A Primeira Caçada
🌕
A noite estava densa demais para ser apenas escuridão.
Do lado de fora do Coração da Terra, o bosque havia mudado. O ar pesava como se estivesse preso em um suspiro antigo, e cada folha que caía parecia carregada com uma vibração invisível. O silêncio não era natural. Era o tipo de silêncio que precede a morte.
Clara subiu primeiro. Quando Rhae saiu da escadaria, foi recebida por um vento cortante que cheirava a sangue e cinza.
— Ele está perto — murmurou Clara, os olhos atentos ao céu encoberto.
Rhae sentiu também. Não era só cheiro. Era presença. Como se algo estivesse roçando sua mente, arranhando as bordas do seu instinto com garras sujas e antigas. O símbolo em seu ombro queimava suavemente — não de dor, mas de alerta.
— Está me caçando — disse ela, os olhos estreitando. — Como se soubesse onde estou.
— Ele sente sua magia — respondeu Clara. — Agora que você despertou... você brilha pra ele como uma fogueira em noite sem lua.
Rhae olhou ao redor. A clareira do antigo altar parecia ainda mais ancestral agora. As fitas vermelhas nas estacas tremulavam sem vento. E as árvores rangiam como se sussurrassem uma profecia esquecida.
— Vamos encarar isso de frente. Ele quer me achar? Que ache.
Clara segurou o braço dela com firmeza.
— Isso não é coragem. É imprudência. Você acabou de acordar um poder que mal conhece.
— Então me ensina. No caminho.
Clara hesitou por um segundo... depois sorriu.
— Você é mesmo feita de trovão.
— E você de tempestade — respondeu Rhae.
Elas correram.
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As duas atravessaram a floresta com passos ágeis e sentidos à flor da pele. Clara, com sua elegância sobrenatural, parecia planar sobre o chão. Rhae corria como o vento selvagem, com o coração batendo em sincronia com a terra. A cada metro percorrido, a tensão se intensificava.
O uivo veio como um rasgo no véu da noite.
Não era um uivo de lobo.
Era torto. Quebrado. Como se tivesse sido moldado por uma garganta que havia esquecido como cantar à lua.
Rhae parou em seco. Seus olhos se arregalaram. Algo dentro dela reconheceu aquele som. Não como um inimigo… mas como algo familiar. O que a deixou ainda mais inquieta.
— Ele está... ferido? — perguntou.
Clara balançou a cabeça.
— Ele está... dividido. Não é inteiro. É uma fusão de alma e carne, sustentada por fome e desejo de vingança.
Rhae se virou para ela.
— E a vingança é contra mim?
— Contra o seu sangue.
Um galho estalou à esquerda.
Elas giraram instintivamente.
Nada.
Mais dois passos adiante e o chão se abriu — não em buraco, mas em odor. Um cheiro pútrido, agressivo, que fez os olhos de Rhae lacrimejarem. Clara tapou a boca.
— Aqui — disse ela, baixinho. — Foi aqui que ele passou.
No meio da trilha, o corpo do segundo lobo apareceu. Ou o que restava dele.
Mutilado. Como o anterior.
Rhae se ajoelhou e encostou a mão em uma das patas dilaceradas. Fechou os olhos e deixou que o cheiro, o sangue e a terra falassem com ela. Era um ritual que poucas lobas ainda lembravam. Mas ela sentia. E então...
Imagens.
Garras maiores que qualquer lobo. Dentes que não pertenciam a criatura alguma que ela já vira. Uma aura escura. E olhos... dourados?
Rhae ofegou.
— Os olhos dele são como os meus.
Clara assentiu devagar.
— Porque ele foi criado da mesma fonte. Mas corrompido. Alimentado por magia sombria.
Rhae se levantou, os punhos cerrados.
— Então está na hora de cortar esse laço.
E antes que Clara pudesse detê-la, a loba ruiva arrancou a roupa — não por ousadia, mas por necessidade — e se lançou na transformação.
Foi mais rápida do que todas as outras vezes. Mais fluida. Mais poderosa.
A forma lupina de Rhae era enorme, os pelos tão vermelhos quanto fogo crepuscular, os olhos brilhando com luz própria. As garras estavam afiadas. Os músculos, em tensão. Ela rosnou, e o som reverberou pela floresta.
Clara se aproximou.
— Você vai enfrentá-lo agora?
— Não. Vou caçá-lo.
E partiu, deixando rastros flamejantes no chão.
A floresta se abria diante dela como se temesse ser destruída. As árvores dobravam galhos, a trilha era devorada pelas patas largas de Rhae. Ela era veloz como uma tempestade, e sua fúria crescia a cada passada. O chão fumegava sob suas garras. Cada passo era um aviso: o fogo da loba antiga estava aceso.
O cheiro da criatura estava em toda parte.
Não era natural. Era denso, viscoso, como lama podre misturada a magia quebrada. Havia um gosto de metal no ar, como sangue velho em ferrugem. A cada instante, o símbolo no ombro de Rhae pulsava, queimando como se quisesse arrancar sua pele. Mas ela não parou. Pelo contrário — usou a dor como guia.
Foi quando ouviu o estalo.
Não de um galho.
Mas de algo maior. Ossos deslocando-se. Como se um corpo estivesse se moldando. Ou tentando lembrar como era ser carne.
Ela parou. O pelo eriçado. O ar frio.
E então, do meio da névoa, ele surgiu.
A criatura.
A figura era... disforme. Tinha a altura de um homem, mas os ombros largos demais, os braços longos e as garras curvadas como adagas. O rosto era uma paródia de um lobo — olhos dourados e profundos, mas vazios, com presas longas demais para a boca. A pele era acinzentada, como seimada, e o corpo parecia pulsar com magia instável, rachaduras vermelhas se abrindo como veias incandescentes.
Rhae recuou meio passo. Não por medo. Mas por puro instinto.
A criatura parou. Cheirou o ar.
E sorriu.
— Finalmente — disse, a voz rouca e molhada, como se tivesse nascido de uma garganta que nunca falou. — A chama desperta.
Rhae rosnou. As patas enterradas na terra. As presas à mostra.
“Lute comigo”, algo dentro dela sussurrava. “Não. Observe”, dizia outra voz, mais antiga.
Mas já era tarde. O monstro avançou.
O impacto foi brutal. As garras da criatura acertaram Rhae no flanco, rasgando o pelo e a carne. Ela rodopiou no ar, caiu com um baque, mas levantou no mesmo segundo, ensanguentada e enfurecida.
Ela avançou.
Saltou com as presas cravadas no braço da criatura, puxando com força. O som de carne se rasgando ecoou entre as árvores. O monstro gritou. A dor dele era aguda e humana. Quase infantil.
Mas ele não recuou.
Ele gostou.
— Isso! Queime! Morda! — rugia. — Prove que você é a herdeira da selvageria!
Rhae atacou novamente, mais rápido, mais forte. E pela primeira vez, viu medo nos olhos da criatura. Ela o derrubou, as patas dianteiras esmagando seu peito, as presas roçando o pescoço dele.
— Quem é você? — exigiu.
A criatura riu. Sangue escorria pelos dentes.
— Eu... sou... teu irmão.
Rhae congelou.
Foi o tempo que a criatura precisou.
Com um movimento inesperado, ele a empurrou com força, jogando-a contra uma árvore. A cabeça dela bateu no tronco. Tudo ficou turvo. Quando tentou se levantar, sentiu algo quente escorrendo do couro cabeludo.
A criatura cambaleou para trás, ofegante.
— O selo... está quebrando... — disse, tocando o peito com a garra trêmula. — Você é a última chave.
E desapareceu.
Literalmente.
O ar ondulou, e ele sumiu na névoa.
Rhae ficou ali, arfando, o sangue pulsando nos ouvidos. O mundo girava. A palavra ainda ecoava: irmão.
Foi quando Clara surgiu da floresta, os olhos arregalados.
— Rhae!
Ela correu até ela, ajoelhando-se ao seu lado. Tocou o corte na cabeça, pressionando com os dedos suaves, mas firmes.
— Ele te feriu?
— Não é nada — respondeu a loba, respirando com dificuldade. — Ele... disse que era meu irmão.
Clara ficou em silêncio.
Silêncio longo demais.
Rhae se virou para ela.
— Você sabia?
Clara hesitou.
— Sabia que ele foi feito a partir da linhagem da sua avó. Que usaram sangue de outros rituais. Que ele é... uma falha. Um experimento corrompido. Mas irmão? Isso...
— Não te surpreendeu.
O silêncio confirmou mais do que qualquer palavra.
Rhae se afastou, mesmo ferida. Seu olhar estava diferente. Mais firme. Mais desconfiado.
— Você me trouxe aqui pra despertar um poder antigo. Mas nunca disse que talvez eu tivesse parentes monstros correndo por aí.
— Eu precisava que você estivesse pronta para ver. Se soubesse antes, teria recuado.
Rhae rosnou baixinho. Mas não respondeu.
No fundo, sabia que talvez fosse verdade.
Mas também sabia que havia mais segredos entre elas do que confissões.
O sangue ainda escorria pela cabeça de Rhae, quente e pulsante, enquanto ela e Clara voltavam pela trilha. O silêncio entre elas era carregado, um peso que parecia prender o ar.
— Você poderia ter me contado — disse Rhae finalmente, a voz rouca, sem olhar para Clara.
— E arriscar que você não viesse? — Clara respondeu, os olhos sombrios. — Eu precisava que você tivesse o fogo aceso. Que sentisse a chama antes do pior acontecer.
Rhae apertou os punhos, sentindo o poder em seu interior borbulhar, como um vulcão prestes a explodir.
— O que exatamente está acontecendo comigo? — perguntou, num sussurro que quase assustava a si mesma.
Clara parou, virou-se, o rosto iluminado pela lua encoberta.
— Você está se tornando alfa. Não só da sua alcateia, mas de uma linhagem antiga. O poder que despertou é um chamado. Uma marca. E ele vai mudar tudo — para você, para todos.
Rhae sentiu um formigamento que começou na espinha e subiu pelo corpo, uma energia selvagem que não podia ser ignorada. Seu olhar tornou-se afiado, e por um instante, ela viu o mundo com uma nitidez brutal, como se os sons, cheiros e sensações tivessem se multiplicado.
— É assustador — admitiu. — E excitante.
Clara sorriu, um sorriso cheio de promessas e perigo.
— Boa. Você vai precisar dessa mistura.
Então, sem aviso, Clara deu um passo para perto, o cheiro dela envolvendo Rhae como um manto quente.
— Você sabe que pode confiar em mim.
Rhae se virou, encarando os olhos negros e profundos.
— Confiança não é algo que eu dou fácil. Mas você... você mexeu comigo.
Clara tocou o rosto de Rhae com a ponta dos dedos, a pele quente contra a fria da loba.
— Nem sempre o perigo vem com garras.
Os lábios se encontraram num beijo suave, mas carregado de eletricidade. O calor entre elas aumentava, e mesmo em meio à ameaça iminente, Rhae sentia seu corpo reagir com uma urgência antiga.
O beijo foi interrompido por um uivo distante — um aviso.
Elas se afastaram, olhos brilhando, prontas para o que viesse.
O uivo ecoou entre as árvores como um trovão distante, mas Rhae sabia: não era um simples aviso — era um chamado para a batalha.
Ela se virou para Clara, os olhos ardendo com a intensidade que só a luta podia despertar.
— É agora.
Clara assentiu, seus dedos entrelaçando os de Rhae num aperto firme, quase possessivo.
— Vamos acabar com isso.
As duas correram, corpos sincronizados, a floresta desaparecendo em borrões de sombras e luz.
O monstro surgiu novamente, como uma fera que não quer morrer, mas que sabe que está cercado. A batalha começou com uma fúria ancestral. Garras encontraram carne, dentes roçaram pele, o som de impacto ecoava como marteladas no coração da noite.
Rhae sentia seu poder crescendo a cada golpe, a marca em seu ombro queimando mais forte, alimentando sua força. Era uma energia doce e cruel, uma tempestade que parecia nascer dentro dela.
Clara lutava ao seu lado, graciosa e feroz, protegendo as costas da loba ruiva, seus próprios poderes mágicos lançando chamas sutis que queimavam a pele da criatura.
Em um momento, a criatura agarrou Clara, levantando-a do chão com força assustadora. Rhae rugiu, furiosa, e saltou para a garganta do monstro, afundando suas presas.
Clara caiu, mas não sem lutar. Com um gesto rápido, ela lançou uma esfera de fogo que fez a criatura recuar, urrando.
Com a criatura ferida, Rhae usou tudo o que tinha: agilidade, força e a fúria do sangue ancestral. Ela o derrubou contra uma árvore, o impacto fazendo estalar galhos ao redor.
O monstro tentou se erguer, mas Rhae estava em cima dele, as garras prontas para o golpe final.
Antes que pudesse atacar, a criatura sussurrou, quase humano:
— Você não pode fugir do que é seu, irmã.
Rhae hesitou.
O monstro sorriu, cruel.
E desapareceu na escuridão, deixando para trás um silêncio cortante.
Clara se aproximou, segurando Rhae pelos ombros.
— Você foi incrível.
Rhae respirava com dificuldade, o corpo tremendo não só pela luta, mas pela adrenalina.
— Isso... é só o começo.
Clara sorriu, os olhos escuros brilhando com uma promessa.
— Vamos enfrentar isso juntas.
E, antes que a noite pudesse engolir seus segredos, elas se encontraram num beijo quente, intenso, uma chama que não podia ser apagada.
Fim do capítulo
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