Olhos Que Queimam
🐺
As tábuas da varanda do Javali de Ferro rangiam sob os pés descalços de Rhae Cerwyn, enquanto ela amarrava a toalha de mesa em torno do corpo com um nó rápido e desleixado. A textura áspera arranhava sua pele ainda quente da corrida em forma lupina, mas era o menor dos desconfortos naquele momento. O maior deles — aquele que deixava suas entranhas em chamas — estava do outro lado da porta da taverna.
A mulher de olhos escuros.
A que sorria como quem guardava segredos em frascos de cristal.
Rhae passou os dedos pelos cabelos ruivos, tentando domá-los em vão. Havia lascas de madeira no couro cabeludo, um arranhão no ombro, e cheiro de vergonha misturado ao suor da vitória. Ela respirou fundo, inflando os pulmões com os aromas do lugar: cerveja amarga, carne assada, um leve toque de magia — e aquele cheiro. O cheiro dela. Adocicado, metálico e impossível de rotular.
— Que droga, Cerwyn — sussurrou para si, empurrando a porta de madeira pesada com um ombro.
O interior da taverna parecia uma pintura viva: gente rindo alto, dançando sobre mesas, bruxas lançando feitiços inofensivos só por diversão, e um bardo desafinado tocando um violino com mais entusiasmo do que técnica. Mas, no centro do caos, havia um vácuo silencioso. Uma ausência de barulho ao redor da presença dela.
Clara.
Ela estava sentada sozinha em uma mesa próxima à lareira, pernas cruzadas com a elegância de quem nasceu para ser observada. Os cabelos negros caíam como véu de noite sobre os ombros pálidos. O vestido preto moldava-se ao corpo como uma segunda pele encantada. E os olhos... Deusas. Olhos escuros, fundos, que pareciam olhar através de Rhae.
A loba parou por um instante. O coração batia no ritmo de um tambor de guerra. Ela engoliu em seco, pegou uma caneca de hidromel da bandeja de um garçom distraído e seguiu até a mesa com passos firmes demais pra serem naturais.
— Alguém disse que as garotas misteriosas vêm com manual de instruções? — perguntou, largando a caneca na mesa e sentando-se sem esperar convite.
Clara ergueu os olhos. O sorriso torto voltou, ainda mais provocador.
— Só as que morderam lobas no passado. — Sua voz era baixa, quente, e tinha uma musicalidade que fazia a espinha de Rhae arrepiar.
— Boa sorte tentando me morder — rebateu Rhae, estufando o peito. — Eu mordo de volta.
— Foi o que eu imaginei.
Por um segundo, ficaram em silêncio, medindo uma à outra como duas espadas prestes a se chocar. Rhae não sabia se queria beijá-la ou desafiá-la para um duelo. Talvez os dois. Definitivamente os dois.
— Rhae Cerwyn — disse, enfim. — Loba. Alcateia Cerwyn, terras do norte. Maior impulsividade do sul. E você é...?
Clara tocou o colar de pedra escura que pulsava levemente em seu pescoço, como se guardasse algo vivo.
— Clara basta, por enquanto. Estou... viajando. E você parecia estar se divertindo muito no telhado.
Rhae corou. Só um pouco. Só o suficiente pra parecer humana.
— Eu estava vencendo uma aposta. Ficar nua e uivar pro céu é tradição.
— Interessante tradição. — Clara apoiou o queixo na mão, olhando Rhae como se estudasse uma pintura rara. — Você sempre faz isso diante de multidões?
— Só quando tem algo bom pra olhar de volta.
Clara sorriu, e dessa vez não foi só charme. Foi calor. Foi um sorriso que dizia "eu também estou curiosa". Mas antes que pudesse responder, uma cadeira arrastou-se do outro lado da taverna, e uma voz bêbada interrompeu o momento:
— Rhae, sua maluca! Cadê tuas roupas?!
Era Kael, um dos lobos da alcateia Mossfang, com olhos esbugalhados e a risada arrastada dos que já beberam demais.
— Tô vestida sim — rebateu Rhae, abrindo os braços e mostrando a toalha com orgulho teatral. — O melhor da moda em decoração de mesa.
— A velha Maura vai te jogar no caldeirão dela!
— Que tente.
Clara observava tudo com um brilho divertido nos olhos, como quem assistia a uma peça cômica encenada só para ela.
— Então, Rhae Cerwyn... — retomou Clara, quando o barulho diminuiu. — Me diga: o que uma loba faz quando não está se jogando de telhados ou assustando bardos?
Rhae bebeu um gole do hidromel. Seu olhar ficou mais sério, mesmo que o sorriso persistisse nos lábios.
— Corre. Morde. Vive. E foge do destino que as matriarcas tanto adoram repetir.
— Você não gosta da sua alcateia?
— Gosto. Só não gosto das regras. Nem de ficar presa num papel pré-escrito. Quero mais do que casamento arranjado e patrulhas noturnas.
— E o que quer?
Rhae a olhou por um momento. Clara parecia real demais para ser sonho, mas surreal demais pra ser apenas mortal.
— Quero saber quem você é de verdade — disse, por fim. — Porque você não é uma visitante qualquer. Seu cheiro… sua presença... — ela inclinou-se para frente — …me faz pensar em coisas antigas. Perigosas.
Clara inclinou-se também. Os rostos ficaram próximos, respirações se encontrando entre palavras.
— E se eu for perigosa?
Rhae sorriu, com as presas ligeiramente à mostra.
— Então finalmente encontrei alguém que vale a mordida.
Um trovão distante ribombou, como se o céu sentisse o que acabava de nascer ali. E no instante seguinte, a porta da taverna se escancarou. Um mensageiro entrou correndo, coberto de poeira e suor:
— Alcateias de Eiswalt! Um corpo foi encontrado na trilha do leste! Mutilado! Marcas de garras e… e de presas!
O salão congelou. Rhae e Clara se entreolharam.
E, por um segundo, aquele flerte que dançava entre desejo e diversão… virou presságio.
Fim do capítulo
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