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Entre Votos e Silencios por anonimo2405

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Palavras: 18434
Acessos: 900   |  Postado em: 22/05/2025

De Volta Ao Jogo

Interior do elevador — Condomínio de Verena | 19h55

O visor digital marcava o térreo. Os segundos pareciam mais lentos que o normal. Verena estava imóvel, com a mão ainda pressionando o botão do térreo, como se pudesse impedir a chegada do inevitável.

“Eu só preciso de ar”, ela tinha dito.

Mas o que queria, mesmo, era fugir. Fugir de tudo — da esposa ferida, do próprio reflexo, dos riscos, dos olhos da Rafaela. Fugir de Silvia, sobretudo, porque ali não cabia mentira. E quando não se pode mentir... às vezes, é melhor desaparecer.

A porta do elevador se abriu, revelando o saguão silencioso e frio. Nenhum porteiro na recepção. Nenhum vizinho entrando com sacola de mercado. Só o som do próprio coração, ritmado como uma contagem regressiva.

Verena fechou os olhos. A voz da Silvia ainda ecoava:

— “Vai. Mas quando voltar, as coisas não vão ser como antes.”

Ela respirou fundo. As mãos ainda trêmulas. As pernas, mais firmes do que esperava. Olhou para o lado, depois para o carro no estacionamento. Já tinha uma decisão.

Apesar da hora, havia de fato uma padaria aberta a poucos quarteirões dali. E ela sabia exatamente o que procurava.


Apartamento — Quarto do casal | 20h25

Silvia estava deitada de lado, vestindo uma camiseta larga. As costas levemente curvadas, como quem tenta se proteger do mundo — ou do próprio coração. As luzes do quarto estavam apagadas, restando apenas um abajur aceso sobre a cômoda.

Não chorava. Mas também não respirava com tranquilidade. A angústia tinha um peso físico, real. O travesseiro parecia oco, frio. O colchão, largo demais. Ela se sentia ridícula. Por ter cuidado da esposa com tanto zelo. Por ter limpado seu vômito, trocado sua roupa, colocado paninho de álcool na testa. E, agora, ali estava ela. De novo. Sozinha.

— Parabéns, Silvia — sussurrou, amarga. — Você não aprende nunca.

Ouviu o som da chave na porta da frente. Depois, passos contidos. Como se ela não pudesse escutar.

Ela sentou devagar. Ligou a luz do quarto, respirou fundo, enxugou discretamente os olhos. Pronta pra dizer tudo. Jogar na cara. Colocar Verena pra dormir no sofá, no outro quarto. Onde fosse.

A porta do quarto se abriu com cuidado.

Verena surgiu, hesitante, segurando uma caixinha branca nas mãos. Usava a mesma roupa de antes, mas o cabelo estava um pouco mais arrumado, o batom levemente retocado — como se, no retrovisor, tivesse tentado parecer menos... derrotada.

— Trouxe um negócio pra você — disse, a voz baixa, quase infantil.

Silvia cruzou os braços. O olhar duro, mas vacilante.

— Comprou o quê, desculpa? Perdão em fatias?

Verena caminhou devagar até a cama e colocou a caixinha sobre o criado-mudo.

— Daquela padaria da esquina. Alfajor argentino. Do jeito que você gosta... com doce de leite artesanal.

Silvia mordeu o lábio, para não rir. Ou para não chorar.

— E você acha que isso resolve?

— Claro que não resolve — Verena se sentou na beirada da cama, ainda sem coragem de encará-la. — Eu só... eu não sabia o que fazer. E fiquei lembrando daquele dia que a gente brigou, e você ficou em silêncio o jantar inteiro... até que eu te dei um alfajor e você desarmou. Foi a única coisa que pensei.

Silvia respirou fundo, em silêncio.

— Você ia sair, não ia?

Verena assentiu, devagar.

— Mas não fui.

— E por quê?

Verena finalmente olhou nos olhos dela. Havia algo diferente ali. Não era mentira, nem culpa. Era medo.

— Porque você tava certa. Eu fiquei o dia inteiro sendo cuidada por você. Dormi como uma criança nos seus braços. E mesmo assim, eu... quase fugi. Eu me odeio por isso, Silvia.

Silvia fechou os olhos por alguns segundos, e depois se encostou na cabeceira da cama. Ela ainda estava machucada. Mas também estava cansada demais pra continuar daquela forma.

— Eu não quero que você me dê alfajor, Verena. Eu quero que você me diga a verdade.

Verena abaixou o rosto.

— Eu tô tentando. De verdade. Mas às vezes, nem eu sei mais onde tá a verdade e onde começa o medo.

Silvia puxou o lençol até a cintura.

— Vai tomar banho. Depois, se quiser, pode deitar aqui. Mas, por favor... só deita se for pra ficar.

Verena assentiu com os olhos marejados. Pegou o alfajor da caixa, colocou sobre o criado-mudo da esposa, e saiu do quarto em silêncio. Silvia olhou pra ele por alguns segundos... e sorriu, mesmo que fosse um sorriso amargo. Que droga. Ainda era o preferido dela.

Estacionamento discreto — região da Av. Angélica | 20h30

Rafaela estacionou o carro com um giro seco no volante. Nem esperou o motor esfriar. Estava de óculos escuros mesmo à noite — costume antigo — e com a jaqueta de couro jogada sobre a blusa social. Era sábado, mas ninguém ali parecia ter vindo pra relaxar.

Ela olhou em volta. Nada do carro da Verena. Desbloqueou o celular. Nada de mensagem. Nenhum áudio. Nenhuma confirmação. Até que, com aquele atraso irritante que a tecnologia insiste em dar só quando o sangue já está no limite da pressão, apareceu.

Mensagem temporária – Verena C.
“Desculpa.

Não vou conseguir ir hoje.

Cuida disso por mim. Por favor.”

Três linhas. Três linhas que fizeram seu maxilar travar como se tivesse mordido vidro.

— Ah, não… não, não, não, Verena. — disse entre os dentes, ainda dentro do carro.

Jogou o celular no banco do passageiro com uma força que beirava o impulso criminoso. Encostou a cabeça no apoio do banco e fechou os olhos por dois segundos. Só dois. O suficiente pra digerir o desgosto.

“Eu pedi. Eu implorei. Eu avisei.”

Fez questão de manter a compostura ao sair do carro, mesmo que por dentro estivesse pronta pra socar a parede mais próxima.

— Ela não tem um pingo de noção. — Sussurrou pra si mesma, caminhando firme até a entrada da cafeteria escondida onde tinham combinado.

O local era discreto, com fachada de vidro escuro e nome meio genérico — perfeito pra encontros que não deviam ser comentados. Rafaela passou a mão no cabelo, respirou fundo, e, antes de entrar, pegou o celular de novo. Leu a mensagem mais uma vez, como se, relendo, fosse encontrar uma justificativa aceitável. Não encontrou.

— “Cuida disso por mim.” Claro, linda. Eu que lute. — Murmurou, com sarcasmo escorrendo feito café velho.

Ela olhou o nome de Benedito na tela. Ainda dava tempo de cancelar. Inventar alguma coisa. Culpar o trânsito, o horário, até um apagão. Mas aquilo não era só sobre o Benedito. Era sobre Verena, e o tipo de parceria que estavam construindo... ou destruindo.

Fechou os olhos mais uma vez. E dessa vez, suspirou longo.

— Tá bom. Quer fugir? Foge. Mas não me arrasta com você.

Digitou rápido, seca, objetiva:

Mensagem para Verena
“Ok. Eu resolvo. Mas amanhã a gente conversa. E eu espero que você esteja pronta pra ouvir.”

Sem emoji. Sem ponto final de carinho. Só isso. O necessário.

Ela empurrou a porta da cafeteria com força demais, o sininho tilintando nervoso. A funcionária atrás do balcão a olhou com cautela. Rafaela tirou os óculos, deu um sorrisinho polido que não chegava aos olhos.

— Mesa reservada no nome de Dito. — disse, já retomando o charme profissional.

O encontro ainda ia começar. E ela estava disposta a representar. Por ela. Pela Verena. E, se sobrasse energia, pela democracia.

Apartamento de Verena e Silvia | 07h10 da manhã

O som discreto da chaleira elétrica desligando foi o único ruído além do leve tilintar da louça. O apartamento ainda estava silencioso, envolto em uma luz azulada que atravessava as cortinas da varanda. A cidade lá fora já começava a despertar, mas ali dentro, tudo era cuidado e intenção.

Verena ajeitava a mesa com precisão quase cerimonial. Guardanapos de linho, duas xícaras alinhadas, um pequeno prato com fatias finas de queijo branco, potinhos de geleia, frutas picadas... e o destaque central: uma cestinha com alfajores artesanais, ainda na embalagem delicada da padaria da esquina.

Ela deu um passo para trás, analisando. Era quase uma mise-en-scène. O cenário ideal. Agora vinha a parte difícil: Silvia.

Subiu o corredor em passos lentos, ainda com o cabelo levemente úmido do banho que tomara antes do sol nascer. Vestia uma camisa branca com as mangas dobradas até os cotovelos, a calça social preta ajustada ao corpo. Os óculos realçavam o olhar firme e ainda cansado. Mas o cansaço não escondia o magnetismo natural que Verena carregava, mesmo quando tropeçava nas próprias escolhas.

Parou na porta do quarto. Silvia dormia encolhida de lado, os cabelos espalhados sobre o travesseiro. A luz tênue da manhã acariciava seu rosto.

Verena se sentou devagar na beirada da cama e, com o dorso da mão, começou a tocar suavemente os fios bagunçados da esposa. Passava os dedos devagar, como quem tentava apagar os rastros da discussão da noite anterior com gestos de ternura.

Silvia suspirou, encolheu os ombros, abriu os olhos devagar, ainda confusa com o carinho. Quando viu Verena ali, já arrumada para sair, tão perto, hesitou.

— Bom dia... — disse Verena, em tom baixo, quase solene. Um meio sorriso nos lábios. — Acordei com saudade. E com fome.

Silvia demorou um segundo a responder. Seu corpo dizia "quero", mas o orgulho era mais barulhento naquela hora.

— Fome de quê? — perguntou, seca, puxando o lençol até o queixo.

Verena mordeu de leve o canto da boca, divertida.

— De você. Mas comecei com pão e café, pra não ser tão óbvia.

Silvia virou o rosto, tentando disfarçar o sorriso involuntário que ameaçava se formar. Ela não queria ceder. Não depois de tudo.

— Já fiz o café. Tá na mesa. Só falta você.

— Que milagre é esse, hein? — Silvia resmungou. — Desde quando você acorda antes das padarias?

Verena levantou e começou a se afastar, mas parou na porta, fingindo uma decepção sentida.

— Tudo bem... achei que você ia querer. Mas pode ficar aí. Eu como sozinha.

Silvia mordeu o lábio, sentindo uma pontada de culpa. Estava prestes a levantar por conta própria quando sentiu o colchão ceder de novo. Verena voltou com uma rapidez felina, puxou o lençol com um movimento firme e a pegou no colo, como se fosse um brinquedo leve e rebelde.

— Verena! Não! Larga! Eu tô falando sério! — Silvia se debatia, os cabelos bagunçados, os braços tentando se soltar. — Não tô brincando!

— Nem eu. — respondeu Verena, sorrindo. — E você sabe que quando eu quero... eu carrego.

— Você tá descalça, sua doida! E tá fraca ainda, vai me deixar cair Verena! — Silvia batia de leve no ombro da esposa, sem muita força.

— Problema da gravidade. Não meu. — disse, com uma piscadinha.

Atravessaram o corredor como se fossem duas adolescentes brigando de mentira. Verena a segurava com firmeza, como quem não ia deixar cair nem sob protesto. Ao chegar na cozinha, Silvia paralisou.

A mesa, impecável. A luz suave da manhã entrando pela janela. O cheiro de café fresco. Os alfajores que ela adorava. Tudo ali. Preparado. Verena a colocou no chão com cuidado. Silvia ficou em pé, desorientada por um segundo, olhando tudo aquilo.

— Você... você fez isso?

— Eu e o padeiro. Mas ele só abriu a porta. O resto é minha culpa.

Silvia sentou devagar, sem conseguir conter a emoção. Passou os dedos pelos olhos, disfarçando uma lágrima.

— Você ainda acha que consegue me comprar com alfajor?

Verena puxou a cadeira ao lado dela, se inclinando levemente.

— Eu sei que não consigo comprar. Mas posso tentar merecer. Pelo menos o café.

Silvia olhou pra ela, séria. Mas os olhos já não tinham a mesma dureza. Estavam feridos, mas ainda apaixonados. Ainda disponíveis, mesmo que a custo alto.

— Isso aqui não apaga o que você fez.

— Eu sei. E também sei que não vai ser o café de hoje que vai mudar tudo. Mas é um começo.

Silvia respirou fundo. Pegou a xícara. Olhou para Verena com certa melancolia.

— Sabe o que mais me dói?

— O quê?

— Que mesmo quando eu quero te odiar, você vem com esse olhar, esse charme maldito, e parece que eu que tô errada.

Verena deu um sorriso quase triste.

— É que, no fundo, a gente só quer dar certo. E, se você me deixar tentar de novo, eu juro que vou dar até o último suspiro tentando não estragar tudo.

Silvia, então, sorriu. Cansada. Amolecida. E aceitou um pedaço do alfajor que Verena oferecia, como quem aceitava também mais um capítulo da história delas.

Cemitério da Consolação – 08h25 da manhã

O céu ainda estava encoberto. Um cinza claro filtrava a luz do sol como uma cortina translúcida, tornando tudo mais frio, mais calmo. Entre as fileiras de túmulos de pedra, árvores antigas se contorciam em galhos altos, balançando ao vento leve de outono. Pássaros cantavam baixo, como se também respeitassem aquele silêncio que pairava no ar.

Verena caminhava com passos lentos por um dos corredores de terra batida. Usava um sobretudo preto por cima da roupa de trabalho — calça de alfaiataria escura e a camisa branca que se via no colarinho, aberta no primeiro botão. Carregava um buquê de flores frescas nas mãos, envolto num papel pardo e fita de tecido simples. Margaridas brancas e lavandas, as preferidas da avó. A maquiagem era discreta, mas os olhos estavam vermelhos. Dormira pouco. Chorara, um pouco mais do que isso.

Parou diante de uma lápide simples, marcada por musgos discretos nas bordas e pequenas rachaduras no mármore antigo. A terra ao redor estava firme, seca, como tudo naquele campo onde a vida parava e o tempo apenas passava.

A lápide dizia:

TEREZA CASTILHO AGUIAR
1938 – 2001
“Para além da dor, fica o amor que ensinamos.”

Verena se ajoelhou devagar, como quem pede licença ao próprio chão. Passou a mão pelas letras gastas, contornando com os dedos cada palavra que conhecia de cor. Tocou a moldura da foto pequena, já desbotada pelo tempo, onde o sorriso da avó ainda resistia, mesmo esmaecido.

— Desculpa, vó... — disse em voz baixa, quase sussurrando. — Eu devia ter vindo antes. Devia ter cuidado melhor da senhora.

Ficou em silêncio por alguns segundos, com os dedos ainda encostados na pedra fria. Os olhos marejaram. O ar parecia mais pesado ali, entre a saudade e o arrependimento.

— Eu não esqueci o que a senhora me ensinou, juro que não. — sua voz tremia. — Eu só... às vezes me perco, sabe? Tem hora que parece que o mundo inteiro tá em cima de mim e que, se eu respirar errado, tudo vai desmoronar.

Tirou o buquê do papel e ajeitou com cuidado na base da lápide. Uma flor caiu. Verena a pegou com um carinho quase infantil, assoprando a pétala como se soprasse um pensamento antigo.

— Feliz aniversário. Eu lembro de quando a senhora fazia bolo pra mim, mesmo dizendo que não sabia cozinhar. — sorriu, com os olhos já molhados. — Me dava leite com café e dizia que era o café da manhã das mulheres fortes.

O sorriso desapareceu lentamente. Ela olhou em volta. Nenhuma outra visita ali. Só ela e os mortos, e aquela presença ausente que preenchia tudo.

— Eu prometi que não ia cair, né? — disse, encarando a lápide de novo. — Que ia levantar cada vez que a vida me chutasse. Que ia ser alguém. Que ia fazer valer.

Engoliu seco. A garganta arranhava.

— Às vezes eu acho que tô conseguindo, vó... mas às vezes não. E tem dias em que eu olho no espelho e não sei mais quem eu sou. Nem o que eu tô fazendo. Nem quem eu tô machucando pra continuar de pé.

Passou a mão no rosto, tirando uma lágrima.

— Só que hoje... hoje eu senti a senhora comigo. Juro que senti. Quando abri o olho e vi a Silvia dormindo ali do meu lado, mesmo depois de tudo, mesmo depois de eu ter quase destruído tudo, eu pensei... "foi ela que mandou essa força". Não fui eu. Eu não tenho tanto assim.

Fez uma pausa, respirando fundo. O vento mexeu devagar os galhos acima, fazendo algumas folhas secas caírem como uma pequena chuva silenciosa.

— Me protege, tá? — pediu, quase com a voz de uma menina. — Porque eu ainda tenho muito chão pela frente. E eu preciso continuar. Por mim. Pela senhora. Pela menina que a senhora criou... e que até hoje só quer ouvir que tá indo bem.

Fechou os olhos. Silêncio.

Ficou ali mais alguns minutos, imóvel. Depois se levantou com calma, ajeitou o casaco e deu um último olhar para o túmulo.

— Hoje mesmo vou dar um jeito nisso aqui. Prometo. Nada mais vai ficar esquecido. Nem a senhora. Nem eu.

Virou-se devagar e começou a caminhar de volta pelo corredor de terra. Ao longe, o som de um sino pequeno ecoou. A cidade chamava de novo. E ela, como sempre, atenderia. Só que agora... de cabeça erguida.

Frente da Escola – Cerca de 6h40 da manhã

O céu ainda carregava tons azulados e frios da madrugada quando Valentina dobrou a esquina da escola. O uniforme um pouco amarrotado, o moletom escuro por cima da blusa, os cabelos presos num coque improvisado, e a mochila apertada contra o corpo — como se ela precisasse se proteger de alguma coisa que nem sabia explicar.

Não era incomum chegar cedo. Gostava daquele momento em que o portão ainda estava fechado, os inspetores apenas começando a abrir os cadeados e os colegas se acumulando aos poucos na calçada. Normalmente, Carol já estaria ali, encostada no muro, rindo de alguma coisa, falando alto ou mexendo no celular.

Mas naquele dia... não.

Valentina olhou em volta, esperando ver a amiga se aproximando de algum canto, mas tudo parecia lento e silencioso. Soltou um leve suspiro e caminhou até o mesmo meio-fio de sempre, aquele que ficava a uns cinco metros do portão. Sentou-se, ajeitando a mochila no colo e mantendo os joelhos juntos, meio retraída. Os pés balançavam de leve, como se quisessem passar o tempo mais rápido.

Ali ficou, em silêncio. Vendo o tempo passar. Observando os ônibus ao longe, as pessoas atravessando a rua, as nuvens se movendo devagar, como se o mundo todo estivesse em câmera lenta.

Então, num desses olhares vagos e desatentos, ela reparou num movimento mais abaixo da rua, perto de um poste. Primeiro, pensou que fosse só mais dois alunos matando tempo. Mas havia algo diferente na postura deles, algo que fez seu coração acelerar antes mesmo de entender o que via.

Levantou um pouco os olhos, forçando a vista. Os dois estavam próximos demais. Um deles encostado no poste, o outro com as mãos no rosto dele. E então aconteceu. Um beijo. Um beijo quente, intenso, desajeitado e cheio de vontade — o tipo de beijo que adolescente dá quando acha que o mundo vai acabar logo depois.

Valentina congelou. Sentiu um frio na barriga e, ao mesmo tempo, o corpo inteiro queimando.

Foi aí que reconheceu.

O cabelo, a calça jeans rasgada, o jeito de puxar a blusa... Carol.

Era Carol. E o garoto — Rafael, do 2ºE.

Valentina não soube o que sentiu primeiro. Foi como uma lâmina silenciosa atravessando o peito. Depois, um aperto na garganta. Por fim, um calor nos olhos, tão forte que precisou piscar várias vezes pra não deixar transbordar.

Não era ciúme do Rafael. Não era nem raiva da Carol.

Era solidão. Um buraco imenso dentro dela.

"Ela pode. Ela consegue. Ela sente. Ela vive."
Pensou, mordendo os lábios, tentando impedir que qualquer som escapasse.

E ela?
Ela amava alguém que não podia amar. Não ali. Não assim. E talvez, nem nunca.

Abaixou os olhos pra rua. As mãos tremiam levemente em cima da mochila. O coração batia alto, mas por fora, ninguém notaria. Ela não teria coragem de fazer o que viu. Não era esse o ponto.
Mas desejava, desesperadamente, ter ao menos alguém com quem pudesse dividir esse amor que crescia dentro dela como uma árvore sem poda: torta, escondida, mas viva.

Ouviu risadas vindo da direção do poste. Risadas abafadas, cúmplices, que cortaram como navalhas em seu silêncio.

Valentina se levantou. Não podia mais ficar ali.
Caminhou lentamente até o portão da escola, onde alguns alunos já se agrupavam, fingindo que nada havia acontecido. A cabeça baixa, o passo arrastado. E aquela vontade absurda de simplesmente sumir.

Dentro dela, o grito era claro:

"Por que só eu não posso?"

E no fundo, mas nem tão no fundo, ela já sabia: não era a Carol que a deixava assim.
Era o fato de que ela estava apaixonada por alguém que não podia sequer tocar.
Alguém que era mulher.
Alguém que era casada.
Alguém que era... Verena.

Ainda estava com o coração aos pulos quando viu Carol se aproximando pela calçada de cima. A amiga ria de alguma coisa que o Rafael dizia ao seu lado, meio inclinada pra ele, num jeito cúmplice que ela nunca tinha visto antes.

Ao perceber Valentina mais à frente, Carol se despediu com um beijinho rápido no rosto dele e acenou com a mão, caminhando até onde a amiga estava. O sorriso ainda no rosto. Mas bastou chegar perto pra sentir. Algo estava diferente.

— Ei, bom dia! — disse animada, como se nada tivesse acontecido. — Você chegou que horas?

Valentina olhou pra ela só por um segundo e forçou um sorriso fraco.

— Agora a pouco. — respondeu baixo, voltando os olhos pro chão.

Carol parou. Franziu o cenho, olhando de perto.

— Tá tudo bem?

Valentina deu de ombros.

— Tá.

Silêncio.

Carol sentiu o peso do vazio entre elas como um soco. Tentou se aproximar mais.

— Val... você tá estranha.

— E você esconde bem — soltou, num tom mais duro do que pretendia.

Carol arregalou os olhos, surpresa.

— Como assim?

Valentina hesitou. As palavras dançavam na garganta, mas nenhuma queria sair inteira.

— Nada... esquece — murmurou, e virou o rosto.

Carol tocou o braço da amiga, insistente.

— Não, fala. Que que tá acontecendo?

Valentina respirou fundo. Olhou pro lado, onde Rafael ainda estava, distraído, conversando com outro grupo.

— Você podia ter me contado, né?

Carol piscou, confusa.

— Contado...?

— Sobre você e ele. — disse rápido, amarga, quase cuspindo. — A gente se conta tudo, ou contava. Achei que pelo menos isso...

Carol ficou em silêncio por um momento. A ficha caiu. E com ela, a culpa.

— Val, desculpa... eu ia te contar. Eu juro. Foi tudo meio do nada, eu nem sei direito o que tá acontecendo.

— Eu também não — respondeu Valentina, o tom mais baixo agora, machucado. — Mas mesmo assim eu te contei.

Carol mordeu o lábio, apertou os olhos.

— Eu sei... e eu não devia ter escondido. Eu só... fiquei com medo do que você ia pensar. Do Rafael, sei lá. Você sempre foi tão... reservada com essas coisas. Achei que você ia me zoar.

Valentina riu de leve, sem humor.

— Zoar? Depois de tudo que eu te falei? Depois de me ver quase explodindo, dia após dia, tentando entender o que eu sinto... — sua voz embargou. — Eu achei que a gente tivesse uma coisa nossa, Carol. Que pelo menos a gente se protegia.

Carol agora parecia ainda mais atingida.

— A gente tem! — tentou se justificar, mas Valentina balançou a cabeça.

— Não parece.

O sinal bateu. Alto. Invasivo. Um monte de alunos começou a se mover, formando filas. Valentina virou as costas, seguindo na direção do portão. Carol foi atrás, com os passos rápidos, tentando não perder o momento.

— Val, por favor... não fica assim comigo. A gente precisa conversar. Eu errei, mas...

Valentina parou de repente, virando-se pra ela.

— Não é só por isso, tá? — disse, os olhos úmidos. — É por tudo. Eu tô tentando... muito. Me controlar, entender o que eu sou, o que eu sinto, o que eu posso ou não posso. E aí... eu olho pra você. Feliz, leve, vivendo. E sinto que eu tô morrendo por dentro, sabe? Que eu tô ficando pra trás.

Carol deu um passo à frente, agora com os olhos marejados também.

— Val... você nunca tá sozinha.

Valentina sorriu, dolorida.

— Tô sim. Mas tudo bem.

E então, entrou na escola, sem olhar pra trás.

Carol ficou ali, parada, com um nó na garganta e a certeza de que tinha deixado algo importante se perder naquela manhã.

Pátio da Escola – Intervalo

O recreio parecia igual a todos os outros, mas pra Valentina, tudo tinha mudado. O céu estava claro, as risadas preenchiam o ar, mas o peito dela… pesava. Carol, teimosa como sempre, tinha grudado nela desde a primeira aula. E agora, mesmo com Rafael tentando chamar atenção a cada passo, ela só queria saber da amiga.

— Vai com Deus, Rafael, de verdade — disse, empurrando o garoto alto e magro pelos ombros com um meio sorriso sarcástico. — Vai que eu já tô ocupada aqui.

Ele revirou os olhos, murmurou algo que elas não ouviram, e foi em direção a outro grupo. Carol bufou.

— Gente chata. Parece que cola igual chiclete em sola de tênis.

Valentina esboçou um sorriso fraco. Ainda tava estranha, mas menos fria do que antes. Andavam pelo pátio devagar, procurando um banco vago. E encontraram. Sentaram. O barulho ao redor era quase um fundo musical de ruído adolescente: barulho de papel se abrindo, alguém batucando um pote de lanche, um grito ao longe. E aí veio ele.

— E aí, Valentina. Carol. — disse Tiago, chegando meio de lado, tímido.

— Oi, Ti — Valentina respondeu num tom educado. Ele era legal. Quieto. Sorriso bom. Carol apenas deu um sorriso falso.

— Vocês viram que a próxima aula é com a prof. de Artes? Aposto que vai ser aquela viagem de novo — ele riu, ajeitando a mochila nas costas.

— É… acho que ela ia passar um vídeo hoje — respondeu, tentando manter a voz neutra.

E então passou.

Um garoto magrinho, todo estilizado, com uma maquiagem leve no rosto e um brilho no andar, atravessou o pátio como se estivesse em um desfile involuntário. Alguns grupos riram. Um menino chegou a imitar a forma como ele andava, exagerando, fazendo graça. Um coro abafado de piadas seguiu.

Tiago olhou de longe e disse, sem ironia, como quem reproduz algo que sempre ouviu:

— Ainda bem que eu não sou assim. Deve ser difícil ter que lutar contra esse… esse desvio, né? Imagina viver contra o que Deus quer. Sei lá, deve ser um fardo...

Valentina congelou.

Sentiu o estômago se contorcer. A mão tremeu um pouco no zíper do casaco, apesar do sol leve que fazia. O mundo pareceu mais lento. Um zumbido tomou os ouvidos.

Desvio.

Lutar contra.

Fardo.

As palavras ecoavam e batiam nas feridas abertas como socos. Aquilo era ela. Aquilo que ele dizia com tanta naturalidade, sem nenhuma maldade aparente — era ela.

Valentina empalideceu.

Engoliu em seco. A boca seca. Os olhos começando a arder.

— Eu… preciso ir no banheiro. Rapidinho — disse, a voz já embargada, os olhos sem conseguir mais encará-los.

Se levantou apressada, tropeçando no próprio pé. Tiago ficou em pé também, assustado.

— Val? Tá tudo bem?

Mas ela já ia longe, desviando de grupos, tentando não chorar ali mesmo.

Carol ficou alguns segundos em silêncio. E aí olhou pra Tiago com uma fúria que nem tentou disfarçar.

— Mais desviado que ele, só sua cabeça de prego, seu garoto escroto. — disse firme, sem levantar a voz, mas cortante como lâmina.

E saiu atrás da amiga, sem olhar pra trás.

Banheiro feminino – Pouco depois

Carol entrou e só ouviu o som abafado de uma porta se fechando.

— Val? — chamou, quase num sussurro.

Nada. Só os soluços. Se aproximou da cabine e se encostou na porta.

Do outro lado, Valentina estava sentada na tampa da privada, com o rosto escondido entre as mãos, o corpo balançando pra frente e pra trás, como se estivesse tentando conter o furacão dentro de si. Chorava com força, os punhos cerrados contra o rosto, pressionando pra não fazer barulho. Mas não dava mais.

Carol fechou os olhos e encostou a testa na porta.

— Amiga… eu tô aqui.

Nenhuma resposta. Mas os soluços doíam.

— Me perdoa… por tudo. Por não ter te contado do Rafael. Por ter te deixado sentir tudo isso sozinha. Eu não fazia ideia de que…

Ela engasgou na própria fala.

— Eu não sabia que era tanto. Que doía desse jeito.

Dentro da cabine, Valentina apertava os olhos com mais força. Queria sumir.

— Você não tem ideia, Carol… — murmurou entre o choro. — Eu tento tanto, tanto… ser normal. Ser boa filha, boa amiga, boa estagiária. Tento não sentir, tento ignorar. Mas é como se… como se eu estivesse morrendo devagar e ninguém visse.

Carol chorava agora também, sem vergonha.

— Eu vejo, Val. Eu tô vendo. E eu tô aqui, tá? Com você. Por você. Sempre.

Silêncio.

Então, bem baixinho, quase num sopro, Valentina disse:

— Eu queria sumir.

— Não. — Carol respondeu de imediato, firme. — O mundo que se vire, Val. Mas você fica. Você tem que ficar.

E ali ficaram as duas, separadas por uma porta, unidas por uma dor que começava, aos poucos, a se mostrar mais presente.

Gabinete de Verena

O relógio marcava 09h23 quando Rafaela entrou no gabinete sem bater.

Verena estava na cadeira, mexendo no celular com a postura relaxada demais pra quem deveria estar em alerta. Os olhos dela subiram, devagar, sem surpresa. O cabelo solto, a blusa azul-marinho com um leve decote, o colar delicado que Silvia tinha dado — tudo perfeitamente composto. Mas a maquiagem mal disfarçava as olheiras novas.

— Nossa… — Rafa disse, parando de pé no meio da sala. — Ainda viva. Quase achei que ia ter que chamar a perícia.

Verena largou o celular na mesa, girando levemente a cadeira.

— Você se preocupa comigo. Isso é fofo.

— Não. Eu me preocupo com a merd* toda vindo na nossa direção. E adivinha quem tá deitada na frente do ventilador?

— Essa foi nova — Verena arqueou a sobrancelha. — Mas aprecio o esforço.

Rafa cruzou os braços, firme.

— Você sumiu. Desmarcou uma reunião importante de última hora, sem dar explicação. A gente tá no meio de uma crise, Verena. Crise real, não é jogada de marketing. Não dá mais pra você agir como se tudo fosse se resolver na força da pose.

Verena se inclinou pra frente, apoiando os cotovelos na mesa.

— Tá brava porque teve que brincar de chefe por um dia?

— Não fode — Rafa rebateu de imediato. — Não fode, Verena. Isso aqui não é mais só sobre você. Você não tá numa ilha. Tudo o que você faz respinga. Em mim. No gabinete. No partido. No pessoal da base. E agora, até nisso, você tá falhando.

Verena sustentou o olhar, sem sorrir. Pela primeira vez, algo ali pareceu machucar.

— Que bom saber que sou um fardo tão pesado.

— Para de virar as coisas — Rafaela rebateu, exausta. — Você quer sinceridade? Então escuta: tá todo mundo de olho em você. O que aconteceu na última semana chamou atenção. Teu nome tá circulando, e não é por bem. Márcio veio falar comigo.

Verena se recostou na cadeira, devagar. Mas o olhar gelou.

— E disse o quê?

— Que se você não mostrar sinais concretos de melhora… vão te afastar. Do jeito que for preciso.

— Sinais concretos? — riu, sem humor. — Querem que eu poste um carrossel no Instagram avisando que tô tomando água e dormindo oito horas?

— Eu tô falando sério, caralh*! — Rafaela esbravejou. — Isso aqui não é mais briga sua com a Silvia, nem com seus traumas de estimação, paixonite pela estagiária. É tua carreira indo pro ralo, junto com tudo que a gente construiu. Você acha mesmo que eu queria ir encontrar o Benedito e o Dani sozinha? Me enfiar naquele pedaço de fim de mundo, sabendo que os dois tinham coisa quente e perigosa pra entregar, e fingir que tava tudo sob controle?

— Então por que foi?

— Porque alguém precisava agir. Alguém precisava segurar o que você largou. E isso não é justo. Porque se fosse o contrário, você teria me colocado contra a parede — ela pausou, os olhos queimando — como eu tô fazendo agora com você.

Verena não respondeu por alguns segundos. Apenas encarou a mesa, como se tivesse levado um soco sem esperar.

Rafaela respirou fundo, tentando conter o tremor na voz.

— Verena… Eu sei que você tá tentando. Mas do jeito errado. Você tá fazendo de conta que dá pra tocar a vida como sempre. Que só porque você ainda entra por aquela porta com o salto batendo firme, ninguém percebe o quanto tá à beira. Mas eu percebo. E tem mais gente percebendo também.

Verena apertou o maxilar.

— E o que você sugere?

— Que você pare. Pense. E me diga: você ainda quer estar aqui? Quer continuar nessa porr* de jogo? Porque se sim, a gente precisa de você presente. Inteira. Nem que seja o máximo de inteiro que der. Mas do jeito que tá, não dá mais. Chega.

Silêncio. Pesado. Cru.

Verena olhou pela janela por um longo tempo. Os dedos tamborilando levemente sobre a mesa. Até que murmurou, quase imperceptível:

— Eu não vou cair, Rafa.

— Então prova.

Ela virou de novo, agora encarando a amiga.

— Não é com frases de efeito. Não é com maquiagem boa. É na prática. Amanhã tem reunião com o jurídico e os articuladores da bancada. E você vai estar lá, inteira. Alinhada. Sem improviso.

Verena assentiu, com o olhar mais firme.

— Fechado.

Rafaela respirou fundo. Estava cansada de ter que salvar Verena de si mesma, mas mais ainda de imaginar o que seria vê-la ruir.

— Toma cuidado, Vê — murmurou, abrindo a porta. — Porque se você não começar a mudar, a bomba que vai explodir… não vai deixar sobrar nada.

E saiu, deixando o gabinete num silêncio sufocante. Verena soltou o ar lentamente, como se até respirar tivesse virado um ato de resistência. Ela se recostou na cadeira, o olhar perdido no teto.

"Dois dias."

Seria o suficiente?

Talvez.

Mas antes disso… ela ainda precisava encarar a menina que não saía da sua cabeça.

E essa seria a parte mais difícil.

Assembleia Legislativa – Sala de Apoio aos Estagiários | 14h05

Valentina atravessou os corredores da Alesp com passos lentos, a mochila pendendo num ombro só, as mãos segurando o zíper da blusa fina como se quisesse se esconder ali dentro. O cabelo preso de qualquer jeito num rabo baixo deixava evidente o cansaço estampado nos olhos.

Ela entrou na sala de apoio sem dizer uma palavra.

Léo, que ajeitava papéis na mesa, ergueu o olhar e franziu a testa na hora.

— Oi, Val... tudo certo?

Ela forçou um sorrisinho e assentiu com a cabeça. Mas não conseguiu sustentar o contato visual. Deixou a mochila encostar devagar na cadeira, puxou a mesma com cuidado e sentou, como se o corpo pesasse o triplo. O olhar vazio se fixou num ponto qualquer da mesa.

Léo observou por alguns segundos, tentando entender o que havia de diferente. E não era pouca coisa.

Valentina sempre tinha uma palavra gentil, uma tirada engraçada, ou pelo menos um “boa tarde” animado. Mas agora... era como se estivesse ali só de corpo. As mãos quietas no colo, o ombro um pouco curvado. Parecia que até respirar estava dando trabalho.

Ele hesitou, e tentou de novo:

— Você tá meio... estranha. Dormiu mal?

Valentina fez que sim com a cabeça, sem muita convicção.

— É só cansaço. A escola tá puxada.

A voz saiu baixa, seca. E o Léo não acreditou nem por um segundo. Mas também não quis pressionar. Pegou uma garrafinha de água da bancada e estendeu pra ela.

— Bebe um pouco. Parece que tá no modo avião.

Ela pegou com cuidado e agradeceu num fio de voz.

Ali, sentada entre os ruídos das impressoras e as conversas dispersas, Valentina tentava se manter funcional. Mas o peito estava apertado, a garganta coçando de vontade de chorar outra vez. O gosto de ferrugem na boca não passava. O rosto ainda ardia, como se tivesse chorado até dormir.

Na memória, o beijo da Carol voltava como uma facada no estômago. Não era nem ciúme. Era solidão. Era o fato de que ela sempre precisou esconder o que sentia, enquanto os outros podiam simplesmente... viver. A veio a voz do Tiago, com aquele tom doce e cruel:

"Desvio contra o reino de Deus."

Como se ela fosse um erro de fábrica. Apertou os dedos contra a garrafa. Sentia as mãos trêmulas. O corpo exausto. A cabeça pesada. Mas ali estava ela. Pontual como sempre. Disfarçando tudo que conseguia.

Gabinete de Verena –14h25

Verena estava em pé, recostada à janela do gabinete, falando ao celular com alguém do comitê, quando Rafaela entrou e deixou um envelope pardo sobre a mesa dela.

— Chegou isso aqui do jurídico. Pediu prioridade. Tô indo pra outra reunião, qualquer coisa me chama — ela disse e já foi saindo.

Verena encerrou a ligação no meio da frase e pegou o envelope com desconfiança. Assim que viu o cabeçalho, o coração deu um salto.

"Relatório de Atividade Complementar – Estágio Especial / Projeto de Acompanhamento Político"

Ela piscou algumas vezes. Leu de novo. A ficha caiu.

— Puta merd*…

Na pressa de manter Valentina por perto, após inventar um suposto projeto especial ligado ao gabinete, alegando que a menina estava em fase de acompanhamento técnico direto com ela — uma brecha legal usada de vez em quando por parlamentares, achou ter matado aquele “problema” Mas esqueceu de um pequeno detalhe: burocracia.

E agora estavam pedindo um relatório de acompanhamento da atividade. Nominal. Com assinatura e descrição de tarefas.

Verena jogou o papel em cima da mesa, passando a mão no rosto com força.

— É só o que faltava. Eu vou te matar Rafaela.

Fechou os olhos, tentando pensar. Com a cabeça do jeito que estava, quase não lembrava o que tinha dito no ofício anterior. Nem sabia como explicar aquilo sem chamar atenção.

E ainda por cima… ela ainda não conseguia encarar a menina com a mesma naturalidade Era sempre um esforço para não ultrapassar a linha.

A pulsação aumentou. O calor subiu pelo pescoço. O documento parecia gritar em cima da mesa. Verena caminhou em círculos pelo gabinete, mãos nos bolsos, depois nos cabelos, depois na cintura. Ajeitava os óculos. Não sabia se queria dar risada do absurdo ou quebrar alguma coisa.

"Concentra. Você já se safou de coisa muito pior."

Mas algo ali era diferente. A urgência de proteger Valentina não era só profissional. Era visceral. Como se o simples fato de alguém tocar nela — mesmo que só nos dados de um relatório — fosse violar algo que Verena mal conseguia entender, mas sabia que era real.

Voltou à mesa, respirou fundo e pegou o papel de novo. Ia ter que escrever algo convincente. E com urgência. E pior: conversar com Valentina. Coisa que ainda não tinha coragem de fazer.

Sala de apoio

Valentina ainda encarava o nada quando uma das auxiliares entrou trazendo uma pilha de documentos e largou sobre a mesa dela.

— Estão pedindo revisão e protocolo desses aqui. Tem uns que são pra hoje ainda.

Ela assentiu devagar, já se sentindo oprimida só de olhar pra papelada.

Na mesa ao lado, Léo continuava observando. A preocupação agora era visível no rosto dele. Mas não sabia por onde começar.

E Valentina… só queria que o dia acabasse logo. Mesmo que os dias seguintes fossem ainda piores.

Gabinete de Verena Castilho – 15h17

Verena estava sentada à sua mesa, os cotovelos apoiados e a testa franzida. À frente dela, a folha com o título exigindo um relatório do projeto de estágio especial. Ela respirou fundo, estalou os dedos e começou a digitar.

PROJETO DE ATIVIDADE FORMATIVA COMPLEMENTAR (Estágio Especial)
Nome do Projeto: Acompanhamento Legislativo: Participação Juvenil no Processo Político Estadual
Estagiária: Valentina Moraes
Período: Maio a Agosto de 2025
Supervisão direta: Gabinete da Deputada Estadual Verena Castilho

Justificativa:
O projeto visa oferecer à estudante Valentina Moraes uma imersão prática no funcionamento do gabinete parlamentar, promovendo um processo de aprendizado vinculado diretamente à elaboração de propostas legislativas e ao acompanhamento das comissões internas da Assembleia Legislativa. A experiência proporcionará à estagiária uma visão crítica e construtiva da política institucional e suas ferramentas democráticas.

Objetivos:
– Desenvolver competências de análise legislativa e política institucional;
– Acompanhar reuniões técnicas e sessões de comissões temáticas;
– Colaborar com relatórios e pareceres internos;
– Participar da organização de agendas públicas e eventos sociais do gabinete;
– Promover atividades voltadas à escuta ativa de demandas da população jovem em regiões periféricas.

Metodologia:
A estagiária participará de reuniões semanais com a supervisora direta (Deputada Verena Castilho ou sua assessoria de gabinete), auxiliará na triagem de ofícios e demandas, acompanhará debates em comissões com foco em educação, juventude e direitos humanos e atuará no planejamento de um evento público sobre juventude e representatividade a ser realizado no mês de agosto.

Avaliação:
Serão utilizados instrumentos de avaliação contínua, como registros de participação, relatórios quinzenais e uma apresentação final sobre o aprendizado obtido durante o período.

Responsável:
Verena Castilho
Deputada Estadual – ALESP
São Paulo, 21 de maio de 2025

Verena leu tudo de novo, revisou os termos técnicos e soltou um assobio curto, satisfeita.

— Hm... até que ficou bonito. Se alguém duvidar, acha que é um projeto real mesmo.

Mal teve tempo de comtemplar o trabalho feito, quando tirou os óculos, exausta, lembrando de um detalhe crucial.

— Ah, mas que... porr* – murmurou, caindo sobre o encosto da cadeira.

Respirou fundo enquanto reabria o arquivo no computador. Pegou o documento anterior e começou a revisar com atenção cirúrgica. Não podia esquecer que havia declarado que o tal “projeto” com Valentina já estava em andamento. Então, datas e conteúdo precisavam se alinhar com essa narrativa.

Ela alterou os trechos rapidamente:

PROJETO DE ATIVIDADE FORMATIVA COMPLEMENTAR (Estágio Especial)
Nome do Projeto: Acompanhamento Legislativo: Participação Juvenil no Processo Político Estadual
Estagiária: Valentina Moraes
Período: Abril a Agosto de 2025
Supervisão direta: Gabinete da Deputada Estadual Verena Castilho

Justificativa:
O projeto, iniciado em abril de 2025, visa oferecer à estudante Valentina Moraes uma imersão prática no funcionamento do gabinete parlamentar, promovendo aprendizado vinculado diretamente à elaboração de propostas legislativas e ao acompanhamento das comissões internas da Assembleia Legislativa. A experiência proporciona à estagiária uma visão crítica da política institucional, promovendo engajamento jovem nos processos democráticos.

Atividades já realizadas (abril – maio):
– Acompanhamento remoto das sessões da Comissão de Educação (via Diário Oficial);
– Auxílio na organização de ofícios recebidos sobre demandas educacionais de regiões periféricas;
– Triagem de documentos no sistema interno;
– Leitura supervisionada de projetos de lei voltados à juventude.

Objetivos em andamento e futuros:
– Desenvolver competências de análise legislativa e política institucional;
– Acompanhar reuniões técnicas e sessões de comissões temáticas presenciais;
– Elaborar pareceres e relatórios internos a partir de demandas sociais específicas;
– Colaborar na organização de agendas públicas e no planejamento de evento sobre juventude e representatividade (previsto para agosto/2025).

Avaliação:
A avaliação se dará por meio de:
– Relatórios quinzenais de atividade (supervisionados);
– Encontros semanais com a supervisora direta;
– Apresentação final das atividades desenvolvidas.

Observações adicionais:
Em função da ampliação da carga de atribuições formativas e da complexidade da atividade, será concedido aumento proporcional na bolsa-estágio da aluna.

Responsável:
Verena Castilho
Deputada Estadual – ALESP
São Paulo, 21 de maio de 2025

Ela imprimiu o documento com aquela leve sensação de quem caminha sobre o fio da navalha — e adora o perigo.  Assinou com a caneta dourada, imprimiu e colocou numa pasta com o nome da Valentina.

— Agora vem a parte difícil… contar pra menina que ela virou objeto de um projeto que nem sabia que existia.

Se levantou, esticou os ombros e apertou o botão do interfone.

— Chama a Valentina aqui, por favor.

Gabinete – 15h40

Minutos depois, Valentina entrou. Chegava sempre por volta das 14h, mas nesse dia demorou mais pra sair da própria cabeça. Estava com os olhos opacos, um cansaço grudado na pele. O uniforme amarrotado, o andar mais lento.

Verena não deixou transparecer sua própria inquietação. Caminhou até a lateral da mesa com um sorriso leve, deixando a pasta sobre a superfície.

— Valentina. Fecha a porta e senta aqui comigo um minuto.

A menina obedeceu, apertando a alça da bolsa com a mão esquerda.

— Não precisa se assustar — disse com aquela voz controlada e envolvente —, mas você agora faz parte de um projeto especial comigo.

Valentina arregalou um pouco os olhos.

— Eu…?

— É. Você. Parabéns — Verena continuou, dando dois toquinhos com a unha sobre a pasta. — Estamos formalizando um projeto voltado à juventude no processo legislativo. Já estava com isso em mente há algum tempo… e achei que fazia sentido incluir você. Jovem, interessada, organizada.

“Linda” – Mas a frase permaneceu trancada apenas para si. Travou a boca com força antes que escapasse.

A menina tentou sorrir, mas o rosto parecia travado. Só conseguiu curvar levemente os lábios. O coração disparava dentro do peito.

— Ah… obrigada. Eu... não sabia disso.

Verena girou levemente a caneta entre os dedos.

— É, talvez eu tenha deixado essa parte meio implícita. A verdade é que desde abril você já tá inserida em atividades que fazem parte disso. A leitura dos projetos de lei, os relatórios parciais... até o material da Comissão de Educação.

Valentina ficou ainda mais confusa. Aquilo eram tarefas comuns, achava. Nunca imaginou que estivessem sendo tratadas como parte de um programa especial. Além disso, algumas daquelas coisas nem se lembrava de ter visto. Mas jamais questionaria.

— Ah… entendi.

— E por isso — Verena apontou para a pasta — vai ter um relatório extra, quinzenal, que você vai precisar preencher. Eu mesma vou revisar com você. Inclusive, a gente vai se ver com mais frequência a partir de agora. Esse projeto exige acompanhamento direto da supervisora. Ou seja, eu.

A menina sentiu o estômago apertar.

— Ah…

— E, claro — continuou Verena, com um sorrisinho rápido —, vai ter um aumento na sua bolsa. Nada de outro mundo, mas justo.

— Nossa… sério?

Verena assentiu.

— Sim. Reconhecimento pelo nível do projeto. E como vai ter participação num evento no segundo semestre, achei justo.

Valentina olhava pra pasta como se fosse feita de chumbo. Só então notou que estava com as mãos geladas. Verena, observando aquele olhar assustado, se aproximou devagar, encostando na mesa com os braços cruzados, usando aquele charme cortante que lhe era tão natural.

— Mas olha... sem pânico, ok? Você já tá fazendo tudo certinho. Só vai formalizar agora.

Valentina tentou sorrir, mas era um movimento que vinha de um corpo exausto e de um coração dolorido. O sorriso não chegou aos olhos.

— Tá bem… obrigada.

— E, Valentina…

Ela a encarou.

Verena manteve o tom calmo, mas firme:

— Qualquer dúvida… qualquer coisa… você fala comigo. Esse projeto é meu. Eu cuido dele. E de quem tá nele também.

A menina assentiu devagar.

— Pode deixar.

Verena pegou a pasta e entregou com delicadeza.

— Tá tudo aqui. Vai ter que assinar umas coisas. Mas pode ler depois. Se tiver dúvidas, fala comigo.

— Tá bem…

— E não precisa ficar com essa carinha de quem foi convocada pra uma missão impossível, tá? No máximo… missão confidencial.

Valentina soltou um risinho fraco. E saiu dali com a pasta contra o peito, o passo mais apressado que quando entrou. Mas por dentro… só Deus sabia o quanto aquela aproximação mexia com ela. E o quanto doía estar tão perto — e tão longe — ao mesmo tempo.

Sala de apoio – 16h10

Ao passar pela porta da sala de apoio, Léo a observou com atenção.

— E aí, Val, tudo certo? — perguntou.

Ela apenas assentiu com a cabeça e sentou em silêncio, pegando os papéis da tarde. Mas suas mãos tremiam levemente, como se a caneta fosse pesada demais.

Léo ficou olhando por alguns segundos, franzindo a testa. Algo definitivamente não tava certo.

Sala de reuniões – Gabinete da Deputada Verena Castilho – 17h12

A mesa oval ocupava o centro da sala. Na ponta esquerda, sentava-se Cláudia, assessora jurídica da liderança do partido. Ao lado dela, Dr. Armando, da consultoria legislativa, e mais ao fundo, dois técnicos do setor de eventos e articulação parlamentar. Do outro lado da mesa, Rafaela ajeitava os cabelos cacheados enquanto anotava algo em seu tablet. Verena entrou por último, segurando uma pasta preta e o celular na mão.

— Boa tarde a todos. Desculpem o atraso. Vamos direto ao ponto — disse, com um sorriso formal.

— Claro, deputada — respondeu Cláudia, já abrindo sua própria pasta. — Estamos aqui para alinhar os pontos da visita ao Instituto Paulo Freire amanhã, 10h. O convite partiu da diretoria pedagógica, com apoio do mandato coletivo da Deputada Lira, que também confirmou presença.

Verena se acomodou, cruzando as pernas com elegância. O blazer escuro a deixava ainda mais imponente, e os cabelos soltos emolduravam o rosto com aquele ar de poder concentrado. Ela deu um breve olhar para Rafaela, que desviou, mas manteve-se atenta.

— A presença da Lira muda o cenário — comentou Verena. — Precisamos evitar que a ação se torne palco de disputas internas. Aquilo é uma instituição educacional, não o plenário da Alesp.

— Exatamente, e por isso nossa sugestão é que a sua fala seja a de abertura, para estabelecer o tom institucional da visita — disse Dr. Armando, passando um esboço da programação.

Verena analisou o papel com rapidez, os olhos correndo sobre os horários:

— E a visita aos laboratórios? Está mantida?

— Sim, após a cerimônia no auditório. Haverá uma apresentação dos alunos do projeto de mediação de conflitos escolares e da biblioteca digital comunitária. Sugerimos que a senhora visite os dois, mesmo que brevemente.

— Concordo — disse ela, devolvendo o papel com um aceno. — O foco será o fortalecimento de políticas de juventude e educação crítica. Eu quero dados sobre a evasão escolar naquela região, taxas de reincidência disciplinar e impacto do projeto desde sua implementação. Consegue isso, Rafa?

— Já pedi pra equipe compilar, deve estar na minha caixa até o fim do dia — respondeu Rafaela, sem tirar os olhos do tablet.

Cláudia entrou de novo:

— Deputada, há ainda a questão da imprensa. Três veículos confirmaram presença: um jornal local, uma rádio comunitária e o site da própria Alesp. Além disso, a assessoria da Lira convidou uma repórter da Agência Ponte.

Verena estreitou os olhos:

— Agência Ponte? Isso não foi comunicado antes.

— Eu soube há pouco, veio direto do gabinete dela.

Verena apoiou os cotovelos na mesa, as mãos unidas em frente à boca. A tensão nos ombros não passava despercebida por Rafaela.

— A Ponte é crítica ao governo e tem histórico de cobertura mais... opinativa. Quero saber quem é a repórter, histórico dela e se tem pauta específica. Se for uma matéria pré-pronta, eu quero saber antes de pisar lá. Cláudia, isso é contigo.

— Deixa comigo. Envio ainda hoje.

— E o discurso? — perguntou Rafaela, agora olhando diretamente para ela. — Vai improvisar ou quer que a gente redija algo?

Verena fez uma pausa, sorriu de lado.

— Vocês me conhecem. Nunca improviso totalmente. Mas também nunca leio palavra por palavra. Quero que a equipe me mande bullet points sobre os pontos principais: histórico do Instituto, impacto da emenda, relação com o plano estadual de juventude e compromisso com a educação libertadora. O resto é comigo.

Rafaela segurou um sorriso. Aquela era a Verena de sempre — a que dominava o espaço sem pedir licença. A que usava palavras como espada e armadura.

Dr. Armando aproveitou a pausa:

— Deputada, e sobre o encontro com os representantes dos grêmios estudantis após a visita? A senhora pretende participar?

— Sim. Mas quero que seja uma roda de conversa, sem formalidade. Alunos sentados, perguntas abertas. Nada de palanque. Isso precisa parecer real — enfatizou, firme. — Eu quero escutar. E responder sem roteiros.

Rafaela sorriu, dessa vez de verdade. Ali estava ela, pensou. A Verena que inspirava.

— Só mais uma coisa — completou Cláudia. — O jurídico recomendou que a senhora evite qualquer fala que possa ser interpretada como anúncio de nova emenda ou promessa de investimento futuro. Estamos em ano pré-eleitoral.

Verena fez um gesto afirmativo, rápido.

— Anotado. Meu foco vai ser no presente: o que já foi feito, e a importância de manter. Nada de promessas.

A reunião prosseguiu com ajustes técnicos, organização de horários e distribuição de tarefas. A cada apontamento, Verena demonstrava domínio absoluto. Quando precisava interromper, fazia com elegância. Quando ouvia, mantinha o olhar atento, calculando cada nuance.

No fim, quando todos começaram a se levantar, Rafaela ficou mais um instante parada.

— Você foi bem — disse, num tom quase neutro, mas que escondia um elogio.

Verena não se virou de imediato.

— Você duvidava?

Rafa bufou, tentando conter o impulso de sorrir.

— Só tava esperando pra ver se aquela Verena que eu conhecia ainda existia.

Verena virou o rosto, os olhos fixos nela por um breve instante.

— Eu nunca fui embora, Rafa. Só andei fora de foco.

E saiu da sala antes que qualquer resposta pudesse ser dita.

Casa dos Moraes – Banheiro – 19h32

O barulho da água quente era constante, quase hipnótico. Valentina estava ali, imóvel sob o chuveiro, o corpo tenso, a cabeça baixa.

As imagens vinham em sequência, como se tivessem se alojado dentro dela.

A felicidade da amiga, os dois se aproximando... o beijo. E então, lembrou do fatídico dia, em que achou que sentiria o ar faltar. Esteve tão próxima daquele rosto tão distante, o tempo quase congelando. O coração disparado, a garganta seca.

Em seguida, a fala de Tiago, cuspida com aquele desprezo revestido de “preocupação espiritual”:

“Imagina viver contra o que Deus quer.”

Ela quis gritar. Quis sumir. Quis ser outra pessoa.

Mas só conseguia chorar.

As lágrimas desciam misturadas à água do chuveiro, como se seu rosto estivesse pedindo socorro enquanto o corpo todo tentava fingir que estava tudo bem. Se encolheu no canto do box, abraçando os joelhos. Estava exausta. Cansada de sentir tanto. Cansada de esconder. Cansada até de tentar não sentir. Queria que a água levasse tudo embora. Mas nada se dissolvia.

Cozinha – 19h48

Valentina se sentou à mesa com o cabelo úmido, vestindo uma camiseta larga. Estava com os olhos vermelhos, mas evitava contato visual. No prato, uma pequena porção de arroz, duas colheres de feijão e um pedaço miúdo de frango. Mal tocou na comida.

Ana Paula observava. Luiz tentava manter a conversa sobre um jogo que assistira no celular, mas Valentina só assentia com a cabeça.

— A comida tá quente ainda, filha. Come logo — disse Ana Paula, puxando a cadeira com um sorriso cansado. — Vai esfriar.

Valentina assentiu com a cabeça, mecânica. Pegou o garfo e começou a separar o arroz com o feijão.

— Ah, lembrei de uma coisa — disse Valentina, num tom baixo. — Vou ganhar um aumento na bolsa do estágio.

Luiz levantou o olhar, surpreso.

— Como assim, aumento?

— É... — ela respirou fundo, ainda mexendo na comida. — Me colocaram num projeto especial com a deputada. Dizem que é importante e... por isso vai ter um valor maior na bolsa.

Ana Paula sorriu, mas havia um fundo de preocupação na voz:

— Nossa, que bom, filha. Parabéns. Mas... é mais trabalho também, né?

— É. Acho que sim. — A resposta saiu rápida, sem brilho.

Carlos encostou-se na cadeira:

— Isso é sinal de confiança. Mas se começarem a te explorar lá, você fala, hein? Não é porque é oportunidade que tem que carregar o mundo nas costas.

Valentina forçou um sorriso. Era quase invisível, mais um enfeite do que um reflexo de alegria.

— Tá tudo bem, pai. É só um projeto.

— Mas você vai ter que ficar mais tempo lá? — perguntou Isadora, com a boca cheia de arroz.

— Não... acho que só algumas reuniões a mais. Mas continuo indo de tarde.

Ana Paula observava a filha enquanto ela respondia. O olhar perdido, os ombros caídos, o garfo parando várias vezes no meio do caminho. A comida sobrando. Trocou um olhar com o marido, que disfarçou mexendo no copo. A sensação de que algo estava errado se instalava como uma fumaça que ninguém via direito, mas sentia no ar.

Quarto de Valentina – 20h26

Valentina subiu devagar, sem dizer nada. Trocou a camiseta por uma blusa velha, vestiu um moletom por cima e se deitou virada pra parede, encolhida, com o cobertor puxado até o queixo. O quarto estava escuro, a luz do corredor apagada com cuidado por ela mesma.

Lá embaixo, Ana Paula terminou de guardar os talheres e pediu que Isadora lavasse as mãos depois da sobremesa. Também pediu que o esposo fosse foi ao quintal ligar a máquina para bater algumas peças de roupa. E então ela subiu.

Entrou no quarto da filha sem acender a luz.

O quarto tinha aquele cheiro de roupa limpa misturado com o perfume do sabonete. A penumbra revelava só silhuetas. Ana Paula sentou-se devagar na beirada da cama. O colchão afundou levemente. Valentina não se mexeu.

A mãe esticou o braço e começou a acariciar de leve os cabelos da filha, com aquele toque que só mãe tem — que fala sem palavras, que acolhe sem exigir explicação.

Valentina sentiu na hora. Fechou os olhos com mais força, como se quisesse conter as lágrimas, mas não conseguiu impedir que elas escorressem, quentes, silenciosas, molhando o travesseiro.

A voz da mãe veio baixinha, doce, carregada de amor:

— Filha... o que tá acontecendo meu amor? Você pode me contar. Eu sou sua mãe... mas também sou sua amiga. Eu tô aqui. Eu juro que tô aqui. E tá doendo tanto ver você assim... sem saber o que fazer, sem saber como te ajudar...

Valentina não respondeu. A garganta ardia. Só conseguiu suspirar, com um som preso, abafado, doído. As lágrimas vinham cada vez mais, escondidas pela coberta, protegidas pela escuridão.

Ana Paula continuou com os dedos no cabelo da filha, num silêncio que dizia tudo:
“Eu vejo você. Mesmo quando você tenta se esconder.”

Apartamento de Verena e Silvia – Quarto do Casal – 06h12 da manhã

A luz ainda era azulada, fria, se infiltrando preguiçosamente pelas frestas da cortina de linho claro, tingindo o quarto em tons amarelados. O ambiente estava silencioso, exceto pelo som abafado da cidade acordando lá fora — buzinas distantes, um cachorro latindo, um helicóptero que sobrevoava aos arredores. Os lençóis estavam amarrotados, e no centro da cama de casal, duas figuras ainda imóveis.

Silvia já estava acordada há algum tempo, deitada de lado, os olhos fixos na esposa adormecida ao seu lado. Verena dormia de bruços, os cabelos soltos espalhados pelo travesseiro, uma das mãos embaixo da cabeça, a respiração pesada e profunda. Silvia a observava em silêncio, o peito apertado por um emaranhado de sentimentos que não conseguia desenrolar por completo.

Ela ainda sentia raiva — claro que sentia —, lembrava do nome sussurrado no meio do sex*, lembrava da expressão confusa de Verena quando percebeu o que tinha feito. Mas agora, vendo-a ali, tão vulnerável, o ressentimento parecia uma sombra distante, ofuscada por um carinho teimoso que insistia em resistir.

Silvia passou a ponta dos dedos de leve pela gola amassada da camiseta da esposa, arrumando um vinco imaginário. Não queria acordá-la ainda… e, ao mesmo tempo, queria que ela acordasse logo. O dia seria longo, importante, difícil.

De repente, o alarme do celular vibrou em cima do criado-mudo. Um som insistente, metálico, que cortou o silêncio do quarto. Verena se mexeu, soltando um suspiro arrastado, apertou os olhos com força e virou o rosto para o travesseiro, como se pudesse fugir do dia só mais um pouco.

— Hm... merd*... — resmungou, a voz rouca, puxando o celular com a mão sem nem olhar. Desligou o alarme e ficou deitada por mais alguns segundos, respirando fundo.

Silvia continuava ali, agora sentada na beirada da cama, observando.

Verena passou as mãos pelo rosto, esfregando os olhos, e soltou outro suspiro.

— Não tem como já ser 06h... — murmurou, mais pra si mesma.

Silvia não respondeu. Só estendeu a mão, afagando levemente o braço da esposa, com um meio sorriso.

— Bom dia — disse, baixinho.

Verena abriu um meio sorriso cansado, ainda com os olhos fechados.

— Bom dia...

Ela se virou, ficando de barriga pra cima, olhando o teto por um segundo. O peito subia e descia lentamente, como quem precisava respirar fundo para reunir forças.

— Vai ser puxado, né? — Silvia comentou, mais por quebrar o silêncio do que por real interesse.

Verena riu pelo nariz.

— Sapopemba, imprensa ... a emenda... e ainda Rafaela no meu pé — listou, com um tom meio sarcástico, meio resignado.

Silvia não perguntou mais nada. Não era seu papel. Nunca tinha sido. O trabalho da esposa Verena era um território onde ela não se metia. Exceto por aparições em momentos simbólicos. Não por falta de capacidade — mas por escolha. E Verena, por sua vez, sempre fez questão de manter uma linha separando as duas coisas.

Com um suspiro discreto, calçou os chinelos e passou a mão nos cabelos, ainda meio desalinhados, ajeitando-os automaticamente enquanto caminhava até o closet, pegando a camiseta velha que sempre usava pra ficar em casa.

Virou-se para a esposa, que continuava deitada, apoiada de lado, observando-a em silêncio.

— Vou fazer o café — avisou Silvia, enquanto saía do closet, já vestida, com aquele tom prático, quase protocolar. — Agora você vai comer direito… — completou, lançando aquele olhar de quem não está exatamente perguntando, mas afirmando, com aquele cansaço típico de quem, mesmo amando, já se habituou a cuidar porque sabe que, se não fizer, ninguém mais faz.

Verena sorriu de canto, com um ar meio sonolento, meio carente, passando a mão devagar pelo lençol amarrotado ao seu lado.

— Fica mais um pouco… — pediu, quase num sussurro, deixando a voz arrastar, buscando, talvez, um beijo ou só a presença da esposa por mais alguns minutos.

Silvia parou na porta do quarto, apoiando-se no batente, e olhou de relance para Verena. Respirou fundo, como quem escolhia as palavras para não dizer o que realmente pensava.

Deu dois passos de volta, mas, ao invés de se aproximar da cama, manteve-se firme, mantendo uma distância delicada.

— Vai tomar seu banho… — disse, com um meio sorriso, apontando com o queixo na direção do banheiro. — Pra não se atrasar e já sair nervosa. Hoje o dia vai ser puxado.

Verena deixou escapar um suspiro discreto, enquanto se erguia lentamente na cama, apoiando os cotovelos nos joelhos, observando Silvia dar meia-volta e seguir em direção à cozinha.

O som dos passos da esposa se afastando pelo corredor pareceu encher ainda mais o quarto silencioso. Por um segundo, Verena ficou ali, olhando para o vazio, com aquela sensação estranha de querer puxar a esposa de volta, de segurar, de manter perto… mas ao mesmo tempo sabendo que havia uma distância, sutil, bem ali, entre as duas. Passou as mãos pelos cabelos, se levantou, e foi para o banheiro, com aquele peso leve, mas constante, que andava carregando fazia semanas.

...

O café seguiu sem maiores atritos. Verena preferiu comer com algo mais leve, recenado se sentir mal. Aquele não era o dia. Nada podia sair do planejado. Estava no quarto, algumas camisas espalhadas pela cama. Vestia a calça com o zíper ainda aberto, um sutiã preto cobrindo os seios, olhando as peças amassadas sobre a cama. Seria a primeira decisão do dia.

Silvia, que voltava da cozinha, observou por um segundo, do batente da porta. A cena que viu tantas vezes, mas em momentos totalmente diferentes, cheios de cumplicidade, carinho. E agora... Parecia mais um cuidado automático, que ela insistia em não ver como obrigação, mas que pesava em seus ombros como quem não tem escolha. E mesmo que tivesse... Talvez escolhesse fazer mesmo assim.

Caminhou até o closet silenciosamente. Pegou a camisa social que tinha deixado separada na noite anterior sem que esposa soubesse e voltou com ela nas mãos, alinhada, cheirosa.

Verena observava, coçando a cabeça e esticando o corpo, as costas estalando discretamente.

— Já te falei pra não jogar as roupas assim — disse, com aquele tom meio prático, meio carinhoso.

Silvia abriu a camisa social, estendendo-a para a esposa.

— Você sempre coloca torto — comentou, divertida, enquanto Verena ria de leve.

— E você sempre me salva disso.

Silvia se posicionou atrás, guiando os braços da esposa pelas mangas, depois passou as mãos pelas costas, puxando o tecido até alinhar perfeitamente. Ajeitou os ombros, o colarinho, e foi até abaixar-se um pouco para arrumar a barra da camisa dentro da calça de alfaiataria preta que Verena já tinha vestido.

Fez tudo em silêncio, com aquele cuidado automático que anos de convivência constroem. Por último, ajudou a esposa com os saltos pretos, mas não muito altos. Depois, deu um passo para trás, avaliando o conjunto.

— Agora sim — disse, com uma voz neutra, quase profissional.

Verena virou-se para ela, com aquele olhar que misturava gratidão, desejo e uma pontada de tristeza.

Se inclinou, buscando um selinho. Silvia, num movimento sutil e fluido, virou o rosto de leve, fazendo com que o beijo pousasse na bochecha. Verena parou ali, perto demais, os olhos fechando por um segundo. Respirou fundo e se afastou.

Silvia andou até a cômoda, pegou a pasta preta e a carteira da esposa.

— Não esquece — disse, estendendo os objetos, sem olhar diretamente para ela.

Verena pegou, segurando firme.

— Você sempre cuida de mim, né? Mesmo quando não eu não mereço.

Silvia deu um sorriso breve, cansado.

— É... acho que sim.

Elas ficaram ali, paradas por alguns segundos. O espaço entre elas não era muito grande, mas parecia enorme. Até que Silvia quebrou o silêncio:

— Boa sorte hoje.

— Obrigada — respondeu Verena, engolindo o que gostaria de dizer.

E então, com passos firmes e elegantes, saiu do quarto.

Silvia ficou parada ali, sozinha, por mais alguns instantes. Respirou fundo e, antes de sair também, ajeitou as roupas nos cabides e lençol da cama, como quem tenta organizar alguma coisa no meio do caos.

Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) – Gabinete da Deputada Verena Castilho – 08h17 da manhã

O gabinete estava num ritmo acelerado, mas não havia desorganização — pelo contrário, cada um sabia exatamente o que estava fazendo. Rafaela, de salto grosso, calça social e uma blusa vinho impecável, falava ao telefone, apoiada na lateral da mesa de reuniões:

— Sim, o Instituto confirmou. A comitiva está autorizada a entrar pela lateral, portão três… Isso, a entrada administrativa… — virou-se de costas, olhando pela parede envidraçada que dava vista para o corredor, enquanto conferia as mensagens no tablet. — Não, não precisa reforçar segurança local, levamos o segurança da comitiva. Tá tudo sob controle.

Do outro lado da sala, Verena fechava o zíper da pasta preta, colocando os últimos documentos revisados na noite anterior. O terno cinza-escuro, bem ajustado ao corpo, e a camisa branca davam a ela uma aparência ainda mais austera que o habitual. O cabelo solto, mas perfeitamente alinhado, caía sobre os ombros, contrastando com a expressão firme e concentrada.

Ao lado da porta, Fábio — o velho motorista de confiança, sempre circulava por ali quando convocado —, aguardava de braços cruzados, fazendo o discreto trabalho de articulador silencioso, pronto para qualquer demanda emergencial.

— Deputada, o jurídico já está na sala de apoio. Quer que tragam o parecer final agora? — perguntou um dos assessores, aproximando-se com uma prancheta e um semblante tenso.

Verena nem olhou para ele. Continuou digitando no celular, enviando a última confirmação para a chefia do Instituto, e respondeu com aquele tom de comando tranquilo que sempre impunha:

— Não. Deixem com a Rafaela, ela vai no segundo carro, coordena isso no trajeto. Eu fico com o jurídico na van principal.

Rafaela, sem interromper a ligação, apenas ergueu o polegar, indicando que estava ouvindo.

Verena, então, ergueu os olhos, olhando ao redor da sala. A equipe toda estava em movimento: estagiários recolhendo materiais de apoio, técnicos ajustando o projetor portátil, pastas sendo alinhadas, um assessor testando a conexão do notebook que seria usado para apresentar o balanço da emenda parlamentar.

No canto, Fábio — o estagiário veterano — dobrava rapidamente algumas cópias do relatório de execução, enquanto murmurava:

— Quarenta cópias, vai que alguém pede extra…

— Boa, Fábio — Verena disse, com aquele meio sorriso que só usava quando queria suavizar a tensão, sem perder o tom profissional.

— Deputada… — Rafaela desligou o telefone e se aproximou. — Está tudo confirmado. Transporte, segurança, equipe técnica, imprensa… só não temos previsão exata de quantos alunos vão estar na visita. A direção do Instituto avisou que pode ter turma extra.

Verena soltou um suspiro discreto, passou a mão pelos cabelos e respondeu:

— Não tem problema. Improviso com dados gerais. O que importa é reforçar o impacto social da emenda.

Ela virou-se, pegando a pasta com firmeza, e olhou de relance para Rafaela, com aquele olhar que não precisava dizer mais nada: "Vem comigo."

Enquanto saíam do gabinete, o restante da comitiva foi se formando no corredor: dois advogados do setor jurídico, a assessora de comunicação — com a câmera pronta para captar imagens institucionais — e mais dois técnicos de orçamento. Além de um estagiário, encarregado de ajudar no que eu fosse necessário aos demais.

Na antessala, o chefe de gabinete já aguardava com a planilha de protocolo, conferindo a lista de quem embarcaria em qual veículo.

— Deputada, a senhora vai no carro oficial ou prefere ir na van? — perguntou.

— Van. Quero revisar o parecer jurídico no caminho — respondeu, ajustando a alça da bolsa no ombro.

Rafaela ergueu uma sobrancelha, meio provocativa:

— Tá virando humilde agora? Indo com o povão?

Verena sorriu de canto, seca:

— Só quero garantir que ninguém erre na hora de justificar os repasses.

A comitiva desceu então pelos corredores da ALESP, o som dos saltos ecoando no piso de granito, cruzando com outros parlamentares que também seguiam para seus compromissos da manhã.

No saguão principal, o motorista do carro oficial já aguardava com a porta aberta, enquanto a van institucional da ALESP, adesivada discretamente, manobrava próximo ao acesso reservado.

Verena parou um instante antes de entrar, olhou para Rafaela e perguntou:

— Você tá com o cronograma impresso?

— Tá aqui. Mas tem no drive também, claro — respondeu, batendo no tablet.

— Prefiro papel hoje — disse Verena, aceitando a folha que Rafaela tirou da bolsa.

Enquanto subia na van, passando pelas poltronas estreitas, acomodou-se ao lado da janela, cruzou as pernas com elegância e abriu a pasta no colo, começando imediatamente a folhear o relatório jurídico.

Rafaela parou na porta logo depois, antes de ir para o segundo carro, soltando, meio irônica:

— E aí, preparada pra mais um show?

Verena nem olhou, apenas sorriu de canto e respondeu, sem tirar os olhos dos papéis:

— Eu nasci pra isso.

Rafaela não escondeu o sorriso de admiração. E então, a porta da van se fechou com um estalo firme, abafando o som externo. O veículo arrancou suavemente, levando a comitiva pelas ruas da cidade que começava a esquentar, rumo ao Instituto Paulo Freire, na Zona Leste.

No relógio de bordo: 08h45.

Instituto Paulo Freire – Sapopemba | 09h37

A van preta oficial, com os vidros fumê, contornou o quarteirão e parou discretamente na entrada lateral, conforme o plano logístico, definido dias antes. A comitiva de Verena era composta por nove  pessoas: além dela, Rafaela — sempre impecável com o blazer branco e os cabelos presos num coque alto —, Cláudia, responsável pela comunicação, dois assessores parlamentares e outro do jurídico, um segurança, o estagiário e o motorista.

O segurança desceu primeiro, abrindo a porta lateral para que Verena saísse. Ela ajeitou a lapela do blazer impecavelmente passado, checou a pasta preta com documentos sob o braço e desceu com aquela postura que fazia os olhares se voltarem instintivamente para ela. Salto firme, expressão sóbria.

Do lado de dentro da grade lateral, o diretor do Instituto, um homem baixo, calvo, com o crachá pendurado no peito e um sorriso largo demais, os aguardava ansioso, ao lado de duas coordenadoras pedagógicas e de uma estagiária do administrativo, visivelmente deslocada entre tantos engravatados.

Assim que a comitiva entrou, o diretor se adiantou, oferecendo a mão:

— Deputada Castilho, é uma honra recebê-la! Fico muito feliz que tenha conseguido encaixar a visita na sua agenda.

Verena apertou a mão com a firmeza e o tempo exato, aquele domínio de protocolo que só ela sabia fazer:

— A honra é nossa, diretor. Afinal, a emenda foi pensada para beneficiar essa instituição. Queremos ver de perto como ela está sendo aplicada.

Rafaela ficou ligeiramente atrás, com a pasta de relatórios e cronogramas em mãos, os olhos percorrendo o entorno com atenção: muros baixos pintados recentemente, com desenhos infantis, quadra poliesportiva coberta, algumas crianças correndo entre os corredores, indiferentes à movimentação de terno e gravata.

O diretor fez um gesto teatral, abrindo caminho:

— Por aqui, por favor. Se quiserem, podemos ir direto à sala onde montamos uma pequena apresentação dos avanços…

Cláudia se adiantou, sutil:

— Só reforçando: nossa programação começa com a visita técnica ao laboratório de informática, depois a apresentação, mais dois laboratórios, em seguida o coffee break e, por último, o espaço para a imprensa, correto?

O diretor, ansioso, assentiu várias vezes:

— Isso! Está tudo conforme o combinado!

Enquanto caminhavam pelo corredor estreito de piso gasto, a comitiva atraía olhares curiosos das crianças e dos poucos professores que ainda não tinham sido instruídos a “não incomodar os visitantes”.

Os sorrisos estampados no rosto dos funcionários beiravam a adulação. Rafaela, ao perceber, fez um comentário baixo para Verena:

— Quase estenderam tapete vermelho…

Verena sorriu de canto, sem desviar o olhar da frente:

— Deixa eles… vão sair bem na foto.

Quando chegaram à primeira sala, a coordenadora pedagógica, uma mulher de óculos de armação grossa, começou a descrever:

— Aqui é o laboratório de informática. Conseguimos, com parte do recurso, reformar toda a rede elétrica e adquirir novos computadores. Ainda falta a climatização, mas…

Verena se aproximou, cruzando os braços com elegância, enquanto observava as máquinas enfileiradas. Algumas crianças estavam ali, fazendo atividades simples. Ela inclinou-se ligeiramente para ouvir um menino que jogava um game educativo. O garoto nem percebeu quem estava ao seu lado.

— E a manutenção desses equipamentos, como está sendo feita? — perguntou Verena, dirigindo-se à coordenadora.

— Ah… estamos organizando com a Secretaria Municipal. Mas, sinceramente, não temos equipe técnica suficiente.

Rafaela anotou discretamente no bloco. Verena sorriu, protocolar:

— Vamos ver como podemos ajudar.

Na sequência, seguiram para o refeitório, onde algumas crianças merendavam, indiferentes ao cortejo institucional. O diretor fez questão de enfatizar:

— A verba também ajudou a melhorar a alimentação. Conseguimos contratar mais uma nutricionista e ampliar a variedade.

Verena observou a cena: bandejas de plástico, arroz, feijão, frango grelhado e uma fruta. Notou que algumas crianças comiam rapidamente, outras deixavam metade do prato. A realidade de sempre.

Antes de seguirem para a apresentação, Cláudia se aproximou discretamente:

— Deputada… a equipe da Agência Ponte já chegou, estão posicionados na sala da apresentação.

Verena suspirou, passando a mão pelo colarinho da camisa branca, seguido pelo ajuste nos óculos.

— Ótimo… vamos manter tudo conforme o combinado.

Rafaela, ao lado, soltou, num tom que só Verena ouviria:

— Primeira vitória: chegamos antes da Lira.

Verena sorriu de lado, sem disfarçar o prazer discreto da constatação:

— Como deveria ser.

A comitiva seguiu adiante, com os saltos, pastas, pranchetas e celulares compondo aquele teatro político impecável, enquanto, ao fundo, uma bola de futebol atravessava o pátio, sendo chutada por duas meninas, alheias a todo o aparato.

Instituto Paulo Freire – Auditório | 10h40

Após os cumprimentos protocolares e o deslocamento coordenado até o auditório, a comitiva de Verena acomodou-se nas primeiras fileiras de cadeiras plásticas alinhadas. O espaço, recém-pintado com cores vibrantes, contrastava com o aspecto sóbrio e austero das roupas dos visitantes. A bandeira do Brasil, ao lado da do estado de São Paulo, compunha o cenário no palco improvisado, onde o diretor, munido de um microfone sem fio, abriu a cerimônia com um discurso breve, focado em “celebrar a parceria institucional” e “reconhecer os esforços da deputada Castilho”.

Verena manteve o semblante firme, as pernas cruzadas, ouvindo atentamente, enquanto Rafaela, ao seu lado, revisava mentalmente o cronograma.

Quando o diretor encerrou, convidou a deputada para uma fala rápida. Verena subiu os três degraus laterais com segurança, posicionou-se ao centro, com a mão esquerda repousando suavemente sobre a lateral do púlpito de madeira envernizada.

— Bom dia a todos — começou, com a voz firme, modulada, projetada com naturalidade. — É uma satisfação enorme estar aqui hoje, vendo de perto a aplicação de um trabalho que nasceu de um compromisso nosso, lá na Assembleia, e que agora se traduz em estrutura, equipamentos e, principalmente, oportunidade para cada criança e jovem desta comunidade.

Olhou rapidamente para as fileiras mais distantes, onde alguns professores, discretos, gravavam a cena com celulares.

— Nosso mandato acredita na educação pública como um pilar de transformação social. Por isso, desde o início, nos empenhamos para garantir que os recursos chegassem aqui de forma eficiente e transparente. Continuamos acompanhando e fiscalizando cada etapa, para que vocês recebam exatamente o que merecem: dignidade e qualidade.

Pausa precisa. Um sorriso breve, humano, sem excessos.

— Parabéns ao Instituto, aos educadores, aos funcionários e, claro, aos estudantes. Seguimos juntos.

Aplausos protocolares. Verena desceu com a mesma elegância, cruzando um olhar rápido com Rafaela, que fez um discreto movimento afirmativo com a cabeça: tudo no tempo, tudo sob controle.

O diretor então retomou o microfone:

— Antes de prosseguirmos com as visitas técnicas, teremos duas breves apresentações que mostram como a emenda parlamentar da deputada e os esforços da nossa equipe vêm se materializando aqui na escola.

Fez um gesto para o canto do palco.

Dois grupos de alunos se organizaram rapidamente.

O primeiro era do Projeto de Mediação de Conflitos Escolares. Quatro adolescentes, vestindo camisetas personalizadas com o logotipo do projeto, posicionaram-se lado a lado, e uma das meninas, com evidente nervosismo, aproximou-se do microfone.

— Bom dia… nós somos parte do grupo de mediação de conflitos da escola… Nosso projeto começou há três meses, com o apoio da formação continuada dos professores, e já ajudamos a resolver pequenos desentendimentos entre colegas, evitando suspensões e melhorando o ambiente escolar.

A fala, simples, emocionou alguns presentes. Verena observava com atenção, inclinada levemente para a frente, enquanto Rafaela registrava mentalmente: “mediação implantada — relatório positivo”.

Outro aluno complementou:

— A gente também criou um mural com mensagens de incentivo e tem uma caixinha anônima pra quem quiser pedir ajuda.

Aplausos discretos.

Em seguida, o grupo da Biblioteca Digital Comunitária assumiu o palco. Desta vez, uma aluna do ensino fundamental segurava um tablet enquanto explicava:

— A biblioteca digital foi criada com os novos computadores que chegaram. Agora a gente consegue acessar livros, fazer pesquisas e até ajudar quem mora aqui perto e não tem internet em casa…

Enquanto ela falava, um professor projetava, no telão improvisado, imagens do espaço: estantes reorganizadas, alunos conectados aos novos equipamentos. Verena sorriu discretamente, cruzando as pernas na outra direção. Rafaela aproximou-se um pouco e, num sussurro calculado, comentou:

— Pelo menos aqui a verba foi bem empregada.

Verena respondeu sem olhar, apenas movimentando levemente os lábios:

— É pra isso que serve.

Assim que as apresentações se encerraram, o diretor, mais uma vez, retomou o microfone:

— Agora, conforme nossa programação, seguimos com a visita técnica aos dois laboratórios. Peço à coordenadora pedagógica, professora Denise, que acompanhe a deputada e sua equipe.

Enquanto todos se levantavam, Cláudia, responsável pela comunicação, aproximou-se discretamente de Verena:

— A equipe da Agência Ponte já se posicionou na sala da apresentação, depois dos laboratórios. Mantemos o cronograma?

Verena assentiu, seca:

— Mantemos tudo.

E, dirigindo-se ao grupo:

— Vamos.

A comitiva retomou a movimentação, acompanhando a coordenadora pelos corredores estreitos, enquanto, do lado de fora, alguns alunos continuavam suas rotinas, alheios ao cortejo de poder que cruzava seus espaços cotidianos.

[Instituto Paulo Freire – Sapopemba | Visita laboratório de robótica – 11h25]

O grupo atravessou o corredor estreito, os passos ecoando sobre o piso de cimento queimado recém-polido. À frente, a coordenadora pedagógica do Instituto, professora Denise, fazia as honras com a mesma cordialidade ensaiada desde a chegada.

— Agora vamos conhecer nosso segundo laboratório, destinado ao ensino de robótica educacional e programação. — Ela abriu a porta de aço com certa dificuldade.

O espaço era pequeno, mas bem equipado: bancadas largas de MDF, kits de Arduino espalhados, algumas impressoras 3D e computadores modestos, mas funcionais.

Verena ajeitou a gola do blazer, cruzando os braços enquanto percorria com os olhos atentos cada detalhe. Ao lado dela, Rafaela acompanhava calada, os olhos indo de um ponto a outro, absorvendo o ambiente, admirando — mesmo sem admitir — o modo como Verena dominava a cena.

O professor responsável pelo laboratório, um homem magro, de óculos grossos, se adiantou:

— Deputada, aqui implementamos atividades semanais para cerca de oitenta alunos, do sexto ao nono ano. Trabalhamos desde noções básicas de lógica de programação até projetos mais complexos, como automação residencial.

Ele apontou para um protótipo no canto da sala: um sistema de irrigação automatizado.

— Essa maquete foi inteiramente desenvolvida pelos alunos do oitavo ano. O solo detecta a umidade e, quando abaixo do ideal, aciona o sistema de rega automaticamente.

Verena se aproximou, abaixando levemente para observar os sensores e as conexões improvisadas.

— Quem cuida da manutenção dos equipamentos? — perguntou, com a voz firme e interessada.

— Nós mesmos, com apoio dos professores de informática e dos próprios alunos, deputada. Mas temos dificuldades com a aquisição de peças, por conta do orçamento.

Ela assentiu, recuando com um meio sorriso protocolar.

— É exatamente para isso que essa emenda existe: garantir que os projetos continuem, com qualidade e segurança.

Enquanto os fotógrafos da equipe registravam discretamente, Rafaela se inclinou um pouco para Verena, num sussurro:

— Tá rolando uma movimentação lá fora.

Verena nem precisou perguntar. Pelo reflexo do vidro, viu alguns rostos conhecidos próximo à entrada lateral.

— Lira… — murmurou, só para si.

Mas logo voltou ao tom formal, dirigindo-se ao grupo:

— Muito bem, parabéns pelo trabalho. Quero o relatório completo da aplicação da emenda nesse espaço, incluindo as necessidades que ainda não foram atendidas. Façam chegar ao meu gabinete, por favor.

— Pode deixar, deputada. — respondeu a coordenadora, solícita.

[Minutos depois – Saída pelo refeitório]

A comitiva atravessava o pátio aberto, onde algumas crianças brincavam indiferentes àquela procissão de adultos engravatados. Ao fundo, o refeitório — um salão amplo, com mesas compridas de tampo de fórmica azul, e o cheiro distante de arroz com feijão ainda pairando no ar.

Verena caminhava à frente, impecável, os sapatos fazendo um ruído seco no piso, quando percebeu o burburinho crescente próximo ao portão de entrada.

— Deputada… — Cláudia, sua assessora, se aproximou apressada — A comitiva da Lira está chegando agora.

Rafaela soltou um risinho irônico, ajustando a alça da bolsa no ombro.

— Até que não atrasou tanto… — comentou, baixa.

Verena manteve o olhar fixo adiante, ajustando o punho da camisa sob o blazer, com aquele ar de quem nunca é pega desprevenida.

— Vamos manter o ritmo, não estamos aqui para desfile político. — disparou, fria.

Enquanto isso, do outro lado do pátio, a comitiva de Lira adentrava o Instituto: uma equipe igualmente numerosa, os flashes de uma câmera da Agência Ponte já começando a pipocar.

Verena desacelerou discretamente, fazendo o grupo parar sob um dos pilares próximos à saída do refeitório, exatamente no ponto em que os dois grupos inevitavelmente se cruzariam.

Rafaela a fitou de lado, reconhecendo aquele brilho nos olhos da amiga: era o momento da cena, do duelo silencioso que Verena tanto dominava. A deputada ergueu levemente o queixo, soltou um meio sorriso calculado e permaneceu ali, firme, esperando…

Lira vinha à frente, pisando com confiança, um vestido azul royal que parecia escolhido exatamente para não passar despercebida, cercada de dois assessores, fotógrafos e a repórter da Agência Ponte, que se apressava para ajustar o gravador e o bloquinho. Assim que viu Verena, abriu um sorriso quase maternal:

— Ora, Castilho… sempre tão pontual — estendeu a mão com aquela firmeza estudada, enquanto o fotógrafo da escola clicava, sem perder a chance. — Espero que não tenha terminado a visita toda sem mim…

Verena manteve a expressão serena, apertando a mão da colega com força medida:

— Lira… seria imperdoável privá-la de apreciar o que ajudou a construir… — a pausa foi cirúrgica, com o olhar penetrante. — Ainda estamos no meio da visita técnica. Sua presença, como sempre, abrilhanta o ambiente.

Lira soltou uma breve risada, inclinando levemente o rosto.

— Ah, não precisa exagerar… Só faço o que posso, embora… — lançou um olhar rápido para a repórter da Ponte —… uns e outros se apropriem mais da autoria do que eu gostaria.

O assessor de Lira soltou um pigarro discreto. Rafaela apenas cruzou os braços, se posicionando ao lado de Verena, como quem diz: “a sua hora, amiga”.

Verena nem piscou:

— Ah, mas o crédito… — inclinou-se levemente, sem perder o tom suave —… deve sempre acompanhar a responsabilidade, não? Especialmente quando se trata de fiscalizar a aplicação das emendas.

Lira estreitou os olhos, sem perder o sorriso.

— Sempre tão meticulosa, Castilho… é o que admiro em você. Não deixa passar uma vírgula.

Verena soltou um meio sorriso, ajeitando a manga da camisa:

— Com dinheiro público? Nunca. Você sabe… o povo não perdoa desvios.

Pausa.
A repórter da Agência Ponte não perdeu uma palavra, e o gravador seguia em riste.

Lira inclinou-se ligeiramente, como quem confidencia:

— Nem sempre é sobre desvios… às vezes, é sobre quem grita mais alto.

Verena então cravou os olhos nela, sem desviar nem um centímetro, e respondeu no mesmo tom baixo, mas tão frio quanto o ar condicionado:

— E às vezes… é sobre quem trabalha mais, enquanto outros só aparecem na hora da foto.

Rafaela, do lado, soltou aquele sorrisinho discreto, típico de quem viu a lâmina entrando. Lira endireitou-se, puxou o ar, sorriu para os fotógrafos e virou-se para a coordenadora:

— E então? A apresentação das crianças já terminou ou ainda podemos assistir?

Verena, rápida:

— Estamos indo para os laboratórios. Pode nos acompanhar, se quiser.

Lira, num movimento ensaiado de gentileza:

— Não… podem seguir. Prefiro conversar um pouco com a direção primeiro. Não gosto de visitas apressadas…

E então, enquanto Verena e sua comitiva retomavam o caminho, Rafaela se aproximou só um pouco, murmurando no ouvido da amiga:

— Meu Deus… foi seco, cirúrgico e impecável. Essa é a Verena que eu conheço.

Verena não sorriu. Apenas ajeitou a gola do blazer e respondeu, num sussurro frio:

— Política não é sobre ser simpática, Rafa… É sobre não deixar dúvidas sobre quem manda.

E então, sem olhar para trás, seguiu firme, sendo acompanhada pela comitiva que parecia até pisar mais forte depois da troca.

O gravador da repórter da Agência Ponte?
Ainda ligado…
E a pauta?
Ganhando novos tons.

Corredor do Bloco B – Instituto Paulo Freire – 12h30

A comitiva da deputada Verena seguia agora para o último compromisso oficial da visita: a inspeção do Laboratório de Tecnologias Sociais, espaço recém-reformado com recursos da emenda parlamentar.

O grupo avançava pelos corredores estreitos, ladeados por murais coloridos produzidos pelos alunos, que contrastavam com os trajes formais da equipe: ternos ajustados, saltos discretos, gravatas bem postas.

Verena caminhava à frente, ladeada pela coordenadora do Instituto e por Rafaela, que, apesar do tom mais discreto, mantinha o olhar atento a cada movimento, cada possibilidade de abordagem da imprensa ou da equipe rival.

Logo atrás, discretamente posicionado, vinha Fábio — o estagiário que Rafaela escolhera pessoalmente para integrar a comitiva, num gesto calculado para manter tudo sob rédeas curtas. O rapaz carregava uma pasta com planilhas, dados e cópias das prestações de contas enviadas à Alesp, além de um tablet com a programação da manhã. O olhar atento, os passos ajustados à velocidade do grupo.

Fábio virou-se ligeiramente para a colega de comunicação, que coordenava a cobertura oficial para o site da Alesp, e fez um sinal discreto: tudo conforme o previsto. Rafaela percebeu e só confirmou com um leve aceno de cabeça, satisfeita. O plano de manter a comitiva coesa e tecnicamente impecável seguia firme.

Chegaram.

A coordenadora parou à porta do laboratório, que ostentava uma nova placa metálica:
“Laboratório de Tecnologias Sociais – Projeto financiado por Emenda Parlamentar”.

Ela abriu com uma chave especial, como quem revela um segredo:

— Por aqui, deputada…
— Por favor — respondeu Verena, com aquele sorriso político que conhecia bem o peso das fotos que seriam feitas ali.

Entraram.

O espaço era amplo, recém-pintado, com bancadas de madeira clara, tomadas embutidas e dezenas de notebooks organizados em fileiras. No fundo, dois painéis interativos e estantes com kits de robótica e materiais de baixo custo para experimentações.

O professor responsável aproximou-se, ajustando os óculos e segurando uma prancheta:

— Sejam bem-vindos! Gostaria de apresentar brevemente o funcionamento do laboratório.

Verena assentiu, as mãos unidas à frente do corpo, postura ereta, profissional:

— Por favor, professor. Esse é um dos pontos centrais da nossa vinda aqui hoje.

O professor então iniciou a explanação, falando sobre as oficinas de inclusão digital, os cursos de programação para jovens do bairro e as parcerias com universidades.

Enquanto isso, Fábio se aproximou discretamente de Rafaela, falando baixo, para não interferir:

— Eu trouxe os relatórios de frequência e os gráficos atualizados, se ela quiser ver.

Rafaela inclinou-se, olhou rapidamente os documentos e sussurrou:

— Deixa comigo. Se ela pedir, eu sinalizo.

Fábio assentiu e voltou a se posicionar.

Verena ouviu com atenção o professor e, ao final, fez duas perguntas bem objetivas sobre a manutenção dos equipamentos e a formação continuada da equipe — ambas calculadas para reforçar sua imagem de parlamentar técnica e rigorosa.

A coordenadora respondeu, destacando o impacto positivo e agradecendo o repasse da emenda.

O fotógrafo oficial da escola clicou mais algumas imagens.

Ao sair do laboratório, Rafaela puxou de leve a manga do blazer de Verena e, num sussurro, comentou, com aquele humor ácido:

— Só faltou estenderem um tapete vermelho de LED.

Verena não respondeu, mas o canto da boca denunciou um quase sorriso.

Fim do laboratório.

Ao cruzarem novamente o pátio, a coordenadora os informou, apressada:

— Deputada… a comitiva da Lira acabou de entrar no laboratório de ciências… e a repórter da Ponte está com ela.

Verena apenas fez um leve movimento afirmativo com a cabeça, sem alterar o ritmo.

Rafaela inclinou-se, com aquele tom que só ela conseguia manter entre sarcasmo e estratégia:

— Vai querer mais uma foto conjunta ou seguimos para o encerramento?

Verena, ajustando a gola do blazer:

— Já demos o espetáculo necessário… Agora, só o indispensável.

E seguiu, com a comitiva atrás, passos sincronizados, deixando no ar aquela atmosfera pesada, invisível, mas perceptível até pelas crianças que, indiferentes, jogavam bola no pátio ao fundo.

Instituto Paulo Freire — Espaço reservado para o Coffee Break | 13h15

A comitiva foi conduzida ao salão multiuso, um espaço adaptado com mesas retangulares cobertas por toalhas brancas impecáveis, arranjos discretos de flores artificiais e bandejas estrategicamente dispostas. Havia mini sanduíches em pães variados — ciabatta, integral, francês — cortados em triângulos perfeitos, pequenos quiches de alho-poró, bolinhos de queijo e, claro, os infalíveis folhados de presunto e mussarela. Ao lado, copos de vidro grosso e jarras translúcidas com sucos: laranja, uva e um chá gelado levemente adocicado. As garrafas térmicas de café e leite vaporizavam discretamente, tentando criar um ar sofisticado, mas entregando o típico esforço das escolas públicas em dias de visita oficial.

Verena se aproximou da mesa, o blazer cinza perfeitamente alinhado ao corpo, os saltos baixos — escolha estratégica para aguentar o dia — fazendo eco sutil no piso de linóleo. Passou os olhos rapidamente pelas opções, enquanto Rafaela, mais atrás, cruzava os braços e sorria discretamente ao ver a amiga medir, com um ar quase clínico, cada item.

— Parece que capricharam… — comentou Rafaela, em voz baixa, ao se aproximar, pegando um copo d’água.

Verena soltou um riso curto, quase inaudível.

— O protocolo manda — respondeu, escolhendo um quiche pequeno e uma taça de chá. Evitou o café, sabia que o estômago não estava nas melhores condições.

Os funcionários da escola e da Secretaria de Educação rondavam pelas beiradas, preocupados em atender qualquer necessidade. O diretor, com um sorriso ansioso, fez questão de reforçar:

— Deputada, fiquem à vontade. Se precisarem de mais alguma coisa, é só avisar.

Verena inclinou levemente a cabeça, num aceno elegante.

— Obrigada. Está tudo muito bem organizado.

Enquanto mordiscava o quiche, seu olhar se fixou em Fábio, postado discretamente mais ao fundo, revisando no tablet algumas informações sobre a emenda e o cronograma do Instituto. Rafaela seguiu o olhar da amiga e murmurou:

— Ele está bem. Tá substituindo bem a sua queridinha…

Verena ergueu uma sobrancelha, mas manteve a compostura.

— Não comeca… — cortou, ajustando a manga da camisa social.

Do outro lado da sala, a equipe da Agência Ponte se movimentava, fazendo imagens de apoio do ambiente. Verena percebeu, de soslaio, a repórter ajeitando o gravador e o fotógrafo ajustando a lente. Não perderia a oportunidade de captar cada detalhe, mesmo do coffee break.

Rafaela notou o olhar da amiga e se inclinou discretamente:

— Quer que eu vá sondar?

Verena respirou fundo, pegando mais um pedaço de folhado.

— Não agora. Deixa eles se entreterem com a paisagem— Fez uma pausa e complementou, com um sorriso enviesado: — Esse é o momento em que finjo ser “gente como a gente”.

Rafaela soltou uma risada abafada.

— Tá se saindo bem… Só não exagera no quiche.

Verena revirou os olhos, mas permitiu-se um meio sorriso. A tensão era inevitável, mas ela sabia manejar o próprio papel. Não comeria mais — manter a compostura fazia parte da encenação.

Ao fundo, um servidor da Secretaria anunciou:

— Em cinco minutos, seguimos para o auditório dos grêmios, conforme programado.

Verena assentiu, afastando-se da mesa.

— Vamos — ordenou à equipe, o tom controlado, mas firme.

Enquanto caminhavam para o auditório, o fotógrafo da Ponte se apressou para acompanhar, e Verena fez questão de manter o perfil erguido, o passo seguro, como quem não teme exposição alguma.

Auditório do Instituto — Roda de conversa com os Grêmios Estudantis | 13h45

As cadeiras foram organizadas em um semicírculo, deixando o centro livre para a circulação das perguntas. Cerca de vinte estudantes estavam presentes, com camisetas estampadas com o nome dos grêmios e um misto de ansiedade e empolgação no rosto. Alguns seguravam folhas com perguntas anotadas; outros apenas esperavam a oportunidade de falar.

Verena entrou com a equipe, fez um gesto para que os assessores e Rafaela se posicionassem discretamente ao fundo, e caminhou até uma das cadeiras dispostas no círculo, sentando-se como uma entre os demais, como havia determinado.

— Bom dia a todos — começou, cruzando as pernas e apoiando os antebraços sobre os joelhos, num gesto informal, mas de domínio absoluto do espaço. — Como eu pedi à organização, essa não é uma mesa, nem um púlpito. É uma conversa. Quero ouvir vocês.

Um breve silêncio, antes que a primeira mão se levantasse.

— Deputada, qual a sua avaliação sobre o impacto da emenda que destinou recursos ao Instituto? — perguntou uma menina de cabelo trançado, voz segura.

Verena inclinou levemente a cabeça, reconhecendo a habilidade da pergunta.

— Ótima questão. O impacto não se mede apenas pelo valor repassado, mas pela capacidade que vocês, como comunidade escolar, têm de transformar esse recurso em ação concreta. O projeto da biblioteca digital e da mediação de conflitos, que acabamos de conhecer, são exemplos vivos disso. Mas também estou aqui para saber: o que ainda falta?

Um rapaz, mais ao fundo, pegou a palavra.

— Falta segurança no entorno da escola. Não adianta ter laboratório novo se a gente tem medo de sair da aula.

Verena assentiu, o semblante agora mais grave.

— Essa é uma pauta que extrapola as verbas parlamentares. Mas levo comigo esse apontamento e me comprometo a abrir diálogo com a Secretaria de Segurança. Não posso prometer soluções imediatas, mas posso garantir que será ouvido.

Outro aluno, de cabelos encaracolados, ergueu a mão.

— E o projeto de esportes? A senhora acha que também pode ser contemplado numa futura emenda?

Verena sorriu de canto.

— Pode e deve. O esporte é ferramenta de inclusão e formação cidadã. Mas para isso, preciso de dados, de projetos bem estruturados. Sugiro que seus grêmios se organizem e me enviem uma proposta oficial. A porta está aberta.

Enquanto respondia, percebeu Rafaela ao fundo, os braços cruzados e um leve sorriso, quase imperceptível, de quem admirava silenciosamente a habilidade da amiga em comandar aquela arena sem parecer que o fazia.

Mais perguntas surgiram: sobre acessibilidade, sobre internet de qualidade, sobre bolsas de estudo. Verena respondeu a todas, ora com firmeza, ora com empatia, sempre calculando o tom, a expressão, os gestos.

Ao final, levantou-se, ajustou o blazer e concluiu:

— Obrigada por me receberem. Continuem se organizando, se mobilizando. São vocês que transformam este espaço. E nunca deixem que digam o contrário.

Um breve aplauso, misto de respeito e gratidão.

Enquanto a comitiva começava a se mover em direção ao próximo compromisso, Verena lançou um olhar rápido para Rafaela, que, ao se aproximar, soltou num sussurro:

— A velha Verena. Sabia que você não desapontaria.

Verena ergueu a sobrancelha, satisfeita.

— Nunca desaponto.

E, sem mais, seguiu, pronta para o próximo embate.

ALESP — Entrada principal e Corredor do Térreo | 15h15

O sol da tarde refletia nos vidros espelhados da fachada da Assembleia Legislativa, espalhando manchas quentes pelo piso de granito da calçada. Valentina caminhava com passos lentos, cabeça baixa, os fones de ouvido enfiados, mas sem música tocando — só o silêncio abafado de quem preferia isolar-se do mundo naquele instante.

Estava atravessando a faixa de pedestres, pronta para entrar pela lateral do prédio, quando sentiu o deslocamento de ar de um veículo passando rente ao seu lado. Uma van prata, nova, de vidros escuros, deslizou silenciosa pela rua, tomando a frente e dobrando suavemente para a entrada do estacionamento do térreo. Atrás dela, um carro preto, sóbrio, de placas oficiais, fez o mesmo movimento.

Valentina franziu a testa, automaticamente acompanhando com o olhar, mas logo desviou. Não deu muita importância. Achou a van bonita — não sabia muito de carros, mas reconhecia quando algo era acima do padrão — e apenas notou que o motorista havia passado educadamente, sem aquela típica pressa agressiva de São Paulo.

Suspirou e apertou os braços contra o corpo, atravessando para a calçada e entrando pela porta de vidro automática da ALESP.

Corredor térreo — ALESP | 15h22

Assim que pisou no saguão, notou o movimento anormal. O ambiente, geralmente ocupado por alguns seguranças, servidores espalhados e funcionários de gabinetes indo e vindo, estava agora densamente preenchido. Gente engravatada, algumas mulheres de ternos bem cortados, outros com crachás dependurados no pescoço, conversavam entre si, checando celulares e pastas. Aquele típico burburinho pós-visita: cumprimentos apressados, agendas sincronizadas, relatórios frescos sendo compartilhados.

Valentina reconheceu alguns rostos: assessores, gente da comunicação, um ou outro segurança mais conhecido. Entendeu rapidamente: alguma comitiva acabava de chegar ou de retornar.

Preferiu parar. Encostou-se sutilmente à parede fria, próxima a um dos pilares laterais, e ficou ali, discreta, esperando que a massa humana passasse, organizando-se nos elevadores ou se dispersando pelos corredores.

Enquanto esperava, ajeitou a alça da mochila no ombro e baixou ainda mais a cabeça, com aquele cansaço típico de quem já não sabe mais onde termina o sono atrasado e começa o peso emocional.

Então, no meio do fluxo, ela viu.

Verena.

A silhueta surgiu primeiro, destacando-se automaticamente do resto. O blazer cinza, perfeitamente ajustado ao corpo, a calça social que alongava ainda mais a postura altiva, os cabelos soltos, lisos, brilhando sob a luz branca do teto. A bolsa de mão discreta, segura com elegância, e o andar firme, que não era apressado, mas decidido. Acompanhava o grupo, mas parecia andar acima dele. Imponente, inalcançável.

Valentina ficou imóvel.

Seu coração quase parou, como se o peito precisasse de mais espaço para processar aquela visão. O estômago apertou, revirou-se, e pareceu se transformar num borboletário desgovernado. As pernas endureceram, enraizando-a ao chão.

Verena seguia, aparentemente alheia à garota à margem, dando instruções rápidas a um assessor que caminhava ao lado, passando a mão pelos cabelos com um movimento elegante e automático. Era o retrato exato do que Valentina mais admirava — e temia.

Intocável.

Irretocável.

Linda, como sempre. Não precisava de esforço.

Valentina apertou os olhos, respirou fundo. O coração tentava ritmar, mas estava impossível. Uma alegria silenciosa e abafada invadia todo o corpo, como se a simples presença daquela mulher fosse suficiente para transformar o dia, pintar de cor algo que até então era cinza e opaco.

Mas, junto, vinha a culpa. Como um eco inevitável. Não podia sentir aquilo. Não devia. Depois de tudo... Depois do bilhete perdido, do susto, da bronca, do medo de ter estragado tudo.

E, mesmo assim… ali estava ela. Parada, com as mãos frias, os olhos fixos, apenas permitindo-se sentir, sem que ninguém soubesse, sem que ninguém pudesse julgar. Porque, mesmo com a vergonha, o amor platônico — ou seja lá o que fosse aquilo que fazia o coração disparar — era maior. E inevitável.

Verena seguiu pelo corredor, desaparecendo na dobra em direção ao elevador privativo. A comitiva foi se diluindo, cada um para o seu setor, deixando atrás apenas o rastro da elegância calculada e do poder silencioso.

Valentina soltou o ar devagar, fechou os olhos por um segundo e, quando abriu, percebeu que as pessoas já haviam passado. Endireitou a mochila no ombro, forçou um meio sorriso quase imperceptível e seguiu adiante.

O dia tinha acabado de ganhar outra cor.

Mesmo que ela não pudesse — ou não devesse — admitir isso para ninguém.

Sala de apoio dos estagiários — Final da tarde

O corredor ainda estava meio movimentado quando Verena cruzou por ele, com aquela postura imponente de quem acabara de liderar mais uma visita política impecável. Rafaela, ao lado, caminhava apressada, já destravando o celular para encaminhar o resumo da visita ao assessor jurídico.

— Rafa, encaminha aquele ponto da regulamentação da emenda, tá? E vê se eles já fizeram o parecer. Preciso disso amanhã cedo.

— Deixa comigo — respondeu Rafaela, digitando no celular. — E... a gente precisa conversar, você sabe... – Rafaela se referia a Benedito

Verena olhou para o relógio discreto no pulso. Pela hora, Valentina ainda devia estar ali.

— Só vou atender uma ligação. Resolve isso com o jurídico e aí falamos disso. — disse, numa calma ensaiada.

Rafaela assentiu e seguiu adiante.

Verena respirou fundo, ajeitou a lapela do blazer e, ao invés de seguir para a sua sala, desviou discretamente para a porta da sala de apoio.
Empurrou-a com naturalidade e, de repente, todos os estagiários que conversavam ou digitavam algo levaram aquele mini susto silencioso coletivo. O ambiente, antes barulhento, ficou imediatamente mais composto.

Valentina, que estava sentada em sua mesa, nem teve tempo de processar: viu apenas aquela figura alta, elegante, entrando suavemente, como quem só passava… mas os olhos, ah… os olhos de Verena foram direto nela.

— Boa tarde… — disse Verena, com aquele meio sorriso educado, olhando rapidamente para os outros, mas caminhando sem pressa até a mesa de Valentina.

A menina congelou.

— Valentina, me acompanha só um minuto...

— Claro… — respondeu, se levantando de imediato, ajeitando a blusa e pegando o caderno, quase por reflexo.

Verena não esperou. Apenas virou-se e caminhou na frente, com aquela postura impecável. Valentina apressou o passo para acompanhá-la.

Gabinete de Verena

Ao entrar, a deputada indicou, com um gesto suave da mão, a cadeira diante da mesa.

— Pode se sentar.

Valentina obedeceu, silenciosa, deixando o caderno sobre as pernas e apertando a caneta com força, enquanto Verena se posicionava do outro lado, pegando o relatório que estava sobre a mesa, ao lado do notebook.

— Eu dei uma olhada rápida no relatório que vocês começaram a compilar do último debate da comissão de educação… — começou, abrindo as folhas impressas.

Sentou-se com elegância, cruzando uma perna sobre a outra, e, com aquele olhar atento, ergueu o papel na altura dos olhos de Valentina.

— Está vendo essa tabela? — apontou com o indicador.

Valentina se inclinou um pouco para frente, tentando focar, mas sentindo o coração bater tão forte que parecia preencher a sala.

— Sim… — respondeu, num fio de voz.

Verena então colocou o papel sobre a mesa, girando-o levemente na direção da menina.

— Aqui, no impresso, fica mais difícil de visualizar. Esses alinhamentos e quebras de linha acabam prejudicando a leitura — explicou, passando a mão suavemente sobre o papel, acompanhando as linhas.

Depois, virou a tela do notebook na direção de Valentina, mantendo uma distância respeitosa, mas inclinando-se levemente, com aquele gesto técnico, preciso. Ela poderia muito bem ter só explicado e encerrado ali. Mas não.

Deu a volta, silenciosa, ficando atrás da cadeira de Valentina. A garota arregalou os olhos, ficou completamente imóvel, como se cada célula do corpo tivesse entrado em modo de emergência.

— Agora, olha na tela ... Olha… aqui, se você reorganizar assim… — começou a arrastar o cursor no touchpad, com delicadeza — … facilita a leitura, evita erro de digitação.

A voz dela soava grave, pausada, quase hipnótica. O perfume discreto, aquele aroma de elegância e poder, envolveu Valentina, que já não sabia nem onde estava.

 

— Entendeu? — perguntou Verena, num sussurro educado, mas tão próximo que Valentina sentiu um arrepio subindo pela espinha.

A jovem assentiu, mas a cabeça parecia um zumbido só. Não conseguia prestar atenção no conteúdo — só via o perfil de Verena, tão perto, a postura impecável, o tom de voz calmo, mas cheio de segurança.

— Uh… sim… — mentiu, sem ter processado nada.

Verena sorriu de canto, percebendo perfeitamente a confusão da menina, mas mantendo o papel profissional intacto. Por dentro, queria tanto… tanto… apenas soltar aquele teatro e puxá-la para si, abraçar, beijar, proteger, esconder do mundo.
Mas não podia. Não ali.

Recompôs a postura, se endireitou, ajeitando o blazer com aquele gesto preciso, clássico. E então pousou levemente a mão no encosto da cadeira, antes de se afastar.

— Só precisa ajustar isso no documento final antes de enviar, tudo bem?

— Tudo…

Fez-se um pequeno silêncio, mas não daqueles constrangedores — era carregado de tensão, daquele tipo que só quem já viveu sabe identificar. Verena respirou fundo, dando a volta, se sentando calmamente, cruzando as mãos sobre a mesa agora, e inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, como quem quebrava, por um segundo, aquela couraça profissional.

— Como você tá? — perguntou, simples, direta, mas com um tom tão humano que pegou Valentina desprevenida.

A menina demorou um segundo a responder, meio surpresa com a pergunta fora do protocolo.

— Eu… bem… acho que bem… — respondeu, mal se lembrando de respirar.

Verena sorriu de canto, aquele sorriso que nunca era gratuito, e completou, como quem apenas quer, discretamente, garantir:

— Precisa de alguma coisa?

Valentina negou, rapidamente, balançando a cabeça, mas sem ter muita certeza se era verdade. Verena então ajeitou o papel, guardou-o numa pasta, e recostou-se melhor na cadeira, assumindo novamente aquela postura mais formal.

— Ah… e só pra te avisar… nas próximas semanas vamos fazer a primeira avaliação do projeto — disse, ajustando o tom para o profissional novamente.

Valentina arregalou os olhos de leve, num reflexo involuntário.

— Avaliação?

— É — confirmou Verena, contendo o riso ao perceber o medo inocente que tomou conta da estagiária. — Mas calma… é só uma análise do andamento, nada punitivo. Só queremos entender o que está funcionando.

Valentina assentiu, mas o coração já estava em alerta máximo.

Verena, por dentro, mal conseguia conter a vontade de rir daquela expressão assustada, tão espontânea… tão dela. Queria poder dizer: “Relaxa… eu cuido de tudo… eu cuido de você”.

Mas não disse.

Ao invés disso, apenas fechou a pasta, se levantou com aquele movimento fluido, e caminhou até a estante, como quem encerrava a reunião. Virou-se então, com aquele olhar firme, mas carregado de algo que só Valentina conseguia perceber, mesmo sem saber nomear.

— Só isso mesmo, pode voltar, ok?

Valentina levantou devagar, pegou o caderno, e caminhou no automático até a porta, com o coração aos pulos, as mãos suadas e a cabeça girando, como se tivesse acabado de cair num abismo, mas com vontade de nunca mais sair. E saiu da sala flutuando, sem saber ao certo se tinha respirado nos últimos cinco minutos.

Ao ouvir o som da porta sendo fechada, Verena apenas sorriu, ao mesmo tempo em que uma culpa avassaladora a arrebatava. O risco ao qual acabou de correr ainda pulsava forte. Largou os papeis de qualquer jeito no armário e se recostou, as pernas cruzadas. Levou os óculos ao topo da cabeça, soltando um suspiro sôfrego e com aquele tom que só ela conseguia usar, disse baixinho, olhando na direção da porta, onde a poucos segundos, Valentina passara.

— Valentina... O que você faz comigo...

Mas Verena sabia. E o mais assustador, estava perdendo aquela guerra.

Fim do capítulo


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Comentários para 20 - De Volta Ao Jogo:
Sem cadastro
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Em: 23/05/2025

Verena precisava de injetar mais adrenalina nas veias. - Só tava faltando isso, por isso ela chamou Valentina. - Ela gosta de viver no limiar do perigo. - Deve gostar de se testar.Rsrsrs! 

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Em: 23/05/2025

Verena precisava de injetar mais adrenalina nas veias. - Só tava faltando isso, por isso ela chamou Valentina. - Ela gosta de viver no limiar do perigo. - Deve gostar de se testar.Rsrsrs! 

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Em: 23/05/2025

Verena precisava de injetar mais adrenalina nas veias. - Só tava faltando isso, por isso ela chamou Valentina. - Ela gosta de viver no limiar do perigo. - Deve gostar de se testar.Rsrsrs! 


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
Rssrsrs, ela gosta. Se não fro pra se arriscar, ela nem faz rsrs. Vamos ver até quando isso vai dar certo.


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Hanna28
Hanna28

Em: 23/05/2025

Doí-me te desejar e não poder gritar através desse amor que chega e queimar e me sufocar por dentro.

Te olhar como quem admira uma obra renascentista e não ter como arrematar para si

E viver me julgando por algo tão universal e que poucos conseguem de fato se entregar 

Nos meus breves pensamentos é onde finalmente vivemos este amor visceral sem preconceitos,sem pedras e dedos sendo erguidos como um lembrete que está relação é contra todas as leis divinas...

É exatamente assim que nossa doce Valentina se sente 


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
Nossa. Que profundo. Confesso que tive que ler mais de uma vez pra captar tudo, mas é exatamente isso. Dá uma pena dela.


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Hanna28
Hanna28

Em: 23/05/2025

Tão difícil domar esses leões que insistem em arrancar as grandes de onde os separam da carnificina...nesse caso,do animal enjaulado pedindo para sair e sentir o gostinho do que é ser livre


Ser você de fato 


Sem roupagens 


Sem teatros


Apenas sua forma mais crua


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
Seus comentários sempre poéticos e reflexivos. :)
Até difícil de comentar sem parecer simples demais.


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Zanja45
Zanja45

Em: 22/05/2025

Foi emocionante a cena em que Valentina constata que não pode declarar o amor que ela sente por Verena abertamente .- E o que acarretou isso foi precensiar o beijo que Carol deu em Rafael.


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
Foi um momento bem difícil. É bem complicado esse momento que a Valentina tá passando tadinha.


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Zanja45
Zanja45

Em: 22/05/2025

Não aguento essas duas, a briga dentro do gabinete está ficando feia. - Verena está matando Rafa de raiva. - E dando muito trabalho também. Rafa fazendo de tudo para elas não caírem e ela com esse cinismo todo. - Parece que dessa a amiga conseguiu colocar algum juízo na cabeça dela.


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
Parece. Mas vamos aguardar rsrs


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Zanja45
Zanja45

Em: 22/05/2025

Nossa, a avó de Verena foi uma referência para ela. - Que bom ela voltou as origens e lembrou de quem a apoiou para chegar aonde ela está agora.


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
Foi sim. A Verena ainda é uma caixinha de surpresa.


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Zanja45
Zanja45

Em: 22/05/2025

Tomara que Verena não desperdice essa chance que está tendo. Essa deputada é uma mulher bem sedutora, sabe usar esse magnetismo natural a favor dela. -  Silvia não teve como resistir.

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Zanja45
Zanja45

Em: 22/05/2025

Verena deixou a responsabilidade para cima de Rafa. - Mas também, ela já estava muito fudida e perder o apoio da mulher não seria nada bom.


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
Né. Não culpo ela, mas poxa, podia ter avisado também. Fico igual a Rafa quando alguém desmarca alguma coisa em cima da hora rsrs


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Zanja45
Zanja45

Em: 22/05/2025

Kkkkk! Verena arassa! Comprou alfajor para a mulher. ( Não sei o que é isso). Mas ela sabe como se chegar.

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Zanja45
Zanja45

Em: 22/05/2025

Kkkkk! Verena arassa! Comprou alfajor para a mulher. ( Não sei o que é isso). Mas ela sabe como se chegar.


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
kkkkkk, ela sabe como se desculpar rsrs.

Ah pois bem, então agora vai saber. Alfajor é como um sanduíche de biscoito com recheio de doce de leite (mais comum) kkkk. Basicamente são dois biscoitos, pode ser de maisena, com doce de leite entre eles e você cobre tudo isso com uma cobertura, normalmente com chocolate


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Zanja45
Zanja45

Em: 22/05/2025

Finalmente Verena tomou uma decisão sensata. - Acredito que ela vai comprar o pão e levar para Silvia. - Porque ela já sentiu que as coisas vão ser bem diferentes se ela for a esse encontro de trabalho.


anonimo2405

anonimo2405 Em: 25/05/2025 Autora da história
Finalmente né. Deu uma dentro rsrs


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