capitulo quatorze: ruína
CAPÍTULO QUATORZE. RUÍNA.
POV: Fernanda
Já se passaram quatorze dias.
Quatorze noites com a cama vazia, quatorze manhãs com Cecília perguntando, de jeitos cada vez mais sutis, por que a mamãe Anna ainda não voltou. Ela não diz com palavras. Diz com febres, com silêncios, com os olhos tristes no retrovisor enquanto a levo para a escola. E eu... eu respondo com sorrisos falsos e uma esperança que não consigo mais sustentar.
A casa está limpa demais. Não tem ninguém fazendo um terremoto na cozinha só pelo fato de estar fazendo pipoca. Não tem gargalhadas na sala com algum filme brasileiro meia boca que ela amava assistir.
Estou no quarto encarando o teto, com a televisão ligada na Netflix. O terceiro episódio de Orange Is The New Black pela metade, só porque prometemos que iríamos assistir juntas. Vou passando o catálogo sem achar nada muito interessante.
Ah, amor. Volta, por favor.
— Mainha, posso dormir na sua cama hoje? — Cecília pergunta, com os olhos marejados.
— Pode, meu amor.
Ela deita encostada no meu peito, mas no lugar onde Anna dormia e adormece rápido com seu monstrinho de pelúcia na mão. Eu fico ali, encarando o teto, com o coração apertado e morrendo de saudade do meu amor.
Adormeço com Anna na cabeça, o que será que ela estaria fazendo nesse momento?
☀💔
Na manhã seguinte, Bruna chega de surpresa. Com Bia ao seu lado e com um olhar sério.
— O que você fez foi horrível, Fê. — diz, sem rodeios.
Dou de ombros.
— E você não sabe metade.
Ela entra sem pedir licença, como sempre fez. Passa o olho pela sala, nota a alguns brinquedos de Cecília espalhados pelo sofá.
— A Anna me contou algumas coisas. Do caso. Do computador... — ela para, me olha — Você realmente achou que ia dar certo?
Suspiro. Baixo os olhos.
— Eu só queria vencer por conta própria. Por uma vez, sabe? Não ser só a esposa da Anna Florence.
— Você já é muito mais do que isso — ela diz, sentando ao meu lado — Mas você errou, Fer. E não foi pouco. Ela confiava em você. E você passou por cima disso.
Fico em silêncio. Não há o que dizer. Tudo o que vem à cabeça já foi dito mil vezes por mim mesma, nas madrugadas em claro.
— Eu a amo, Bruna. — sussurro. — Eu errei, eu me arrependi. Mas eu a amo.
Beatriz interveio.
— Então mostra isso do jeito certo. Começa por Cecília. Ela está absorvendo tudo, mesmo sem entender. E quanto à Anna... por experiência própria: não adianta achar que ela vai voltar com um pedido de desculpas e meia dúzia de flores. — Sorrimos com a referência — Vai ter que reconstruir isso com calma. Com tempo. E talvez nunca volte a ser como antes.
— E se ela tiver razão em não me querer de volta?
— A Anna ama você, Fê... — Suspira — Mas ela é tão orgulhosa que é capaz dela querer conviver com a dor do que admitir que está sofrendo também.
— Ela está sofrendo? — Pergunto, olhando de uma a outra.
Bruna, como se estivesse falando aquilo para me ferir, responde enfadonha:
— É claro. Ela confiou em você. Acreditou em você, se permitiu, se deu uma chance de ser feliz de novo e você destruiu isso. É claro que ela está sofrendo. Está se sentindo traída. Você jogou tudo fora por... vaidade?
— Não foi vaidade! — explodo, com a voz falha — Eu me senti apagada, Bruna! Pequena! Por mais que a amasse, por mais que tentasse... eu sempre era a sombra. E um dia isso começou a doer. Muito.
— Então você quis machucar antes de ser machucada, é isso? — ela rebate. — Parabéns. Conseguiu. Mas doeu em todo mundo. Até na Cecília.
Engulo em seco, sentindo as palavras como tapas.
— Eu nunca quis machucar a minha filha. Nunca quis machucar ninguém. Eu só queria ser... reconhecida. Ser vista.
Bruna balança a cabeça, impaciente.
— Você sempre foi vista. Por mim, pela Anna, pelas nossas amigas. Mas você confundiu ambição com ego. E agora tá aí, sozinha, se perguntando por quê.
Beatriz intervém, com a voz firme, mas mais doce:
— Bruna, calma. Ela já entendeu.
— Entendeu? — Bruna olha para ela, incrédula. — A Fernanda sempre teve discurso bonito. Mas e ação? E consequências?
— Eu estou sofrendo! — grito, com a garganta queimando. — Eu acordo todos os dias com um buraco no peito. Eu tenho medo de que minha filha comece a me odiar pela mãe dela não estar mais aqui. Tenho medo de nunca mais ouvir o riso da Anna ecoando por essa casa. E se você acha que isso não é consequência, então...
— Então aguenta — Bruna corta. Fria. Dura. — Porque foi você quem cavou isso.
Beatriz segura minha mão, apertando de leve.
— Ela já está aguentando, Bru. A gente veio aqui pra ajudar, lembra?
Bruna suspira, vencida, mas o olhar continua afiado.
— Eu só... não entendo como alguém que diz amar tanto foi capaz de trair tão fundo.
— Porque amar não torna a gente perfeita — respondo, com a voz embargada. — E às vezes... amar muito faz a gente se perder. Eu me perdi. Mas eu ainda estou aqui. E se houver alguma chance, por menor que seja, eu vou lutar pra trazer a Anna de volta.
Bruna fica em silêncio por alguns segundos, depois levanta.
— Então começa agora.
— Como? — pergunto, sem saber se ela está falando de Anna ou de Cecília.
— Começa cuidando da sua filha. Mostra pra ela que, apesar de tudo, ela ainda tem uma mãe inteira por ela. E quando — se — a Anna estiver pronta pra ouvir... aí você fala. Mas só fala se for pra ser verdade. Sem desculpas. Sem jogo. Só amor.
Ela caminha até a porta, seguida por Bia. Antes de sair, Beatriz se vira e sorri com doçura:
— A Anna pode ter mil defeitos, mas ela ama você. A diferença é que agora ela tá com medo de te amar de volta. Pensa nisso.
Ela me dá um beijo na testa e se vai.
Eu nunca pensei que, a minha rival anos atrás, hoje seria a pessoa que me incentivaria a correr atrás da mulher que eu amo.
Depois que as duas foram embora, eu fui tomar meu café da manhã. Sem ela.
Minha filha aparece com seu pijaminha do Stich e o rostinho amassado, os cabelos loirinhos espalhados pelo rosto.
— Mainha... — ela sussurra, com a voz ainda sonolenta. — Já é de manhã?
Ajeito a cadeira da bancada para que ela se sente e a puxo para perto.
— É sim, minha flor. E hoje a gente vai fazer uma coisa diferente. Que tal um piquenique no Aterro? A gente leva lanche, anda de bicicleta, come besteira... só nós duas.
Ela ergue os olhos, surpresa.
— Sério?
— Sério. Um domingo só nosso.
Um sorriso tímido nasce em seu rosto.
— A mamãe Anna vai?
O nome dela me atinge como uma corrente fria no peito. Tento não demonstrar.
— Ela não sabe ainda... mas se você quiser, pode ligar pra ela. Convidar.
Cecília me olha com um misto de medo e esperança.
— Você acha que ela vai querer?
— A gente só vai saber se perguntar. — Pego meu celular, destravo e entrego nas suas mãos. — Vai lá.
Ela respira fundo. Os dedinhos pequenos procuram o nome da mãe na lista de contatos.
E então toca.
Um, dois, três sinais.
— Alô? — a voz de Anna soa pelo viva-voz, mais rouca do que o normal. Tensa. Mas viva.
Os olhos de Cecília se enchem d’água de imediato.
— Mamãe... sou eu.
Do outro lado, silêncio. Depois, um som abafado, como se Anna estivesse segurando o choro.
— Oi, meu amor... mamãe tá com tanta saudade de você.
— Eu também tô. — Cecília diz com a voz embargada. — A gente vai fazer um piquenique hoje... andar de bicicleta... você quer ir?
Mais um momento de silêncio. O tipo de silêncio que carrega palavras que não cabem.
— Eu queria muito... — Anna responde, quase num sussurro. — Mas eu preciso falar com a sua mainha primeiro, tudo bem?
Cecília olha pra mim e me estende o celular. As mãozinhas trêmulas. O olhar esperançoso.
Pego o aparelho com o coração na garganta.
— Oi.
Silêncio.
A voz dela vem baixa, contida, como quem se segura para não desmoronar.
— A gente precisa conversar.
Engulo em seco.
— Claro. Eu... também acho.
— Só sobre a Cecília, Fernanda. — completou, com aquela firmeza que ela usa quando está tentando manter o controle. — Nada além disso.
Fecho os olhos por um instante, deixando a decepção passar pelo meu rosto antes de responder.
— Tudo bem. A gente fala sobre a Cecília.
— Eu passo aí em uma hora. Levo vocês pro Aterro.
— Tá... combinado.
A ligação termina. Fico com o celular nas mãos por alguns segundos, como se ainda fosse possível ouvir a voz dela por ali.
— Mamãe Anna vem buscar a gente! — anuncio, sorrindo.
— É sério?! — os olhos dela brilham.
— É sim! Mas a gente tem que correr, temos só uma hora. Vamos escolher a roupa mais bonita, separar a toalha do piquenique, pegar o hoverboard, a sua bike... vambora!
Ela sai correndo pelo corredor, empolgada.
— Vou levar meu chapéu de sol! Aquele com os bichinhos!
— E eu vou pegar as frutas! — grito de volta, indo até a cozinha.
A casa se transforma num caos alegre. Abro a geladeira procurando morangos e suco, enquanto Cecília vem correndo com um vestido na mão e um sapato de cada cor.
— Esse ou esse?! — pergunta, girando os objetos
— Os dois juntos, por que não? — brinco.
Na tentativa de alcançar a cesta de piquenique em cima do armário, escorrego num brinquedo esquecido no chão e caio sentada com força.
— Ai, caramba!
Cecília para, arregala os olhos por um segundo... e desaba numa gargalhada gostosa.
— Mainha, você caiu igual um desenho animado!
Começo a rir também, ainda sentada no chão.
— Pelo menos você não filmou. Imagina isso no grupo da família?
— Ia virar figurinha! — ela diz, com os olhos brilhando, enquanto me estende a mão.
Aceito a ajuda e me levanto, puxando ela pra um abraço rápido.
— Vai ser um dia lindo, minha flor.
— Porque a gente vai estar juntinha.
A frase dela corta fundo. Porque sei que ela não tá falando só de nós duas.
E, no fundo, eu também tô torcendo para que hoje seja só o começo.
O interfone toca antes mesmo de darmos conta do tempo. Meu coração dispara.
É ela.
— Chegou, chegou! — Cecília grita, já com o capacete da bicicleta mal encaixado e um tênis de cada cor.
Abro a porta de casa e vejo o carro estacionando na garagem. Anna está no volante. O cabelo preso num coque desleixado, óculos escuros, mas não o suficiente pra esconder o cansaço no rosto.
Ela desce, dá a volta com calma e abre o porta-malas.
— Mamãe! — Cecília sai correndo e pula nos braços dela antes que eu possa dizer qualquer coisa.
Anna sorri, se abaixa pra recebê-la com força.
— Oi, meu amor...
A voz dela quebra um pouco. Ela a abraça apertado, os olhos fechados como se aquilo fosse a âncora que ela estava precisando.
Eu fico na porta, observando. Parte de mim queria estar nesse abraço também. Mas não tenho mais esse direito.
— Trouxe espaço pro hoverboard? — pergunto, tentando soar casual, mas minha voz sai mais baixa do que imaginei.
— Trouxe. — ela responde, ainda olhando para Cecília, que agora falava sem parar sobre as frutas, o parque e o dia lindo.
Coloco a bicicleta na mala, cobrindo-a com um tecido que ela sempre deixava ali para não arranhar. Velhos hábitos. Tudo ainda tem o toque dela.
Silêncio por alguns segundos.
— A gente vai no seu carro, então? — pergunto.
Anna finalmente me encara. Os óculos já estão pendurados na gola da camisa. Os olhos estão vermelhos, mas firmes.
— Sim.
— Certo. — digo, baixando os olhos.
Abro a porta de trás. Cecília já está instalada no banco de elevação, rindo sozinha com um biscoito de polvilho. Ponho o cinto de segurança nela e fecho a porta, Anna já está no banco da frente.
Me sento ao lado dela.
Ela liga o motor. Ninguém diz nada por uns segundos. Então ela solta:
— Ela tá linda. Mesmo com os tênis trocados.
— É estilo. — respondo, sorrindo de lado.
E pela primeira vez em quatorze dias, ela sorri também. Pequeno. Quase imperceptível. Mas real.
Quando chegamos no Aterro do Flamengo, ele estava iluminado por um sol forte, o azul do céu estava lindo. Estou tentando acompanhar o ritmo de Cecília e pegar sol ao mesmo tempo, deixando um pouco de vitamina D entrar no meu corpo depois de dias tão cinzas.
Cecília pedala com entusiasmo, os cabelos soltos ao vento, rindo alto de forma leve, fazia questão de mostrar pra Anna o quão bem ela pedalava — é claro, foi Anna quem a ensinou. A minha loira a acompanha de longe com o olhar, em silêncio, mas sorrindo orgulhosa da nossa filha, sentada sobre uma toalha xadrez que estendi no gramado.
Eu me sento ao lado dela, meio tensa, tentando não invadir demais um espaço que sei que não me pertence mais.
— Ela ficou muito animada. Não para de sorrir. — digo, tentando puxar conversa.
Anna só balança a cabeça, observando Cecília fazer uma curva um pouco mais aberta e depois dar risada do próprio erro.
— Você tá bem? — arrisco perguntar.
— Eu tô sobrevivendo. — ela responde, sem olhar pra mim.
Fico em silêncio. É duro ouvir isso, mas não injusto.
— Sei que isso aqui não muda nada. Nem tudo que aconteceu. — começo. — Mas... obrigada por ter vindo. Por ela. Ela precisava disso. E eu também.
Anna me olha por um instante. O olhar dela é o mesmo de sempre — forte, denso, mas hoje carregado de uma distância dolorida.
— Tô aqui por ela, Maria Fernanda. Só por ela.
Concordo com a cabeça, mesmo que o coração queira implorar pra ela ficar mais, dizer que ainda há tempo, que o amor não morreu. Mas sei que esse não é o momento. Ela ainda está magoada. E com razão.
A brisa bagunça nossos cabelos. Cecília desce da bicicleta e corre até nós, suada e radiante.
— Vamos comer? Tô com muita fome! — ela diz, sentando-se no meio das duas, abrindo sozinha a lancheira térmica com as frutas e os sucos.
Anna abre uma garrafinha de água e oferece para ela. Cecília bebe, e depois encosta a cabeça no ombro da mãe.
— Que bom que você veio, mamãe Anna. — ela diz, baixinho.
Anna fecha os olhos por um segundo. Só um segundo. Mas o suficiente pra entender que ela também estava sentindo falta disso. Dela. De nós.
Cecília já devorou metade das frutas e agora está deitada sobre a toalha, brincando com um chaveirinho antigo que Anna trouxe no chaveiro do carro. As mãozinhas dela giram o pequeno objeto enquanto canta baixinho uma música dos Aventureiros.
Anna observa tudo com carinho, mas há uma sombra nos olhos dela.
— Eu aluguei um apart mobiliado. — ela diz de repente, sem me encarar. — Dois quartos. Fica perto da nossa... quer dizer, da sua casa.
Meu coração afunda, mesmo que eu já esperasse por isso.
— E por que dois quartos? — pergunto, mais por medo da resposta do que por desconhecimento.
Anna respira fundo antes de responder, os olhos fixos em Cecília.
— Porque é importante que ela saiba que, onde quer que eu esteja, ela tem um espaço que é dela. Um lar. Um quarto com a carinha dela. Um lugar onde ela vai se sentir segura... mesmo que as coisas estejam diferentes.
Engulo em seco. Tento não deixar que ela perceba como isso me parte em mil pedaços.
— Você podia... continuar em casa. Ficar no quarto de hóspedes. — digo num tom baixo, quase implorando sem admitir.
Ela finalmente me encara.
— Eu preciso de espaço, Fernanda.
É firme. Definitiva.
Olho para baixo, tentando reorganizar os cacos do que restou. É então que percebo: a mão dela. O dedo. A aliança não está mais lá.
Meu olhar fixa no espaço vazio por tempo demais. Quando levanto os olhos, vejo que ela também percebeu. E que agora olha para minha mão, onde a minha aliança ainda está.
Nenhuma de nós diz nada. Um silêncio pesado, eloquente, se instala entre nós.
— Precisamos conversar sobre como vai ser com Cecília. — digo, finalmente, tentando manter o foco na filha e não no abismo entre nós.
Anna assente, recolhendo um pedaço de papel-toalha que voou com o vento.
— Eu pensei em dividir os dias. A gente combina uma rotina que funcione pra ela. Que seja estável. Que dê segurança. — explica, como se já tivesse planejado tudo.
— Você pretende... levar ela pra morar com você?
Anna vira o rosto pra mim, com um olhar quase ofendido.
— Nunca. Eu jamais tiraria a Cecília do lar onde ela nasceu, cresceu... onde tem a mãe dela, os brinquedos, a escolinha perto. Não sou egoísta a esse ponto. — ela pausa, e diz com ternura — Mas quero que ela saiba que, com a mamãe Anna, ela sempre vai ter um canto. Uma cama. Uma história. Um amor igual.
Fecho os olhos por um segundo. Porque ouvir isso... dói e alivia ao mesmo tempo.
— Ela vai perguntar por quê. Vai querer entender por que você não dorme mais em casa.
— Eu sei. — ela responde. — E eu vou responder o que for necessário, sem colocar você como vilã. Porque... não é isso que importa agora.
Anna observa Cecília ao longe, equilibrada no hoverboard enquanto tenta convencer uma menina a virar amiga dela. O riso da nossa filha ecoa leve pelo Aterro, como se por um segundo o mundo tivesse voltado ao lugar. Mas entre nós, a distância ainda é um campo minado.
— O aniversário da Cecília está chegando — Anna diz de repente, com um tom suave. — Já pensei em mil formas de lidar com isso, e nenhuma parece certa.
Me viro para ela, pegando no susto.
— Eu estava começando a pensar também. Ela já comentou duas vezes. Quer um bolo de caveira mexicana. — reviro os olhos, incrédula em como Cecília e Anna compartilhavam os mesmos gostos.
Anna sorri. Aquele sorriso que só aparece quando o assunto é Cecília.
— Eu queria comemorar com ela. Mas eu não vou estar aqui no dia do aniversário, eu estarei em São Paulo... Preciso representar a empresa na Expo-Direito. — ela fala hesitante — meu plano era levá-la comigo e... comemorar no Hopi Hari.
Meu coração falha um pouco.
— Hopi Hari?
Ela assente.
— É longe, nunca ficamos assim... mas acho que ela precisa de um momento feliz, um marco bonito. E... também quero criar lembranças boas com ela. Só dela comigo, entende?
Minha garganta fecha. Lembro das promessas sussurradas no escuro, das noites em que Cecília ainda nem falava, e a gente já dizia que aquele parque ia ser o lugar das primeiras aventuras.
Forço um sorriso, tentando parecer mais inteira do que estou.
— Você quer levá-la sozinha?
— Sim. Mas só se você autorizar. E se ela quiser, claro. — Anna responde com calma.
Demoro a reagir. Olho para Cecília outra vez, tentando imaginar o que ela vai sentir. E não sei o que pesa mais: a dor de ficar de fora ou o medo de parecer egoísta.
— Vai depender da agenda dela na escola... — murmuro, o olhar perdido — mas se for por alguns dias, e ela estiver animada... tudo bem.
Anna agradece com os olhos. E é aí que noto: por mais que ela esteja tentando manter tudo racional e equilibrado, há uma sombra de dor ali também.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, até que ela complementa:
— Não é uma fuga. É só... um jeito de fazer com que ela entenda que, não importa onde eu esteja, ela sempre vai ter um lar comigo também.
Assinto, engolindo em seco. A frase que não disse martela na minha cabeça: e comigo? Ainda existe um lugar pra mim nesse lar que você está reconstruindo?
Mas não pergunto. Ainda não é hora.
O sol já começava a descer atrás dos prédios, tingindo o céu de tons dourados. O cheiro de grama, o som de risadas ao redor, a cesta quase vazia e o suco morno. Foi um piquenique simples, mas com o que mais importava.
Anna recolhe os restos do lanche com gestos contidos. Depois se aproxima de Cecília, que agora está sentada na beira da canga, desenhando com os dedos na terra.
— Filha — ela chama suavemente, agachando ao lado dela — Você gostaria de passar seu aniversário no parque, só com a mamãe? A gente podia viajar juntas. Ir para um lugar bem divertido. O que acha?
Cecília levanta os olhos, e um sorriso largo imediatamente ilumina seu rosto.
— Sério, mamãe? Só nós duas?
— Só nós duas — Anna confirma, com um brilho emocionado no olhar.
— Eu quero! Eu quero muito! — ela grita, pulando da toalha, girando com os braços abertos — Mamãe, eu vou contar pra Júlia! Ela tem um cachorrinho rosa no cabelo e a gente fez um castelo de folhas!
E lá vai ela, correndo em direção à menina com quem tinha brincado mais cedo, rindo, empolgada, como se o mundo tivesse voltado a girar.
Eu fico ali, sentada, observando.
E então... acontece.
Uma lágrima escapa. Só uma. Silenciosa, pesada. Nem tento disfarçar, porque não há ninguém olhando.
Mas há.
Anna vê.
Eu percebo no canto do olho o leve movimento da cabeça dela, o jeito como os ombros hesitam, como se estivesse entre o impulso de me consolar e o receio de ultrapassar a nova fronteira silenciosa entre nós.
Mas ela não diz nada.
Nem eu.
E isso, de alguma forma, dói mais do que qualquer palavra.
O caminho de volta é mais silencioso do que eu imaginava.
Cecília está entre nós no banco de trás, cantando baixinho uma música inventada aleatoriamente. Anna sorri de vez em quando. Eu apenas observo o trânsito pela janela, sentindo o peso das palavras não ditas entre nós.
Quando estacionamos na frente de casa, ela se vira para trás com aquele jeito leve que ela tem quando quer aliviar o clima.
— Pronto, pequena, missão piquenique cumprida.
— Foi o melhor dia! — Cecília responde animada, tirando o cinto.
As duas começam a falar sobre a grama fofa, a folha em forma de coração, o biscoito que atraiu formigas. Eu desço em silêncio, pego a bicicleta, observo enquanto Anna conversando com Cecília.
— Mamãe — Cecília diz de repente, enquanto sobe no colo de Anna — Sabia que a mainha Fê caiu de bumbum no chão quando soube que você vinha buscar a gente?
Meu rosto ferve. Olho pra Anna num impulso, mas ela já está soltando uma risada contida.
— É, filha? — ela pergunta, entre o divertido e o provocador, me lançando aquele olhar quase cúmplice.
Cecília confirma com a cabeça, empolgada.
— Ela tava muito animada. Eu vi. Ela escorregou igual desenho animado! Mas a mamãe Fê tá triste. Muito triste. Ela chora escondido no banho. Eu sei.
Congelo. Anna para também, em silêncio.
— E eu tô triste também... — Cecília continua, com a voz agora mais suave — Eu queria que vocês duas se amassem de novo. Porque você foi embora, mamãe?
Meus olhos se encontram com os de Anna. Um instante longo. Dolorido. Surpreso. A dúvida flutua entre nós, crua, desconfortável.
Anna respira fundo. E diz:
— Isso... é algo que a mamãe e a mainha ainda estão tentando entender, meu amor.
— Mas vocês se amam, né? — Cecília insiste, olhando entre nós.
— A gente te ama mais do que tudo, Ceci. Isso você pode ter certeza — respondo, sentindo a garganta apertar.
Anna apenas assente. Mas o olhar dela... tem um mundo ali. Um que eu ainda não sei se posso visitar de novo.
Mas de repente, Cecília sobe correndo para dentro de casa com uma pedra que, segundo ela, é mágica. Antes de entrar, vira-se com um sorrisinho sapeca.
Droga, ela queria deixar nós duas sozinhas. Ela é muito filha da Anna mesmo.
— Vou guardar a pedra e esperar o lanche, tá? Mainha não demora não! Tchau mamãe!
E então desaparece pela porta.
Silêncio.
Eu e Anna ficamos paradas ali, na garagem. Por um instante, tudo o que se ouvia era a cigarra cantando em alguma árvore.
Anna coloca as mãos nos bolsos, um gesto nervoso. Olha pra mim com um meio sorriso contido.
— Obrigada por... deixar eu passar esse tempo com vocês hoje.
— Quem agradece sou eu. Foi bom ver vocês duas juntas. Foi bom... te ver — digo, sentindo o coração ameaçar sair pela garganta.
Ela apenas assente. Dá um passo para trás. E eu, antes que perca a coragem, solto, quase num sussurro:
— Você... me dá um abraço?
Anna hesita por um segundo. É só um segundo, mas parece um ano inteiro. Então se aproxima devagar. Me envolvo nos braços dela e por um breve momento, tudo volta. O cheiro, o calor, a respiração próxima.
Ela não fala nada. Nem eu.
Mas sei que ela sentiu. O tremor na minha mão. A vontade de ficar.
Quando se afasta, o olhar dela está diferente. Não sei dizer se é saudade. Ou dor. Ou dúvida. Talvez tudo junto.
— Boa noite, Fê.
— Boa noite, meu amor — escapa. Baixo. Quase mudo. Mas escapa.
Ela apenas me olha, depois vira as costas e segue até o carro. Eu fico parada ali, com os braços ainda lembrando do abraço. O corpo tentando não implorar pelo dela.
E o coração... completamente em ruína.
Fim do capítulo
Meninas... Pra vocês ficarem com gostinho de "quero mais" rs
Até semana que vem!
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HelOliveira
Em: 11/06/2025
A história está maravilhosa, mas coração doe muito, a intensidade é tanta que dá pra sentir a dor de cada uma ..
As duas estão sendo muito maduras, mas acho que isso pode desandar a qualquer hora, isso não for nessa viagem...
Autora solta um extra pra vai...
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Mmila
Em: 11/06/2025
Chorei do início ao fim.
Esta incrível a história e eu sou essa manteiga derretida.....
Posta mais capítulos autora, por favor.......
nath.rodriguess
Em: 11/06/2025
Autora da história
Ahhh, vem cá! Vamos chorar juntas.
Também é super difícil pra mim escrever essas coisas, sabia? Que bom saber que a história está tocando vocês dessa forma, fico tão feliz.
E sim, vou postar 2x por semana só pq vocês estão pedindo. Será toda terça e quinta a partir de semana que vem, mas como vocês me pediram, vou postar um hoje pra agradar meus amores ^^
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Letysantos
Em: 10/06/2025
Que delicia de estória,uma das melhores que ja li,pena que demora tanto para termos mais
nath.rodriguess
Em: 10/06/2025
Autora da história
Sério? Eu posto 1 capítulo por semana, se vocês quiserem, posso postar 2. Eu tenho adiantado.
Letysantos
Em: 14/06/2025
Mulher, se vc postasse todos os dias, certeza que todas nós iríamos adorar.Eu leria todo , devoraria em pouco tempo.Nao demora nao, please, olho direto para ver se tem capitulo novo
nath.rodriguess
Em: 16/06/2025
Autora da história
hahahaha todos os dias não tem como, mas agora toda terça e quinta tem capítulos novos pra vcs ^^
Letysantos
Em: 16/06/2025
Êbaaaaaaaaaaaaaaa
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Letysantos
Em: 10/06/2025
Que delicia de estória,uma das melhores que ja li,pena que demora tanto para termos mais
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Lea
Em: 10/06/2025
Se fosse para sofrer desse jeito, não teria pedido uma segunda temporada!!
Anna vai para são Paulo,quem mora em São Paulo? Pois é, não estou gostando disso
Isso é maldade,fazer a Anna viajar, frágil,com o coração despedaçado,e ainda para São Paulo!
Nath, é muito sofrimento.
nath.rodriguess
Em: 10/06/2025
Autora da história
Hahaha gente, é necessário para o crescimento das personagens. Não existe casamento perfeito e pessoa perfeita.
E sim, Anna vai para São Paulo. Essa viagem vai ser bem... significativa.
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nath.rodriguess Em: 11/06/2025 Autora da história
Como vocês pediram, o capítulo 15 já está no ar!
E eu também fico triste escrevendo essas coisas, não pensem pra mim que é fácil.
A Fê sempre foi muito madura, mas não perfeita. E Anna ganhou maturidade com o tempo, principalmente após a maternidade.
Tô tão animada que vocês estão gostando... meu coração fica quentinho com esses comentários!