Capitulo 10 - Colocando as coisas no lugar
Mas o riso de Laura logo se desfez em um choro convulsivo.
Júlia, em mais um de seus impulsos corajosos — e completamente desprovidos de cálculo —, apenas a abraçou. Apertou-a com força, sem pedir permissão, sem pensar no que aconteceria depois. Laura, sem hesitar, envolveu-se no abraço como quem encontra abrigo durante uma tempestade.
Júlia era um pouquinho mais baixa, mas seus corpos se encaixaram com uma naturalidade desconcertante. Como se aquele abraço já estivesse escrito em algum lugar antes mesmo de acontecer.
Laura chorou por minutos, mas para Júlia, pareceu uma eternidade. Quando os soluços diminuíram, Júlia falou, em voz baixa, quase num sussurro:
— Laura… vem comigo. Vamos sair daqui.
Laura apenas assentiu com a cabeça. Não perguntou para onde iriam, não contestou. Apenas permitiu que Júlia a puxasse pela mão, ignorando os olhares silenciosos que tentavam entender o que estavam vendo.
Naquele momento, nada daquilo importava.
Laura estava no automático. O embate com a tia Sofia ainda reverberava em seu peito como um terremoto mal resolvido. Desde o fatídico jantar na casa dela, as duas não trocavam uma palavra. Apenas sua prima Carla mantinha algum contato — uma ou outra mensagem de apoio. Já o tio Osvaldo, sempre gentil, lhe enviava cartões postais nos aniversários, desejando felicidades, dizendo que estava ali para o que precisasse e que respeitaria o tempo dela.
Mas agora, nenhum cartão, lembrança ou silêncio familiar doía tanto quanto a dor que ela precisava, finalmente, deixar sair. E Júlia… bem, Júlia não disse muito. Só ficou. Só a segurou. E, naquele instante, foi exatamente o que Laura precisava.
O trajeto até o apartamento foi feito em silêncio. Laura mantinha os olhos fixos na janela do carro, como se as árvores e semáforos da cidade pudessem lhe oferecer alguma resposta. Júlia dirigia com calma, uma das mãos no volante, a outra repousando no câmbio, resistindo à vontade de estender os dedos e entrelaçá-los aos de Laura.
O carro parou diante de um prédio discreto, porém alto, em um bairro de classe média tranquila. A fachada era simples, mas bem cuidada, com vasos de plantas na entrada e um zelador que acenou com familiaridade quando as viu passar.
O elevador parou no quinto andar e, quando a porta se abriu deu de cara com um corredor com duas portas, Julia sacou da bolsa uma chave e abriu a porta do lado esquerdo em cima da porta o número 511, quando abriu a porta deu passagem para ela entrar, Laura entrou devagar, como quem invade um território novo.
Era um apartamento de três quartos, iluminado pela luz natural que entrava pela varanda. A decoração era minimalista, mas com toques de afeto: uma estante com alguns livros, plantas bem cuidadas, uma manta dobrada com capricho sobre o sofá e fotos de família discretamente expostas na estante.
— Você mora aqui? Perguntou
Júlia respondeu com um aceno de cabeça
— Nossa… você tem bom gosto — disse Laura, rompendo o silêncio. — É maior do que imaginei.
— Obrigada. — Júlia sorriu. — Ainda estou organizando algumas coisas. Mas… é lar.
Laura andou mais um pouco, olhou em direção ao corredor e apontou:
— Três quartos? Quem mora com você?
— Minha irmã caçula que cursa medicina na Universidade Federal do Paraná (UFPR) — Júlia respondeu, enquanto ia até a cozinha buscar dois copos d’água. — Um dos quartos é dela, o meu é a suíte no final do corredor. O outro... era pra visitas. Mas até hoje ninguém veio me visitar… Eles moram longe, a vida é um pouco complicada para eles, vou até eles uma vez por mês, para vê-los. Fiquei 5 anos sem vê-los, agora não quero perder a oportunidade.
— E… não tem ninguém? Namorada, namorado, ex-esposa misteriosa que vai surgir da varanda a qualquer momento?
Júlia riu.
— Não. Só eu. Minha vida afetiva é um pouco menos interessante do que os boatos do hospital sugerem. E você?
— Eu? — Laura pegou o copo d’água e bebeu com pressa, desviando o olhar. — Acho que a tia Sofia respondeu isso por mim mais cedo.
— Ela não sabe nada de você — disse Júlia, com firmeza. — E eu... quero saber.
As palavras ficaram no ar como vapor quente. Laura sentou-se no sofá, deixando o copo na mesa de centro. Júlia fez o mesmo, a uma pequena distância.
Por um momento, só o som da cidade entrando pela janela preenchia o espaço entre elas.
— Sabe o que é pior? — Laura começou, encarando o próprio colo. — Eu não me importei com o que a Sofia disse. Já ouvi coisa pior. Mas… o que me desmontou foi você.
— Eu?
— Quando você disse aquilo… na frente de todo mundo. Que era minha namorada. Que ia comigo à festa. Aquilo foi... — Ela parou, engoliu em seco. — Foi como se alguém dissesse “eu fico do seu lado” e pronto. E eu não sei o que fazer com isso.
Júlia a olhou, séria. Não com pena, mas com respeito. E um carinho silencioso que já não se escondia mais nos olhos castanhos.
— Você não precisa fazer nada agora, Laura. Eu só… quero estar aqui. Se você deixar.
Laura sorriu de leve, com aquele mesmo sorriso torto que já era quase uma assinatura. Depois se aproximou devagar e encostou a cabeça no ombro de Júlia.
— Só por hoje… me deixa esquecer do mundo um pouco?
— Claro — disse Júlia, baixinho. — O mundo pode esperar.
E ali, no meio da sala de um apartamento simples, duas mulheres que ainda não sabiam o que eram uma para a outra, encontraram um raro e necessário silêncio — o tipo que cura, sem precisar dizer mais nada.
Laura acordou um pouco mais tarde, com o som abafado de risos vindo da cozinha. A falta de Luz do quarto de hóspedes indicava que já era tarde. Ainda de roupa, sobre a colcha branca e bem esticada, ela se sentou devagar na cama, tentando se localizar.
A lembrança de mais cedo veio como uma onda suave: a briga, o abraço, o apartamento acolhedor... e Júlia. Olhou em volta e sorriu com a simplicidade do cômodo — uma escrivaninha com uma luminária, um criado-mudo com um livro de Clarice Lispector e um abajur azul-turquesa. Não era um quarto de visitas qualquer. Era um quarto com história.
A última coisa que se lembrava era do chá de hortelã com pão de queijo que Júlia a serviu, com certeza ela batizou o chá com algum relaxante, depois que se queixou de dor de cabeça, médicos são trapaceiros.
Descalça, Laura seguiu o som de vozes e risadas até a sala. Ali estava Júlia, sentada à mesa, comendo pizza direto da caixa aberta, ao lado de uma jovem de rabo de cavalo alto e camiseta universitária escrito “Medicina — UFRP”.
— Olha quem resolveu acordar! — disse Júlia com um sorriso, enquanto fazia sinal para que Laura se juntasse. Fica a vontade, pedimos uma pizza e como não sabíamos seu sabor favorito pegamos uma de sal e outra de doce. Sirva-se deve estar com fome. Laura sentou um pouco tímida devido a presença de Larissa.
— Dormi demais? — perguntou ela, coçando a nuca, com a voz ainda rouca de sono.
— Quase um coma induzido. Mas não se preocupe, aqui é um lar seguro pra ressacas emocionais — disse a outra garota, mordendo uma fatia de calabresa.
— Laura, essa é a Larissa. Minha irmã mais nova. Caloura de medicina, piadista nas horas vagas e destruidora de minha reputação. — Júlia fez uma careta.
— Muito prazer — disse Laura, estendendo a mão depois de tentar ajeitar o cabelo com os dedos. — Eu... posso parecer um zumbi agora, mas prometo que sou sociável.
As duas irmãs riram ao mesmo tempo.
Laura notou que ambas tinham o mesmo sorriso — calmo e cativante — embora a irmã caçula de Júlia fosse visivelmente mais falante.
— Então, Laura, minha irmã disse que você também é cirurgiã. Que legal conhecer uma amiga dela! Júlia nunca foi de apresentar muitos amigos pra família. Dá pra contar nos dedos os que conhecemos. A vovó sempre diz que ela é muito reservada... Por isso tem “amigos pontuais”. Acho que ela ouviu essa expressão em alguma novela e passou a repetir — disse Larissa, mordendo um pedaço de pizza.
Laura riu do comentário espirituoso da jovem.
— Sou cirurgiã pediátrica. E, bom... somos colegas de trabalho. — respondeu, com um leve sorriso. — Na sua família todos são médicos também? — perguntou, curiosa.
— Na verdade, não. Só a Júlia. E, se Deus quiser, eu também serei — disse, erguendo os olhos ao teto com um toque dramático. — Nosso irmão do meio é engenheiro mecânico. Se formou no final do ano passado, mas ainda não conseguiu emprego na área... então, por enquanto, dirige carro de aplicativo.
Ela deu de ombros e continuou:
— Nossos primos estão espalhados: direito, contabilidade, engenharia, enfermagem... e tem um que está na aeronáutica.
Enquanto Larissa falava, Júlia apenas observava a interação entre as duas, com um olhar meigo e um sorriso sereno nos lábios.
Aquela pizza rendeu a Laura muitas informações. Descobriu que Ana Júlia havia sido a primeira da família a cursar uma faculdade, que passou no único vestibular que prestou — e fez isso antes mesmo de terminar o ensino médio, enquanto ainda trabalhava meio período, em um cartório da sua cidade natal. Depois dela, os irmãos e primos se motivaram a seguir o mesmo caminho. No entanto, todos estudaram — ou ainda estudavam — em faculdades particulares, financiadas por créditos educativos. Apenas Júlia e, agora, Larissa conseguiram entrar em universidades federais. Larissa, inclusive, havia pausado a própria vida por um ano inteiro apenas para se preparar para o vestibular de medicina.
Depois da pizza, Larissa se despediu de Laura e foi estudar em seu quarto — tinha uma prova importante no dia seguinte. Então, enfim, as duas ficaram a sós. Laura quebrou o silêncio:
— Você sabe que se meteu numa grande encrenca, né? Amanhã o hospital inteiro vai estar falando de nós duas. Quer dizer, já começaram hoje... A famosa “Rádio Corredor” não perdoa.
— Eu sei — respondeu Júlia com um suspiro. — Aliás, sua mãe me ligou mais cedo perguntando se você estava comigo. Liga pra ela, Laura. Pareceu aflita.
— Júlia… uma coisa sobre a minha família: tudo é grande demais. Tudo vira drama. Confesso que, neste momento, não quero falar com ninguém. Preciso de um pouco de paz.
— Amanhã a gente enfrenta as feras então — disse Júlia com um sorriso tranquilo.
— E já vou te avisando: esteja preparada. Eles vão te bombardear com perguntas.
Júlia apenas ergueu as sobrancelhas, respirou fundo e murmurou com um sorriso:
— O dia promete.
Mais cedo naquele dia, o telefone de Júlia tocou. No visor, apareceu o nome: Dra. Camila Becker. Júlia suspirou e atendeu no terceiro toque.
— Boa tarde, Júlia. É a Camila. Desculpe incomodar, mas... a Laura está com você?
— Boa tarde, doutora. Sim, está. Estamos na minha casa. Ela está dormindo. Assim que acordar, peço para que te ligue.
— Júlia, me chame apenas de Camila. Ela não vai me ligar, eu conheço a minha filha... Mas obrigada por cuidar dela. Até amanhã.
— Até amanhã, Doutora, é... Camila.
Júlia e Laura chegaram juntas naquela manhã. Laura ainda usava a roupa do dia anterior — apesar de ter tomado um bom banho na noite anterior e dormido com um dos pijamas de Júlia, que, diga-se de passagem, era muito cheiroso. Decidiu não ir para casa naquela manhã, alegando que tinha roupas limpas no hospital.
Como já previam, as fofocas corriam soltas pelos corredores. Durante o dia, em um deles, Júlia jurava ter ouvido que ela teria traído o Dr. Cadu com a Dra. Laura. Em outro, Laura jurava ter escutado que os três formavam um trisal.
Júlia tinha uma cirurgia marcada logo no primeiro horário — daquelas longas, complexas e que exigem mais concentração que prova de vestibular. Estava com a coluna do paciente aberta, dissecando um tumor maligno com toda a precisão de quem sabe que qualquer deslize poderia significar o paciente trocando o tênis por uma cadeira de rodas. Tudo normal… até a porta da sala de cirurgia se abrir devagar.
De repente, surge Camila Becker. Sim, a Camila. De jaleco, máscara cirúrgica sobre o batom impecável e uma humildade que não convencia nem a si mesma.
— Bom dia, Dra. Ana Júlia. Permissão para entrar e assistir à cirurgia?
Júlia, sem perder a firmeza do bisturi, levantou os olhos por cima da máscara cirúrgica com uma sobrancelha mental erguida, e apenas assentiu com a cabeça. Ok, curioso, mas vamos seguir.
Minutos depois — como se estivessem escalonando um bingo da família Becker — entra nada menos que a própria Dra. Eunice Becker, pedindo também permissão para assistir.
Júlia, já na fase de “é pegadinha, né?”, respirou fundo, mas manteve o foco. Porém, quando a terceira figura abriu a porta, até os instrumentos cirúrgicos tremeram de leve: era Olívia, a chefona administrativa do hospital, com a cara de quem estava ali para avaliar… o cosmos.
Foi aí que Júlia não se aguentou.
— Que prazer em vê-la em minha cirurgia, Chefe Olívia. Entendo que o procedimento é delicado, mas posso garantir que tenho plena capacidade de concluí-lo com sucesso. Agora… o que me surpreende é a presença de uma psiquiatra, uma obstetra e a diretora administrativa num procedimento de neurocirurgia. Está faltando alguém da família ainda para entrar? Porque, se mais um Becker entrar por aquela porta, temo que esse paciente possa ficar paraplégico — disparou, com um tom doce e ácido na medida certa.
A equipe riu baixinho — anestesistas, enfermeiras, até o técnico de imagem deu uma fungada. Os residentes, mesmo à beira de uma gargalhada, engoliram o riso como bons profissionais em início de carreira.
— Doutora... — começou Eunice, visivelmente constrangida — peço desculpas pelo incômodo. Assim que terminar a cirurgia, poderia me encontrar na sala de reuniões?
Antes que Júlia pudesse responder, Eunice já tomava providências.
— Vamos deixá-la terminar em paz — disse, enquanto discretamente puxava Camila pelo jaleco e Olivia pela manga do blazer, praticamente as arrastando para fora da sala como uma mãe tirando os filhos do supermercado antes que peçam doce.
A sala voltou ao silêncio, apenas o som dos monitores e instrumentos cirúrgicos preenchendo o ar.
Foi quando o celular de Júlia, posicionado em uma bandeja ao lado, vibrou discretamente.
— Doutora Carla — chamou Júlia, direcionando-se à residente do primeiro ano, que assistia ao procedimento com olhos arregalados e fascinação evidente e medo de ser expulsa da sala, se descobrir que era uma Becker disfarçada — pode ver quem mandou a mensagem?
A residente pegou o aparelho com cuidado, leu e, sem conter um sorriso nervoso, respondeu:
— É da sua namorada, Dra. Laura. Ela escreveu: “Por favor, não fale com ninguém da minha família sem antes falar comigo 🙏.”
Júlia revirou os olhos por trás da máscara e murmurou:
— Essa família deve ser louca, onde foi que amarrei o meu burrinho.
E voltou a dissecar o tumor com precisão milimétrica — e um pequeno sorriso escondido nos olhos.
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Depois de mais de cinco horas em uma cirurgia exaustiva, Júlia se dirigia à ala pediátrica para encontrar-se com Laura. Respeitando o pedido da namorada — ou quase —, desceu pelos corredores que sabia serem menos frequentados por Beckers de plantão. Afinal, aquele hospital parecia um tabuleiro de War da família Becker, e ela estava tentando evitar confronto.
Ao chegar à sala de Laura, foi informada pela assistente, com um sorriso quase malicioso:
— Dra. Júlia, a Dra. Laura está na UTI, foi ver um paciente no pós-cirúrgico. Mas pode esperar por ela aqui, presumo que a veremos mais vezes por aqui — disse, com um risinho sugestivo.
Júlia agradeceu com um aceno contido e entrou. Sentou-se em uma das poltronas à frente da mesa de Laura e aguardou. Minutos depois, Laura apareceu.
— Júlia, que bom que veio. A cirurgia foi bem? Vi no quadro que era uma exérese aberta.
— Sim, correu bem, obrigada por perguntar. O paciente é jovem, agora é torcer pela recuperação. E você, qual o assunto urgente? Tenho uma reunião com sua avó, e presumo que mais alguns Beckers estejam no combo — disse com um sorriso provocador, olhando diretamente nos olhos de Laura.
— Júlia, eu queria te agradecer por ontem. Sei que você agiu no impulso, mas… podemos parar com essa história agora? Vou conversar com minha mãe e com a vó, que estão surtando. Assim você fica livre. Só não posso prometer que conseguiremos evitar as fofocas neste hospital.
Júlia, que olhava fascinada para os olhos azuis mais bonitos que já viu, pensava distraída: Hoje eles estão acinzentados… Será que mudam de cor com o humor? No ápice do prazer, será que escurecem?
— Júlia! — chamou Laura, erguendo uma sobrancelha. — Você tá me ouvindo?
— O quê? Desculpa… Você disse que estou liberada do compromisso, é isso?
Laura assentiu.
— Pois bem, vamos por partes — começou Júlia, se inclinando levemente para a frente. — Eu gosto de você, Laura. Me sinto atraída pela sua pessoa. Não tenho muita experiência amorosa, na verdade, nunca namorei ninguém. Mas eu gosto de você. E acho que você também gosta um pouquinho de mim, porque sinto os seus olhos me observando o tempo todo — disse, com um sorriso leve.
— Eu sei que comecei isso do jeito errado, que atropelei alguns passos… Mas o momento pedia. Eu deveria ter te levado para jantar, depois te beijado no portão, e então te pedido em namoro — riu de si mesma. — Me desculpa por isso. Mas agora, sendo direta: eu quero namorar com você, Laura.
Respirou fundo e completou:
— Sei que não tenho experiência amorosa, muito menos com uma mulher. Mas estou estudando! E você vai me ensinando. Vai dar certo, eu sinto isso.
Laura ficou em silêncio por alguns segundos. Encostou-se na mesa, de braços cruzados, olhando para Júlia com uma expressão indecifrável — olhos ainda acinzentados, mas agora brilhando com algo entre surpresa, ternura e pânico existencial.
— Você quer... namorar comigo? — repetiu ela, como quem tenta confirmar se ouviu mesmo aquilo, ou se o cansaço estava começando a causar alucinações auditivas.
— Quero — respondeu Júlia, firme, embora um pouco corada. — Com encontros, DRs, beijos, andar de mãos dadas, cafés, brigas bobas por senha da Netflix, sex*… tudo que tenho direito.
Laura soltou um riso abafado, quase nervoso, e balançou a cabeça como quem não acredita que aquilo está mesmo acontecendo.
— Júlia, você é uma neurocirurgiã brilhante, centrada, toda certinha... e eu sou uma bagunça emocional ambulante. Você viu o teatro da minha família! Imagina se isso vira assunto na reunião dos Beckers? — disse, rindo com sarcasmo. — Eles vão te crucificar no brunch de domingo.
— Eu já fui exposta na sala de cirurgia para meia dinastia médica hoje — respondeu Júlia com um sorriso debochado. — Nada mais me abala.
Laura se virou de costas por um segundo, passando a mão pelos cabelos, como quem tenta colocar os pensamentos em ordem. Respirou fundo e virou-se de novo.
— Eu não faço ideia de como isso pode dar certo, Júlia. Eu sou teimosa, mal-humorada, tenho problemas não resolvidos com metade da minha árvore genealógica, e... ainda tô tentando entender o que sinto por você. Mas o pior é que... — fez uma pausa — ...quando você me abraçou ontem, eu senti paz. E faz tempo que não sinto isso, com alguém.
Júlia se aproximou, com calma, como quem não quer assustar um animal selvagem.
— Então vamos com calma. Sem rótulos se você não quiser. Mas me dá a chance de mostrar que não sou só uma teórica da anatomia humana — disse, com um sorriso cheio de charme contido. — Posso ser prática também... e muito dedicada.
Laura riu, dessa vez sem ironia, e soltou um suspiro que parecia ter sido guardado há anos.
— Tá. Vamos tentar. Mas nada de Netflix compartilhada por enquanto, isso é muito sério.
— Combinado — respondeu Júlia, estendendo a mão como se firmasse um acordo.
Laura apertou a mão dela. Mas ao invés de soltar, puxou Júlia devagar, e deu um beijo rápido, mas firme. Quando se afastaram, estavam ambas sorrindo, como quem caiu numa enrascada deliciosa.
— Meu Deus… — disse Laura, rindo. — Acabei de aceitar namorar a mulher que está estudando para aprender a namorar. Sério, isso você estuda para tudo?
— Sim, mas gosto de praticar também — respondeu Júlia, rindo.
As duas se olharam. Por um segundo, tudo o que havia entre elas era silêncio, um alívio compartilhado... e a expectativa do que viria depois.
— Agora que é minha namorada oficial, preciso ir ver sua avó. Aliás… posso te levar pra jantar hoje? Um restaurante bacana, e depois… te beijar?
— Acho que pode, namorada — respondeu Laura, com um sorriso torto.
— Então te pego às 19h30, me envia o endereço por mensagem. Já reservei o lugar. E não se atrase.
— Como você sabia que eu ia aceitar sair com você?
— Como eu disse... estudei você — respondeu Júlia, piscando com charme, antes de mandar um beijo no ar e sair da sala.
Laura ficou ali, rindo sozinha, já prevendo que aquela história ainda ia render — e muito.
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SALA DE REUNIÕES – HOSPITAL MEMORIAL KLEIN & BECKER – FINAL DE TARDE
Júlia entrou na sala de reuniões com passos firmes e o semblante sereno, mas atento. Estava vestida com seu jaleco branco impecável, os cabelos presos em um coque baixo e os olhos alertas — cansados após horas de cirurgia, mas presentes.
Na cabeceira da mesa, sentada com um chá fumegante à sua frente, estava Eunice Becker, elegante como sempre, com um tailleur bege e os óculos de leitura pendurados numa corrente dourada. O olhar firme e calculado da matriarca não deixava transparecer emoção alguma.
— Doutora Ana Júlia — disse Eunice, indicando a cadeira à sua frente com um gesto contido. — Obrigada por vir. Imagino que esteja exausta depois da cirurgia.
— Obrigada pelo convite, Dra. Eunice. E sim, foi uma cirurgia longa, mas bem-sucedida.
Silêncio. O tipo de silêncio que dizia muito mais do que qualquer palavra. Eunice repousou a xícara de chá no pires antes de prosseguir.
— Vamos direto ao ponto. Sobre… o incidente no hospital ontem, peço desculpas pelo comportamento e palavras de minha nora Sofia, ela às vezes toma os pés pelas mãos. E também dos desdobramentos. Alguns, digamos, inesperados.
Júlia manteve a postura, mas sentiu o frio na espinha que só uma Becker poderia provocar.
— Dra. Eunice, eu gostaria de me desculpar por qualquer constrangimento causado. Admito que agi no impulso, mas fui movida por indignação e cuidado com a sua neta. — respirou fundo. — E sim, estou me relacionando com Laura. Pretendo fazer isso com respeito e responsabilidade.
Eunice ficou alguns segundos em silêncio, como se pesando cada palavra dita. Em seguida, apoiou os cotovelos na mesa e entrelaçou os dedos.
— Eu vi o vídeo da câmera de segurança da ala de imagem. A senhorita não hesitou em se colocar entre a minha família e o que julgou ser uma injustiça.
Júlia engoliu seco. Ok, então o Big Brother Becker realmente vigiava tudo.
— A senhorita sabia que poderia estar jogando fora sua carreira neste hospital?
— Sim — respondeu Júlia, sem hesitar. — Mas não vou me calar diante de algo errado, nem mesmo para agradar um sobrenome importante.
Eunice arqueou uma sobrancelha, como se a estivesse testando. Mas havia ali, por trás da frieza, um brilho de aprovação discreto.
— Laura é complexa. Orgulhosa, intensa. E sofreu mais do que deixa transparecer. — A matriarca ajustou os óculos. — Se você for só mais alguém que vai deixá-la no chão quando as coisas ficarem difíceis, eu prefiro que acabe com isso agora.
Júlia respirou fundo, encarando-a com firmeza.
— Eu não sou perfeita, Dra. Eunice. Mas estou disposta a tentar. E se eu errar, vou errar tentando acertar. Porque gosto dela de verdade. E estou aprendendo.
Um breve silêncio pairou, até que Eunice assentiu lentamente.
— Muito bem. Então saiba que minha porta estará sempre aberta. Não como sua superiora, mas como alguém que entende o que é lutar para amar alguém quando o mundo parecia inteiro contra.
— Obrigada.
Júlia riu, aliviada.
As duas trocaram um olhar respeitoso. E, pela primeira vez, Júlia teve a sensação de que havia ganhado não apenas um espaço no hospital, mas também no círculo fechado da família Becker.
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Júlia usava um vestido preto de alças finas, o cabelo solto em ondas suaves que emolduravam seu rosto com natural elegância. Estava ansiosa — daquele tipo bom, quase adolescente, que faz o coração acelerar só de imaginar rever aqueles olhos azuis intensos.
Parou diante do enorme portão e sentiu um frio subir pela espinha. Sabia que Laura era rica, claro, mas não esperava uma mansão digna de novela das nove. Ao apertar o interfone, uma voz masculina respondeu com formalidade e liberou sua entrada.
Assim que a porta principal se abriu, Laura surgiu como uma visão cinematográfica. Vestia uma calça de alfaiataria preta de cintura alta, combinada com uma blusa de seda azul-marinho que realçava ainda mais seus olhos. Os cabelos loiros estavam soltos, ondulados nas pontas, e o batom vermelho discreto dava o toque final de ousadia elegante.
O coração de Júlia bateu forte no peito — e ela teve certeza de que havia esquecido como se respirava.
Ao entrarem no carro, Júlia foi envolvida pelo perfume suave e inconfundível da loira. Reconheceu o cheiro que agora parecia familiar, como se tivesse sido criado só para ela.
Laura sorriu com naturalidade e se aproximou, cumprimentando com um beijo discreto na bochecha. Júlia respondeu no mesmo tom, embora por dentro estivesse gritando: "Pelo amor de Deus, alguém me segure para eu não beijar essa mulher agora mesmo!"
Mas ela respirou fundo e se conteve. Ainda. Não queria parecer afoita.
A noite estava só começando. E, pela primeira vez, ambas permitiriam que o sentimento fluísse sem freio.
O restaurante escolhido por Júlia era sofisticado, com luz baixa, música ambiente e uma atmosfera que parecia feita sob medida para primeiros encontros que marcam para sempre. Sentaram-se à mesa perto da janela, de onde se via a cidade acesa, como um céu noturno invertido.
Júlia puxou a cadeira para Laura sentar.
O garçom apareceu com o menu. Júlia pediu um vinho.
— Chardonnay? Ponto pra você, acertou.
— Acertei você inteira, doutora. — Júlia brincou, apoiando o queixo na mão. — Estudei.
— Você estuda demais. Até parece que quer me impressionar.
— Quero. Estou tentando parecer confiante, mas por dentro estou quase derrubando a taça.
Laura riu de leve e bebeu um gole do vinho.
— Eu também. Me peguei nervosa o dia todo. É estranho, mas bom.
— Eu pensei em você o dia todo, — disse Laura, sem floreios. — E isso me assusta um pouco. Eu não sou boa em... deixar as coisas acontecerem.
— E eu sou péssima em fingir que não sinto. Por isso estou aqui. Porque mesmo com tudo, com o caos, com os Beckers, com o hospital, com a vaga no estacionamento... — elas riram — você é o que eu quero agora.
Laura ficou em silêncio por alguns segundos, olhando fixamente para Júlia. O olhar azul estava mais suave, quase derretido.
— Eu também te quero, Júlia. Desde que te vi naquela reunião ridícula. Mas fiquei com raiva. Porque você me deixou exposta. Vulnerável. E eu passei tanto tempo me protegendo que... me esqueci de como é ser vista de verdade.
— Eu vejo você, Laura. Mesmo quando você está se escondendo atrás da ironia, da cara feia, das piadas ácidas.
— E você é insuportavelmente doce. Mas eu gosto disso. — Laura deu um sorriso enviesado.
A comida chegou. Por alguns minutos, as duas se dedicaram a comer, comentando o sabor, rindo de uma garfada atrapalhada de Júlia que quase derrubou um cogumelo sobre o vestido.
Depois da sobremesa — um crème brûlée dividido com olhares e risos —, Júlia segurou a mão de Laura sobre a mesa. O toque era leve, mas firme.
Conversaram sobre tudo — medicina, infância, traumas, sonhos — e entre uma taça de vinho e outra, os olhos se encontravam mais do que as palavras. Júlia ouvia Laura como quem decifra um livro raro, e Laura sorria de um jeito que desarmava qualquer defesa.
Depois do jantar, caminharam até o carro lado a lado, os dedos quase se tocando. O silêncio que se instalou entre elas não era desconfortável — era denso, carregado de significados não ditos. Ao pararem diante da porta do carro, Laura se virou de frente para Júlia. Os olhos azuis a encaravam com uma mistura de ternura e hesitação.
— Você me desconcerta, Júlia — disse, num sussurro. — E eu odeio não ter controle das coisas.
— Talvez seja bom, de vez em quando — respondeu Júlia, dando um passo à frente. — Soltar o controle. Sentir. Só... sentir.
Laura baixou o olhar por um instante, depois voltou a encará-la. O coração batia acelerado, a respiração irregular, como se o corpo todo soubesse que aquele momento era único. Júlia ergueu a mão devagar e tocou o rosto de Laura com delicadeza, como se pedisse permissão com os dedos.
Laura fechou os olhos. Foi o suficiente.
O beijo aconteceu como um sopro — não houve pressa, nem dúvida. Os lábios se encontraram no tempo certo, como se tivessem se procurado por vidas inteiras. Foi terno no começo, depois mais profundo, mais urgente, como se quisessem compensar o tempo perdido entre farpas, olhares desviados e silêncios disfarçados.
Quando se afastaram, os olhos ainda fechados, ambas sabiam: não era apenas um beijo. Era o início de algo que escapava de qualquer diagnóstico.
— Então… — murmurou Laura, ainda com os lábios próximos aos de Júlia — você beija assim toda mulher que briga com você por uma vaga?
Júlia riu, com o coração leve.
— Só as que me tiram do eixo… e me fazem querer ficar.
Laura sorriu. E pela primeira vez em muito tempo, não teve medo de onde aquilo poderia dar.
Fim do capítulo
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lia-andrade
Em: 07/07/2025
Que capítulo maravilhoso. Júlia não enrola e vai logo direto ao que quer, mostrando realmente a que veio. Amei! Ansiosa pra mais delas..
Até mais..
Donana
Em: 10/07/2025
Autora da história
Oi Lia-andrade,
Obrigada por comentarm um abraço.
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Donana Em: 10/07/2025 Autora da história
Oi Mmila,
Agradeço o seu comentário, vamos apimentar um pouquinho a história.