O Fio da Lua Crescente
🌕
A aurora ainda não tocara o céu quando Rhae despertou.
Seu corpo inteiro doía, como se cada célula tivesse sido arrancada e moldada de novo sob uma fornalha invisível. Os dedos estavam pesados, os músculos latejando com uma força nova — selvagem, bruta, e ainda incontrolável. A marca em seu ombro queimava com intensidade viva, um calor pulsante que a mantinha ciente de que algo havia mudado para sempre.
Ela se arrastou até a margem do riacho, respirando fundo. A floresta ao redor ainda dormia, mas a água corria límpida e fria, refletindo um céu salpicado de estrelas. Rhae se ajoelhou, enfiando as mãos na correnteza e deixando que a temperatura gelada a acordasse por completo. O toque da água era como um sussurro antigo, e ela quase pôde ouvir vozes ao fundo — ecos de lobos ancestrais, chamando-a.
Ali, sentada à margem, envolta em silêncio, estava Clara.
Usava apenas um manto leve de linho escuro, e seus cabelos, ainda molhados da névoa da madrugada, caíam soltos sobre os ombros. Ela parecia quase etérea, como se fosse parte da própria floresta — uma aparição moldada pela magia do lugar. Rhae sentiu o peito apertar com a visão. Era uma beleza que feria de tão intensa. Mas o que mais a atingiu foi a expressão da morena: serena e, ao mesmo tempo, vulnerável.
— Está bem? — perguntou Clara, a voz suave como uma canção que só a floresta ouviria.
Rhae hesitou. Passou os dedos pela marca em seu ombro, como se tentasse entender sua textura, seu significado.
— Eu não sei. Algo dentro de mim... mudou. Está queimando, como se eu tivesse sido forjada por dentro. Essa marca... — ela ergueu o braço, revelando a linha curva de um lobo em chamas, como se tatuada a brasa — ...não é só um símbolo. É um aviso. Um chamado. Uma prisão.
Clara a observou por um instante, depois se aproximou em silêncio. A morena se ajoelhou ao lado de Rhae, tão perto que seus ombros se tocaram.
— Você está despertando — murmurou ela, com ternura. — E despertar... nunca é gentil.
Rhae riu baixo, um som sem humor.
— Me sinto como se tivesse sido atropelada por uma alcateia inteira.
— Isso é o que acontece quando a lua escolhe alguém.
Rhae a fitou, confusa.
— A lua... me escolheu?
Clara assentiu. Seus olhos negros, agora tingidos com reflexos azulados pelo nascer do sol, estavam cravados nos de Rhae com intensidade incomum.
— Nem todos os lobos são tocados. Alguns nascem, vivem e morrem sob o véu comum da matilha. Mas você... você foi chamada. A marca que carrega é mais do que herança. É uma chave.
Ela então tirou um objeto do manto: um espelho antigo, de moldura prateada e escura, com runas entalhadas em um idioma esquecido.
Clara o limpou com a ponta dos dedos, e ao fazer isso, a superfície brilhou como água sob luar.
— Olhe.
Rhae hesitou. Parte dela temia o que veria — não por vaidade, mas por medo de encarar quem estava se tornando. Mesmo assim, inclinou-se para olhar.
O reflexo devolvido era familiar... e ao mesmo tempo, não era.
Seus olhos estavam dourados como âmbar em chamas, irradiando uma luz interna que parecia viva. A marca em seu ombro pulsava devagar, como se tivesse batimentos próprios, e de sua sombra, na pele, surgia a forma de um lobo — não parado, mas movendo-se suavemente, como se respirasse com ela.
— Isso é real?
— É parte de você — disse Clara. — O seu sangue sempre teve essa linhagem. Mas agora você pode usá-la.
— Para quê?
— Para sentir a floresta como um ser vivo. Para ouvir os pensamentos das árvores, para guiar sua alcateia com sabedoria... e para lutar. Com garras, com instinto... e com magia.
Rhae fechou os olhos, tentando absorver tudo. A sensação era vertiginosa, como cair em um abismo sem fim, mas ao mesmo tempo, havia uma força dentro dela, crescente, como uma semente quebrando a terra.
Mas foi aí que tudo mudou.
O vento sussurrou uma mudança. Um cheiro distinto invadiu o ar: madeira queimada. Sangue. Pele queimada.
Rhae se levantou num salto. Clara já estava em pé, os olhos atentos.
— Estamos sendo observadas — disse a morena, com a voz baixa, fria como aço.
Do interior da floresta, as sombras se torceram. Passos leves e cruéis soaram, e uma figura emergiu das árvores.
Era ele.
O irmão perdido.
Não mais um lobo. Não mais humano. Corrompido. Os olhos dele eram de um preto opaco, como carvão derretido. O sorriso largo revelava presas, e sua pele estava manchada por linhas negras, como se a própria escuridão estivesse viva dentro dele.
— Irmãzinha — disse ele, a voz macia como um sussurro de veneno. — Tão poderosa agora. Tão linda. Mas ainda assim... vulnerável.
Rhae rosnou, os pelos do corpo se eriçando, as garras saindo sem esforço. O poder que pulsava dentro dela respondeu ao chamado do medo e da raiva, como uma fera impaciente.
— Eu não sou sua irmã. Não mais.
Ele inclinou a cabeça, zombeteiro.
— Você sempre será. Somos sangue do mesmo sangue. E juntos... podemos transformar tudo.
— Nunca.
— Você não tem escolha.
E então a floresta explodiu em caos.
A batalha começou sem aviso. Um salto, uma explosão de força. Rhae atacou primeiro, suas garras encontrando a pele corrompida do inimigo. O impacto foi brutal, jogando ambos no chão em meio à lama e folhas secas. Clara invocou uma barreira, um escudo translúcido de energia azul, protegendo-as por um segundo enquanto se reposicionavam.
O irmão era rápido — mais do que qualquer lobo que Rhae já enfrentara. Ele se movia como uma sombra viva, os golpes dele eram como aço afiado, e sua presença era sufocante. Mas Rhae... Rhae tinha o fogo.
A cada golpe, a marca em seu ombro brilhava, e Clara, ao seu lado, sussurrava palavras antigas, canalizando energia para fortalecer Rhae. As raízes das árvores pareciam responder, surgindo do chão como serpentes de madeira, tentando conter o inimigo.
Rhae sentia cada batida do coração como um tambor de guerra. O poder da lua corria por suas veias, quente, pulsante, eletrizante. Ela começou a prever os movimentos do inimigo, como se os visse antes de acontecerem.
Então, no ápice da batalha, ela o atingiu com um golpe direto no peito. Um grito de dor rompeu o silêncio ancestral da floresta. Ele cambaleou para trás, tocando a ferida com descrença.
— Você... está se tornando alfa.
— Eu já sou.
Ele riu, e seu corpo começou a se dissolver em fumaça.
— Isso não acabou, irmã. A lua não é a única que escolhe. A sombra também tem seus campeões.
E com isso, desapareceu nas sombras.
Rhae ficou ofegante, ajoelhada no chão coberto de folhas, o corpo trêmulo. Clara correu até ela, ajoelhando-se ao seu lado e envolvendo-a com os braços. E naquele abraço, Rhae soube.
Ela não estava sozinha.
— Ele vai voltar — disse Rhae, com a voz rouca.
— Eu sei. Mas você também vai estar pronta.
Rhae ergueu o rosto. A lua agora crescia no céu claro da manhã, quase cheia, quase brilhante. E ela sentia seu chamado como nunca antes.
Ali, nos braços de Clara, no coração de uma floresta viva, entre o medo do que viria e o calor do que sentia, ela encontrou algo que nunca pensou que teria:
Esperança.
E amor.
Um amor selvagem, perigoso, e tão inevitável quanto a própria lua.
A floresta havia voltado ao silêncio, mas o ar ainda carregava eletricidade.
As folhas tremiam, não por vento, mas pela energia que permanecia suspensa, como se o próprio bosque tivesse testemunhado o confronto e ainda processasse o que acontecera. Um par de corujas cruzou o céu baixo, desaparecendo entre galhos retorcidos, enquanto o riacho fluía, indiferente, como uma linha do tempo contínua.
Rhae permanecia ajoelhada no chão, os dedos mergulhados na terra úmida. Seu peito subia e descia de forma irregular. A batalha a deixara exausta — mas não apenas fisicamente. Havia algo mais: um cansaço profundo, antigo, como se uma parte adormecida dela tivesse finalmente despertado e exigisse seu lugar no mundo.
Clara estava ajoelhada ao lado dela, as mãos em seu rosto, os olhos escuros cheios de preocupação e... ternura. Não era uma ternura frágil, dessas que tratam alguém como porcelana. Era algo primal. Feroz. Clara a olhava como quem reconhece, finalmente, uma igual.
— Você foi incrível — disse ela, em um sussurro. — Nem mesmo os ancestrais esperavam que despertasse tão rápido.
Rhae riu, a voz rouca.
— Eu não me sinto incrível. Me sinto... quebrada. E inteira ao mesmo tempo.
— É exatamente assim que a mudança se instala. Primeiro ela despedaça. Depois reconstrói.
Os olhos de Rhae encontraram os dela. O luar refletia nos cabelos de Clara, fazendo-os parecer um véu de sombras azuis. Era surreal o quanto ela parecia feita da própria noite. Uma mulher que existia entre os mundos, entre as forças da natureza e os desejos humanos.
— Você sabia que ele estava me observando? — perguntou Rhae, sua voz carregada de um ressentimento cansado.
Clara hesitou.
— Eu suspeitava. Há dias, senti uma presença... fragmentada. Mas não sabia que era ele. Não até hoje.
— Ele não vai parar.
— Nem nós.
O silêncio que veio depois não foi vazio. Foi denso. Carregado de perguntas não ditas, de promessas por fazer. E no centro de tudo isso, havia o toque.
Clara passou o polegar pela marca brilhante no ombro de Rhae. O calor ali ainda era intenso, mas o gesto dela foi calmo, como se tentasse acalmar o próprio fogo.
— Posso te ajudar a conter isso — murmurou.
— Você pode...?
— A energia que pulsa em você está crua. Selvagem. Você precisa de ancoragem, Rhae. De controle. Mas também... de liberdade. E eu posso te ensinar.
Rhae não respondeu de imediato. Em vez disso, ergueu uma das mãos e a colocou sobre a de Clara. Havia algo magnético entre elas, desde o primeiro toque, mas agora... era mais.
Agora era inevitável.
Rhae se aproximou, os olhos dourados brilhando. Clara não recuou. Muito pelo contrário. Quando suas testas se tocaram, um arrepio correu pela espinha de ambas.
— Você me assusta — disse Rhae, em um fio de voz.
— E mesmo assim, está aqui.
— Porque quando estou com você, tudo silencia.
Clara a beijou.
Não foi um beijo calmo. Nem urgente.
Foi... inevitável.
A boca dela tinha gosto de folhas frescas, de magia antiga e de algo inebriante, como vinho raro. Rhae retribuiu com intensidade, uma mão apertando o tecido fino do manto de Clara enquanto a outra se apoiava na terra, como se o mundo pudesse girar demais e ela precisasse se firmar.
O beijo se aprofundou, se tornou mais lento, mais íntimo. Clara explorava os lábios de Rhae como se lesse nela uma língua ancestral. E Rhae... sentia que cada toque da morena reacendia sua força, como se a magia que queimava dentro de si reconhecesse Clara como fonte e destino.
Quando se separaram, ofegantes, ainda unidas pela testa, Clara sussurrou:
— Você é fogo. Eu sou sombra. Mas juntas, somos eclipse.
Rhae sorriu. Pela primeira vez em dias, sorriu de verdade.
— Isso foi brega — disse ela.
— E verdadeiro — rebateu Clara, beijando o canto da boca dela.
Rhae deitou-se na grama, puxando Clara consigo. O manto deslizou levemente, revelando a pele pálida como luar. As mãos de Rhae exploraram com cuidado e desejo, como se cada centímetro descoberto fosse um segredo revelado da floresta.
E ali, sob as árvores, entre as raízes antigas e a respiração da terra, elas se perderam uma na outra.
Não como duas pessoas que apenas se desejam.
Mas como duas forças que se reconhecem.
🌿
Quando o sol subiu no céu, já era manhã avançada.
Rhae despertou com Clara aninhada ao seu lado, os cabelos escuros espalhados sobre seu peito nu. O mundo parecia silencioso, suspenso. A dor havia diminuído, substituída por um cansaço doce e uma clareza nova.
Ela se sentia... diferente.
Mais forte.
Mais certa.
E menos sozinha.
Com cuidado, passou os dedos pelos fios escuros de Clara, e então se sentou, olhando em volta. As árvores pareciam saudá-la. Os pássaros cantavam um pouco mais alto. E o vento... sussurrava seu nome como se a reconhecesse agora.
Clara abriu os olhos devagar, preguiçosa e encantadora.
— Já vai fugir? — perguntou, a voz rouca.
— Nunca mais.
A resposta saiu antes que ela pudesse pensar. E era a verdade mais crua que podia oferecer.
Clara sorriu, tocando o queixo de Rhae com os dedos.
— A guerra está só começando.
— Eu sei. Mas agora... agora eu tenho mais do que força.
— O quê?
— Propósito.
E quando se levantaram, juntas, Clara segurando sua mão e a floresta abrindo caminho à frente, Rhae soube. A marca em seu ombro já não queimava de dor.
Ela queimava de destino.
E esse destino... teria dentes, garras, magia e amor.
Fim do capítulo
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