Capitulo IX
— Você estava assustadora! Incrível, mas muito assustadora. As três luas brilhando vermelho vivo, foi a parte mais fascinante! – Amélie falou, empolgada.
Eu queria muito compartilhar de toda a sua empolgação, mas a preocupação não me deixava. Duas noites haviam se passado desde o Samhain, e eu ainda era o alvo dos burburinhos nervosos das bruxas de Eradia. A repercussão do ocorrido varria a comunidade bruxa, e todos estavam aguardando pelo que a filha da noite faria a seguir. E se dependesse do meu estado de espírito, a espera seria longa.
Incrivelmente, as matriarcas não se pronunciaram, nem mesmo ousaram me convocar para mais uma de suas enfadonhas reuniões. Eu acreditava, fielmente, que o estoque de audácia daquelas velhas finalmente havia se esgotado. Já não era sem tempo!
— Você se impressiona fácil! – desmereci, indiferente, arrancando um bufar exasperado da outra garota. — Não é como se sua meia lua não tivesse brilhado igual.
— Philip me contou… muito legal fazer parte do coven da filha da noite. – disse, despretensiosa, me arrancando um franzir de cenho dolorido. Pela Deusa… as coisas estavam indo longe demais.
— Não tem coven nenhum! – suspirei, já cansada daquele assunto.
— Você querendo ou não, é o que estão dizendo! – ela rebateu, arqueando uma das sobrancelhas bem definidas. O gesto presunçoso prendeu minha atenção por alguns segundos antes de elevá-la para o desenho em sua testa – que não brilhava mas continuava vermelho assim como a manifestação da minha magia. Agora que todos sabiam, Amélie fazia questão de exibir a meia lua em toda sua glória, aparentemente muito orgulhosa de carregá-la. A marca escarlate ainda me causava calafrios desagradáveis devido as lembranças do meu desespero face meu descontrole. O mais engraçado era que minha testa continuava normal, sem nenhum vestígio sequer.
— E eu achando que essa situação não poderia ficar pior! – grunhi, sem saber se pelos meus pensamentos ou pelas palavras de Amélie.
— Emily, nós duas sabíamos que as coisas mudariam depois que se revelasse. – insistiu.
— Mas só se passaram dois dias…. – bufei, esgotada.
— Eu sei, mas dois dias não são nada perto da grandiosidade do que aconteceu. – Mel frisou, olhando-me com uma paciência invejável. Nessas horas me sentia como uma criança birrenta e não como uma semideusa poderosa.
Por mais que eu não quisesse aceitar, Amélie tinha razão! Há muito tempo que algo tão grande não ocorria e aquela noite fora intensa o suficiente para agitar os ânimos daquelas bruxas acomodadas. Eu ainda podia sentir o calor das chamas açoitarem a pele do meu rosto, podia ver com nitidez as meias luas gravadas na testa de Amélie e Diana cintilarem intensas, como um lembrete vívido do rumo ao qual minha vida havia tomado sem que eu pudesse evitar.
Diana…
Lembrar da mulher que mexia tanto comigo, deu um estalo forte na minha cabeça. Naqueles dias me escondi na segurança da minha casa evitando todos, menos minha melhor amiga – não que ela permitisse. Quando todo aquele show acabou não pensei duas vezes antes de fugir. De Diana, das matriarcas, de todas aquelas bruxas me olhando com espanto e reverência. Não dei oportunidade para ser questionada ou abordada por ninguém. Ainda que uma parte gigantesca minha estivesse satisfeita com o que aconteceu, a outra só queria se esconder até que tudo fosse esquecido. Porém, eu sabia que não poderia fugir de Diana por muito tempo. A prova eram as muitas mensagens enviadas e prontamente ignoradas, eu não me sentia preparada para enfrentá-la.
— Hey, o que foi? – Mel perguntou cuidadosa, quando viu meu olhar perdido.
— Diana… – simplifiquei.
— Vocês precisam conversar, Em. Mesmo sabendo de tudo, ainda estou cheia de perguntas, imagina ela que foi arrastada para essa confusão! – declarou, suave. Sabia que não era uma cobrança ou um sermão, mas não conseguia não sentir como se fosse um daqueles merecidos.
— Eu sei… é só que… nós estávamos tão bem, e agora, a iminência de estarmos conectadas por algo que não seja genuíno me aterroriza. – externei, minha insegurança.
— Você não tem certeza disso, meu bem! – disse, segurando com delicadeza uma das minhas mãos. — Às vezes a Deusa só intensificou aquilo que já existia. Um poder como aquele não emerge do nada.
Eu queria acreditar em Amélie, queria ser acolhida por suas palavras esperançosas, como sempre me sentia, no entanto a incerteza me assolava impiedosa. Eram tantos “e se” pairando em minha mente que não sobrava uma ínfima grama de esperança.
Amélie não se demorou muito, logo partindo, e a solidão que preenchia os cômodos veio me fazer companhia. O silêncio amedrontador daquela casa em nada diminuía a comoção dos meus pensamentos. O latido estrondoso vindo do lado de fora, arrancou-me daqueles devaneios, me alertando que alguém havia chegado. Desde a fatídica noite, Cérbero ficava de vigia na porta da minha casa, sempre avisando, ruidosamente, quando alguém se aproximava. Soltei outro suspiro longo e cansado, esperando pelo rosnado característico de quando o cão-lobo espantava quem quer que fosse. O cão infernal parecia completamente ciente do meu desejo de isolamento, então sempre afugentava a presença indesejada.
Mas não daquela vez…
O som de um ronronar muito macabro prendeu minha atenção, me obrigando a me aproximar da porta curiosa. Eu sequer sabia que cães infernais podiam emitir aquele som horroroso e familiar. Meio reticente, abri a porta devagar deixando um pequeno vão que me permitiu ver o que é que estava acontecendo do lado de fora. Foi uma surpresa enorme ver Diana acariciando os pelos negros de Cérbero, que tinha a calda longa inquieta em pura apreciação devido o afago que recebia. Não poderia culpá-lo, eu mesma me derretia numa poça infinita quando tinha aquelas mãos em mim. Cachorrinho sortudo!
— É indelicado não convidar uma visita para entrar! – Diana disse sem despregar os olhos do animal abaixo de si. O tom da sua voz, ao contrário do que pensei, soou divertido, mas percebi um resquício de apreensão escapar.
— Ah, oi Diana… – murmurei sem graça, abrindo a porta um pouco mais, ainda sem coragem de encará-la.
A mulher enfim me lançou um olhar que não carregava julgamento ou mágoa, tinha apenas paciência. O sorriso em seu rosto me desmontou por dentro, vibrando algo em mim adormecido por todos aqueles dias. Bem como Amélie, a meia lua vermelha enfeitava sua fronte, majestosa. Em minha amiga, a marca parecia um adereço muito bonito, mas na minha diaba favorita, tinha um efeito totalmente diferente, soava como um aviso perigoso. E lembrando da manifestação de seu poder concedido pela Deusa, era mais do que adequado. Outro fato curioso, era, se Hécate quem a havia abençoado porque não carregava a coloração dela, prata e incandescente, e sim a vermelha sangue!
— Você parece cansada! — disse com uma gentileza inesperada, junto a um olhar atento permeado de preocupação. — Eu trouxe chá! – ela ergueu a pequena garrafa térmica dando outro sorriso, agora discreto.
Ri baixo desacreditada pela simplicidade de seu gesto, balançando a cabeça. Como pude pensar mal dessa mulher? Convidá-la para entrar foi mais fácil do que imaginei. Sequer precisei de palavras, apenas cedi espaço para que ela passasse e me embriagasse com aquele perfume delicioso e tão familiar.
Diana acomodou-se na poltrona ao lado do sofá, com a mesma elegância característica. Cérbero não perdeu tempo, e deitou-se a seus pés, confortável, repousando a cabeça pesada bem próximo de suas pernas com uma liberdade incomum. Enquanto ela se servia e em seguida me oferecia uma caneca, o cheiro de ervas e algo doce se espalhou pelo ar.
— Fiquei tentando imaginar o que você estava pensando. — ela começou, sem me olhar diretamente, totalmente atenta a xícara nas próprias mãos. — As bruxas estão agitadas, as matriarcas estão em silêncio, e a filha da noite... simplesmente desapareceu.
Fechei os olhos por um instante, sentindo o impacto daquelas palavras. Não havia maldade, apenas uma verdade irrefutável.
— Eu não sabia como encarar você! — confessei, por fim, minha voz saiu baixa, temerosa. — Eu fugi. E me escondi porque... estou com medo, Diana. Medo de tudo isso. De mim.
Ela colocou a caneca sobre a mesinha central, e se aproximou, ajoelhando-se à minha frente. O gesto fez Cérbero se ajeitar nos ignorando. As mãos hipnotizantes seguraram as minhas com firmeza, mas também com cuidado.
— Eu não vim exigir explicações, Emily. Só quero saber se você está bem. E se eu puder te ajudar de alguma forma, mesmo que por um instante, eu quero fazer isso!
A emoção subiu à minha garganta de um jeito quase doloroso. Afastei o olhar, tentando me manter inteira, mas era inútil. Com Diana ali, vendo cada parte de mim— até as que eu queria esconder — não havia armadura que resistisse.
— Quando Hécate apareceu... tudo mudou. Não só minha magia, mas meu corpo, minha mente e a minha alma. Foi como se eu tivesse me dividido em duas. A Emily que conhecia, e essa... outra... A que carrega o sangue dela. – Diana nada disse frente a revelação descarada, apenas apertou levemente minhas mãos, me incentivando.
— E então, ela confirmou que eu era a filha da noite. A filha dela, que não nasci por acidente, mas por um propósito maior. Que carrego em mim a noite, o limiar entre morte e renascimento. – as palavras saíram, e com elas, o peso que eu vinha carregando sozinha pareceu se dissolver. — Eu tenho medo de não saber quem sou. De perder. De ser apenas o que ela e as bruxas querem que eu seja.
Diana respirou fundo, subindo do chão e se sentando ao meu lado no sofá. Com cuidado, me puxou contra seu corpo quente e acolhedor, e sua mão começou a traçar círculos lentos nas minhas costas me acalentando.
— Você não precisa atender a nenhuma expectativa, Em. Você é filha da noite, sim, mas também é essa mulher que abusa do sarcasmo, que cuida de Amélie como uma irmã, que se apaixona fácil mas o faz com tanta intensidade que queima todos ao seu redor. E eu amo todas essas partes que compõem você.
Engasguei um soluço, me permitindo afundar no abraço dela. Deixando as lágrimas contidas por todo aquele tempo despencaram livres, mal prestando atenção no real sentido implícito de suas palavras.
— E se tudo mudar? — sussurrei, com medo de qual seria a resposta.
— Então mudamos juntas! — respondeu, firme, me apertando mais entre seus braços. — Seja lá o que o destino pretender, não vou a lugar nenhum sem qualquer versão sua.
Elevei minha cabeça, fixando nossos olhos. Havia uma certeza convidativa em suas íris. Foi inevitável que nossos lábios se encontrassem, sem pressa mas firmes, e foi como se a própria noite respirasse fundo junto conosco. Pela primeira vez desde que tudo aquilo começou eu começava a aceitar quem eu era, quem eu ansiava ser, quem me tornaria. O tempo pareceu suspenso. Não importava o que viesse pela frente, Diana era meu lar em meio a tempestade. E, talvez... só talvez... eu fosse muito mais do que só a herdeira do caos.
A filha da noite não era apenas um título. Era também um chamado. Um que eu havia começado a gostar de atender.
Fim do capítulo
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