Capítulo 29
— Quer que eu pare um pouco?
Balancei a cabeça em negação, fungando. Desde que pegamos a estrada, eu tinha me entregado a um choro que parecia infinito. Eu queria parar, mas não conseguia. Era como se meu corpo tivesse entrado em uma erupção de lágrimas, incontrolável.
Vitor seguiu dirigindo em silêncio, respeitando o meu momento. Quase na metade do caminho consegui me controlar um pouco. Paramos para ir ao banheiro e quando eu me olhei no espelho me assustei com meu rosto inchado.
Quando voltamos para o carro, ele me perguntou, preocupado:
— Ela te disse alguma coisa?
Neguei com a cabeça de novo:
— Eu queria que ela tivesse dito… que tivesse me negado, me xingado… que tivesse sido horrível…
Ele completou o que eu não verbalizei:
— Mas não foi.
Fechei os olhos:
— Pelo contrário. Com ela é… diferente.
Senti as lágrimas começarem a voltar:
— Eu não devia ter pedido pra conversar… Eu não devia nem ter ido pra lá…
Vitor ainda não tinha ligado o carro. Falou com a sensibilidade que ele sempre tinha:
— Talvez você precisasse disso… pra saber o que você realmente quer.
O restante da viagem eu passei me corroendo por dentro. O que eu realmente quero? Eu queria Ciça, óbvio. Mas eu também queria a minha vida, a minha liberdade. Profissionalmente eu estava muito bem, trabalhando com o que eu amava. Conseguia pintar meus quadros nos fins de semana. Mas estava sempre com aquela sensação de incompletude. Aquela dorzinha constante…
Depois de horas na estrada me lembrei de perguntar:
— Quer que eu dirija?
Vitor disse que não precisava. Na verdade, eu sabia que ele estava me poupando, o que era ótimo. Eu estava muito desatenta para pegar o carro naquele momento.
Chegamos no Rio com o dia escurecendo. Ele me deixou em casa depois de insistir muito para que eu dormisse na casa dele aquela noite. O tranquilizei, dizendo que estava bem. Queria ficar sozinha. Precisava.
Abri a porta de casa, mas não entrei. Fiquei parada na porta, com minha mochila nas costas. Como se entrar ali fosse o ato final, o rompimento definitivo da minha história com Ciça. Quando enfim entrei, deixei a bolsa no chão e me sentei. Eu me sentia fraca… vazia… incompleta.
A frase que ela tinha me dito na nossa primeira despedida ecoou na minha cabeça:
“Você vai ser feliz”.
Eu duvidei. Poderia até me acostumar com minha rotina. Passar meus dias. Trabalhar. Sair. Viver. Mas felicidade me parecia impossível naquele momento.
*****
Dessa vez é para sempre. Eu precisava que fosse. Era doloroso demais passar por aquilo. E eu não queria que houvesse uma terceira vez. Tinha sido como arrancar a casca de um machucado que ainda não estava completamente cicatrizado. E agora a ferida estava exposta de novo.
Claro que não tinha sido ruim. Com Marcela era impossível que fosse, e era justamente esse o problema. O que eu sentia com ela, por ela… era tão intenso, puro e genuíno que chegava a me assustar. Era como se eu soubesse que nunca mais sentiria aquilo. Nunca mais seria assim. Com mais ninguém.
Voltei a ver os dias se arrastarem. Regredindo em todo o avanço que tive desde que ela tinha ido embora pela primeira vez. Minha rotina ficando pesada, mesmo sendo igual ao que já era. O caminho, as pessoas, Seu Manoel… Tudo cinza outra vez.
Era uma quinta-feira. Quase uma semana depois de Marcela ter ido embora. Eu tinha acabado de chegar em casa quando ouvi me chamarem da rua. Parei por um momento para me certificar de que era mesmo meu nome. Quando desci as escadas e abri o portão, me surpreendi com Rita.
— Oi, Ciça.
O semblante dela estava diferente, pesado.
— Oi, Rita... Acho que minha tia não tá em casa...
Ela demorou poucos segundos para dizer, mas eu notei a leve hesitação, como se ela estivesse em dúvida se deveria ou não falar:
— É com você que eu queria conversar.
Senti um leve tremor, minha voz vacilou:
— Claro, pode falar.
Rita olhou em volta, na rua, e pediu:
— Pode ser aí dentro?
A levei até minha sala. Meu coração acelerado. Por um momento pensei que algo poderia ter acontecido com Marcela e minha preocupação mudou. Me alarmei. Fui tomada por uma urgência quase desesperada:
— Aconteceu alguma coisa?
*****
Saí da galeria e só conferi minhas notificações dentro do carro. Me assustei com o número de chamadas perdidas. Todas de Érica. Retornei no mesmo instante, mas ela não atendeu. Tentei de novo, sem sucesso. Mandei mensagem, mas ela também não respondeu. Passei o trajeto todo até a minha casa preocupada. Agradeci ao motorista e entrei em casa já tentando ligar para minha prima novamente. Daquela vez ela atendeu. Eu falei rápido:
— Tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
Érica suspirou do outro lado:
— Você tá ocupada? Ou pode falar?
— Acabei de chegar em casa.
Outro suspiro. Silêncio. E ela voltou a falar:
— Essa semana minha mãe veio com uma conversa meio velada pra cima de mim… Perguntando sobre você e Ciça…
— Como assim? Perguntando o quê?
Sentei na cama enquanto minha prima explicava:
— Ah, perguntou como vocês ficaram amigas… Se Ciça dormia na sua casa com frequência quando você estava aqui…
Apesar das mil dúvidas que surgiram, eu não a interrompi.
— Eu desconversei um pouco. Mas no dia seguinte ela continuou. Perguntou de novo… se eu sabia de alguma coisa.
Daquela vez precisei falar:
— Que coisa exatamente?
— Foi isso que perguntei pra ela… Mas aí foi ela quem desconversou… como se estivesse com medo do que poderia ouvir.
Eu passei a mão pelo rosto:
— Por que isso agora? Será que por você ter falado aquilo no aniversário dela?
Eu passei meses morando naquele lugar, me encontrando com Ciça, ela praticamente morando na minha casa… e só agora minha tia tinha enxergado… ou só agora a venda tinha sido arrancada dos olhos dela.
— Não sei se foi isso. Mas quando ela me perguntou pela terceira vez, eu confirmei… Ela disse que percebeu o carro de Vitor parado em frente à casa de Ciça… E como eu tinha dito que ele era casado com um homem… ela deduziu que fosse você.
Depois que saí da casa de Ciça naquele domingo, encontrei minha prima e Vitor com sorrisos nada inocentes. Os dois não me deixaram em paz enquanto eu não contei tudo que havia acontecido. Depois fomos para a casa da minha tia e, enquanto esperávamos o almoço, percebi tia Rita evitando contato visual comigo. Agora eu entendia o porquê.
Érica transpareceu preocupação:
— Desculpa, Marcela! Eu sei que não tinha que ser eu a falar, mas… como eu te disse, minha mãe parece querer fugir da realidade às vezes. Já levou as malas pra Nárnia há muito tempo. Isso tem me irritado de uma tal maneira… que eu aproveitei o lampejo de realidade que atingiu aquela cabeça e… acabei falando demais.
Eu quase ri, não fosse a situação um pouco delicada. Não para mim:
— Eu não me importo de você ter contado. Minha preocupação é com Ciça.
Na primeira palavra da frase dela eu percebi que algo mais tinha acontecido:
— Então…
Os instantes que Érica demorou para continuar me fizeram prender a respiração.
— Minha mãe procurou Ciça.
Puta que pariu!
— O quê? Quando? O que ela falou?
— Ontem. Disse que estava sabendo de vocês duas…
Eu me levantei. Minha preocupação era toda e completamente com Ciça. O que ela tinha pensado, como havia reagido, o que tinha falado… Como estava se sentindo…
Érica continuou me colocando a par do que havia acontecido:
— E aí minha mãe fez um discurso, dizendo que isso não era a vontade de Deus… que vocês só estavam confusas, que eram duas moças lindas e jovens, que confundiram a amizade com outra coisa…
O pior momento para aquilo ter acontecido. Se ao menos eu estivesse lá… não permitiria, enfrentaria minha tia, defenderia Ciça.
— Caralh*! Sua mãe te contou tudo isso?
— Não, foi Ciça quem me contou. Minha mãe voltou muda, depois de dizer que iria até a casa de Dalva. Nem passou pela minha cabeça que ela pudesse procurar Ciça. Só quando Ciça me contou o que tinha acontecido, eu entendi a cara de enterro com que ela voltou pra casa.
Minha mente estava girando com todas aquelas informações:
— E Ciça? O que ela fez? Como ela está? Ela deve ter… surtado!
Érica riu:
— Na verdade… ela falou pra minha mãe que respeitava a forma dela pensar… mas pensava diferente… que ela se apaixonou por você… que não se arrependia de forma alguma e que não tava confundindo nada. Sustentou que gosta de mulheres e que não via nada de errado nisso, já que foi Deus quem a fez assim.
Eu fiquei absolutamente paralisada. Boquiaberta. Um sorriso surgiu no meu rosto. Meus olhos começaram a lacrimejar.
— Ela disse isso?
Érica confirmou:
— Disse.
Eu estava me sentindo aliviada. Feliz. Apaixonada. Meu coração transbordando ao imaginar Ciça dizendo aquelas coisas para minha tia. Dizendo que se apaixonou por mim. E que não tinha se arrependido.
*****
Depois que Rita saiu da minha casa, eu ainda fiquei muito tempo pensando na conversa que tivemos. Me surpreendi comigo mesma por ter me mantido firme, sem abaixar a cabeça. Em momento algum fui rude ou desrespeitosa com ela, até porque gostava da mãe de Érica. Mas nem por isso iria aceitar que ela, nem ninguém, me dissesse que o que eu sentia por Marcela era errado, inválido, imoral. Não daquela vez. Não sobre o sentimento mais sincero que eu já havia experimentado na minha vida.
Sorri ao imaginar o que Marcela acharia. Ela iria aprovar, tenho certeza. Pena que agora já não faria diferença. Era tarde demais.
Quando o mês do aniversário dela chegou, meu tormento foi ainda pior. Eu lembrava dela a cada minuto do meu dia, com muito mais intensidade. Dois meses da nossa despedida derradeira e de novo sem nenhum tipo de contato. A única diferença era que Érica passou a mencionar Marcela — contando algumas coisas triviais — o que antes ela não fazia. Eu me mantinha neutra, tentando não demonstrar nenhum tipo de emoção.
Um dia Érica me perguntou:
— Vocês não se falaram mais, depois da última vez?
Eu fui sucinta:
— Não.
Ela insistiu:
— E você nunca cogitou ir morar lá?
A minha resposta era absolutamente igual a de Marcela, mas com um significado inverso:
— A minha vida é aqui.
O dia do aniversário dela amanheceu nublado. Cinza. Eu resolvi fazer o mesmo que ela e não mandar nenhuma mensagem. Não para pagar na mesma moeda, mas por entender que era um acordo tácito entre nós duas. Cada uma seguindo a sua vida. O que tinha acontecido na minha casa foi… uma última despedida.
*****
Abri os olhos e fiquei um tempo parada na cama, tentando não pensar em nada. Peguei meu celular e vi que ainda era cedo. Entrei nas notificações, algumas mensagens de amigos que eu responderia depois.
Tomei um banho, um café, e saí para caminhar um pouco. Voltei para casa às onze. Tomei outro banho para tirar o suor do corpo, me aprontei e chamei um carro de aplicativo. Já era depois do meio-dia quando entrei no prédio de Vitor. Ele me abraçou e desejou feliz aniversário. João Paulo fez o mesmo. Depois fomos comer o almoço que ele fez questão de preparar para mim.
Voltei para casa no meio da tarde. Eu imaginava que Ciça não me mandaria nenhuma mensagem, mas mesmo assim havia bem lá no fundo uma esperança de que ela me surpreendesse.
Eu tinha combinado com Elis e alguns outros amigos de ir para um barzinho comemorar meus trinta e três anos. Eu não estava animada, se não fosse a insistência deles, provavelmente desistiria. Me arrumei sem extravagância, peguei minha bolsa e saí de casa. Dentro do carro peguei meu celular e fiquei passando pelas redes sociais. Um frio na barriga me acertou quando eu vi o perfil de Ciça. Ela tinha me desbloqueado? Apertei no perfil e uma foto dela apareceu. Um story de um dia atrás. Fiquei olhando para a imagem dela e uma tristeza amarga tomou conta de mim. Perda. Falta de algo que era inatingível, por mais que eu quisesse alcançar. Por que as coisas tinham que ser tão difíceis? Por que só o amor não bastava?
O motorista me chamou:
— Chegamos, moça.
Eu agradeci e desci. Quando entrei no bar, Elis, Vitor e João Paulo já estavam, além de alguns outros amigos. Me abraçaram de novo. Sentamos, pedimos as bebidas. Eu sorri. Mas a sensação que a foto de Ciça tinha deixado em mim ainda persistia. Uma angústia inversa ao ambiente em que eu estava. A música que tocava ao fundo era animada, mas me fazia querer chorar. As risadas ao meu redor me pareciam ofensivas.
Me esforcei ao máximo para ficar natural. Conversei. Sorri. Bebi. Mas nada amenizou a sensação esmagadora que eu tinha por dentro. Tão esmagadora que me dava falta de ar.
Meu celular acendeu a tela, mostrando uma mensagem. Quando peguei e vi o nome de Ciça, literalmente tremi. Abri a mensagem rápido, devorando as poucas palavras:
“Feliz aniversário! Que seja mais um ciclo incrível na sua vida.”
Li e reli várias vezes. Minha respiração se alterou e o choro que eu estava evitando, enfim, saiu. Tentei não deixar que alguém percebesse, mas Elis ao meu lado notou imediatamente:
— O que houve?
Eu não disse nada. O nó na garganta e o aperto no meu peito me impediam. Vitor também chegou perto de mim:
— O que foi, Marcela?
As lágrimas continuaram caindo. Um soluço me atingiu antes que eu conseguisse falar, olhando para ele:
— Eu preciso voltar pra lá.
Fim do capítulo
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Dessinha
Em: 25/05/2025
Essa estória é sensacional, mesmo as personagens me dando dor de cabeça, porque me emociono muito com o amor sendo colocado assim desse jeito, tendo que ser escolha viver a vida e sentimento ficando em segundo lugar (e infelizmente é essa escolha mesmo que fazemos, mas o fato de viverem há algumas horas de distância me incomoda de não conseguirem passar por cima). Vivi demais no interior e sinto exatamente a vida da Ciça. Até hoje já casada, sob a lei dos homens porque na igreja não posso e feliz demais com minha esposa vivo um pouco no armário, já na capital e não devendo nada pra ninguém. Espero que elas consigam passar por cima das diferenças, que o amor consiga vencer apesar de qualquer coisa porque ele que faz a gente viver e buscar ser melhor, realmente. Um forte abraço autora. Que lindo conto!!
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HelOliveira
Em: 25/05/2025
Opa eu li certo....eu preciso voltar pra lá....ainda existe uma esperança....
AlphaCancri
Em: 26/05/2025
Autora da história
Você leu certo! Hahahah
Se não for agora, não vai nunca mais sensação de desespero
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Raf31a
Em: 25/05/2025
Enfim Ciça saindo do armário s2 e Marcela acordando para a vida.
AlphaCancri
Em: 26/05/2025
Autora da história
Enfimmm! Demorou, mas veio aí… elas precisaram de todo um processo, né? Tem coisas que não se mudam do dia pra noite, eu acho
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AlphaCancri Em: 26/05/2025 Autora da história
Só quem vive/viveu no interior sabe como as coisas são, né? Existem ônus e bônus, mas ser LGBT numa cidade pequena muitas vezes não é fácil.
Nós seres humanos complicamos a vida às vezes, né? Queremos racionalizar demais os sentimentos e não nos permitimos vivê-los em sua plenitude…
Mas acho que Ciça e Marcela vão conseguir superar essas tantas questões que existem entre elas.
Muito muito obrigada pelo se comentário! Fico feliz que esteja gostando :) Abraço!