Capitulo 6 - Cotidiano
O abajur do lado direito da cama lançava uma luz amarelada e suave sobre o quarto amplo e aconchegante. Cortinas claras balançavam suavemente com a brisa noturna. No banheiro, Camila terminava de aplicar seu ritual sagrado de todas as noites: limpeza de pele, hidratante nas pernas e nos braços, e aquele creme anti-idade que jurava funcionar mais pela fé do que pela química.
Na cama, Dr. Afonso, de óculos e camiseta de algodão, navegava lentamente no tablet — perdido entre anúncios de SUVs, conversíveis e picapes, como se realmente fosse trocar o carro este ano, o que Camila duvidava há uns cinco.
Camila nem precisou levantar os olhos do creme que espalhava nas mãos para adivinhar.
— Vai trocar de carro ou só vai continuar namorando esse botão de “comprar” até 2028?
— Tô só estudando o mercado... e flertando com minha liberdade motorizada. Tô entre um híbrido e um daqueles alemães que se dirige sozinho…Mas acho que vou continuar com o meu mesmo, ele me entende. — respondeu Afonso, com aquele sorrisinho de quem sabe que foi pego no flagra.
— Liberdade, é? Você e esse carro têm um casamento mais sólido que o nosso.
- Claro que não. Nosso casamento tem mais airbag emocional.
Os dois riem juntos. O silêncio confortável de um casal maduro enche o quarto por alguns segundos.
Camila sentou-se ao pé da cama, cruzou as pernas e passou o hidratante com a calma de quem sabia que o cerco estava prestes a fechar. O marido conhecia aquele olhar e podia ouvir as engrenagens do cérebro da esposa movimentar.
— Esse cheiro é bom. É novo? — ele tentou puxar um assunto, quase inocente.
— Amor... tô preocupada. A gente não devia se preocupar tanto, né? Mas fingir que não liga é praticamente impossível.
— Adivinha... nossos meninos?
Afonso colocou o tablet na mesinha de cabeceira, suspirando como quem sabe que vai levar um leve puxão de orelha com afeto.
— Exato. O Fabrício é nosso troféu: virou promotor, casou com a incrível da Lívia, nos deu a Letícia, que é praticamente um raio de sol com bochechas. Mas os outros três...
— A Letícia é nosso anjinho. Se fosse por ela, eu já teria largado o jaleco pra virar contador de histórias. — disse Afonso, fazendo carinho na mão da esposa.
— Agora o Leonardo... esse nasceu pra ser meme. Herdou seu charme e minha inconstância emocional da juventude. Vive num eterno “não tô pronto pra nada”. Camila suspirou continuando…
— E ainda mantém essa “amizade colorida” com a Fernanda. Aquilo não é relação, não é amizade, é… assinatura vitalícia de dor de cabeça. Ela finge que não sente, ele finge que não liga, e a gente finge que não vê. — Afonso riu, balançando a cabeça.
— E a Laura... nossa filha enigma. Parece calma desde que voltou, mas eu conheço aquela carinha. Ela voltou, e isso já é muita coisa. Só Deus sabe o que ela viveu naquele triângulo Beckers-Natália. Eu ainda acho que a Natália merecia um puxão de orelha meu. Tipo um chega prá lá da ex-sogra. - Afonso sorriu com a fala da esposa e completou
— Sim... fico pensando se ela tá bem de verdade, sabe? Sempre foi fechada, misteriosa... Ela finge que tá sempre no controle. Minha mãe percebeu cedo sua sexualidade, se aproximou, protegeu, enxergou o que a gente nem pensava. E você sabe, Camila: ela se blindou. Sorriso doce, fala tranquila... e uma tonelada de sentimento por dentro. Vai encontrar o caminho dela. No tempo dela. .
— Sua mãe sempre foi próxima dela, um anjo que sempre protegeu nossa filha. Acho que o trauma com seu tio Alberto deixou sua mãe sempre em estado de alerta com ela. E claro que bate aquele medo... a gente quer proteger, mas também não quer sufocar. Você se reconhece nela né?
- Só quando ela fecha a cara e resolve que vai resolver o mundo com uma única frase.
Camila sorri e passa a mão no braço dele.
— Só sei que, aconteça o que acontecer, meus filhos têm meu amor incondicional. Não importa se seguem o “esperado”. Quero eles felizes — disse Afonso com firmeza, e um sorriso sereno.
— E falando em felicidade... Laura já sabe que a Natália é a nova advogada do hospital?
— Não faço ideia. Se mamãe não contou, é possível que venha surpresa por aí.
Camila o olhou, com uma sobrancelha arqueada.
— Afonso... você lembra do escândalo do jantar? Sua irmã puxando cabelo, Leonardo dando soco, sua testa com um galo?
— Até hoje eu tremo quando vejo uma taça de espumante. Trauma, Camila, trauma.
— Olivia assumiu a administração do hospital como se estivesse comandando a ONU. Já deu pito até no chefe da TI.
— E merecido! Mas confesso que queria ver nossa caçula mais leve. Ela se cobra tanto… Encontrando um amor verdadeiro como o nosso.
— Sempre tentando provar que cresceu, né? Ah, esses nossos filhos...
— Mas olha, apesar dos tropeços, dramas, boletos e crises existenciais... eles estão vivos, tentando, se virando. E sempre voltam pra gente.
— Sempre. Porque essa casa… é lar.
Afonso puxou Camila pela cintura, deu-lhe um beijo leve e amoroso. Ela sorriu. A luz do abajur foi apagada. O som distante da cidade foi ficando para trás, até restar só o silêncio macio de dois corações que envelheciam juntos — do jeito mais bonito que existe.
— Obrigado, amor... por amar tanto nossa família.
— Sempre, meu Rei. Boa noite.
— Boa noite, minha Rainha.
Naquela mesma semana…
Apartamento de Fabrício e Lívia – Curitiba, noite de sábado
O elevador abriu as portas e Laura mal teve tempo de pisar no hall do andar quando ouviu o som de passos apressados seguidos de um grito agudo e animado:
— TIIIIIIIIIA LALAAAAAAA!
Letícia, 3 anos de pura energia concentrada, atravessou o corredor como uma flecha cor-de-rosa, descalça, com o cabelo preso em dois coques desalinhados e uma saia de tule brilhante que claramente não fazia parte de um pijama comum.
Laura foi surpreendida por aquele foguete humano, que se jogou nos seus braços com a força de quem guardou saudade em potinhos.
— Aaaaah! Minha menina! Olha o impacto! — Laura gargalhou enquanto caía meio de lado no sofá da entrada, sendo coberta por beijos estalados e glitter.
— Tia Lala, você voltou! Eu vi sua cara na televisão do papai, mas ele disse que era vídeo chamada, que não era filme de verdade. Mas agora você tá aqui! E eu tenho um unicórnio novo que solta cheiro de morango!
— Um unicórnio aromático? Agora sim, voltei pro Brasil de verdade! — Laura respondeu, entre beijos na bochecha da sobrinha. — Aliás, você cresceu ou sua mãe te regou com fermento?
— Fermento não, vitamina de beterraba com cenoura! A vovó Camila mandou!
A risada da família Becker já começava a ecoar pelo apartamento, enquanto Fabrício e Lívia apareciam na sala com sorrisos e braços abertos.
— Olha quem decidiu aparecer no Brasil depois de sumir no mapa por três anos — brincou Fabrício, abraçando a irmã com força.
— Oi pra você também, doutor promotor! — disse Laura, sorrindo e apertando o irmão mais velho num abraço apertado. — E desculpa aí se eu estava muito ocupada salvando vidas e tentando não congelar em Londres.
— Desculpa não ter participado do seu jantar de regresso. Tivemos uma grande festa de Chapecó dos últimos tempos — disse Lívia, dando um beijo na cunhada. — Vovô fez 80 anos e dançou valsa com vovó todo animado. Derrubou dois vasos e quase caiu da escada, mas foi épico!
— Eu devia ter ido só pra ver isso! — riu Laura.
— E você devia ter visto a Letícia no palco cantando “Evidências” com a banda. Foi mais emocionante que formatura de medicina — completou Fabrício.
— Papai, posso mostrar meu show novo pra tia Lala? — Letícia já puxava Laura pela mão em direção à sala.
— Mais uma vez? — perguntou Lívia, fingindo exaustão. — Letícia, querida, você já fez esse show seis vezes hoje.
— Mas foi pra plateias diferentes! Agora é pra tia que veio de Londres!
E antes que alguém pudesse argumentar, a luz da sala se apagou, a lanterna do celular foi ligada em modo “spotlight” e Letícia começou a cantar com a dramaticidade de uma diva mirim:
— ♪ E nessa loucura de dizer que não te quero... ♪
Laura ria tanto que precisou se apoiar no sofá.
— Eu não acredito que tô sendo homenageada com Chitãozinho & Xororó em versão infantil. Isso sim é amor de verdade!
— Ela te esperou muito, Laura — sussurrou Lívia, sorrindo com doçura. — Falava de você todos os dias, via suas fotos com a vovó Camila, perguntava quando voltava. Sentimos sua falta.
— Eu também senti a de vocês. Mais do que imaginam. — disse Laura, com um sorriso emocionado.
Depois da performance de Letícia e da ovação (com direito a aplausos e bis da avó Eunice), a família Becker se reuniu ao redor da grande mesa de jantar posta com carinho. Risos, taças tilintando e conversas atravessadas enchiam o ambiente com aquele som raro e precioso: o da saudade sendo vencida pelo reencontro.
E no canto da sala, Letícia cochilava no colo da tia Laura, agarrada ao unicórnio aromático, com um sorriso bobo no rosto — talvez o mesmo que a tia carregava, escondido entre os cachos e os segredos do peito.
Hospital Memorial Klein & Becker, duas semanas depois:
Segunda-feira, 06h58 da manhã.
O Hospital Memorial Klein & Becker era um prédio imponente com fachada envidraçada e jardins bem cuidados. O letreiro reluzia ao sol tímido da manhã, como se dissesse com voz grossa: “Bem-vinda de volta à zona de guerra.”
Laura estacionou o carro no canto mais discreto do estacionamento e encarou o próprio reflexo no retrovisor. A touca azul-clara com desenhos de bichinho no bolso do jaleco, os cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, e o crachá pendia do pescoço como uma medalha de guerra. Respirou fundo. Três anos depois, era hora de vestir o jaleco de volta — e, se possível, não surtar nos primeiros 20 minutos.
Adentrou o saguão e foi recebida pelo cheiro inconfundível de café requentado, álcool 70% e corredores eternamente movimentados. Sentiu o estômago apertar. Não por nervosismo — mas por saber que aquele lugar guardava histórias que o tempo não apagara.
— Laura Becker, cirurgiã pediátrica! — ouviu uma voz conhecida anunciar atrás de si, com exagerada empolgação teatral.
Virou-se e deu de cara com Dr. Cadu, o anestesista mais fofoqueiro e enrustido do hospital. Camisa social rosa-choque sob o jaleco e um sorrisinho debochado de quem sabia demais para o próprio bem.
— A lenda está de volta! Londres não te deu um sotaque chique, mas aposto que você agora fala “bloody hell” quando acaba a dipirona — disse ele, estendendo os braços para um abraço.
— Cadu... — Laura riu. — Continue assim e ganho uma úlcera antes da primeira cirurgia.
— Ah, que bom que voltou! O hospital precisava de uma médica que sabe operar e ainda consegue tomar café sem derramar na ficha do paciente.
Enquanto seguiam pelos corredores em direção à sala dos médicos, ela reencontrou outros rostos conhecidos — enfermeiros, residentes, recepcionistas. Alguns sorriram com calor, outros com aquela expressão de quem quer perguntar tudo e nada ao mesmo tempo. A fofoca da filha do Dr. Afonso estava viva e bem nutrida.
Na sala de descanso, Fernanda já a esperava sentada no sofá, jaleco dobrado no colo e cara de poucos amigos — o que, para Fernanda, significava que estava com saudade.
— Demorou. Achei que ia voltar só pro Natal.
— Achei que ia me receber com flores — respondeu Laura, jogando a bolsa no armário. — Ou uma faixa: “Seja bem-vinda, de volta ao caos”.
— Meus olhos fundos e o silêncio constrangido do RH são o que temos no orçamento — ironizou Fernanda, antes de soltar um suspiro e abraçá-la com força.
— Você faz falta, idiota — murmurou. — E agora que voltou, não me deixa mais com esses internos burros e cirurgiões metidos.
— Senti sua falta também — respondeu Laura, emocionada.
Antes que o momento se prolongasse demais, um aviso no alto-falante cortou o clima:
— Drª Laura Becker, favor comparecer à emergência pediátrica. Código Azul.
As duas trocaram um olhar rápido.
— Bem-vinda de volta, Dra. Becker — disse Fernanda, já abrindo caminho pelo corredor.
Emergência pediátrica – 07h30.
O menino de sete anos havia sido atropelado e chegara em parada respiratória. O ambiente era tenso, mas coordenado. Laura calçou as luvas com precisão, assumiu a liderança da equipe e mergulhou na cirurgia como se nunca tivesse saído. Movimentos seguros, comandos firmes, foco absoluto.
— Passa o bisturi. Clampeia essa artéria. Monitora a saturação. Vamos, vamos...
Ao final, depois de vinte minutos de adrenalina pura, o pequeno paciente estava estabilizado.
— Bom trabalho, Dra. Becker — disse a residente com os olhos brilhando.
— Foi só o começo. Aguardem as cenas dos próximos capítulos — respondeu Laura, retirando as luvas com um sorriso no rosto e o coração acelerado — mas dessa vez, por um bom motivo.
Sala dos Médicos – Hospital Memorial Klein & Becker, um mês depois
A manhã no Hospital Memorial Klein & Becker corria em ritmo típico de segunda-feira: café esfriando em copos esquecidos, prontuários se empilhando e um leve burburinho entre os profissionais na sala dos médicos — aquele santuário de descompressão, onde jalecos se cruzavam entre confidências e cafés.
Laura estava sentada à mesa, revisando exames no tablet, enquanto Olivia — impecável mesmo com a pasta de relatórios embaixo do braço — ajustava uma planilha mental de tarefas. Fernanda, deitada preguiçosamente no pequeno sofá da sala, equilibrava uma maçã e uma fofoca no mesmo tom.
— Vocês souberam da última? — disse Fernanda, mordendo a maçã com gosto. — Rainha mãe Eunice e Dr. Hermes fizeram uma “viagem técnica” para contratar uma neurocirurgiã estrela. Mas pelo tempo que eles estão fora... ou a médica é muito difícil de achar, ou tem romance no ar.
Olivia, sem levantar os olhos da tela do notebook, comentou com sua pontaria certeira:
— Fernanda, por favor. Minha avó é uma mulher séria. Se tivesse um caso com cada médico com quem viaja, esse hospital seria novela das nove.
— Exato! E você acha que não é? — retrucou Fernanda, dando uma risadinha. — Dra. Eunice e Dr. Hermes: os Grey's Anatomy de Curitiba. Confia em mim, tem tensão. E detalhe: dizem que a tal cirurgiã é jovem, brilhante, vinda dos “States”. Vai ser contratada pra chefiar a nova ala de neurocirurgia e neurologia.
Laura levantou o olhar, interessada pela novidade.
— Jovem e brilhante? Essa combinação geralmente vem com ego inflado e problemas de convivência. Espero que ela não seja do tipo que acha que o centro cirúrgico gira em torno do próprio bisturi.
— Ou pior — disse Olivia, franzindo a testa — o tipo que ignora protocolos porque "fez residência nos “States”" e acha que pode operar de fone de ouvido.
Fernanda riu alto, quase se engasgando com a maçã.
— Vocês são péssimas! A mulher nem chegou e já estão derrubando o CRM dela! Olha, eu tô torcendo pra que ela seja incrível, linda, e solteira... só pra causar um rebuliço aqui dentro. A ala da neuro agradece.
— Fernanda, pelo amor — disse Laura, segurando o riso. — Isso aqui é um hospital, não a terceira temporada de Casamento às Cegas.
— Ah, meu bem, hospital e reality show se misturam mais do que vocês pensam. Aqui a gente cura, ama, trai, reconcilia, toma café e reclama da administração. Tudo no mesmo turno.
Olivia ergueu uma sobrancelha, rindo.
— Eu ouvi "reclama da administração"?
— Jamais! — respondeu Fernanda, teatral. — Você é nossa CEO da ONU!
As três caíram na risada. A sala dos médicos se encheu de um riso breve, quase cúmplice. E por um instante, mesmo em meio a jalecos, protocolos e bisturis, o Hospital Memorial Klein & Becker parecia mais um lar do que um centro médico.
Do lado de fora da porta, um enfermeiro passou apressado com uma bandeja de exames.
— Hora do show, meninas — disse Olívia, se levantando. — E que a neurocirurgiã dos sonhos não seja também a próxima paixão cirúrgica do Dr. Afonso, senão minha mãe Camila vai precisar de sedativos.
— Ih, se for bonita mesmo, tua mãe começa a fazer plantão no hospital de novo — disse Fernanda, piscando.
— Bora, Fernanda. Antes que sua imaginação vire boletim de ocorrência — disse Laura, puxando a amiga pelo braço.
Elas saíram da sala rindo, como se a fofoca tivesse sido um remédio poderoso. E, no fim, era mesmo.
Sala de Parto – Hospital Memorial Klein & Becker – Ala Obstétrica
A tensão no ar podia ser sentida mesmo antes de se cruzar a porta da sala de parto. Lá dentro, o som do monitor cardíaco reverberava como um metrônomo apressado, intercalado com os comandos firmes e calmos da Dra. Fernanda, vestida com jaleco verde, touca e máscara, o olhar concentrado sob as luzes cirúrgicas.
— Frequência cardíaca fetal está oscilando. Trabalho de parto prolongado. Vamos para cesárea de emergência — ordenou Fernanda com voz firme, enquanto os enfermeiros se mobilizavam em sincronia.
No corredor, Laura já aguardava com sua equipe pediátrica e cirúrgica. Trajava um capote azul escuro, luvas e máscara pendurada no queixo. Passava os olhos pela ficha do bebê, diagnosticado com uma possível obstrução abdominal intrauterina. Ela tentava manter a calma, mas o que sentia por dentro era o conhecido turbilhão que toda cirurgia neonatal traz — e mais. Ali, naquela sala, Fernanda estava dentro, enfrentando um parto complicado, e isso acrescentava uma camada emocional difícil de ignorar.
— Tudo certo com o centro cirúrgico neonatal? — perguntou ela a uma das residentes ao seu lado.
— Pronto e em espera, Dra. Laura. Já acionamos a UTI móvel também, caso precise transferir o bebê logo após o parto.
— Perfeito. Vamos respirar e nos preparar. — disse Laura, como quem fala para si mesma também.
De volta à sala de parto, Fernanda já havia iniciado a incisão. Ao seu lado, a instrumentadora lhe passava o bisturi com precisão.
— Respiração estável? Pressão da mãe? — perguntou, sem desviar os olhos.
— Pressão 10 por 6. Saturação boa. Tudo sob controle — respondeu a anestesista.
— Ok, vamos tirar esse bebê.
Um minuto. Dois. Três.
— Força... força... — murmurou Fernanda, aplicando toda a técnica e cuidado que aprendeu nos últimos cinco anos com sua mentora Dra. Eunice.
E então, o choro do bebê não veio.
— O cordão estava enrolado três vezes! — avisou o assistente, cortando rapidamente.
Fernanda pegou o bebê, azul e flácido, e o entregou às pressas para a equipe de Laura, que adentrou a sala para receber o bebê.
— Ausência de choro, sem reflexo — anunciou Laura, já com o bebê sobre a mesa térmica.
— Iniciando manobra de reanimação neonatal. Sonda traqueal. Frequência cardíaca baixíssima.
— Vamos, pequenino… reage. — murmurou Laura, quase como uma súplica.
A sala ficou em silêncio, rostos tensos por trás das máscaras.
— Ele vai ficar bem? — perguntou Fernanda com tremor nas pernas.
Laura a olhou por cima da máscara, os olhos firmes:
— Vai. Está com a melhor equipe da cidade. A gente não perde esse aqui.
Segundos depois, o bebê emitiu um som fraco, mas presente.
— Respiração espontânea iniciada. Frequência cardíaca em recuperação. Mas temos distensão abdominal — alertou a residente.
— Vamos levá-lo agora para o centro cirúrgico. Tudo como previsto — disse Laura, com um suspiro misturado de alívio e prontidão.
Ela se virou para Fernanda antes de sair:
— Você fez sua parte. Agora é a nossa vez.
Os olhos das duas se cruzaram. Entre o suor e o alívio, entre o cansaço e a tensão, havia um laço silencioso que só quem já salvou uma vida pode entender — ou dividiu o peso de quase perdê-la.
Fernanda assentiu, com os olhos marejados, e respondeu baixinho:
— Cuida bem dele, por favor.
Laura sorriu por trás da máscara:
— Com minha própria vida.
E seguiu, empurrando a incubadora, enquanto as portas do centro cirúrgico se abriam.
Bar “Ponto Cego” – Sexta à noite – Curitiba
Luzes âmbar, jazz moderno misturado com pop ao fundo, copos tilintando e um leve aroma de cítricos no ar. O bar “Ponto Cego” era o point do momento na noite curitibana – onde se discutia casos cabeludos à mesa e se esquecia deles no segundo drink.
Em uma das mesas do fundo, Laura bebia devagar uma gin tônica enquanto olhava o movimento sem muito entusiasmo. Ao seu lado, Olivia, de blazer e tênis brancos estilosos, já ria alto com Fernanda, que contava mais um de suas peripécias amorosas. Leonardo, sempre galanteador, fazia questão de dar pitaco em todos os comentários.
Cadu — médico e palpiteiro de plantão — mexia no celular, mas prestava atenção o suficiente para entrar no papo.
— Laura, pelo amor, você está aí parada igual planta decorativa. Levanta essa cabeça, mulher. Tem uma bartender morena ali que está te olhando desde que você pediu aquele drink com nome de planta medicinal. — disse Fernanda, quase cochichando.
— É um “Negroni com infusão de alecrim”, Fernanda. Não é “chazinho de vó” — retrucou Laura, rindo, mas sem disfarçar o rubor.
— O nome pode ser chique, mas seu flerte é nível creche. — rebateu Olivia, já erguendo a sobrancelha como quem traça plano. — Eu apoio: aproximação estratégica em três tempos.
— Três tempos? — perguntou Cadu, interessado.
— Claro! — respondeu Olivia, contando nos dedos. — Um: elogio casual. Dois: contato visual sustentado por pelo menos quatro segundos. Três: sugestão de um drink especial da casa — de preferência compartilhado.
Leonardo, já com três chopps no organismo, emendou:
— Gente, vocês são amadores. Quer ver? — Ele se levantou da cadeira e foi direto até o bar.
Laura arregalou os olhos.
— NÃO! Leonardo, volta aqui!
— Já foi. — disse Cadu, rindo. — Tá armando.
Laura tentou afundar no encosto da cadeira enquanto via o irmão conversar animadamente com a bartender. A moça, uma morena de cabelos presos num coque bagunçado, tatuagens nos braços e um sorriso tranquilo, virou o rosto discretamente para a mesa deles e olhou… direto para Laura.
— Aaaah! — cantaram Fernanda e Olivia em uníssono, como se estivessem assistindo a um reality show.
— Ela é bonita. — murmurou Laura, mais para si mesma.
— Ela é um escândalo de bonita. E tá interessada, Laura! Vai perder essa chance? — provocou Fernanda, batucando a mesa.
Minutos depois, Leonardo voltou com um drink em cada mão e um sorriso maroto.
— Ela disse que esse é “um coquetel novo, feito pra quem gosta de surpresas agradáveis”. Mandou pra você. — estendeu o copo a Laura com o ar de quem acabou de realizar um feito diplomático.
Laura pegou o copo, tímida, mas divertida.
— E o que você disse pra ela?
— Que minha irmã é cirurgiã, mora em livros de medicina e precisa urgentemente de uma prescrição de flerte. De preferência, administrada por alguém com um olhar bonito e mãos firmes.
— Você é um cretino. — respondeu Laura, entre risos, dando um gole na bebida.
— E você vai falar com ela ou vai fingir que é tímida até o garçom trazer a conta?
Laura olhou de novo para o bar. A bartender a encarava com aquele mesmo sorriso tranquilo, agora misturado a uma curiosidade sutil.
Ela respirou fundo, deu um último gole no drink, limpou o canto da boca com o guardanapo e se levantou.
— Se ela colocar a playlist da Marisa Monte, eu caso. — brincou.
— Vai, valente! — incentivou Olivia, quase batendo palmas.
Laura caminhou até o bar, os cabelos presos em um coque improvisado e o coração mais acelerado que em plantão de emergência.
Fernanda sussurrou para os outros, observando de longe:
— Aposto um rodízio de sushi que Laura vai sair daqui com número de telefone e um beijo marcado.
Leonardo ergueu o copo.
— Ou pelo menos com um drink grátis. O que já é lucro.
Todos brindaram entre risos. A noite só estava começando.
Apartamento de Fernanda – Madrugada após o bar
A chave girou na fechadura com mais dificuldade do que o normal. Fernanda e Leonardo tropeçaram rindo, ainda sob o efeito leve do vinho e das piadas no bar. O riso deles enchia o apartamento vazio como se tivessem voltado de um show particular.
— Você empurrou aquela ruiva pra cima de mim! — Leonardo acusou, ainda rindo, enquanto largava o casaco no encosto do sofá.
— Empurrei nada! Foi só uma sugestão física. — Fernanda respondeu, chutando os sapatos para longe. — E convenhamos, ela era bonita. Tava na sua.
— E eu tava em você.
O silêncio depois disso caiu pesado. Não desconfortável, mas cheio de significado. Fernanda ficou parada, encarando-o no meio da sala.
— Não começa. — ela disse, baixinho, como se tentasse convencer a si mesma.
— Começar o quê?
— Isso. Esse olhar. Esse “você sabe que quero ficar” misturado com “mas a gente é só amigo”.
Leonardo se aproximou devagar, como quem respeita o limite… mas não pretende parar diante dele.
— Você quer que eu vá embora?
Fernanda hesitou. Respirou fundo. A luz da rua entrava em faixas finas pela janela. Ele parecia mais bonito ali, na penumbra: cabelos loiros bagunçados, sorriso inclinado, olhos fixos nos dela como se a quisesse desde sempre — e talvez quisesse mesmo.
Ela não respondeu com palavras.
Aproximou-se, ergueu o rosto e o beijou. Um beijo decidido, intenso. Sem dúvidas. Sem desculpas. A fome de quem já se conhecia há tempo demais. Mãos curiosas demais. Boca que já sabia o caminho, mas fazia questão de redescobrir.
Leonardo a pegou pela cintura e a ergueu como se fosse fácil, entre risos abafados e beijos que percorriam o pescoço dela. O caminho até o quarto foi um tropeço gostoso — entre beijos desajeitados, roupas sendo tiradas com urgência e olhares que diziam “isso não é só tesão, mas vamos fingir que é”.
No quarto, a intensidade aumentou. Os corpos se reconheceram com a intimidade de quem nunca precisou fingir quem era. Fernanda puxou Leonardo para cima de si, arqueando as costas, e ele a percorreu com beijos lentos, explorando cada centímetro com desejo e reverência.
— Você sabe que isso vai dar problema, algum dia né? — ela sussurrou, entre um suspiro e outro.
— Desde o primeiro beijo no quarto dos residentes. — ele respondeu, com um sorriso safado, enquanto a boca deslizava por sua barriga.
Ela riu e puxou seu rosto para um novo beijo. As mãos se entrelaçaram. Os movimentos foram ora urgentes, ora suaves. Como se dançassem em sintonia, explorando limites que já conheciam… mas com a emoção de quem sempre quis atravessá-los.
Foi uma noite de gemidos abafados, sorrisos entre beijos, e confissões mudas entre lençóis embolados.
Depois, deitados lado a lado, nus e ofegantes, Fernanda puxou o lençol sobre o peito e olhou para o teto.
— Isso sempre é um erro. — disse ela.
— Provavelmente — Leonardo respondeu, virando-se para ela com um sorriso preguiçoso. — Mas um erro que vale repetir.
Ela deu uma risada curta, fechou os olhos e murmurou:
— Amanhã a gente volta a fingir que não aconteceu nada entre nós.
— Combinado. — ele respondeu, puxando-a para perto. — Mas hoje... deixa a gente se enganar mais um pouco.
E naquela madrugada, o silêncio entre eles disse muito mais do que qualquer “eu te amo” sussurrado.
Rua calma de Curitiba – 02h15 da madrugada
O carro parou em frente ao pequeno prédio onde a bartender morava, e Laura desceu primeiro, abrindo a porta e estendendo a mão para ajudar Bianca – a bartender de sorriso calmo e tatuagem de violetas no braço – a sair do carro.
Elas tinham deixado o bar “Ponto Cego” pouco antes. Entre risos, histórias e um Negroni de cortesia “para lembrar de mim”, Bianca descobrira que Laura era cirurgiã pediátrica, colecionava canecas nerds e tinha medo irracional de elevadores que fazem clanc entre andares.
No pátio interno, uma luz de poste dividia a noite em dois: metade claridade suave, metade sombra confortável. Bianca ajeitou a jaqueta jeans nos ombros, parou a um passo de Laura e sorriu com o canto da boca.
— Então… esse é o meu castelo? — brincou, apontando para o prédio de três andares. - Quer subir?
Silêncio breve, daqueles cheios de expectativa boa. Laura passou a mão nos cabelos, um gesto involuntário de quem tenta controlar o nervosismo.
— Eu… — começou Laura, mas Bianca ergueu a mão, gentil, interrompendo-a com um olhar tranquilo.
— Não precisa agradecer pela noite. Eu também precisava rir, lembrar que existe vida além de coqueteleiras.
— Mesmo assim, obrigada. — Laura respirou fundo. — Você tornou o caos mais leve.
Bianca riu baixinho, deu um passo à frente. Agora estavam tão perto que Laura sentia o perfume de cítricos e um leve toque de baunilha.
— Posso te confessar uma coisa? — sussurrou Bianca.
— Claro.
— Eu adorei cada minuto. Mas adorei ainda mais a forma como você olha para mim… como se quisesse perguntar algo e ainda não tivesse coragem.
Laura corou. Bianca ergueu a mão, tocando de leve a bochecha dela.
— Então deixa eu facilitar.
E, antes que as dúvidas chegassem, Bianca inclinou-se e beijou-a. Um beijo de despedida – doce, tranquilo, sem pressa. Não era promessa de “para sempre”; era convite de “talvez vamos nos ver no próximo capítulo”.
Quando se afastaram, Laura tinha um sorriso bobo nos lábios.
— Bom… — ela pigarreou, tentando recobrar a voz. — Elevador sem clanc tem lá em casa. Caso um dia você queira testar.
— Anotado. — Laura sorriu ainda nervosa — Até breve, Bianca.
— Até breve, Dra. Laura.
Bianca deu meia-volta, caminhando na calçada iluminada pelo poste. Antes de entrar no prédio, ergueu a mão para um aceno final. Laura ficou ali, sentindo o coração bater num ritmo bom, mas não tinha certeza se voltariam a se ver.
Entrou no carro mais leve, com o gosto de Negroni e de possibilidade nos lábios – e a certeza de que, às vezes, um beijo de despedida pode ser o início de algo bom.
Hospital Memorial Klein & Becker semanas depois…
Em frente à sala da Administração
Laura caminhava pelo corredor com passos firmes, mas o pensamento disperso. Tinha acabado de sair de uma cirurgia complexa e ainda precisava revisar o prontuário de alguns pacientes, mais cedo tinha sido intimada pela irmã a passar na sua sala para assinar a papelada do novo seguro para os médicos, algo que Olívia, sua irmã e agora administradora do hospital, insistia como se fosse um apocalipse burocrático.
"Cinco minutinhos só, Laurinha. Coisa rápida", ela dissera. Claro, como se fosse possível escapar da Olívia quando ela decidia ser CEO da sua vida.
Ao se aproximar da porta da sala de administração, Laura freou bruscamente. Seus olhos fixaram-se na mulher que saía de lá com a pasta em mãos.
— Natália? — escapou em voz alta, num misto de incredulidade e... susto.
Natália Becker, com seu terno impecável e o coque preso num despretensioso ar de sofisticação, parecia pertencer àquele hospital tanto quanto Laura pertencia a uma sala de cirurgia. Mas Laura não estava preparada. Não para vê-la ali. Não naquele instante. Ainda não.
Ela sabia — teoricamente — que isso poderia acontecer. O escritório de advocacia do tio sempre cuidou da parte jurídica do hospital, e dias antes, sua avó havia comunicado, com a serenidade habitual, que Natália, agora sócia do escritório do sogro, assumiria a conta do hospital.
Sabia. Mas saber não é o mesmo que estar pronta.
Natália se virou e também congelou por um segundo.
— Laura... — disse com a voz baixa, como se o nome tivesse gosto agridoce na boca. — Não esperava te encontrar aqui, assim tão de repente. Que bom que voltou…
Laura piscou, tentando processar a cena. As paredes do hospital pareciam ter encolhido. O ar ficou mais denso. E ela, mesmo sendo uma cirurgiã acostumada a lidar com situações críticas, sentia-se completamente fora do controle. Respirou fundo vestiu sua máscara sarcástica que sempre lhe salvava naquelas situações.
— É evidente que uma hora isso aconteceria, pois trabalho aqui e esse hospital é da minha família? — disse um pouco mais ríspida do que pretendia.
— Fui contratada para o departamento jurídico. Estou cuidando da reestruturação contratual, seguros, compliance… — explicou, num tom cuidadoso. — A reunião agora foi com a Olívia. - Você sabia disso?
Laura ainda não se movia. Parecia uma estátua de jaleco e tênis, com o coração preso no passado.
— Sabia, sim. Ao Contrário de algumas pessoas minha família joga limpo, não faz coisas pelas costas — Laura respondeu já com uma ponta de raiva.
— Laura, você nunca me deu a chance de explicar… — disse Natália em um tom contido, quase hesitante. — O Eduardo sente sua falta…
— Talvez porque não tenha mesmo nada a ser explicado, Natália. Tudo ficou muito claro… pra mim. — respondeu Laura, com uma calma que parecia conter uma avalanche.
Foi quando a porta da administração se abriu. Olívia surgiu com seu inseparável cronograma de pastas, clipes coloridos e a clássica expressão de quem não sabe se entra ou recua:
— Interrompi alguma coisa...? — perguntou, erguendo uma sobrancelha com sutileza quase cômica.
— Não! — responderam as duas em uníssono, como um dueto desafinado de tensão.
— Já estava de saída, Olívia. Obrigada. — disse Natália, apressando-se em juntar a pasta contra o peito como quem tenta proteger o que ainda resta da própria dignidade.
— Conveniente, — murmurou Laura, virando-se para a irmã com um olhar que misturava sarcasmo e um alerta silencioso. — Tipo um reencontro surpresa com a ex… na porta da administração… no ambiente de trabalho… Super profissional.
Natália sustentou o olhar com firmeza, mas um rubor discreto lhe coloriu as bochechas. Ela deu um pequeno passo para trás, ainda segurando a pasta como se fosse um escudo emocional.
— Eu não vim causar nenhum desconforto, Laura. Só estou fazendo meu trabalho. — disse, com voz calma. — Prometo que vou manter distância… se for isso que você quiser.
Laura respirou fundo. Os olhos ardiam — não de lágrimas, mas de lembranças que ainda não haviam cicatrizado.
— É só isso que eu espero.
Natália assentiu, o olhar carregado de algo que poderia ser respeito… ou tristeza contida.
— Tenha um bom resto de dia.
E partiu com passos firmes, deixando para trás um perfume discreto e um silêncio pesado de história mal resolvida — que, ao que tudo indicava, estava apenas começando de novo.
Olívia, prática como sempre, entregou os papéis à irmã com um suspiro.
— Aqui estão os contratos. Só falta sua assinatura. E… sim, foi a Natália quem revisou tudo. Extremamente competente, diga-se de passagem.
Laura pegou os documentos sem dizer uma palavra. Seu coração ainda tamborilava alto no peito, sem saber se era raiva, saudade… ou algo ainda mais confuso.
— Vocês precisam resolver isso… — sugeriu Olívia, com aquele tom de quem queria ajudar, mas não queria se envolver demais.
— Não se mete nessa história.
Olívia ergueu as mãos como quem declara neutralidade diplomática.
— Ok, ok… só estou dizendo que… enfim… a tensão dá pra cortar com bisturi, viu?
Fim do capítulo
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