Capitulo 3 - UMA OUTRA HISTÓRIA
Enquanto isso, uma outra história se desenrolava, não ao mesmo tempo… nem no mesmo espaços… em uma pequena cidade do interior de São Paulo.
A campainha da porta tilintou; Júlia, ergueu os olhos e o viu surgir: Cairo — dezessete anos, sorriso largo demais para caber no rosto, cabelo rebelde camuflado sob um boné vermelho insistia em usar mesmo a contra gosto do avô. Ele aproximou‑se em passos de missão secreta, como se a mesa onde Júlia carimbava documentos com tanta atenção, fosse a fronteira entre dois reinos inimigos.
— Boa tarde, minha bela princesa! — disse, inclinando‑se num floreio exagerado de cavaleiro medieval.
— Cairo, se o seu avô te pega aqui outra vez… vai sobrar para mim de novo. — Júlia ergueu a sobrancelha, lembrando da bronca da semana passada, quando ele quase derrubou a máquina de Xerox, fingindo ser o “007 do cartório”.
- Ele já nos avisou que aqui não é o pátio da nossa escola.
— Relaxa, donzela destemida. Hoje o vovô está lá nos fundos, feliz da vida, tomando café e devorando o bolo de laranja com calda de coco queimado que sua mãe fez. — Ele ergueu, triunfante, um prato com um pedaço generoso. — E eu, como embaixador do açúcar, trago‑lhe tributos do meu reino.
— Obrigada… mas não abuse da hospitalidade, ou o “rei” expulsa nós dois. — Ainda assim, ela aceitou o bolo, porque ninguém no mundo recusava aquela calda dourada.
— Só vim em missão oficial. — Cairo dramatizou, tirando do bolso da bermuda uma folha de papel toda amassada, como se fosse um tratado de paz. — Minha avó mandou‑me entregar isto. Ordem direta do alto comando.
— É pra mim? Que mistério é esse? — Júlia pegou-o das mãos do rapaz com certo receio.
O papel se desdobrou em câmera lenta. Os olhos dela percorreram a página, depois arregalaram‑se, como se tivessem acabado de ver um arco‑íris pousar no balcão.
— Cairo! Não… não pode ser. É a lista da Fuvest? Medicina? Eu… eu passei? DÉCIMO TERCEIRO lugar?
Por um segundo o mundo inteiro silenciou — até os telefones do cartório pararam de tocar — e então explodiu: Júlia pulou, Cairo a girou pelo ar, canetas e carimbos voaram pelos ares, dois colegas bateram palmas achando que era aniversário surpresa. Um moço na fila perguntou se tinha desconto de vestibulando.
— Você conseguiu, Jujuba! — Cairo gritou, rindo. — Desde o terceiro ano do primário você fala nisso. Eu disse que seu cérebro era mais afiado que faca de açougueiro!
Mas a alegria se dissolveu tão rápido quanto a espuma de leite. O sorriso dela vacilou; lágrimas diferentes brotaram.
— Ei, o que foi? — Ele pousou as mãos nos ombros dela.
— Ontem à noite minha mãe e eu conversamos… — Júlia baixou a voz. — Mesmo que eu passasse, não posso ir. Não temos dinheiro. Ela depende do meu salário aqui para sustentar a casa. Faculdade em outra cidade? Sonho impossível. Mesmo sendo pública teria as despesas de moradia e comida.
Cairo franziu o cenho, indignado, como se quisesse processar o universo por quebra de expectativas.
— Não é possível, Jú. Você lutou tanto! — Ele deu um passo atrás, depois um à frente, como atleta buscando impulso. — Vou falar com meus pais, com meus avós… a cidade inteira deve favor à minha família; tenho certeza de que conseguimos alguma bolsa, vaquinha, rifa, leilão de pão de queijo, qualquer coisa!
Júlia sorriu, ainda marejada: — Você é maluco.
— Sim, doutora. Mas maluco apaixonado por… justiça social. — Ele piscou, corando. Claro que também era por você, mas ainda não achava coragem de dizer.
Dos fundos, o avô de Cairo surgiu espiando, bigode farfalhando: — Menino! Meu Cartório não é sala de recreio!
Os dois se entreolharam e caíram na risada. Júlia limpou as lágrimas com as costas da mão, ergueu o papel da lista como estandarte:
— Dr. Walmir, olha! Eu passei em medicina! Valeu todos os conselhos que me deu, Obrigada.
O velho advogado trocou o cenho bravo por um sorriso generoso: — Então vamos comemorar, hoje o café é por minha conta! — E voltou, cantarolando, para decretar feriado particular no único cartório de registro da cidade, convidando a todos para um bom café, para comemorar a vitória de sua escudeira mirim, o que em seus pensamentos seriam a primeira de muitas.
Cairo, ainda segurando a folha amassada, inclinou‑se:
— Jú, não desiste. Vamos transformar esse “impossível” em roteiro de comédia romântica: garota genial vence vestibular, garoto atrapalhado inventa plano maluco, cidadezinha inteira se mobiliza, e no fim todo mundo termina chorando de alegria numa formatura cheia de pão de queijo grátis. Topa?
Ela riu, as bochechas coradas pela esperança recém‑nascida:
— Topo… mas você cuida da trilha sonora, diretor.
Ele estendeu a mão:
— Parceria selada com bolo de laranja e calda de coco queimado.
E ali, entre aroma de açúcar queimado, tinta de carimbo e documentos espalhados, uma nova história começou — ou, quem sabe, continuou seu teimoso caminho rumo a um final feliz.
Ana Júlia Carvalho nunca foi daquelas meninas que sonhavam com vestidos de princesa ou castelos encantados. Na verdade, com a vida que levava, o máximo de reinado que conhecia era o fogão da avó e o pequeno quartinho que dividia com os dois irmãos caçulas.
Ao contrário de Cairo — o herdeiro loiro dos Brandão, uma dinastia de advogados de fala pomposa e paletó até no churrasco — Júlia cresceu na parte da cidade onde o asfalto ainda era promessa de campanha eleitoral.
Filha de uma empregada doméstica que trabalhava justamente na casa dos avós de Cairo (porque o universo adora dar nó em linha de pipa), Júlia sabia desde cedo que para mudar de vida precisava de mais do que sorte ou sobrenome com sobrenome. Precisava de foco, coragem e uma pitada de rebeldia silenciosa.
— Mãe, quero ser médica. — Disse aos dez anos, ver o avô, sofrendo sem cuidados médicos adquados.
Naquele dia, o tempo correu mais devagar que o SAMU. O avô, seu porto seguro, sofria um aneurisma — e a distância até Ribeirão Preto, onde havia atendimento especializado, parecia uma travessia pelo deserto. Ele não resistiu. Mas a promessa de Júlia sobreviveu. Ali nasceu sua missão de vida: estudar, passar em medicina pública e garantir que mais ninguém perdesse um amor por conta de quilômetros e descaso.
Enquanto Cairo treinava sua perspicácia de detetive nos mistérios da cidade, Júlia devorava apostilas no quarto abafado, com a luz piscando e o som do vizinho ouvindo sertanejo até meia-noite. E, ironicamente, foi entre uma faxina da mãe e uma torta de limão da avó Brandão que Júlia e Cairo começaram a trocar olhares — aqueles meio tortos, meio tímidos, que só adolescentes em negação conseguem ter.
— Não sei como você consegue estudar com tanto barulho — dizia ele, equilibrando um copo de leite.
— Treino para a vida, doutor Cairo — ela retrucava, sorrindo. — Hospital público também é barulhento.
Ela dizia que queria salvar vidas. Ele dizia que queria "Prender bandidos e livrar e salvar pessoas" (ele era fofo, embora um pouco convencido). Ela sonhava com jaleco branco. Ele, com distintivo de delegado. E entre idas e vindas, apostilas e crimes simuladas, o destino parecia brincar de unir opostos — como feijão e Nutella, que ninguém acredita que combina até provar.
Ana Júlia sabia que o caminho seria difícil. Mas também sabia que inteligência, esforço e um leve sarcasmo podiam levá-la longe. E talvez, só talvez, Cairo estivesse por perto quando ela chegasse lá.
Como prometido — com direito a discurso emocionado para a família e tudo — a família de Cairo mobilizou a cidade inteira para ajudar Ana Júlia a estudar. E quando eu digo "cidade inteira", não estou exagerando: até o padeiro fez uma rifa com nome de novela mexicana ("Um Sonho, Dois Jalecos e Um Pão de Queijo"). Dona Sebastiana, a cabeleireira, criou uma caixinha no salão que dizia: “Ajude a futura doutora, ganhe um corte na sorte!” E olha… deu certo.
Com vaquinhas, rifas, bolo de cenoura premiado e doações generosas da ala romântica da família Brandão, nossa heroína embarcou, olhos brilhando e mochila nas costas, rumo à tão sonhada Faculdade de Medicina na cidade vizinha.
Enquanto isso, seu herói — ou quase-herói, dependendo do ponto de vista e do corte de cabelo da semana — foi para outra cidade cursar Direito. Cairo jurava que queria ser delegado desde que assistiu uma série policial com a avó e confundiu investigação criminal com “ser muito estiloso de terno”.
Nos primeiros meses, trocavam cartas todas as semanas: ela contando sobre cadáveres de laboratório e professores que falavam latim nas provas; ele reclamando de doutrina penal e jurando que sentia saudades do cheiro de bolo de fubá da vó (e, óbvio, do sorriso da Júlia, mas isso ele só digitava e apagava antes de enviar).
O plano era simples: estudar, se formar e, no final, conquistarem o mundo juntos — ela com um estetoscópio no pescoço, ele com distintivo no bolso e um pedido de namoro em algum restaurante com guardanapos de pano.
Mas a vida, essa roteirista cheia de surpresas, decidiu mudar o script. Porque, em comédias românticas (e na vida real), os caminhos nem sempre seguem a linha reta que o coração traça.
Júlia descobriu que medicina consome mais horas que telenovela das nove, Cairo percebeu que ser delegado exigia mais do que saber argumentar com charme. A distância começou a crescer, não nos mapas, mas nos silêncios entre as cartas respondidas com atraso e nós "vamos marcar algo" que nunca se marcavam.
E assim, sem brigas, sem cenas dramáticas nem trilha triste ao fundo, os dois seguiram rumos diferentes. Não por falta de amor, mas talvez por excesso de realidade.
Mas o que Cairo e Júlia ainda não sabiam — e isso só o destino sabe guardar em segredo — é que finais felizes nem sempre seguem a primeira estrada
Fim do capítulo
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