Capitulo 2 - O Dia Seguinte ao Fim
Cá estou eu, dois meses depois do telefonema da Dra. Eunice, vulgo minha avó me ordenando a volta para casa, estou embarcada em um voo de 22 horas rumo a Curitiba, com uma escala insuportável em São Paulo — como se a travessia dos Andes emocionais da minha vida não fosse castigo suficiente. Você deve estar se perguntando como fui parar em Londres. Como vim parar em Londres é outro folhetim, mas saibam: se vocês acham que o drama terminou no jantar da tia Sofia, desconhecem a Família Becker — campeã mundial de confusão.
Dizem que mulheres são dramáticas; é porque não conhecem meu pai. Aliás, quase todo mundo aqui é médico: papai, mamãe, eu, Leonardo, vovó Eunice, sem contar a prima Carla, ainda na faculdade. O celebrado Dr. Afonso Klein Becker me aguardava na sala quando acordei, após o fiasco do jantar.
Despertei ainda zonza do vendaval da noite anterior, sentindo o perfume familiar de lavanda e castanhas — vovó Eunice — ao meu lado. Ela acariciava meus cabelos com ternura silenciosa.
— Querida... seus pais estão na sala. Estão esperando por uma explicação.
— Não sei o que dizer, vovó... nem sei o que aconteceu. Parece que o mundo desabou sobre mim. Quero ficar aqui... quieta... esperando a morte me buscar com gentileza. — Minha voz saiu embargada. A dignidade, esta já havia partido faz tempo. As lágrimas corriam em fluxo contínuo.
— Laura, minha flor, eu entendo que está sofrendo. O que aqueles dois fizeram com você foi cruel. Mas você é jovem. Tem uma vida pela frente. Vai conhecer novas pessoas, viver novos amores...
— Não acredito mais nisso. Acabou. A única coisa que ainda me dá prazer é chorar. E estou disposta a fazer isso até definhar. — Me virei, enfiando a cabeça debaixo do travesseiro, dramática como uma heroína trágica de romance russo, não é só papai que navegava pelas águas do drama.
Vovó suspirou. Beijou minha testa com delicadeza e saiu do quarto. Mal fechei os olhos quando a porta escancarou com um estrondo militar.
— Laura Prado Becker, levante-se dessa cama imediatamente. Quero você na sala em cinco minutos.
A voz de meu pai cortou o silêncio como bisturi. Aquela entonação não deixava espaço para contestação. Levantei, ainda em modo zumbi. Penteei o cabelo com os dedos, calcei o chinelo e fui encarar meu julgamento.
Ao chegar à sala, a cena parecia tirada de um tribunal grego: todos sentados em silêncio tenso, olhos voltados para mim. Mamãe, de braços cruzados. Olívia, pálida e confusa. Leonardo com um olho roxo e a mão enfaixada — lembranças do embate físico com meu primo Eduardo. Papai ostentava um galo na testa, como se tivesse saído de uma briga de bar, e Fabrício acariciava a barriga grávida de Lívia, como se buscasse consolo no futuro.
— Muito bem — disse meu pai, a pele branca tingida de vermelho cereja, tentando ser duro e terno ao mesmo tempo, porém com os olhos saltando como se disputassem uma corrida. — Estamos todos aqui por você. Agora me diga, o que diabos aconteceu naquele jantar?
— E não me venha com evasivas, menina — completou. — Parece que só eu aqui não sabia de nada. O último a saber. O palhaço da família, é isso?
Leonardo desviou o olhar. Vovó fitou o chão. Fabrício, o diplomata, tentou apaziguar:
— Pai, talvez a Laura se sinta mais confortável se vocês conversarem a sós...
— Ninguém sai dessa sala! — Papai vociferou, olhos faiscando. — Ela perdeu o direito à privacidade quando lançou a família no circo romano.
— Querido, talvez se acalmarmos os ânimos... — começou mamãe.
— Silêncio. Eu quero respostas. Agora. Laura, fale. O que aconteceu?
Foi aí que percebi: minha tão planejada e temida saída do armário, aquela que imaginei que aconteceria em um jantar íntimo, com vinho tinto e lágrimas discretas, seria feita ali, com a audiência completa e olhos julgadores. Inalei profundamente. Era agora ou nunca.
— Pai… Desculpa… Não era assim que planejava te contar… o que aconteceu ontem é que... Natália e eu estávamos juntas. Há anos. Em segredo. Sou lésbica. Sempre fui. E... amo a Natália desde que eu tinha 16 anos.
Sentei-me, vencida. Enfiei o rosto nas mãos e chorei como nunca havia chorado. Chorei minha infância, minha juventude, minha ingenuidade, meu coração partido e minha reputação despedaçada. Chorei o Atlântico inteiro. Pensei: “Pronto, perdi a mulher da minha vida e meu clã”.
Silêncio absoluto. Minutos que pareceram séculos. Até que papai se aproximou. Sentou-se ao meu lado. Puxou-me para um abraço apertado e inesperado. Chorou comigo.
— Filha... me perdoe por nunca ter percebido. Sinto muito que esteja sofrendo tanto. Vai passar. Vai ficar tudo bem. Eu te amo.
Ali, naquela sala, choramos todos. E quando digo todos, é todos mesmo. Uma catarse familiar. Mamãe confessou que, se papai me expulsasse, ela pegaria as malas comigo. Fabrício e Lívia disseram que suspeitavam, tiveram certeza desde o soco de Leonardo em Eduardo. Vovó contou que foi a primeira pessoa a quem eu confessei ainda muito jovem. Tia Alice, que chegou depois do fatídico tribunal inquisidor, revelou que nos pegou aos beijos nos estábulos, como boas protagonistas de folhetim rural, desde então nos Shipava. Leonardo, meu escudeiro, lembrou que jurei segredo a ele numa noite de bebedeira qualquer. E Olívia… bem, essa estava mais perdida que cebola em salada de frutas.
Nos dias seguintes, o hospital virou uma novela da Rede Globo com o tema “Histórias da Família Becker”. Os corredores sussurravam: “É a filha do Dr. Becker… aquela que era noiva do primo do marido da amante…” Fofocas sempre encontram um jeito de exagerar. E a “Rádio Corredor” do hospital não nega sua função.
Para fugir do caos, vovó juntou a fome com vontade de comer, em seus planos sempre almejava que eu fizesse minha especialização com seu amigo em Londres, me arrumou uma bolsa de estudos e embarquei para Londres, para terminar minha especialização em cirurgia pediátrica. Era para durar dois anos. Fiquei três. Precisava de tempo — e distância.
Lá fiz amigos e conheci Saanvi, uma policial descendente de indianos que me salvou do tédio emocional e, literalmente, de um assaltante armado. Tivemos um caso de quase um ano. Terminamos quando percebemos que buscávamos apenas companhia, não um futuro. E tudo bem. Aquele amor não era de novela. Era de cura.
Conheci Natália numa manhã abafada de verão, no início do ensino médio, no tradicional Colégio Padrão de Curitiba. Ela era a aluna nova: tímida, bolsista, com um olhar curioso que varria os corredores como quem procurava não apenas a sala, mas um lugar no mundo.
Eu, Leonardo e Eduardo estávamos encostados na porta da sala quando a vimos se aproximar. Caminhava devagar, segurando os cadernos contra o peito, como se eles fossem um escudo. Quando nos olhou, seus olhos negros encontraram os meus — e naquele instante, algo aconteceu. Meu coração, atrevido, deu cambalhotas no peito.
Ela perguntou onde ficava o 1º A. Eu respondi, mas confesso que nem sei o que disse. O mundo ao redor embaçou, como acontece quando algo dentro de você se desloca e tudo o que era fixo de repente parece novo. Foi ali que tudo começou.
A partir daquele dia, fomos nos aproximando entre trabalhos em grupo, partidas de vôlei, treinos de natação e provas intermináveis. Ríamos, brigávamos por bobagens, dividíamos lanches, músicas, silêncios. E, assim, entre gestos pequenos e olhares demorados, nos apaixonamos.
Mas o que meus olhos cegos de amor não enxergaram é que, enquanto eu me perdia nela, alguém mais também se encontrava nos mesmos sentimentos. Outra pessoa — próxima demais de mim — também se apaixonava por Natália. E eu, ingênua ou orgulhosa, nunca percebi.
Se ela amou um de nós ou os dois, não sei. Se foi ao mesmo tempo, também não saberei dizer. Talvez ela nunca tenha feito uma escolha consciente. Ou talvez, como tantas histórias que não terminam bem, o destino tenha escolhido por ela.
Soube, por uma nota numa revista social, que o casamento do filho da elegante Sofia Azevedo Becker aconteceu discretamente, reservado apenas a parentes e amigos íntimos. E que o bebê deles é uma menina. Se herdou os traços da mãe, certamente é linda.
E pensar que, um dia, fui parte daquela história. Hoje, sou apenas o rodapé esquecido de um capítulo que não chegou ao fim — apenas mudou de nome.
E ali estava eu, a filha do renomado Dr. Afonso Klein Becker, retornando à base depois de virar personagem principal de um escândalo familiar que daria uma boa matéria de capa em qualquer revista de fofoca hospitalar.
O avião pousa em Curitiba. A voz do piloto me arranca dos devaneios. O passado me espera lá fora — junto com a chance de reconstruir tudo.
Talvez o amor ainda more em algum lugar. Talvez não. Mas agora, ao menos, não preciso mais me esconder.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]