capitulo quinze: Por ela.
CAPÍTULO 15. POR ELA.
— Diana, eu não aguento mais.
Digo para minha secretária emprestada só por hoje pela Dra. Baldez para escolher enfim, a mulher que vai ocupar o lugar de Adriana. E eu estava de mal humor o dia todo por três motivos:
1. Eu odiava escolher alguém que não conhecia para um cargo tão importante;
2. Processos seletivos me irritavam;
3. A minha vida estava um caos depois que Fernanda resolveu agir pelas minhas costas.
— Calma, Anna. Você vai encontrar sua outra metade. — Ela tenta apaziguar em tom de deboche, claramente se divertindo com aquilo.
— Te odeio. — Reviro os olhos.
— Eu sei que se você pudesse, ia talaricar Roberta para me ter como secretária.
— Não ouse falar isso para ela. — Digo em sussurro, colocando a mão na boca como se fosse um segredo.
— Ela meio que já sabe. — Diz repetindo o gesto e sorri
— É claro que sim. — Dou um sorriso
— O que você está procurando?
— Uma outra Anna. — Digo, me convencendo.
— Arrogante?
— Não.
— Convencida?
— Não.
— Se acha a última bolacha do pacote?
— Quer passar no RH ainda hoje? — A fuzilo com o olhar
— Estou calada. — Ela faz o gesto como se tivesse passando um zíper na boca e eu balanço a cabeça negativamente sorrindo
— Eu tô procurando alguém, sei lá... Que eu não tenha que ficar pedindo pra fazer as coisas, que seja prático, rápido, pense como eu, saiba termos jurídicos, coisas da profissão... Quero alguém que pegue as coisas no ar, que eu possa pedir favores sem que fiquem me julgando, eu não quero desconfiar de quem trabalha pra mim, quero conexão, tato.
— Das sete pessoas que entrevistou, ninguém assim? — Ela perguntou, perplexa.
— Não. Só mais do mesmo. Saber dominar o pacote office não é nem habilidade, é o mínimo. — Reviro os olhos — Acredita que a segunda candidata veio com um atestado médico? Estou cansada.
— Quer que eu otimize? Pré-entreviste?
— Não, Di. Esse tipo de coisa prefiro fazer eu mesma e Roberta vai com certeza arrancar minha cabeça fora se você ficar mais um dia trabalhando pra mim. — Ela sorri — Manda a próxima.
Para a minha surpresa, entrou um candidato. Ele estava meio confuso, perdido. Arqueei as sobrancelhas ao olhá-lo.
— Bom dia. Não quer se sentar?
— Não, quer dizer... Sim.
— Está nervoso? Quer uma água?
— Não, Dra. Estou bem. Ai, desculpa. É uma honra te conhecer. Eu conheço dos vídeos, das palestras. Lá na faculdade a senhora é referência.
— Faz faculdade de Direito? — Pergunto, tentando entender o motivo dele querer um cargo de secretário e não de estagiário.
— Faço sim, estou no quinto período.
— Por que não mandou currículo para estagiário? Acredito que aprenderá mais do que como secretário. — Ponho o dedo indicador no queixo — Infinitamente mais.
— Doutora, sendo muito sincero com a senhora, eu sou bolsista no IBMEC, moro em uma república e no momento estou sobrevivendo. Um cargo de estagiário aqui na Florence-Baldez seria ótimo para minha carreira, mas a bolsa de estágio não cobriria os meus custos de vida.
— Você é bolsista no IBMEC? — Olho fixo em seus olhos. — Conhece a Professora Fernanda Alencar?
Ele se surpreende com a pergunta, balança a cabeça afirmativamente antes de me responder:
— Sim, ela é minha professora de Direito Civil V, direito de família.
Sorrio de canto.
O mundo era mesmo pequeno.
A sombra dela me persegue até nesses momentos. Mesmo separadas, é como se Fernanda estivesse sempre ali, até em rostos desconhecidos.
Ou talvez, Fernanda tivesse razão em sempre dizer que eu acabava atraindo para perto pessoas que precisam de uma oportunidade.
— Conheço bem a Professora Alencar. — digo, cruzando as mãos sobre a mesa e observando a reação dele.
Os olhos de Anthony se arregalam, talvez por perceber a familiaridade no meu tom.
— Nossa... eu não sabia! Ela é uma ótima professora, até eu que não gosto muito de Civil paro tudo para prestar atenção na matéria dela. Vale a pena sair 22h da noite toda quinta feira.
Ele sorri no final e eu vejo a sinceridade ali. Ele não estava tentando me agradar, eu conhecia bem o tipo quando essas bajulações aconteciam, ele estava sendo sincero.
— Fico feliz em ouvir isso. — digo, deixando escapar um sorriso de verdade, o primeiro do dia. — Anthony, você tem ideia do que significa trabalhar diretamente para mim?
Ele hesita, mas responde com firmeza:
— Imagino que seja muita responsabilidade. E também uma oportunidade única.
Assinto, satisfeita com a resposta.
— Aqui, eficiência, lealdade e discrição não são qualidades... são obrigações. — digo, firme. — E se eu decidir te contratar, você não será apenas "meu secretário". Será meu braço direito em tudo que eu não puder estar pessoalmente. Entende o peso disso?
Anthony se endireita na cadeira, o olhar agora firme.
— Entendo. E estou disposto a provar que sou capaz.
Ele começa a me contar das experiências, me mostra o seu CR na faculdade que era ótimo, disse que fez curso de secretariado e que estava buscando uma oportunidade de começar no primeiro emprego na área jurídica.
Ele desenvolve a conversa com firmeza, em nada me lembrou aquela aparência de garoto assustado no início da entrevista.
E isso me fez querer arriscar.
Antes que eu possa falar mais, a porta se abre discretamente e Diana entra.
— Anna, a próxima candidata já chegou.
— Obrigada, Diana. Pode pedir para ela aguardar mais um pouco.
Anthony se levanta.
— Obrigado pela oportunidade dessa entrevista, Dra. Anna. Mesmo.
— E fique por perto, ainda vamos conversar.
Ele me dá um sorriso cheio de expectativas e sai.
Suspiro, ajeitando a postura na cadeira, me preparando mentalmente para a próxima entrevista.
Eu já estava começando a ficar animada, finalmente. Acho que encontrei alguém... Totalmente fora do que eu esperava, mas havia um “ele pode mais” ali.
Quando Diana anunciou a próxima candidata e eu vi a porta se abrir, achei que Diana tinha se enganado e me mandado uma vendedora da Chilly Beans.
A moça chegou toda dona de si.
Jeans preto skinny, camiseta de banda alinhada sob um blazer preto ajustado — a camisa era do Slipknot, só isso já me fez amá-la. Seu coturno de couro envernizado. No braço, algumas tatuagens que o blazer cobria. Em seu rosto havia um sorriso meio cínico, meio enigmático, aquele sorriso de alguém que estava plenamente segura de si.
Tinha o tipo de presença que você sentia antes mesmo de perceber.
— Bom dia, Dra. Anna. — Ela disse sem hesitar, enquanto suas mãos estavam estendidas para que eu pudesse apertá-las.
— Bom dia... — Respondi, ainda a estudando — Pode se sentar.
— Cibelle... — comecei, deslizando os olhos sobre o currículo — Você tem uma trajetória impressionante para alguém tão jovem.
— Obrigada. Eu tento não deixar o preconceito envelhecer a minha capacidade. — respondeu sem piscar, com um sorriso debochado.
Arqueei a sobrancelha, genuinamente interessada.
— O que te traz até aqui? Vejo que trabalhou para muitos banqueiros. Um escritório de advocacia seria o ideal pra você?
Ela apoiou os cotovelos nos braços da cadeira e inclinou levemente o corpo para frente, sem perder o sorriso.
— Eu não quero só uma vaga... Quero uma missão. E tenho certeza que aqui eu posso construir algo grande. É o melhor escritório de advocacia do Rio de Janeiro. Eu não sou do tipo que entra para cumprir horário. — pausou, olhando firme nos meus olhos. — Eu entro para fazer história.
Eu dou um sorriso, tentando conter a minha risada.
— Cibelle, aqui respeitamos as leis trabalhistas. — Ela sorri — Se caso for contratada, irá cumprir seu horário e se passar dele, pagamos hora extra, tá bem?
Ela assente, sorrindo.
Nosso santo bateu. Ela era absurda. Carismática. Direta. Corajosa.
— Está preparada para lidar com alta pressão?
Ela ri, um som baixo e confiante.
— É o que eu faço. Acostumei a fazer milagre com pouco recurso. Agora quero ver do que sou capaz num lugar que exige o meu máximo.
Fiquei alguns segundos em silêncio, apenas a olhando. Sabia reconhecer talento bruto quando via um.
E Cibelle era como uma peça rara: ou você tinha coragem de apostar nela, ou perdia a chance da sua vida.
Mas... E Anthony?
O que eu faria com ele?
— Cibelle, eu tenho uma última pergunta.
— Sim, diga. — Ela me olha com expectativa.
Penso por um segundo e então lanço:
— Em que álbum o Paul Gray — aponto para a camisa do Slipknot que ela está usando — fez sua última participação antes de falecer?
Os olhos dela brilham, e eu vejo o respeito surgir ali. Não era uma pergunta fácil. Era pergunta de quem conhecia mesmo.
Ela ajeita o blazer como se fosse um ritual e responde sem hesitar:
— All Hope Is Gone. — fala, firme. — Lançado em 2008. O Paul faleceu em 2010.
Eu solto uma risada curta, balançando a cabeça, impressionada.
— Você é boa mesmo.
— Eu não uso camiseta de banda que eu não conheço, Dra. — diz, com aquele sorriso debochado que já era marca registrada.
Sorrio largamente.
— Espera lá fora que eu já te chamo.
Enquanto Cibelle saía da sala, trocando algumas palavras rápidas com Diana, eu fiquei ali, olhando para a porta e pensando em Anthony.
Ele merecia uma chance. Não para ser apenas "mais um".
Talvez... para ser algo que eu sempre quis construir, mas nunca tive tempo ou coragem: meu próprio advogado, treinado sob a minha filosofia, meu modo de ver o mundo jurídico.
Sorrio de lado.
Ia ter muito trabalho.
Mas também, talvez... fosse o começo de algo muito maior.
Olho para o celular em cima da mesa.
Ligar para Fernanda era justificável. Uma dúvida profissional, uma referência acadêmica.
Mas no fundo...
No fundo, talvez fosse só uma desculpa qualquer.
Uma permissão para ouvir aquela voz doce, mesmo que por um minuto. Meus dedos hesitam. E se ela atender?
Engulo seco e pressiono o número. O nome dela brilha na tela.
“Mãe de Cecília”
Eu havia trocado o apelido íntimo e carinhoso. Agora ela era... só a mãe da minha filha. E isso doía. Como doía.
Ela atende no terceiro toque, interrompendo minhas lamentações, ajeito minha postura e respiro fundo.
— Anna?
Ela atende com a voz vem trêmula, como se tivesse prendido o ar. Sua respiração curta, entrecortada, como quem correu para atender. Ela tinha essa mania, quando estava a espera de alguma ligação importante, corria para atender o telefone esbaforida.
Sorrio ao lembrar de seu jeito, mas segundos depois meu peito aperta. Lembrando que não éramos mais nada. Apenas... mães.
Endireito a postura, ajeito o tom da voz e visto minha armadura.
— Oi, Fernanda. Está com tempo para uma pergunta rápida?
— Cla- claro. — responde, nervosa.
— Estou finalizando o processo seletivo para minha nova secretária — na verdade, estou entre dois nomes. Um deles é seu aluno, Anthony. Quinto período de Direito no IBMEC. Você o conhece bem?
— Sim, conheço. Anthony é muito dedicado. Tem pensamento crítico, é participativo, foi um dos poucos que tiraram nota acima de 9 na última prova. Não o conheço fora do ambiente acadêmico, mas na sala de aula, ele se destaca.
— Obrigada. Era só isso mesmo. Precisava de uma referência mais direta.
— Por nada. Ele parece ter um bom perfil. Mas você sempre soube confiar na sua intuição.
— Nem sempre. — digo, em um tom quase irônico.
Ela suspira e tenta dar continuidade à conversa.
— Anna... por favor, vamos conversar.
Mas eu a interrompo, antes que minha voz ceda, antes que essa merd* de coração — que deveria ter nascido blindado — amoleça de novo.
— Ah... sobre Cecília. Pensei em buscá-la hoje na natação, pode ser? Eu queria que ela conhecesse o meu novo apartamento e depois queria leva-la ao shopping para escolher as coisinhas do quarto dela.
Do outro lado, Fernanda demora alguns segundos para responder.
— É claro que você pode busca-la, Anna. Ela vai adorar. Ela perguntou de você hoje cedo, sabia? Está com saudades... — Quase posso ouvi-la engolir o choro.
— Tá bom... Ela vai dormir comigo, tá bem? Amanhã eu a levarei na escola. Deixa a mochilinha dela pronta.
— Me manda o endereço por mensagem, só para eu saber onde ela está.
— Certo.
— Anna... eu... — ela sussurra
— Preciso desligar. Tenho uma contratação a fazer. Até.
A interrompo mais uma vez. Rápida, fria, treinada. Eu não conseguiria ouvir mais nada sem desmoronar.
Desligo.
Coloco o celular sobre a mesa e respiro fundo.
Curioso como até uma conversa neutra com ela me deixava... desalinhada por dentro.
Mas agora, foco.
Anthony. Cibelle.
Olhei para a pilha de currículos ainda por analisar e então chamei Diana pelo interfone:
— Pode pedir para os dois entrarem, Diana. Tenho um anúncio a fazer.
Era hora de começar essa nova fase.
Minutos depois, os dois entram. Ele, com um olhar curioso. Ela, com um olhar confiante.
— Chamei vocês dois aqui, pois fiquei em dúvida em qual de vocês contratar e... bom, pra que um se eu posso ter os dois, não é mesmo? — Dou um sorriso satisfeito — Anthony, você não vai ser meu secretário. Vai ser meu estagiário pessoal. Quase meu associado. Você me despertou o desejo de ensinar. Já que eu não tenho mais o meu curso aqui dentro, pelo menos vou poder ser mentora de alguém que eu possa moldar e fazê-lo entender o Direito como eu entendo.
Anthony piscou, confuso, e então assentiu com um brilho nos olhos.
— Quanto à remuneração, não se preocupe. Você vai ganhar mais que um estagiário, mas menos que um secretário. E se você se sair como eu espero, poderá ganhar alguns bônus conforme vejo seu trabalho. Combinado? — Ele assente novamente, hipnotizado — Se esforce. Sou exigente.
— E Cibelle... — Virei a cadeira na sua direção com um sorriso no canto da boca — Se eu não te contratasse, eu seria louca.
Ela riu contida, mas satisfeita.
— Você vai ser minha mais nova secretária. E não pense que é pouco. Esse cargo é muito mais que organização de documentos.
— Não vou te decepcionar, Dra. — Ela disse, com firmeza. — E prometo não fazer você chorar de emoção na primeira semana.
Soltei uma risada curta.
Talvez Cibelle fosse o que exatamente Diana disse — uma outra eu: arrogante, convencida e que se acha a última bolacha do pacote. Não que esses três adjetivos sejam defeitos.
— Pode me fazer chorar de eficiência, se quiser.
Anthony riu baixo, e eu levantei da cadeira.
— Bem-vindos à Florence-Baldez. Passem no RH no segundo andar e acertem os detalhes.
Estendi a mão primeiro para Anthony. Ele apertou com força, com gratidão nos olhos. Depois para Cibelle, que apertou com firmeza e um sorriso confiante.
Enquanto os dois saíam, trocando olhares curiosos — um tímido, outra provocadora —, eu permaneci de pé, com uma sensação rara me tomando por dentro:
O pressentimento nítido de que, naquele momento, eu tinha feito a escolha certa.
☠️💻
Estacionei em frente à Oficina de Natação por volta das seis. Desliguei o motor e fui em direção à arquibancada onde os responsáveis ficavam assistindo as crianças. Podia ouvir o som familiar do apito do instrutor, e senti uma pontada no peito.
Eu precisava ver minha filha mais vezes. Ela precisava de mim.
Cecília estava na raia três, usando sua touca lilás. Com os braços esticados, deslizou pela água com leveza. Havia algo de mágico no jeito como ela nadava. Não era a técnica perfeita — embora tivesse evoluído muito —, era a entrega. O olhar determinado ao chegar na borda, como se ela estivesse em sua própria Olimpíada imaginária.
Meus olhos de mãe coruja marejam.
Ah, minha filha. Te amo tanto...
— Vai, filha! A mamãe está aqui! — Grito, animada. Mas não tenho certeza se ela pode me ouvir com os tampões no ouvido.
Ela fez a virada com um pequeno impulso e voltou, ainda mais rápida. Uma braçada desajeitada, outra certeira, a perninha chutando a água com energia.
Ela estava voando na água. Ela era boa. Muito boa. E nós só a colocamos na natação por receio dela se afogar na piscina lá de casa, mas ela provou ser muito mais que uma simples aprendiz. Ela amava o esporte. Que nem eu amava futebol.
O apito – que parecia mais uma sirene – indicava que a aula havia acabado. Cecília nadou até a borda, ofegante, mas sorrindo. Ela apoiou as mãos no azulejo e, com um último esforço, saiu da água com aquele jeitinho estabanado de quem ainda não domina a coordenação motora.
Correu até o instrutor, pegou a toalha com estampa de golfinhos e, antes mesmo de se secar, olhou ao redor da arquibancada. Quando nossos olhos se encontraram, seu rosto se iluminou.
— Mamãe! — gritou, acenando com a toalha no alto.
Desci os degraus apressada, rindo feito boba.
Ela correu até mim com os pés molhados, me abraçando sem nem se importar em me encharcar. Eu também não me importei. Era aquele abraço que eu estava precisando fazia dias, desde o nosso último encontro no Aterro.
— Você tava voando na água, filha! Que orgulho da minha nadadora preferida!
— Você viu minha virada? Eu não bati a cabeça nenhuma vez! — disse, empolgada, me mostrando com gestos o que havia feito.
— Vi sim, e foi incrível.
— Você tá merecendo um prêmio! Medalha de ouro e tudo!
Ela fez cara de sapeca, ainda com os cabelos pingando dentro da toalha felpuda.
— E um milkshake bem grande. De ouro também.
Ri e puxei-a para um abraço apertado, sentindo o cheiro de cloro misturado com aquele perfume suave que só ela tinha.
— Fechado. Mas hoje eu pensei em algo ainda melhor. Que tal ir conhecer o meu novo apartamento? E depois a gente passa no shopping pra escolher suas coisinhas? Lençol novo, almofadas, um tapete bem fofo...
Cecília arregalou os olhos.
— De verdade, mamãe? Posso escolher tudo?
— Tudo.
— Será que tem de caveirinhas?
Arqueio a sobrancelha, mas logo dou um sorriso.
— Acho pouco provável, filha. Mas vamos procurar. Caso não tenha, mamãe manda fazer. Mas hoje você tem que escolher algumas coisas pro seu quarto. Se não, como você vai dormir?
Segurei sua mão e caminhamos juntas até o vestiário. Meu coração bateu com um pouquinho de esperança.
Ela ainda era minha.
E eu ainda podia reconquistar tudo aquilo que fazia sentido.
Minha filha era o meu maior amor e ela fazia sentido.
O Milk Moo estava absurdamente cheio para uma terça-feira, mas Cecília parecia imune à espera, saltitando de um lado pro outro com a energia de quem tinha acabado de ganhar uma competição olímpica.
— Eu disse que queria medalha de ouro. E milkshake. — Ela apontou com firmeza para o painel luminoso atrás do balcão. — Esse aí! De morango com marshmallow, chantilly, calda e tudo, mamãe.
— Isso custa o PIB de um país pequeno, filha.
A atendente riu com meu comentário.
— Mas é meu prêmio! — rebateu com um sorrisinho vitorioso.
Acabei cedendo, como sempre, e depois de pagar um milkshake absurdamente superfaturado, seguimos de mãos dadas pelos corredores do shopping, ela era só sorrisos, eu amava ver minha filha assim.
Entramos na loja de cama, mesa e banho com o objetivo claro: montar o cantinho de Cecília no meu novo apartamento. Ela parou em frente a uma estante cheia de colchas e fronhas coloridas. A cara dela não era das melhores.
A vendedora, uma moça sorridente de batom vinho e olhar atento demais para o meu gosto, se aproximou.
— Oi! Procurando algo para ela? — disse, inclinando-se ligeiramente em minha direção. — A gente tem uma linha novinha só com tema de unicórnios. As meninas amam.
Cecília revirou os olhos como se tivesse dezessete anos.
— Unicórnio é muito... brilhante. Eu gosto de caveiras.
A moça deu uma risada forçada, um pouco sem graça, enquanto eu mordia o lábio para não rir.
— Tem... alguma coisa com caveiras? — perguntei, ainda tentando manter a compostura.
— Infelizmente não, mas temos uma linha fofa do Stitch. Tem roxinha com azul, é bem diferente. Talvez ela goste.
Cecília olhou pra mim, depois pra vendedora.
— Stitch serve. Ele é bagunceiro igual eu.
— Fechado então. — respondi, enquanto Cecília me puxava para ver os móveis.
Durante o atendimento, percebi os olhares constantes da vendedora, prolongados demais. Um sorriso que ultrapassava o necessário, um esbarrar de mãos disfarçado ao me entregar a minha via da maquininha.
— Espero te ver mais vezes por aqui — disse ela, entregando as sacolas como quem entrega um número de telefone.
— Obrigada — respondi, breve, sem devolver o sorriso.
Quando saímos da loja, Cecília parou de repente, olhando para mim com os olhos semicerrados, desconfiada.
— Mamãe... aquela moça da loja... ela tava querendo namorar você?
Quase tropecei no degrau da escada rolante.
— O quê?
— Eca! — fez uma careta. — Ela olhou pra você igual a mainha. Só mamãe Fê pode olhar assim pra você — diz, cruzando os braços de forma birrenta.
Tentei disfarçar o riso, mas o calor no rosto me entregou. Antes que eu conseguisse formular uma resposta minimamente coerente, ela continuou:
— Você não namora mais a mainha?
Meus ombros caíram. Suspirei fundo, sentindo um aperto no peito.
É, aquela hora chegou.
— A gente conversa sobre isso em casa, tá, filha?
Cecília deu um gole no milkshake, fazendo um barulho irritante.
— Eu não gosto quando os adultos falam “a gente conversa em casa”. Sempre parece mentira.
— Cecília... — murmuro, a repreendendo — Em casa filha, ok? Aí a gente conversa. Vamos escolher um ursinho do Stich pra você dormir?
— Oba!!! Igual meu monstrinho? — ela pergunta com um brilho no olhar
Assinto.
Quando estávamos saindo do shopping — com mil sacolas e um urso do Stich gigante, abri a porta do carro para minha princesa entrar. Ela estava feliz, mas havia algo nos olhinhos dela que estava me deixando inquieta, desde a fatídica pergunta sobre Fernanda.
Eu converso?
Ou conversamos juntas?
Decido mandar uma mensagem pra ela, não ia iniciar uma conversa com Cecília sobre um assunto tão delicado sem Fernanda saber. Sempre resolvemos tudo juntas em relação à Cecília e eu queria que permanecesse igual, Fê sempre dizia que eu era a mãe preferida de dela e eu sentia que ela ficava chateada com isso às vezes.
*Anna Florence – adv*
- Fernanda, nossa filha perguntou sobre nós duas. Não queria ter essa conversa sem a sua opinião. Você prefere que a gente converse juntas com ela ou posso responder a pergunta sem você?
*Mãe de Cecília*
- Eu queria sinceramente, que essa conversa não existisse. Que você voltasse pra casa, pra nossa vida. Com a nossa filha. Queria dizer a ela que tudo não passou de uma fase ruim e que casais brigam.
*Anna Florence – adv*
- Eu entendo o que você queria, mas o que eu quero no momento é proteger a Cecília desse caos, da nossa bagunça. Ela precisa de clareza, não de promessas que a gente talvez não consiga cumprir. Podemos conversar com ela juntas, é mais seguro pra ela. Passa lá em casa, já estou saindo do shopping. O endereço é esse abaixo.
Dei partida e assim que chegamos no prédio, ficamos aguardando na portaria. Não tinha certeza se ela viria, pois ela só visualizou e não respondeu nada, mas ainda assim, ficamos esperando. Cecília não sabia que a Fê viria, não quis contar para não desapontá-la, caso ela não viesse.
Mas ela veio.
Assim que ela passou pelo porteiro, meu coração parou por um segundo. Fernanda. De short jeans baixo, aquele top branco que deixava a barriga à mostra, cabelo novo — mais volumoso, mais solto, mais… dela. Irritantemente linda. Como se o caos dos últimos dias não tivesse deixado nenhuma marca.
Cecília correu antes que eu pudesse reagir.
Ela se jogou nos braços da Fernanda e eu fiquei parada ali, na entrada, feito uma figurante na própria vida.
Apertou-a com força. Encheu-a de beijos. Era sempre assim.
Ela finalmente me viu. E sorriu. Não aquele sorriso largo de quem está feliz — era um sorriso contido, mas vivo.
Fiquei sem saber o que dizer. Então falei o óbvio:
— Mudou o corte?
Ela sorriu mais de verdade, quase surpresa:
— Mudei. Que bom que reparou.
Dei meio sorriso.
E então reparei no que estava usando. A pele à mostra, o cabelo macio caindo sobre os ombros, o jeito como ela parecia mais leve. Gostosa.
Quê?
Desviei o olhar, porque não sabia onde mais mirar sem me perder.
— A Cecília quer te mostrar o quarto novo.
Cecília a puxou imediatamente.
— Mainha, eu comprei tudo do Stich!
Assim que destranquei a porta, Cecília entrou correndo, como se já conhecesse cada centímetro do lugar — o que, de certo modo, era verdade. Nos pouco minutos que ficamos, ela explorou tudo e amou o quarto que seria dela, ainda cru. Só havia uma cama, um armário e um sonho.
Mas foi Fernanda quem parou no vão da entrada. Um passo do corredor, estudando o local.
— É aqui que você tá morando?
Assenti com a cabeça, sem coragem de encará-la direto.
— É… lindo.
— Obrigada — eu disse, sutil. — Não tem muita coisa ainda. Mas é funcional, mobiliado. Tem a área do parquinho e da piscina. Eu aluguei pensando na Cecília.
Ela olhou para o sofá. Para a manta dobrada com cuidado. Para os processos que eu trouxe do trabalho empilhados ao lado da poltrona de leitura. Reconheceu uma foto nossa com Cecília — a única que deixei à mostra.
— Você conseguiu fazer de um lugar vazio… um lar.
Fiquei sem resposta. E era exatamente isso o que doía.
Um lar sem ela.
Por egoísmo dela.
Cecília reapareceu na sala, pulando:
— Mamãe Fê, vem ver o meu quarto novo!
Ela assentiu devagar e me seguiu em silêncio pelo corredor. Cecília puxou a mão dela, animada.
A casa estava cheia. Mas dentro de mim, tudo ainda era ausência.
Depois que colamos o último adesivo na parede e ajeitamos o cobertor do Stitch sobre a cama, Cecília se sentou no centro do colchão, segurando o Stich gigante no colo.
— Mamãe... agora pode me contar? — ela perguntou, sem rodeios, olhando para mim e depois para Fernanda. — Vocês estão brigadas?
Fernanda se sentou ao lado dela, e eu me sentei do outro. Fomos unidas pelas mãos pequenas da nossa filha.
Respirei fundo. E, pela primeira vez, deixei o orgulho do lado de fora do quarto.
— A mamãe Anna e a mamãe Fê… não estão mais morando juntas. A gente tá passando por um momento difícil, sabe? Às vezes, mesmo quando duas pessoas se amam, elas precisam de um tempo pra pensar, pra respirar.
— Mas vocês vão se separar pra sempre? — ela perguntou, num sussurro.
Fernanda respondeu com a voz baixa, mas firme:
— A gente ainda não sabe, meu amor. Mas o que a gente sabe — e isso nunca vai mudar — é que você continua sendo nossa filha, que a gente te ama com todo o coração, e que sempre vai estar ao seu lado. Juntas.
Cecília abaixou o olhar e abraçou o Stich com força. Ficou em silêncio por alguns segundos, como se digerisse cada palavra. Depois, encostou a cabeça no meu ombro.
— Eu não gosto quando vocês ficam tristes. Nem quando ficam longe.
Meus olhos arderam, mas eu pisquei, firme. Não podia desmontar na frente dela. Fernanda também parecia engolir a emoção, apertando a mão da filha com mais força.
— A gente promete que vai continuar sendo um time, tá? Só que agora, em casas diferentes. Mas com o mesmo amor — completei, acariciando o cabelo dela.
Ela assentiu, com um suspiro entrecortado.
— Eu te amo, filha. — Fernanda disse à Cecília, enquanto ela abraçava Fernanda com força, algumas lágrimas caíram de seus olhinhos e eu só queria morrer por dentro.
— Eu também te amo, minha princesa. — disse, me juntando aquele abraço com todas as forças que eu ainda tinha, apertando as duas forte.
Ainda éramos família.
Um pouquinho despedaçadas, talvez.
Mas ainda éramos.
Por ela.
Nossa Cecília.
Fim do capítulo
Meus amores, como vocês me pediram muito, eu soltei mais um capítulo!
Agora eu preciso me reorganizar para como vocês pediram, postar duas vezes na semana.
Eu já defini os dias: agora toda terça e quinta vocês poderão acompanhar Fê e Anna.
Como estou postando hoje, quarta feira, só terça que vem vocês terão um novo capítulo. Preciso muito reorganizar tudo que já escrevi. E não, essa autora não quer matar vocês do coração, só que o título da história já diz: "O Nosso Recomeço". Um casamento é feito de recomeços, sempre que necessário.
Estou muito feliz com vocês se emocionando com a história, amando, comentando, fico muito motivada a escrever mais e mais pra vocês. Agora entrarão personagens novos e os que vocês já conhecem retornarão à história.
Será que vocês vão ter fôlego para acompanhar até o final?
Não percam!
Gratidão!
Qualquer dúvida, minha dm está aberta no insta: @rodriguesnathh
Beijosss! Até terça!
Comentar este capítulo:
Lea
Em: 13/06/2025
Bom,se estou me emocionando com esses capítulos? Com toda certeza! É uma mistura de amor e ódio,de sofrimento e admitindo que,o que aconteceu,foi muito grave.
Cecília é muito linda!
Nath, você está fazendo nossos corações doer,mas,entendo, compreendo.
Boa noite!!
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HelOliveira
Em: 11/06/2025
Ainda respirando e com muitas expectativas.....
Elas se amam demais, mas sei terão um longo caminho pela frente e nos vamos sofrer muito
Obrigada por mais esse capítulo e até terça
nath.rodriguess
Em: 12/06/2025
Autora da história
Respira fundo pq essa história vai levar a gente pra alguns caminhos e nem todos serão suaves. Mas sim, elas se amam muito, e isso já é um fio de esperança, né? Até terça com mais emoções!
Ah! Estou testando imagens de IA para vocês verem, além de lerem, um pouquinho também da Anna e da Fê.
Então aqui tem uma imagem delas duas, fofinhas, no deck da casa delas: https://drive.google.com/file/d/1ABOMCLMJJtYxc2SH50IVRnZ5bH9FWUz4/view?usp=drive_link
Vou adicionar mais imagens no drive da história, prometo! Tô sem tempo rs
Bjsss até terça!
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Mmila
Em: 11/06/2025
Mais um capítulo de emoções forte. Choro de novo do início ao fim.....
Ah meu coração, será que vai aguentar esse ritmo?!?!?!?
Tá perfeito terça e quinta.
A vida tem sempre recomeços, imagina um casamento em que duas se amam!
Aguardando novas emoções.....
nath.rodriguess
Em: 12/06/2025
Autora da história
O coração sofre, mas tbm ama cada pedacinho dessa montanha russa que é essa história... e quando existe amor, tudo é possível! Segura firme nas terças e quintas, vem mais emoção por aí!
Mmila
Em: 12/06/2025
No aquardo de emoções fortes, sempre!
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nath.rodriguess Em: 14/06/2025 Autora da história
Que comentário lindo! Meu coração acordou quentinho. E eu juro que eu escrevo com o coração na mão também, viu? Meu sonho é levar esse livro pra Amazon Kindle e publicar ele real.
A dor da Fê e da Anna é uma dor que mistura amor, raiva e com Célia, ternura. Ela é o elo entre as duas.
Obrigada, muito obrigada por sentir junto, entender a história e acompanhar mesmo quando o coração aperta. Um casamento não tem que ser perfeito, ele tem que ser real.
Juro que ainda vou publicar esse livro! ^^