--NÃO, MEU DEUS, MEU DEUS, NÃOOOOOOO!!!!!!!! – Nazira berrava ensandecida – AH!!!!!!

 

--Mas minha Nossa Senhora, o que é isso, criatura? – Malika se apresentou na porta do quarto da outra – Quer me matar do coração, é? – cruzou os braços

 

--O terço, dona Malika, o terço! – rodava no quarto como barata tonta – Ele sumiu, sumiu, AH!!!!!!! – berrou mais uma vez – MEU DEUS, MEU DEUS!!!

 

--Deixe de escândalo, mulher! – ralhou de cara feia – Eu fiquei sozinha aqui o tempo inteiro enquanto você foi comprar ração, o terço não pode ter sumido! – gesticulou – Arrume essa bagunça que você fez no seu quarto que ele aparece! – reparava nas atitudes da outra – É capaz de encontrar o terço e até um padre perdido aí!

 

--Mas eu deixei ele bem aqui, bem aqui! – mexia nervosamente nas coisas sobre a cama

 

--Nazira, é só um terço! Por que esse desespero todo, hein? – perguntou desconfiada

 

--Por quê?? – não sabia o que dizer – Ora, porque... – pensava no que falar – Como eu vou continuar minha novena sem ele?

 

--Não seja por isso! Te empresto o meu e você continua com essa novena que eu nem sabia que andava fazendo. – testava a outra

 

--Ah, dona Malika... – continua procurando desesperadamente – Quando se começa uma novena com um terço tem que manter o mesmo terço até o final, né? – não olhava para a idosa – E a fidelidade ao programa de reza, como fica?

 

--Sei... – respondeu descrente – “Ela ficou feito doida por causa do sumiço do terço!” – reparava – “Tudo porque agora não sabe o que vender pra dar dinheiro pra tal da Beth!”

 

***

 

--Aí, a gente tem que ter mais um papo reto, tá ligada? – Stefany entrava no quarto da mãe e surpreendeu-se com o que viu – Mas já vai meter o pé de novo? – concluiu – “Que merd*!” – pensou chateada

 

--Boa noite pra você também, filha! Tudo bem? – respondeu irônica – E eu não meto o pé, querida, eu faço viagens de serviço! – continuava arrumando suas coisas – Tô indo pra Brasília pra participar das discussões sobre o PL que trata da regulação da inteligência artificial. – justificou-se – Fico lá por uma semana e depois vou pro Chile fechar negócios.

 

--Ah, mãe, fala sério que cê entrou nessa de comprar político? – observava a mulher

 

--Que é isso?! – perguntou ofendida ao olhar para a filha – Eu vou trabalhar pra influenciar no Projeto de Lei, sem essa de tentar comprar ninguém! – voltou a arrumar suas coisas – Não sou corrupta, Stefany! E nos negócios é assim mesmo: no mundo inteiro as empresas trabalham pra influenciar os legisladores!

 

--Tá. – respondeu simplesmente -- Mas e aí? E a real que eu te mandei sobre a Fernanda, como fica? – cobrou – Cê ao menos pensou?

 

Concluiu a arrumação da bagagem. – Claro que pensei no que você me pediu. E pensei muito, até demais! – aproximou-se da filha e parou diante dela – No começo fiquei com medo, porque ir no presídio ver aquela moça poderia reacender o escândalo em torno do caso e não dá pra tolerar mais isso! Duvido que a própria Fernanda quisesse passar por tal exposição novamente. – olhava para a jovem – Mas acaba que seu pedido pode casar direitinho com uma iniciativa que eu já vinha pensando e até me deu inspiração. – cruzou os braços e sorriu – A BoFe vai patrocinar cursos gratuitos pra pessoas de baixa renda aumentarem a empregabilidade no mundo da IA e de repente... Fernanda poderia fazer parte disso. -- falava conforme orientação do marido – Ao final de um curso que ela venha a fazer, pode entrar na empresa. – percebeu a alegria de Stefany ao ouvir aquilo – Que acha?

 

--Irado, mãe, irado! – respondeu empolgada – E quando ela começa essas parada aí?

 

“Agora ela realmente se importa com aquela moça. Não cansa de me surpreender!” – pensou – Calma, filha, uma coisa de cada vez! – gesticulou suavemente – Primeiro eu tenho que estruturar o programa e enquanto isso, vejo com doutor Borges como podemos fazer pra reduzir o tempo da pena dela. – segurou Stefany pelos ombros – Assim que eu conseguir aprovar o projeto junto aos investidores acionistas a gente marca de ir no presídio. Mas enquanto isso, convém esperar, por favor. – advertiu – E sem tocar nesse assunto por aí!

 

--Mas esperar por quê? – não entendia – Qual é a do lance, que eu não saquei?

 

--Esperar porque se alguém da imprensa descobrir que fomos lá antes da aprovação do programa vai ser um escândalo desnecessário! – tentava convencê-la – E se a gente for depois da aprovação, qualquer tentativa de fofocas ou enxames eu posso cortar jogando a notícia do programa em cima! – olhava nos olhos – E aliás, eu vou querer sua participação pra fazer a ideia do projeto bombar diante da sociedade, viu? – pediu

 

Pensou uns instantes antes de responder. – Tá, eu vou na tua. Podes crer! – concordou – Mas fala logo com o advogado pra gritar partiu e ver essas parada pra ontem! – pediu

 

“Deu certo!” – pensou vitoriosa – Sendo sincera eu já havia tocado no assunto com o Borges. Vou retomar assim que voltar de viagem. – garantiu – Enquanto isso ele vai estudando o caso. – sorriu mais uma vez – Apesar de um certo vídeo que rolou por aí, com a senhora fazendo baixaria na rua com um pessoal, -- percebeu que a filha ficou sem graça com a menção – seu comportamento em relação a tudo isso tem me dado orgulho. – segurou o rosto dela com as duas mãos – E como eu disse, me inspirou! – beijou-lhe a testa – Agora deixa eu pegar o notebook porque daqui a pouco tenho uma reunião com uns empresários de Cingapura! – desvencilhou-se dela – No meu retorno de viagem conversamos novamente. Até mais! – despediu-se e saiu do quarto levando a pasta de trabalho

 

Stefany ficou toda prosa com o que ouviu da mãe. “Vou contar tudo pra minha gidda!” – pensou sorridente

 

***

 

Adma estava com Zaida e Wanderleya em um pequeno shopping próximo a sua residência. Buscavam uma nova roupa de banho para a idosa.

 

--E esse aqui, o que a senhora achou? – a cuidadora mostrava um modelo

 

--AHHa, Wanderleya, que é isso? – protestou -- Nem quando eu era jovem e bonito andava com o afa (bunda) de fora, imagina! – descartou a hipótese – Quero maiô pro meu ginástica no piscina, não é pro sedução!

 

As mulheres acharam graça. – É isso aí, dona Adma! – Zaida mostrou um modelo mais comportado – E esse? Vem até com uma sainha embutida! – reparou

 

--Ih! Me lembrou um maiô que eu usei por vinte anos enquanto nadava pelo Botafogo! – Wanderleya comentou de pronto – Eu era conhecida como a peixa do saiote!

 

--Você, nadadora! – Adma resmungou descrente -- Eu prova esse. -- concordou – Mas antes de provar quer ver biquini também! – decidiu – Aí prova tudo junto!

 

--Hum, de biquini, como estamos! – Zaida beijou a testa da paciente – Tô gostando de ver! – sorria – Não demora muito vamos estrear esse biquini na praia!

 

--Muito bom, dona Adma! Vamos pesquisar biquini agora! – Wanderleya comentou empolgada – Partiu fio dental! – embrenhou-se na loja em busca de peças

 

--Nada de fio dental, seu louca! – advertiu – Não me venha com roupa de pirigueto!

 

Zaida achou graça do comentário. “Tô adorando ver como dona Adma tá renascendo pra vida!” – pensou satisfeita

 

Após uns minutos de busca, a idosa gostou de um modelo e decidiu provar.

 

--Vamos lá provar essas roupinhas! – Zaida empurrava a cadeira de rodas da idosa em direção ao provador – Wanderleya, segura aqui que eu levo ela pra dentro da cabine! – pediu

 

--Você não! – fez sinal negativo com a cabeça – Wanderleya entra comigo no cabine e você fica do lado de fora! – decidiu

 

--Tem certeza, dona Adma? – perguntou reparando na cabine – Tudo aqui nessa zona sul é apertado e eu sou meio espaçosa, né? – sorriu sem graça – Há vinte anos atrás eu tinha corpo de miss, mas hoje tô um pouquinho volumosa!

 

--Deixe de conversa e vamos pro cabine! – gesticulou – Zaida fica aí fora! – ordenou

 

Enquanto acompanhava a movimentação das duas mulheres para entrar na cabine, Zaida pensou desconfiada: “Ultimamente dona Adma tem evitado que eu a veja sem roupa!” – constatava – “É em casa, no tratamento na piscina e agora até aqui na loja... por que será?” – não entendia – “Eu tenho feito alguma coisa errada?” – perguntou-se – “Ou tem o dedo daquela filha dela nisso aí?” – cruzou os braços – “Tenho que dar um jeito de introduzir o assunto com ela pra entender o que tá acontecendo...”

 

***

 

Vivinácia estava reunida com a mãe de santo que dirigia um dos mais badalados terreiros do Rio. Buscava a oportunidade de trabalhar naquele local.

 

--Ora, ora, madame Vivi! – a mulher falava em tom meio jocoso – Preciso que entenda exatamente onde está! – cruzou as pernas – Esse lugar é conhecido como o Terreiro dos Poderosos! – exibiu-se – Recebo aqui a nata da sociedade carioca, como políticos, artistas, socialites e celebridades em geral. Vem gente até de outros estados do Brasil! – pausou brevemente – Clientela selecionada a dedo, meu bem! Aqui não tem espaço pra pobre; só se for pra trabalhar! Aí eu posso até dar uma ajudinha no campo espiritual em troca. – olhava para a outra – Conheço semanalmente dezenas de pessoas que, como a senhora, chegam me dizendo que fazem e acontecem, mas nada que me impressione! – balançou a cabeça – Por que então eu abriria minhas portas pra uma... como é isso? Cigana caipira de quem nunca ouvi falar? – desafiou

 

--Eu não sou como essas pessoas sem eira nem beira que vêm lhe pedindo um lugar pra trabalhar porque não têm onde, uai! –  a caipira respondeu com firmeza – Até bem pouco tempo eu tinha minha sala em Copacabana, e muito da bem frequentada, diga-se de passagem! – exibiu-se também – Em poucos meses atendendo lá, fiz dinheiro suficiente pra comprar um belo apartamento na Rainha Guilhermina, bem perto da praia. – mentiu para impressionar – Se quiser, um dia lhe convido prum cafezinho, não sabe? – debruçou-se sobre a mesa – Mas manter um espaço sozinha dá trabalho por demais da conta e não quero mais isso! – olhava nos olhos da mulher – Por isso pensei em atender aqui. Esse terreiro sim, é um trem bem do meu nível!

 

--Um trem do seu nível? – riu brevemente – Isso aqui não é Uber nem Ifood, querida! Não é uma plataforma que vai intermediar o acesso entre você e uma clientela rica e poderosa! – retrucou de cara feia -- Até agora a senhora não me disse nada que me fizesse concordar com seu pedido!

 

De repente, um conhecido homem sombrio se materializou ao lado da mãe de santo. Do outro lado, um homem de meia idade, nitidamente embriagado. Os dois ladeavam a mulher sem que ela tivesse noção disso.

 

--Sua ideia de buscar um terreiro famoso foi excelente! – o homem lhe falou dentro da mente– Mas fui eu que lhe inspirei a vir até aqui! – olhava para a caipira – Se aceitar minha ajuda a partir de agora, ela vai lhe dizer sim! – garantiu – Do contrário, vai ouvir ainda uma série de “não” por aí e amargar muita falta de grana!

 

--E então, madame? – a mãe de santo insistiu

 

“Eu vou aceitar!” – decidiu – “Se quero progredir na vida, preciso de ajuda porque sozinha já vi que não dá!” – pensou – Tudo bem! – respondeu para o homem – Eu aceito!

 

--Aceita? – a mulher não entendeu – Mas eu não lhe ofereci nada!

 

--Não estava falando com a senhora, minha mãe! – respondeu em tom jocoso também – Mas com os cavalheiros que estão parados um de cada lado da sua cadeira. – percebeu que a mulher ficou desconfiada – E um deles, seu padrasto Ramiro, mandou dizer que enquanto não garantir as pingas que ele gosta, vai continuar sentindo aquelas dores de cabeça desagradáveis. – sorriu – Aliás, está sentindo agora?

 

--Ah! – ficou desconcertada – Quem é você, afinal? – ajeitou-se na cadeira – Muita gente conheceu meu padrasto e sabe que ele morreu de cirrose! – tentava se recompor

 

--Também mando um recadinho da Luzia, sua antiga ajudante que morreu atropelada em 1992. – percebeu que a mulher congelou – Pare de trepar com o filho dela, senão a coisa vai ficar feia pro seu lado!

 

Gastou uns segundos calada antes de responder. – Eu... tenho que falar com algumas pessoas, mas... – estava nervosa – Volte aqui no sábado por volta das três da tarde, por favor. – ajeitou-se na cadeira novamente – Aí te explico direitinho como funciona tudo aqui e você começa!

 

--Obrigada, minha mãe! – agradeceu sorridente – Garanto que não vai se arrepender! – olhou discretamente para o homem sombrio, que lhe cumprimentou com um gesto de cabeça e desapareceu junto com o outro desencarnado

 

***

 

Malika estava em pequeno mercado próximo a sua residência. Havia comprado alguns itens para fazer sopa. Ao se encaminhar para o caixa, uma conhecida a cumprimentou pelo nome e partiu.

 

--Então a senhora é a famosa dona Malika? – a funcionária perguntou enquanto a atendia – Desculpe, mas ouvi aquela outra senhora lhe cumprimentar e esse nome não é nada comum! – sorria – Prazer!

 

--E quem andou lhe falando de mim, moça? – perguntou desconfiada

 

Achou graça e respondeu de pronto: – Foi a Nazira. – registrava os itens no caixa – Aliás, como vai ela? A danadinha anda sumida! – comentou mantendo a simpatia – Toda vez que ela vem aqui sempre diz: olha, o papo tá ótimo, mas deixa eu correr pra dona Malika não ficar preocupada! – contava – E finalmente, conheço a famosa dona Malika! – terminou de registrar tudo – Deu cinquenta e um reais e dez centavos. – olhou para a idosa

 

--Hum. – abriu a bolsinha para pegar o dinheiro – Nazira tá bem. É que faz uns dias que eu não peço pra ela vir aqui. – entregou o dinheiro à moça

 

--Diz que a Beth mandou um beijinho pra ela, por favor! – entregou o troco e piscou

 

--Beth?? É você que é Beth?? – perguntou em choque – “Meu Deus, é a própria!” – pensou abestalhada

 

Não entendeu o espanto. – Sim, sou eu. – respondeu desconfiada – O que a Nazira falou de mim? – estranhou

 

--Ô, gente, olha a fila! – um homem reclamou – Não é hora pra ficar de papo fiado aí!

 

Malika não respondeu, juntou suas coisas e saiu do mercadinho andando rapidamente.

 

***

 

--Padre, eu fiquei como nem sei dizer! – Malika narrava os fatos durante sua confissão – Estar ali, cara a cara, sem esperar, justo com a sirigaita que virou a cabeça de Nazira foi algo que me deixou até besta! – visualizava o rosto da mulher em sua mente – Aquela mulher é a típica perigosa, que se faz de fofinha, vai enredando, enredando e quando a pessoa vê, ela dá o bote! – enfatizou – Uma loura oxigenada, peituda, com aquelas unhas postiças de Zé do Caixão e a beiçola beiçuda desses troços que tão na moda, sabe? – descrevia a outra – Deve ter, no máximo, seus 20 anos! – balançou a cabeça – E Nazira tá igual homem velho que se pega com mulher nova, enchendo o rabo da outra de dinheiro em troca de safadezas! – arrependeu-se pelo vocabulário – Desculpe, padre. Acho que me excedi.

 

--Ah, eu... – estava pasmo – “Nazira, lésbica, quem diria? Nunca vou esquecer do dia em que ela me pediu em casamento depois da missa!” – pensou boquiaberto – “Nem os coroinhas escapavam daquela sanha casamenteira!” – considerou – É difícil entender estas coisas, dona Malika, mas talvez tenha acontecido com Nazira o que já vi acontecer com outras mulheres. – falava com jeito – Desiludidas com os homens da atualidade, há aquelas que decidem buscar o amor em uma igual pra ver se dá certo. E é até compreensível, especialmente se pensarmos no aumento do número de feminicídios e dos tantos homens que se comportam como fanfarrões, além daqueles se assumem como gays... – buscava entender as motivações da outra – Também não podemos ser precipitados em julgar a moça, até porque não sabemos se é ela quem explora Nazira ou se é Nazira que por insegurança busca prendê-la, dando a ela o que tem e o que não tem!

 

“Em se tratando de Nazira, tudo é possível!” – Malika pensou – Verdade, padre! Mas, no final das contas, acho que Deus está me provando pra ver se mereço a graça de reencontrar minha filha e receber o perdão dela! – expôs seu pensamento – Nazira virando sapatona a essa fundura do campeonato não pode ser outra coisa! – pausou brevemente – Eu ainda não deixei ela saber que eu tô ciente de tudo que tá acontecendo e por uma única razão: tenho medo de errar novamente! – confessou – E eu não quero mais isso!

 

--Está sendo sábia, pois convém agir com o devido cuidado. – concordou com a mulher -- Diga-me, dona Malika: por que o fato da sua filha ou da Nazira serem lésbicas a incomoda tanto a ponto da senhora ter dificuldades em conviver com isso? – queria saber – São as suas convicções religiosas, o que seria?

 

--Ah, padre Assumpção... – suspirou -- É uma longa história... – viajou no passado distante

 

“--ISSO NÃO É POSSÍVEL, MUSTAFÁ, NÃO É ACEITÁVEL! – o homem berrava diante do jovem filho – VOCÊ É UM JABBOUR E NESSA FAMÍLIA OS HOMENS SÃO MACHOS E VIRIS! – gesticulava furioso – NÃO EXISTEM GAYS EM NOSSO CLÃ, ENTENDEU?? HADHĀ GHAYR MUMKIN!! (ISSO NÃO É POSSÍVEL!!)

 

--EXISTE SIM! EU EXISTO, BABA, E O SENHOR GOSTE OU NÃO, ESSE É QUEM EU SOU E ISSO NÃO VAI MUDAR! – respondeu no mesmo tom controlando as lágrimas -- HADHA ANA! (ESTE SOU EU!)

 

O homem esbofeteou o rosto do filho e respondeu: – EU PREFIRO TE VER MORTO A TE ACEITAR COMO UMA MULHERZINHA!

 

A jovem Malika assistia a tudo escondida e chorava em silêncio por tudo que testemunhava.”

 

--Meu irmão só tinha 17 anos e foi encontrado morto dentro do quarto... – a idosa narrava com pesar – Ele deu um tiro na cabeça usando a arma que nosso baba mantinha em casa pra se proteger dos ladrões. – pausou brevemente – Isso foi um escândalo tremendo e nós tivemos que nos mudar de cidade porque do contrário ninguém da comunidade em que vivíamos deixaria que seu filho se casasse comigo. – explicou – Aprendi a vida inteira que um filho ou uma filha só descambava pra esse lado por culpa da mãe e só Deus sabe tudo que maama passou por causa do triste destino do meu irmão. – emocionou-se

 

“--Eu não tive culpa, eu fiz tudo que podia! – a mulher falava entre lágrimas – Não sei porque Mustafá fez o que fez! Não sei porque ele se tornou um... – não conseguia dizer – Oh, Aba!

 

--HIYA KANAT MOKHANNATHA MAL’OUNA BISEBBIK! (ELE ERA UM MALDITO EFEMINADO POR SUA CULPA!) – o marido gritou – Cabe à mãe educar os filhos e você falhou com Mustafá! – acusou – Assim como tem falhado com Malika, que já vai pra 20 anos e até hoje ainda não se casou! – continuava acusando – Nunca pensei que o clã de Jabbour teria seu nome jogado na lama por causa de você! – gesticulava furioso – Maldigo o dia em que lhe desejei como esposa! – cuspiu no chão em desprezo

 

Malika presenciava a briga dos pais com lágrimas nos olhos, sem saber o que dizer. Sofria pela mãe e pela vergonha de se sentir um lixo como mulher.”

 

--Eu demorei a casar pros padrões da minha família e depois de casada, pensei que nunca iria engravidar, até que concebi Zaida aos 30 anos. Meu marido era doido pra ter um menino, mas eu não consegui engravidar mais. – derramou uma lágrima – Ele nunca rejeitou a filha, pelo contrário, mas era uma pressão muito grande pra que o menino viesse e eu não consegui... Pressão de tanta gente como nem sei lhe dizer! – pausou mais uma vez – Eu me sentia tão incompetente como mulher... acho que me senti assim pela maior parte da vida... – suspirou – Minha falecida sogra me dizia cada coisa...

 

“--Nunca uma mulher do clã dos Al-Bassam deixou de dar à luz a um filho homem; fosse ela nascida em nosso seio ou desposada por um dos nossos! – a idosa falava com rancor – Maldita hora que deixei meu filho se casar com essa Malika! – olhava para a nora com desprezo – Demorou tanto a engravidar e de uma vez não passou! Eu nunca esperei isso de alguém do clã de Jabbour!

 

--Dizem que a família dela é amaldiçoada! – outra idosa comentou – Parece que o irmão... – cochichou algo que Malika não ouviu

 

--AHHa! – novamente olhou para a nora – Se eu soubesse do que sei hoje, Malika nunca teria recebido nosso nome!

 

Malika não deu resposta e continuou seus afazeres como se nada estivesse acontecendo, mas por dentro sentia-se mais uma vez um lixo.”

 

--Pra que tivéssemos paz, meu marido fez questão de se mudar para bem longe dos conhecidos e eu pensei que tudo seria diferente, mas não... – a idosa continuava narrando -- Imagine como foi pra mim quando descobri sobre minha filha!

 

“--Não pode ser, minha filha! -- Malika gritava com os nervos em frangalhos -- Isso é uma fase! Isso é... um engano!

 

-- Uma fase? Um engano? – Zaida respondeu com voz chorosa -- Vivo nessa "fase" desde que me entendo por gente, maama!

 

--Ai, que desgraça, meu Deus! – clamou com as mãos para o alto – Herdei a sina de maama, não é possível! – caiu de joelhos no chão – Eu não soube criar você... – começou a chorar  – Não soube, não soube... – soluçava”

 

--Infelizmente, o machismo de quase todas as culturas joga fardos muito pesados sobre os ombros das mulheres. – o padre considerou compreensivo – Entendo que no contexto da sua vida e da criação que recebeu, a homossexualidade da sua filha tenha lhe parecido uma maldição. E daí a senhora reagiu com opressão, do mesmo modo como foi feito com seu irmão... – pausou brevemente – Mas isso de maldição não é verdade e ninguém teve culpa de nada, dona Malika! Ninguém! – destacou – As pessoas são o que são e faz parte do ensinamento do Cristo sabermos aceitá-las em sua essência, com seus acertos e erros. – tentava consolá-la – Mas, e quanto à Nazira? Ela não é sua filha, a senhora não a criou... o que a homossexualidade dela lhe traz à mente?

 

--Não criei Nazira, mas ela veio pra mim muito nova, aos 17 anos. – secou os olhos com um lenço – Ela foi criada por uma grande amiga minha, que vinha a ser madrinha dela e antes de morrer de câncer me pediu pra ficar com ela. – contava a história – Nazira ainda é dois anos mais nova que Zaida, que naquela época já não morava mais comigo. Eu era uma jovem viúva, não pensava em tentar me casar de novo, e vivia solitária. Achei que Nazira poderia ser uma companhia e daí ela acabou se tornando minha governanta. – pausou brevemente – Uma atrapalhada governanta, diga-se de passagem!

 

O padre achou graça, mas não transpareceu. -- Mas a senhora ainda não me disse porque o fato dela ter se mostrado lésbica na atualidade pode ser uma provação. – o padre insistiu – Se a senhora não a criou, vocês não têm parentesco e além de tudo ela é sua governanta, ou seja, uma relação de trabalho... qual seria o problema?

 

Gastou uns segundos calada antes de responder. – Apesar de tudo, eu me apeguei a ela... – admitiu – E me sinto responsável por ela. – suspirou – Nazira parece que nunca saiu da adolescência, é completamente descompensada e... sempre tive cuidados pelo futuro dela... – pausou brevemente – Quando eu morrer, o que vai ser daquela pobre criatura?

 

--Então... saber que ela é lésbica soa como mais um fracasso da senhora? – o homem concluiu

 

--Sim...

 

--Dona Malika, vamos fazer assim: -- pensava em como ajudar – em primeiro lugar, a senhora precisa ter em mente que uma pessoa ser hetero ou homossexual não é culpa de ninguém! É simplesmente algo da personalidade daquela pessoa. E assim sendo, é preciso lembrar do ensinamento de Cristo que nos pede para amar o próximo como a nós mesmos! – aconselhou – Então, por favor, sem condenações ou autocondenações! – destacou – Agora em relação a situação que a senhora está presenciando, o que precisa ser mudado é isso da Nazira viver louca atrás de dinheiro para presentear a outra mulher! Da mesma forma se fosse para um homem isso não poderia continuar! – ponderou – Busque conversar com ela de forma respeitosa. Busque dar acolhimento a ela e talvez, pondo a cabeça no lugar, Nazira descubra que nem é lésbica e isso não passou de um grande engano!

 

--Eu quero fazer isso, padre, de verdade! – respondeu agoniada – Mas tenho tanto medo de errar, tanto medo...

 

--Entregue nas mãos de Nossa Senhora e do Mestre Jesus e tudo dará certo! – respondeu de pronto – Ore um Pai Nosso, uma Ave Maria e um Crê em Deus Pai todo dia, três vezes ao dia, e Deus vai guiar suas palavras da melhor forma! – garantiu – Eu tenho fé e a senhora precisa ter também!

 

Malika não respondeu e ficou pensando naquelas palavras.

 

***

 

Nazira andava louca atrás do que pudesse vender. Não havia mais encontrado o terço e buscava no FalaGPiTaco um jeito de resolver o problema.

 

Ai, meu Pitaco, eu não tenho mais absolutamente nada que possa me dar um centavo que seja numa venda! – digitava rapidamente – Até choquei com a minha própria pobreza! – desabafou – E dona Malika só tem algumas louças de cristal e a máquina Singer, mas é tudo grande e não dá pra pegar sem dar bandeira, né?

 

Que é isso, Nazira? Você não pode nem pensar em vender algo da dona Malika! – a IA logo retrucou -- Vender bens que pertençam a outra pessoa configura, em regra, crime de estelionato, especificamente na modalidade chamada “disposição de coisa alheia como própria”, prevista no Art. 171, § 2º, inciso I, do Código Penal! – esclareceu -- ⚖️Pena aplicável: Reclusão de 1 a 5 anos, além de multa!

 

--Deus que me defenda! – benzeu-se – Eu não vou virar criminosa! – voltou a digitar – Mas tô desesperada! Se ao menos encontrasse meu terço de volta... – lamentou – Não tenho ideia de onde possa ter ido parar!

 

Nazira, de tudo que você já me contou, só existe um suspeito neste caso: -- fez um suspense – ele, o gato! 🐈

 

E nisso, Sultan cruza a sala em seu passinho frajola.

 

--Meu Deus, por que não pensei nisso antes?? – parou de escrever e semi cerrou os olhinhos – Esse bicho nunca gostou de mim! Fez isso por vingança! – falava sozinha – E agora, Pitaco? – digitou – Como posso fazer pra recuperar o meu pertence?

 

Gatos não falam, então você só tem uma saída! – respondeu de pronto – Siga-o! 🔎

 

--Ah, mas é isso mesmo que eu vou fazer! – guardou o celular no bolso da saia e acompanhou o bichano com o olhar – Todo dia Sultan dá uns perdidos por aí! – falava sozinha – Então se eu seguir esse diacho posso descobrir onde escondeu meu terço! – abaixou-se e começou a engatinhar – Bem devagar pra ver qual é a dele! – seguia os passos do gato

 

Sultan foi para a cozinha e pulou para a basculante perto do tanque. Depois de uns segundos parado, pulou para fora.

 

--Ah, mas aí não vale! – correu para a basculante e olhou para baixo – Eu não sei sair pulando pelas telhas alheias desse jeito! – continuava falando sozinha – Ou será que sei? – considerou -- Vamos ver! – tentou se pendurar e passar para o lado de fora

 

Malika chega em casa e estranhando o silêncio procura por Nazira pelos cômodos. Ao entrar na cozinha se surpreende ao ver a outra pendurada na basculante. -- NAZIRA, PELO AMOR DE DEUS, SAIA DAÍ! – levantou as mãos em desespero – NÃO SE MATE, NÃO SE MATE! – sentia o coração acelerar

 

--Dona Malika?? – arregalou os olhos – “Mas ela não disse que ia demorar a voltar?” – pensou contrariada

 

--Por favor, Nazira, não faça isso! – aproximava-se devagar – Não pule daí, não se jogue! – tentava manter a calma – Não se mate, por favor! – pediu

 

--Ah, eu... – movimentou-se e voltou para dentro da cozinha – Não é o que a senhora está pensando... – tentava se explicar

 

--Como não é, criatura? – parou diante da outra – Eu já sei de tudo! – olhava nos olhos – Você e esse desespero todo por dinheiro... – respirou fundo – Sei do seu envolvimento com... Beth! – revelou

 

--O QUE?? – surpreendeu-se – Mas como...? – não sabia o que dizer – “Gente, quem contou pra ela, como pode??” – pensou constrangida

 

--Não me pergunte como descobri, mas eu sei... – falava com mansidão – E até conheci Beth... foi sem querer, mas conheci!

 

--A senhora conheceu?? – mais uma vez ficou pasma – “Mas dona Malika nem tem um celular que preste, como pode isso??” – pensou sem entender

 

--Eu não vou lhe condenar e nem julgar! – tentava manter-se controlada – Mas queria te ajudar... queria te entender... – dizia a verdade – O que tá acontecendo? Me deixa saber? – pediu com mansidão

 

“Não adianta mais esconder! É hora de cuspir a verdade nua e crua!” – pensou resoluta – Tudo bem, dona Malika... eu vou lhe contar! – respirou fundo – Tudo começou quando a senhora me deixou de castigo e sem celular. – narrava os fatos – Com o nerd mais longe de mim do que nunca e sem o meu Pitaco pra desabafar, procurei ajuda com seu Pedro e foi aí que ele me apresentou a Beth!

 

--Então foi ele?? – surpreendeu-se – “Homenzinho alcoviteiro de uma figa!” – pensou revoltada

 

--No começo, apesar de toda empolgação, a verdade é que eu tive medo... – desviou o olhar – Eu não tava acostumada, era totalmente... crua nesse negócio, sabe? – gesticulou – O Pitaco chegou a me dar umas dicas pra lidar com a Beth de forma segura, mas... foi em vão!

 

“Que pouca vergonha esse negócio de robô de inteligência artificial! Até aula de sapatanice o diacho dá!” – não deixava de se revoltar – E... por que agora você vive doida atrás de dinheiro? – queria saber – Essa Beth tá te chantageando de alguma forma?

 

--Como dizer? – continuava de cabeça baixa – É tudo muito envolvente, uma sedução muito grande! – caminhou até a basculante de novo e olhou para fora – Você se vê totalmente enredada naquele encantamento, a empolgação de tá vivendo uma experiência completamente nova... – mirava um ponto no infinito -- E ela me deu dinheiro no começo, pouco mas deu... – pausou brevemente – Só que... acho que minha inexperiência no assunto fez de mim uma presa fácil... – confessou – Em pouco tempo fiquei completamente viciada e não sei mais o que fazer sem Beth!

 

--Meu Deus! – ficou pasma – “Por isso que dizem que amor de sapatão é pior que vulcão e furacão!” – pensou em estado de choque – Nazira, você não precisa me dizer mais nada! – foi até a outra e a virou de frente para si – Eu não entendo como pode ser isso, tenho minhas dificuldades em aceitar, mas... – emocionou-se – Vamos pra igreja buscar ajuda pra você e... – derramou algumas lágrimas – Nem aquele besta do nerd e nem essa canalha da Beth merecem você! – olhava nos olhos – Você pode ser maluca e atrapalhada, mas é muito importante pra mim e... nós vamos resolver isso juntas! – prometeu – Eu amo você!

 

--Ai, dona Malika! – emocionou-se – Essa foi a coisa mais linda que eu já ouvi na vida! – as duas abraçaram-se com força – Também amo a senhora! – confessou – Amo sim!

 

Fim do capítulo