atrás dela e todos ali preferissem não arriscar.
(Alric) — Valmont não provocará guerra sem prova concreta da agressão — disse meu irmão mais velho, herdeiro do trono, em uma das reuniões. — Há demasiado em jogo. Um passo em falso, e Skarn terá o pretexto que sempre quis.
(Maeryn) — E se Skarn não estiver por trás disso? — questionei. — E se estivermos olhando para o lado errado enquanto os verdadeiros inimigos se organizam nas nossas sombras?
(Mareus) — Isso seria conveniente demais para eles, não? — retrucou o velho Mareus, conselheiro de meu pai desde antes de eu nascer. — Um inimigo invisível, que ataca e desaparece? Um terror que justifique marchas militares e fechamento de fronteiras? Isso tem cheiro de manipulação. De invenção.
Olhei para meu pai. Ele ouvia tudo em silêncio, como sempre, com os dedos tamborilando levemente no braço do trono. Mas naquele dia havia algo em seu olhar... cansaço, talvez. Ou dúvida.
(Varka) — Majestade — disse Varka, pela primeira vez naquela sala, depois de dias em silêncio — com todo o respeito que vosso nome exige, o inimigo é real. Eu vi. Meus irmãos viram. Os confins do reino não estão apenas sendo testados. Estão sendo varridos. O que nos atinge primeiro são as pontas, os frágeis, os esquecidos. Mas logo, será o coração. E corações, quando tomados, não voltam.
A sala silenciou. Ela tinha ouvido todas as acusações ao seu povo em silêncio e quando falou, não foi para discutir. As palavras dela tinham o peso de quem veio de um lugar onde a guerra é parte da carne. E mesmo que muitos ali desdenhassem de Skarn, poucos ousavam encarar aquela mulher como se ela estivesse blefando.
Aldren apenas assentiu lentamente e, sem levantar a voz, declarou:
(Aldren) — Então vamos agir.
Foi decidido naquela noite que os postos avançados seriam reforçados. Batedores enviados ao oeste, com ordens para não apenas vigiar, mas interrogar, seguir rastros, trazer nomes. Dois dos nossos generais mais experientes foram designados para preparar contingências, discretamente, para não alarmar a população.
Não foi uma decisão popular. Muitos temeram que, ao dar voz a uma filha de Skarn, meu pai estivesse se curvando. Mas não era isso. Era outra coisa. Talvez ele, em silêncio, reconhecesse que enquanto os reinos brincavam de manter a paz, o mundo real, aquele de frio, sangue e escuridão, já avançava.
As noites era insones. Eu lia relatórios até os olhos arderem. Trocava mensagens com vigias nos vilarejos. E sonhava com fumaça, com gritos sem rosto e muralhas caindo ao longe. O mais cruel da espera não era a dúvida. Era a certeza de que ela estava prestes a acabar. E de que, quando isso acontecesse, nada do que herdamos bastaria. Seríamos nós. Com nossas escolhas. E com tudo que elas nos custariam.
Fim do capítulo
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