Capitulo 15 - O amigo Cairo
O sol entrava pelas frestas da cortina com um brilho suave, aquecendo o quarto num tom dourado e preguiçoso de domingo. Laura estava deitada entre os lençóis amassados da cama de Júlia — que, sem muita cerimônia, havia se tornado a cama delas nos últimos meses. Ela não sabia exatamente quando parte de suas roupas começou a morar no armário de Júlia, mas lá estavam: algumas gavetas invadidas, escovas de dente duplicadas, e a sensação de casa mesmo longe da casa dos pais.
A porta se abriu com um rangido leve, e Júlia apareceu com uma bandeja de café da manhã nas mãos, equilibrando tudo com aquele cuidado carinhoso que Laura já conhecia bem. A médica podia ser prática no plantão, mas nos bastidores era puro afeto. Bastava uma cirurgia longa ou um dia difícil, e lá vinha ela com bombons, capuccino quente, ou a rosquinha preferida de Laura — sempre no momento certo, como quem ouve o coração da outra sem precisar de palavras.
— Um bom café da manhã pra minha namorada linda — disse Júlia, abrindo um sorriso que iluminava mais que o sol. — Misto quente, suco de laranja, salada de frutas, iogurte, e, claro, um café preto do jeito que você gosta.
Laura sentou devagar na cama, rindo.
— Amor, você está me deixando mal acostumada cuidando de mim assim… — disse, puxando-a para um beijo doce e leve.
Pegou uma uva da salada de frutas e colocou na boca, saboreando o gesto mais que o sabor.
— Está tudo bem com sua mãe? Ela ligou tão cedo… — perguntou, tentando parecer casual.
Júlia deu de ombros, se sentando ao lado dela.
— Cedo pra gente, né? Minha mãe sempre foi das madrugadas. Mas adivinha? Ela vem pra Curitiba no próximo final de semana, vai passar meu aniversário comigo! — Seus olhos se iluminaram. — Fiquei tão feliz. Lá em casa nunca ligavam muito pra isso. Era só um "parabéns" e olhe lá… Dessa vez vai ser diferente. Podemos começar uma tradição familiar, não temos nenhuma. Queria vir de ônibus, mas insisti que venha de avião vou comprar as passagens hoje ainda, imagina 14 horas de viagem de ônibus, de avião apenas 2h30.
Laura sorriu, mas por dentro o coração acelerava — ela já sabia. Ela mesma tinha ligado para a futura sogra dias antes, convidando-a para uma festa surpresa que estava organizando com tanto carinho.
— Que bom, amor. Assim a gente pode jantar todo mundo junto. Vai ser especial — respondeu, disfarçando o nervosismo.
— E sua avó… ela vem? — perguntou Laura, como quem sabia que a resposta era mais delicada do que parecia.
Júlia ficou tensa por um instante. A mão pousada no lençol se fechou levemente.
— Então… minha avó não aceitou muito bem o nosso namoro. Disse que era pecado. Que era uma vergonha pra família. — A voz saiu mais baixa, envergonhada. — Desculpa por isso.
Laura segurou sua mão com firmeza.
— Jú, você não precisa se desculpar por algo que não é sua culpa. — Ela a olhou com ternura. — Cada família lida com um amor como o nosso de um jeito. Alguns entendem, outros condenam. A culpa não é sua. É deles, que escolhem não amar.
Júlia respirou fundo, seus olhos marejados.
— Mas sua família, Laura… eles aceitaram numa boa. Só sua tia Sofia que me olha atravessado… mas acho que é mais por eu não ter grana do que por ser mulher.
Laura riu baixo.
— Ah, a tia Sofia… Essa tem problema com qualquer um que respire perto do patrimônio da família. — Fez uma pausa. — Mas olha… minha família é de boa agora, mas já teve tragédia também.
Júlia virou o rosto, curiosa.
— Tradição com trauma? Conta.
Laura olhou para o teto, como quem voltava no tempo.
— Minha avó tem uma irmã, a tia Olga. Elas quase não se falam mais. Tudo por causa do tio Otávio, irmão gêmeo da minha avó. Ele era lindo, elegante, jogava polo, chegou até a representar o Brasil numa Olimpíada.
— Nossa… e?
— E ele era gay. Se apaixonou por um peão da fazenda quando era jovem. Viveram esse amor escondido até meu bisavô descobrir. — A voz de Laura ficou mais lenta, carregada. — Meu bisavô deu muito dinheiro pro rapaz desaparecer. Dizem que ele foi pros Estados Unidos com a ajuda dele. Já o tio Otávio... levou uma surra. Foi obrigado a prometer que “mudaria” e aceitar um casamento arranjado com uma moça da sociedade.
Júlia apertou a mão da namorada.
— Não…
— Uma semana antes do casamento, ele se enforcou num estábulo. Foi a tia Olga quem o encontrou. Ela queria justiça. Quis denunciar o pai colocá-lo na cadeia, o responsabilizando pela morte do irmão. Mas minha avó interferiu a favor do pai, implorou que ela não fizesse isso, mexeu os pauzinhos dela e não deixou que ela conduzisse um processo por cima do meu Bisavô. A família não podia passar por mais esse trauma e nem “manchar o nome”, dizia ela. Então a tia Olga foi embora. Pra Alemanha. E nunca mais voltou.
O quarto ficou em silêncio por um momento. As duas respiravam fundo, sentindo o peso da história e das escolhas passadas.
— Talvez seja por isso que minha avó tenta tanto me apoiar — concluiu Laura, com voz embargada. — Talvez ela veja em mim uma chance de fazer diferente.
Júlia passou os dedos pelos cabelos de Laura, depois a puxou para um abraço.
— E você… está quebrando esse ciclo. Está criando outra história. A nossa história.
Laura sorriu, com os olhos marejados.
— Com café da manhã na cama e tudo.
— E com amor. Muito amor.
— E sobre o Eduardo? Você já pensou em falar com ele? — perguntou Júlia com cautela, os olhos fixos nos de Laura.
Laura suspirou, o olhar perdido por um instante.
— Tenho pensado nisso desde que a gente conversou… Eu quero, de verdade. Mas ainda me falta coragem. Não por medo de chorar ou fraquejar… mas por medo de quebrar a cara dele.
Fez uma pausa longa, como quem luta para manter a voz firme.
— Sabe, Jú… A traição da Natália me destruiu porque eu era apaixonada por ela. Foi uma dor que me engoliu inteira. Mas a do Eduardo… — sua voz falhou um pouco — foi como uma faca afiada entrando devagar. Ele era meu primo, meu amigo de infância. Era família, entende? A pessoa que cresceu comigo, que sabia dos meus medos, dos meus sonhos, das minhas quedas. E ele… ele simplesmente me traiu. Como se eu não fosse nada.
Laura engoliu em seco, os olhos úmidos agora.
— Às vezes eu sinto como se a Natália tivesse me traído no corpo… mas o Eduardo me traiu na alma. E isso é mais difícil de perdoar.
Júlia se aproximou, pegando a mão de Laura com firmeza, mas com ternura.
— Você não precisa fazer isso sozinha. Quando chegar o momento, se quiser, eu vou com você. Ou fico do lado de fora esperando. Mas você não vai mais enfrentar nenhuma dor sozinha. Nunca mais.
Elas se abraçaram, em silêncio, apenas ouvindo o som das batidas do coração da outra. Ali, entre traumas antigos e um futuro que germinava, estavam tecendo juntas o que ninguém poderia destruir: um lar.
A semana de Júlia havia começado dentro da normalidade: cirurgias, consultas, namoro, irmãos para cuidar... Até que, na terça-feira, seu telefone tocou com um número privado. Na primeira vez, ela ignorou. Mas a chamada insistiu. Bufando, ela atendeu, pronta para esbravejar com algum funcionário de telemarketing que ousava interromper seu dia com uma promoção qualquer.
— Alô? Com quem você quer falar?
Do outro lado, uma voz respondeu com leveza e um sorriso perceptível até pelo tom:
— Imaginei que, com o tempo e estudo, você se tornaria uma pessoa mais sociável.
Júlia franziu o cenho, desconfiada.
— Quem está falando?
— Dra. Ana Júlia Carvalho... não me diga que esqueceu a minha voz.
Nesse instante, sua mente foi arremessada de volta à adolescência, aos corredores do colégio, às risadas abafadas atrás das árvores...
— Cairo...? Cairo Brandão?
— Esse mesmo, minha amiga Jú. Que bom ouvir sua voz.
— Nossa! Que surpresa! A quanto tempo meu amigo?
— Estou em Curitiba, por alguns dias. Será que podemos nos ver?
— Claro que sim! Vamos marcar. Estou no trabalho agora, saio às 17h. Que tal um happy hour? Anota aí o endereço.
Júlia passou o nome de um bar próximo ao hospital, aconchegante e discreto, onde poderiam colocar a conversa em dia.
O bar tinha uma atmosfera leve, com luzes âmbar suavizando o ambiente e uma trilha sonora discreta que misturava jazz e MPB. Júlia chegou primeiro, sentou-se em uma mesa no canto, próxima à janela. Estava cansada, mas curiosamente animada. Um reencontro daqueles era algo raro.
Cinco minutos depois, Cairo entrou. Estava mais maduro, mas os mesmos olhos risonhos de sempre. Usava jeans escuros e uma camisa azul dobrada nos cotovelos. O cabelo, agora bem cortado, a barba bem feita, o deixava ainda mais charmoso.
— Jú! — disse ele com os braços abertos e um sorriso que parecia abraçá-la antes mesmo do toque.
Ela se levantou e o envolveu num abraço apertado, daqueles que misturam o tempo perdido com tudo que ainda existe de carinho.
— Meu Deus, quanto tempo! — disse ela, os olhos brilhando.
— Mas você está maravilhosa… mais mulher. Médica, elegante, imponente, porém um semblante mais leve, seus olhos estão sorrindo… — ele a olhou de cima a baixo e sorriu de canto.
— E você está ótimo. Engraçado, achei que ia me emocionar menos — ela riu, tentando disfarçar o nó na garganta.
Sentaram-se e começaram a conversar como se tivessem se visto na semana passada. Falaram do colégio, da vida, da dor de perder contato e do conforto em reencontrar alguém que conhece nossas versões antigas.
Cairo olhou para Júlia com ternura genuína.
— Você foi um dos nomes que nunca saiu da minha memória, Jú. Quando pensei em vir pra cá, pensei em te procurar, mas achei que você estivesse inacessível demais.
— Eu? Imagina… — disse ela, tocando o rosto, um tanto sem jeito. — Mas confesso que ver você me fez um bem danado.
— Encontrei sua avó esses dias. Na feira agropecuária da nossa cidade. Conversamos um pouco, ela parecia bem... mas comentou que você está solteira. Achei curioso.
Júlia engoliu o gole de chope com calma, depois sorriu de canto, um pouco surpresa.
— É… minha avó está com um certa dificuldade de aceitar minha nova vida... — Fez uma pausa e continuou com ternura e firmeza: — Na verdade, estou namorando. E muito apaixonada por uma pessoa maravilhosa.
Os olhos de Cairo arregalaram levemente, um pouco de espanto misturado a decepção e ciúmes, e sincera curiosidade. Perguntou tentando não transparecer isso em sua voz.
— Sério? Que bacana. E quem é o sortudo?
Júlia soltou um riso contido.
— Acho que não precisamos nos escondermos na altura de nossas vidas. É a sortuda, no caso. O nome dela é Laura. Cirurgiã como eu. Inteligente, intensa, às vezes meio teimosa, mas… ela me ganhou. Nunca fui tão eu mesma com alguém.
Cairo forçou um sorriso, abaixando o olhar para a mesa.
— Jura? Que legal, Jú. De verdade. Fico feliz por você. Ainda mais vindo de você, que sempre foi intensa no que sente.
— Eu só demorei pra entender algumas coisas sobre mim. Mas agora, com ela, faz sentido.
Ele assentiu, mas por dentro um sentimento novo surgia, uma cobiça, um desejo de competir e ganhar.
O garçom chegou com o segundo chope. Eles brindaram.
— Ao reencontro — disse Cairo.
— E à liberdade de sermos quem somos, sem esconder nada — completou Júlia, sem saber que aquelas palavras ecoaram ao coração de Cairo com outros significados.
Júlia chegou em casa com um brilho a mais no rosto — um pouco pelo chope, outro tanto pela alegria de reencontrar Cairo, o velho amigo. Tomou um banho quente, prendeu o cabelo de qualquer jeito e ligou para Laura, ainda enrolada na toalha.
— Boa noite, namorada… — disse com a voz suave e sorridente.
Do outro lado da linha, Laura respondeu com uma risadinha curta e uma pontinha de ironia:
— Vejo que a doutora está bem animadinha hoje. Imagino que tenha se divertido…
— Amor, acredita que reencontrei um grande amigo da adolescência? Já te falei dele… o Cairo.
— O Cairo? — a voz de Laura oscilou, entre surpresa e desconfiança. — Aquele que te ajudou quando passou no vestibular?
— Esse mesmo! — Júlia riu. — Ele me ligou mais cedo dizendo que estava em Curitiba por uns dias. Saímos para um happy hour… fazia tanto tempo que a gente não falava, nem se via…
— E ele veio pra cá só pra te ver? — Laura perguntou, tentando soar casual.
— Claro que não, amor — disse Júlia, divertida. — Ele tá de férias, fazendo turismo por aqui. Mas sim, quis me ver também. Convidei ele pra jantar amanhã, achei que seria legal... você vem?
Houve uma breve pausa do outro lado. Laura suspirou baixo, depois respondeu:
— Claro que vou. E... você contou a ele sobre nós?
— Claro que contei. — A voz de Júlia saiu levemente pastosa, num tom doce e arrastado, típico de quem bebeu um pouco além do suco de laranja. — E ele vai te adorar, tenho certeza.
— Veremos — respondeu Laura, entre a curiosidade e o cuidado.
Júlia sorriu olhando o teto, já deitada.
— Amor… te amo, tá?
Do outro lado, Laura demorou meio segundo, mas sorriu também.
— Também te amo, doutora animadinha. Boa noite.
E a ligação terminou, deixando no ar a leve tensão que ronda encontros inesperados… mesmo quando o amor está ali, firme — ou justamente por isso.
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A mesa estava posta com capricho: lasanha ao forno, salada de folhas verdes, pão italiano e um vinho tinto suave. Guilherme ajudava na cozinha, Larissa ajeitava os pratos, e Júlia dava risada de algo que Cairo contava na sala, já com a taça de vinho na mão. Laura chegou por último, e quando abriu a porta, o barulho da conversa morreu por um instante.
Ela estava linda, mas não apenas isso. Laura trajava sua armadura invisível — um vestido preto simples, cabelos presos em um coque baixo, maquiagem impecável e a velha capa de sarcasmo e elegância afiada, que só aparecia quando precisava proteger o que era dela. E naquela noite, o que era dela se chamava Ana Júlia Carvalho.
— Boa noite — disse Laura, sorrindo sutilmente enquanto os olhos passeavam pela sala até encontrarem os de Cairo.
— Laura, que bom que veio! — disse Júlia, cruzando a sala para recebê-la com um beijo leve na boca. — Vem, o Cairo já tá aqui. Lembra que te falei dele?
— Como esquecer? — respondeu Laura, apertando a mão de Cairo com um sorriso contido. — O famoso amigo da adolescência.
— Cairo Brandão — ele disse, com um leve charme, mantendo o aperto firme. — Encantado em te conhecer.
— Ah, eu também — disse Laura, com uma expressão de quem lia o inimigo como um livro aberto.
Larissa e Guilherme chegaram à sala já sentindo o clima no ar. Os dois trocaram olhares como quem assiste a uma partida de xadrez com as peças prestes a se mover de forma hostil.
— Vamos jantar — disse Júlia, com a inocência de um cãozinho no meio de dois gatos de rua.
— E então, Cairo — começou Laura, servindo-se da salada — Julia me disse que você mora e trabalha em São Paulo?
— Sim. Delegado Federal… Mas estou revendo, minhas escolhas Curitiba é uma cidade que me surpreendeu. Tem algo especial aqui — respondeu, olhando diretamente para Júlia, que sorriu sem perceber o subtexto.
— Jura? — Laura sorriu. — Acho curioso como certas pessoas têm essa tendência de se encantar repentinamente com cidades... ou com suas habitantes.
Guilherme tossiu e escondeu o riso atrás do copo de vinho. Larissa encheu a taça até a borda, prevendo que ia precisar.
— Júlia sempre teve esse dom — disse Cairo, fingindo ignorar a provocação. — Quando a conheci, ela usava um tênis vermelho e o uniforme do colégio. Era a pessoa mais cativante da escola.
— Ah, sim — disse Laura, inclinando-se para a frente. — E agora ela troca o tênis por tamancos de médica e continua cativando gente por aí — e lançou um olhar direto a Cairo, ainda com um sorriso doce.
Larissa cochichou no ouvido de Guilherme:
— Laura ativou o modo “ironia elegante nível avançado”.
Guilherme respondeu baixinho:
— E Cairo respondeu com “flertes nostálgicos passivo-agressivos”. Isso vai dar samba.
Júlia, alheia à troca silenciosa de farpas, falava animada sobre alguma coisa que ninguém estava ouvindo. A irmã a olhou com um misto de ternura e incredulidade.
— Meu Deus, como ela é inocente… — murmurou Larissa, balançando a cabeça.
— Ela tá no meio da guerra fria e acha que é noite de queijos e vinhos — respondeu Guilherme.
Enquanto isso, Cairo cortava a lasanha com um pouco mais de força que o necessário.
— Então, Laura… trabalha no hospital de sua família? É bom quando não precisamos ralar por uma vaga, né? — perguntou, num tom educado demais.
— Vejo que fez a lição de casa, Cairo? Sim o hospital é da minha família, porém ninguém está lá por favoritismo, é um hospital que busca excelência, só para constar sou uma cirurgiã pediátrica de excelência internacional. Cuido da minha namorada com o mesmo zelo que cuido dos meus pacientes.
— Que dedicação admirável — respondeu ele, seco.
— Pois é, quem ama, cuida — Laura rebateu, com um leve arquear de sobrancelha.
Um silêncio tenso pairou por segundos. Júlia, então, quebrou o clima sem nem perceber.
— Vocês sabiam que o Cairo já ganhou uma medalha de natação?
— Jura? — Laura fingiu entusiasmo.
— Sempre admirei quem nada bem… Foi ele quem me ensinou a nadar… No clube público da nossa cidade.
Guilherme e Larissa não conseguiram mais segurar o riso. Júlia olhou para eles, confusa:
— O que foi?
— Nada, Ju. É que essa lasanha da Larissa tá tão perfeita que emociona — disse Guilherme, disfarçando.
O jantar continuou, e embora os pratos fossem esvaziando, as entrelinhas se enchiam de farpas, suspiros e disfarces.
No fim da noite, quando Cairo foi embora, cumprimentou Laura com um beijo leve no rosto, mas o olhar dizia o contrário.
— Foi um prazer, Laura.
— O prazer foi todo seu — respondeu ela, firme.
Com a porta fechada, Júlia virou-se para a família com um sorriso.
— E aí, foi divertido, né?
Larissa a abraçou e sussurrou:
— Jú, você é um raio de sol… e eles dois são trovões tentando te proteger. Mas cuidado, às vezes o trovão cai bem perto.
Júlia apenas riu e foi buscar sobremesa, sem perceber que a noite havia sido, acima de tudo, uma batalha silenciosa pelo território do coração dela.
Júlia empurrou a porta do quarto com o quadril, carregando duas taças de vinho e um pote com o que restou do tiramisù. Estava com o rosto corado, entre o vinho e a empolgação do reencontro com o velho amigo. Laura já estava sentada na beira da cama, descalça, com os cabelos soltos e o vestido trocado por uma camiseta larga da própria Júlia.
— Toma — disse Júlia, entregando a taça. — Não acredito que o Cairo veio mesmo. E você viu como ele fala? Igualzinho na adolescência! Um tagarela.
Laura sorriu, aceitando a taça, mas sem responder de imediato. Apenas observou a namorada sentar-se ao seu lado, rindo sozinha enquanto pegava uma colher do tiramisù.
— Você tá feliz, né? — perguntou Laura, com a voz baixa, quase serena.
— Tô. Ele foi um dos meus únicos amigos de verdade no colégio. A gente se entendia sem esforço, sabe?
— Eu percebi — disse Laura, pegando um gole de vinho. O silêncio se arrastou por um segundo a mais do que o confortável. — E ele sempre olhou pra você daquele jeito?
Júlia arregalou os olhos, surpresa.
— Que jeito?
Laura virou-se, encarando-a com um sorriso sutil, porém afiado:
— Aquele jeito de “eu lembro do que você foi e ainda quero descobrir o que você é”. Um olhar... territorial. Disfarçado de nostalgia.
— Ah, Laura... — Júlia riu, sacudindo a cabeça. — Você tá vendo coisa.
— Não, amor, eu vi. E os seus irmãos viram também. Larissa quase narrou a cena com voz de documentário da BBC. “O macho alfa circunda a fêmea distraída...” — disse ela, imitando o tom de um narrador britânico.
Júlia caiu na gargalhada, inclinando-se contra o ombro de Laura.
— Você é impossível.
— Eu sou observadora. E um pouco ciumenta, talvez — admitiu, beijando a testa de Júlia. — Mas é porque eu te amo.
— Agora seja sincera comigo… — Laura murmurou, a voz quase se perdendo na penumbra do quarto — você nunca olhou pro Cairo com outros olhos? Algo além da amizade?
Júlia se calou. Por um instante, apenas observou o rosto da namorada, tão próximo e ao mesmo tempo distante, tomado por uma insegurança que ela conhecia bem. Poderia desviar, poderia rir, fazer uma piada. Mas preferiu a verdade.
— Em um tempo longínquo, eu sonhava com um príncipe encantado que me salvasse dos pesadelos da adolescência… — começou, com a voz baixa, mas firme. — Mas essa fase passou. Não sou mais aquela garotinha que esperava pelo primeiro beijo com as mãos suadas e o coração disparado. Hoje, sou uma mulher. Uma mulher decidida, que descobriu que o beijo mágico pode vir de uma princesa — loira, de olhos azuis, teimosa e brava. — Ela sorriu e passou o dedo pela bochecha da outra. — Também te amo, minha ciumentinha.
Laura suspirou, mas não se desarmou.
— É… mas ele ainda te vê como uma princesa que precisa ser salva. Ele te olha assim. Com aquela cara de cavaleiro em missão — disse, tentando soar casual, mas a mágoa escorria por entre as palavras.
Júlia sentou na cama e a encarou com doçura, porém com firmeza.
— Laura… você e meus irmãos estão vendo coisas onde não tem. O Cairo sempre foi assim: protetor, gentil. Ele é desse jeito com todo mundo, mas comigo… foi mais. Ele e a família dele me estenderam a mão quando eu não tinha ninguém. Sem eles, eu não teria feito medicina. Não estaria aqui hoje, com você. — Respirou fundo. — Eles fazem parte da minha história, mas você é o meu presente. E o meu futuro, se quiser.
As palavras ficaram ali, suspensas entre as duas por um momento que pareceu maior do que era.
Júlia então se inclinou e pousou um beijo suave na boca de Laura, como quem sela uma promessa silenciosa.
— Amanhã tenho uma daquelas cirurgias longas logo cedo — murmurou, já puxando Laura pela cintura para junto de si. Encaixou o corpo no dela com familiaridade, como quem encontrava abrigo.
Logo adormeceu, tranquila.
Sem perceber que, ao seu lado, repousava uma loira silenciosa — o olhar perdido no teto, o coração inquieto — e nada satisfeita com a sombra que insistia em pairar sobre o nome de Cairo.
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Laura estava deitada na espreguiçadeira da varanda, os olhos perdidos no horizonte, o corpo ali, mas o pensamento longe — talvez a quilômetros dali, em algum bar de Curitiba. Fabrício se aproximou em silêncio, sentou-se ao seu lado e, com um sorriso leve, disse:
— Um beijo pelos seus pensamentos.
— Vai precisar de mais de um… — respondeu ela, forçando um sorriso.
— Te achei meio calada durante o jantar. E onde está a sua morena encantadora? Não quis encarar os Beckers hoje?
Laura suspirou, apoiando a cabeça no encosto.
— Ela saiu com um amigo que está visitando a cidade… e a família dela.
— E não te convidou? — ele arqueou uma sobrancelha, já desconfiado.
— Sim, ela convidou. Mas eu preferi não ir. Achei melhor dar um espaço, sabe? — Hum. — Fabrício cruzou os braços, observando a irmã com carinho. — Mas essa curvinha na sua testa me diz que não está muito confortável com esse “espaço”.
Laura hesitou. Quase recuou. Mas estava cansada de guardar tudo para si. Precisava dizer em voz alta aquilo que martelava seu peito.
— Sabe o que é, Fá? Eu confio na Júlia, de verdade. Ela nunca me deu motivo pra desconfiar… mas esse cara, Cairo, tem história com ela. E uma história de gratidão, de apoio, de família. Eu não sei... — ela desviou o olhar, apertando o copo com as duas mãos. — Acho que ainda carrego umas feridas mal cicatrizadas. A traição da Natália me destruiu… foi como uma punhalada.
Fabrício assentiu em silêncio, respeitando o peso da lembrança.
— Eu entendo, Laurinha. E você tem todo o direito de sentir isso. Ninguém sai ileso dessas coisas. Mas deixa eu te dizer uma coisa — ele inclinou-se um pouco mais para frente, como se fosse dividir um segredo — espaço é bom, mas só até certo ponto. Tem uma linha entre respeitar o outro e se afastar demais a ponto de abrir brechas.
— Você acha que eu deveria ter ido com ela?
— Eu acho que, se isso te incomoda, deveria ter falado. Ou ido, mesmo desconfortável. Mostrar que você está presente. A Júlia pode ser centrada, madura, mas ela é humana. E se você se afasta demais, ela pode começar a duvidar do que sente — ou do que você sente.
Laura ficou em silêncio, absorvendo cada palavra como um remédio amargo, mas necessário.
— Eu tenho medo de parecer insegura. De parecer possessiva.
— Sabe o que é pior do que parecer insegura? Se arrepender de ter ficado calada quando poderia ter se feito presente. Amor também se cuida com atitude, Laurinha. Vai por mim.
Ela olhou para o irmão mais velho com olhos marejados e sorriu, um sorriso mais verdadeiro dessa vez.
— Obrigada, Fá. Você é meu chão.
— E você é minha dor de cabeça preferida. — Ele se levantou e estendeu a mão. — Agora vamos tomar alguma coisa decente, porque esse suco aí está com gosto de lágrima.
Ela riu, limpando os olhos com as costas da mão, e o seguiu para dentro. Ainda com medo, ainda insegura, mas com o coração um pouco mais firme.
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Enquanto isso, em uma pizzaria movimentada de Curitiba, Júlia, os irmãos e Cairo compartilhavam risadas e fatias generosas de pizza. O clima era leve, quase nostálgico, como se por um breve momento todos estivessem de volta à adolescência.
— Então, Jú! Vamos sair pra dançar? — sugeriu Guilherme, empolgado.
— Preciso ver se a Laura quer ir. Sem ela, não rola, né? Comer uma pizza com os irmãos e um amigo querido até vai… mas curtir a noite dançando? Isso tem que ser com ela.
Cairo, que até então mantinha o sorriso discreto, ergueu uma sobrancelha e soltou com acidez:
— Então a destemida Ana Júlia, aquela que não se dobrava pra ninguém, agora precisa de permissão da namorada pra dançar?
O comentário ricocheteou na mesa, tenso. Júlia respirou fundo, mantendo a calma.
— Não é permissão, é respeito. É sobre não dar margem pro erro. Mas vocês vão lá, se divirtam com os amigos e levem o Cairo — afinal, ele tá de férias e solteiro. Eu não. Só, por favor, não entrem em carro com gente bêbada dirigindo. Se precisar, me liga que eu busco vocês.
— E aí, Cairo? Bora com a gente? — perguntou Larissa, animada.
— Vou passar dessa vez. Andei muito hoje, tô meio cansado — respondeu ele, apoiando o copo de chope na mesa, sem olhar diretamente para ninguém.
Pouco depois, os irmãos se despediram e saíram rumo a uma boate no centro. Júlia e Cairo permaneceram para mais um chope. O clima, no entanto, já havia mudado. O riso leve dera lugar a um silêncio desconfortável.
Mais tarde, Júlia estacionou o carro em frente ao hotel onde o amigo estava hospedado. Quando ela desligou o motor, Cairo virou-se para ela, com os olhos baixos e a voz rouca:
— Quer subir? Uma última bebida... só a gente. Como nos velhos tempos.
— Não mesmo — respondeu ela, tirando as mãos do volante. — Acho que já bebemos o suficiente por hoje. Amanhã acordo cedo, minha mãe chega no primeiro voo. Você conhece a fera… nada de atrasos.
— Então é sério? — ele perguntou, virando-se de vez para encará-la. — Esse negócio com a Laura?
— É muito sério. Vou me casar com ela.
Cairo soltou uma risada seca, amarga.
— Você é hilária mesmo, Júlia. Com quantos caras você ficou antes de decidir que era... sapatão?
Júlia arregalou os olhos, incrédula.
— Vou fingir que você não me fez essa pergunta. É melhor você descer. O álcool tá subindo e você tá passando do limite.
Mas ele não se mexeu. O olhar antes amigável agora carregava um brilho inquietante.
— Acha mesmo que eu vim até Curitiba só pra comer pizza e relembrar a adolescência medíocre? Dois desengonçados que ninguém convidava pra nada? Não, Júlia... eu vim por você. Eu sempre fui apaixonado por você. Sempre. E agora você vem com essa história de virar sapatão? Isso é fase. Sai dessa. Olha pra mim!
De repente, Cairo avançou, tentando agarrá-la pelo rosto e forçar um beijo.
— Que isso, cara?! Ficou maluco?! — Júlia o empurrou com força, o coração disparado. — Sai do carro agora! Você enlouqueceu!
Mas ele insistiu, com um olhar ofuscado de obsessão:
— Olha pra mim, Júlia. Eu sou homem de verdade agora. Se você me deixar, te faço mulher. Uma vez só, e você nunca mais vai querer outra mulher...
— Sai do carro, Cairo! Ou eu vou gritar! — Ela já apertava a buzina, o som estridente ecoando na calçada.
Do outro lado da rua, o segurança do hotel olhou atento para o carro. Vendo-se exposto, Cairo finalmente saiu, batendo a porta com violência.
— Não precisa fazer escândalo. Só queria conversar…
— Você passou de todos os limites! — gritou Júlia, acelerando o carro antes mesmo que ele se afastasse. As mãos tremiam no volante.
O coração martelava no peito enquanto ela dirigia pela madrugada fria de Curitiba. Lágrimas de raiva se acumulavam nos olhos. A verdade era dolorosa:
Laura tinha razão. E ela… mais uma vez… tinha sido inocente demais.
Fim do capítulo
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