Capitulo X
Era inaceitável que aquilo pudesse estar acontecendo. Depois de todo o meu esforço, toda a minha dedicação. A Deusa ter escolhido aquela garotinha insolente. Para intensificar minha indignação, mais uma vez uma Maycler tinha caído nas graças da Deusa. Se fosse outra bruxa, eu tinha certeza que poderia tomar as rédeas daquela situação e convertê-la a meu favor, mas com Emily Maycler, sabia ser impossível. A natureza arredia daquela garota me irritava desde o momento em que ela havia aberto a boca proferindo suas insolências infantis, desde o momento que Alice Maycler, sempre muito bondosa, havia a acolhido sob sua proteção e cuidado. Tudo bem, eu lidei com aquilo. Este seria apenas mais um obstáculo que eu ultrapassaria com prazer.
Naqueles anos, vi da primeira fila o coven Maycler definhar aos poucos, as vi apodrecendo e morrendo, até sua última integrante. Foi muito satisfatório, mais do que pensei ser capaz. Até cheguei a pensar que havia conseguido, que o jogo tinha virado e enfim eu seria a única ganhadora, mas é claro que não poderia estar mais enganada. A Deusa tinha um senso de humor desgraçado, eu tinha que admitir.
No início, pensei que as oferendas que fiz tinham agradado a Deusa, que seu olhar generoso finalmente tinha recaído sobre mim. Doce engano. Porém, não havia saído perdendo, não fora ela que tinha voltado seus olhos maravilhados para meus feitos. Foi ela. Eu não sabia quem era aquele ser poderoso que me concedeu o poder de conter as bruxas abençoadas sem que ninguém desconfiasse, e assim, pudesse me alimentar da magia delas, ou como ela tinha me auxiliado no traçar das cordas daquele jogo implícito onde eu tinha todos sob minhas mãos. Eu só sabia que havia um preço, um que parecia alto demais para alguém com escrúpulos, mas que para mim, soava indiferente, pequeno demais para o que eu queria. Há muito tempo eu desconsiderava o significado da palavra limite. Ninguém podia ser grande sem pagar por isso, e me parecia razoável o esforço.
No entanto, diferente das outras vezes, eu não tive o retorno esperado. Não era para a filha da noite se relevar, não era para a atenção das bruxas estarem longe de mim. Eu tinha pago o preço, o desfecho tinha que ter sido garantido. Naquela mesma noite, a convoquei, acendi uma vela, ofereci uma prece, mas o silêncio perturbador que tive como resposta só inflamou minha raiva. Eu faria o que fosse preciso para alcançar o que queria, ela sabia disso, e não seria uma Maycler qualquer que ficaria no meu caminho. Sabia o que precisava fazer para ter a atenção dela, então eu o faria, de novo sem pestanejar. Um novo sacrifício, uma nova oferenda, e Emily Maycler cairia assim como seu coven.
Emily Maycler
Ao contrário dos meus planos iniciais, que envolviam uma fuga silenciosa, agora eu me via de frente a sede das matriarcas. Depois da visita de Diana, um senso de urgência surgiu, e milagrosamente eu sabia o que precisava fazer. A demonstração de poder na noite do Samhain não faria com que as matriarcas desistissem de seus objetivos, e essa certeza incitou minhas próximas ações. Eu tiraria as abençoadas das garras daquelas senhoras, devolveria a liberdade que lhes pertencia. Muita presunção da minha parte, mas quem podia me julgar. Era inegável que somente a filha da noite teria essa capacidade.
Os corredores da sede estavam silenciosos, aquela quietude incomum parecia o prelúdio de uma tempestade devastadora, uma que eu sabia bem ter o poder de causar. Meus nervos andavam à flor da pele, as ondas de magia antiga e potente imploravam para sair, me fazendo ter de segurá-la com uma firmeza esforçada, mas meu propósito se desenhava claro. Ninguém me impediria.
Uma a uma, fui tirando as abençoadas de suas celas douradas disfarçadas de quartos. A princípio elas me olharam temerosas, mas a determinação e ousadia brilhando nos meus olhos as deram a certeza necessária para me seguir. Elas levavam consigo poucas coisas, mas carregavam o principal, esperança. Quando já estávamos próximas da porta principal, o que restava das sete de Salem já nos aguardava, enfileiradas lado a lado, formando um muro vivo nos impedindo de atravessar a saída. Previsível.
— Gostaria de acreditar que você não seria tão imprudente, garota. – matriarca Waterhouse proferiu ácida, olhando-me raivosa. — Sua insolência não será tolerada!
A olhei de volta com uma segurança que eu desconhecia que possuía. Quando, alguém imaginaria que uma jovem bruxa iria enfrentar as matriarcas daquele jeito, parecia loucura, mas eu não era uma garota qualquer, elas podiam não saber que o sangue correndo em minhas veias era o mesmo de uma Deusa, mas eu sim. E munida desse fato irrefutável, corajosamente sorri, desdenhosa e orgulhosa. Era hora de ceder ao poder que cantava aos meus ouvidos promessas perigosas tentando me convencer a os deixar sair.
— Prudência nunca esteve no roll das minhas qualidades, mas com certeza inteligência deveria estar na de vocês. – brinquei, olhando-as com indiferença. — Vocês nos darão licença, gentilmente, e nós iremos sair daqui. – sentenciei resoluta, não deixando dúvidas de que eu não iria desistir do que tinha ido fazer ali.
Matriarca Howe se remexeu incomodada, estalando a língua no céu da boca coberta de rugas que pareciam arranhões horrorosos se curvando em evidente desaprovação. A resistência delas me divertia, até certo ponto. Depois eu que era imprudente!
— Não dificulte as coisas Maycler. – sugeriu a matriarca Mahlin, com falsa condescendência. A postura rígida mostrava certa hesitação. Tive o vislumbre de fraqueza que nunca pensei que veria em uma delas. Respirei fundo, a energia pulsando em mim como uma maré crescente, no limiar de romper de vez a barreira da minha calma.
— Não sou eu quem está barrando a porta! – rebati, sentindo a vibração da minha voz oscilar, parecendo ecoar pela sala, reverberando nas paredes como um aviso. Um que eu esperava que elas ouvissem.
Senhora Mahlin sorriu, numa patética tentativa de esconder o medo nascendo no fundo de seus olhos. Espelhando-a também sorri, mas ao contrário do repuxar de lábios num sorriso forçado, o meu era largo e satisfeito, lotado de uma compreensão profunda e sombria.
Trazendo a atenção para si, matriarca Fairfall fez um gesto sutil com a mão, como se quisesse afastar a tensão, mas o brilho em seus olhos a traíram. Ela sabia que o jogo havia mudado, que nenhuma delas tinha a capacidade de me enfrentar abertamente, não quando tinha cinco abençoadas ao meu lado, não quando uma ínfima parte do meu poder irradiava ao redor de todas nós como uma lembrança viva do que eu era capaz.
As matriarcas se afastaram lentamente, relutando a cada passo as colocando mais distantes da porta, como fantoches em uma corda. Sem desviar o olhar de todas elas, indiquei as abençoadas que passassem. Nenhuma delas olhou para trás, nem mesmo se abalaram com os olhares mortais que as seis de Salem as destinaram. Havia ódio e repreensão transbordando aos montes delas.
Antes que eu pudesse segui-las, acredito que num último ato de coragem estúpida, Elizabeth Fairfall deu um passo à minha frente, aproximando nossos rostos de forma ameaçadora. Seu ato me colocou em alerta.
— Me pergunto como dentre todas as grandes bruxas da família Maycler, você foi a abençoada! – senhora Fairfall despejou, venenosa. Tinha uma satisfação duvidosa dançando em suas íris castanhas, uma soberba mal contida na voz. Em outro momento eu teria estremecido, afinal Elizabeth era uma das bruxas mais poderosas da nossa geração, fora o fato, de que seria tolice da minha parte não respeitar a história e experiência de cada uma daquelas mulheres, não era atoa que elas eram as matriarca de Salém. No entanto, eu não era mais a mesma.
As palavras de uma maldição mortal pairavam sob a ponta da minha língua, ansiosas para serem proferidas. Nessas horas, me perguntava se era prudente alguém tão impulsiva ter tanto poder. Meu lado divino orgulhoso rugia, querendo castigar a ousadia daquela mulher de me desafiar tão descaradamente. Era assim que os Deuses se sentiam quando afrontados por mortais? Pela Deusa, eu precisava me controlar. Suspirei irritada, não mais pela insolência desmedida de Elizabeth, mas pela frustração de ter de segurar aquela vontade ensandecida de castigá-la.
— Você tem razão! Da próxima vez que você ver a Deusa, por favor, pergunte a ela! – rebati, impaciente, contornando-a e saindo pela porta da sede. Eu já estava de saco cheio das implicâncias injustificáveis daquela mulher. Mesmo diante das circunstâncias nada favoráveis Elizabeth não abria mão de sua arrogância, então nada mais justo que eu também não ignorasse o meu orgulho. Não haveria uma próxima vez, a Deusa tinha avisado.
Ao contrário do que imaginei, e talvez pela influência do meu atual status como filha da noite, as abençoadas foram muito bem recebidas em seus respectivos covens. Eu sabia que logo logo todas as bruxas estariam cientes da minha ousadia e não poderia me importar menos. A sensação de dever cumprido me acompanhou a todo instante enquanto via os rostos surpresos das bruxas diante o que eu tinha feito. O jogo enfim estava a meu favor.
Naquele mesmo dia, mandei mensagem não apenas para Diana como também para Amélie, convocando-as para a minha casa. Outra decisão que eu havia tomado impulsivamente, mas que acreditava que era o certo a se fazer.
Quando a noite caiu, ambas as mulheres mais importantes da minha vida me aguardavam pacientemente, não somente elas como Phillip também. Estávamos no jardim dos fundos. Cérbero dormia pesadamente num canto qualquer, mas sempre vigilante a qualquer barulho diferente. A noite estava fria, nos obrigando a usar pesados casacos para nos aquecer, a lua brilhava pálida acima de nós, como uma observadora curiosa.
— Os reuni aqui, primeiro para confirmar que as abençoadas não estão mais sob o controle das matriarcas. Acredito que já estejam cientes. – comecei, tentando disfarçar o nervosismo. — Segundo, devido às atuais circunstâncias, gostaria de convidá-las formalmente para integrarem o coven Maycler. Não por terem sido abençoadas, não pelo elo mágico que nos une, mas por escolha própria. Isso também incluí você Philip!
O sorriso orgulhoso da minha melhor amiga espelhado no rosto da mulher que eu amava a mais tempo do que poderia contar foi a confirmação que precisava. Havia uma satisfação inebriante de ter a lealdade inquestionável daquelas mulheres para além das tramas de uma Deusa. Foi inevitável que eu sorrisse de volta, agradecida.
Philip, que até então tinha se mantido calado, levantou a mão pedindo permissão para se pronunciar, ao qual concedi com um leve aceno.
— Gostaria de dizer que sinto-me honrado. – disse, respeitoso, alargando ainda mais meu sorriso.
— Sendo assim, acho necessário que comecemos a treinar juntos. – emendei, firme, sem qualquer traço da insegurança de antes. — Diana, você poderia ser nossa predecessora?
— Será uma honra! – respondeu, genuína.
Diana deu início ao nosso primeiro treinamento como coven naquela mesma noite, traçando no chão símbolos sagrados de proteção, enquanto Amélie entoava palavras como se sempre tivessem morado em sua garganta. Philip se juntou a nós com a mesma reverência, e pela primeira vez, um círculo estava completo nas terras da família Maycler. Não era mais sobre resistência, mas sim, sobre reconstrução.
Eu ergui os olhos para a lua, que ainda brilhava intensamente, quase orgulhosa. E pela primeira vez desde que tudo aquilo começou, senti a certeza, de que o dia seguinte — por mais desafiador que fosse — já não me assustava mais.
A sociedade bruxa enfim vislumbrava a possibilidade de algo melhor. As matriarcas podiam até se esconder em suas torres douradas, mas não poderiam negar mais que o tempo delas estava contado. Um novo ciclo havia começado, e com ele, um novo horizonte ascendia — não alimentado pelo medo ou controle, mas por escolha, união e, acima de tudo, coragem.
Eu não precisava fugir, ou temer. Eu havia me tornado o lugar seguro que tanto buscava.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 11/09/2025
As veias não vai deixar passar.
Se segurara galera que vem chumbo grosso.
HelOliveira
Em: 24/06/2025
Essa história está muito gostosa de ler....
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