Fraquezas
Apartamento de Verena e Silvia – Cozinha, 08h12 da manhã
O céu ainda estava meio pálido atrás da cortina fina da cozinha. Um silêncio estranho preenchia a casa — o tipo de silêncio que vem depois de uma tempestade que ainda não foi embora por completo.
Silvia acordou com um leve incômodo no estômago. Olhou para o lado, a cama vazia. Fria. Suspirou, sentindo o peso do dia que mal havia começado pra ela. A saudade misturada à mágoa eram uma presença constante, sobretudo nos momentos em que apoiava a cabeça no travesseiro.
Desceu devagar, enrolada no robe. No corredor o silêncio imperava. Por um momento achou que Verena já tinha saído — como andava fazendo nos últimos dias. Mas então ouviu um barulho distante, leve. Como uma colher tocando uma xícara. Continuou devagar, passando pela sala vazia, a encontrando na cozinha.
Verena estava sentada sozinha à mesa, tomando um café preto forte, sem açúcar. Tão concentrada no próprio silêncio que nem viu a esposa chegar. O rosto levemente mais fundo, as olheiras discretas, mas marcadas. O cabelo solto caía pelos ombros de maneira despretensiosa. Mas havia algo nela que parecia... pequeno. Como se tivesse diminuído de tamanho nos últimos dias.
Silvia ficou ali, parada no batente da porta, observando sem ser notada. O coração apertou.
“Ela tá mais magra... Será que tá comendo direito? E essa camisa... toda amarrotada. Tá tudo largado.”
Por um instante, a vontade de fazer um café da manhã completo, de arrumar a roupa dela na cama, de cuidar... quase venceu. Mas Silvia segurou. Respirou fundo e ajustou a postura. Verena enfim notou sua presença. Não falou nada. Apenas levou a xícara à boca e terminou o café num gole só, como quem precisava apagar um incêndio interno.
Se levantou com uma calma ensaiada, caminhou até a pia e, ao colocar a xícara dentro, disse sem encarar a esposa:
— Deixa que eu lavo e seco depois.
Silvia engoliu em seco. Sentiu aquela dor familiar no peito — a mistura de amor, raiva e pena que andava carregando nos últimos meses. Queria responder. Dizer que não precisava. Que ela podia cuidar de novo, só um pouco. Só hoje. Mas não disse nada.
Verena passou por ela com o perfume discreto misturado ao cheiro do café. Nem olhou para trás. Apenas pegou a bolsa no encosto da cadeira e saiu, com os saltos batendo num compasso que parecia muito mais seguro do que ela realmente estava.
Silvia ficou ali. Sozinha na cozinha, com o coração ainda amarrado ao som daquela frase simples.
" Deixa que eu lavo e seco depois."
Ela sabia. Verena não estava falando da xícara.
Gabinete de Verena – ALESP, 10h47 da manhã
O gabinete estava silencioso, mas a tensão no ar parecia vibrar nas paredes. Rafaela entrou com uma pasta grossa em mãos, os cachos soltos caindo pelos ombros, a expressão mais contida que de costume. Verena, de pé junto à mesa, lia algo no celular. Trocou de aba, respondeu um e-mail, e só então olhou para a amiga.
— Instituto Paulo Freire, Sapopemba — anunciou Rafaela, deixando a pasta sobre a mesa com firmeza. — A visita tá confirmada pra quinta. Dez da manhã. Diretoria já foi avisada. Estão esperando a gente com o relatório trimestral e as prestações de contas da verba parlamentar do convênio 342/24.
Verena assentiu, pegando a pasta.
— Já escolheu o pessoal de apoio?
— Vou levar a Helena e o Fábio. E um dos estagiários. Tô pensando no Diego. Já tá no fim do curso, tem experiência. Consegue ler planilha e fazer perguntas decentes sem parecer juvenil.
Silêncio.
Verena folheou a primeira página, passou direto pra terceira, depois fechou a pasta.
— Troca o Diego. Vai a Valentina.
Rafaela demorou um segundo pra processar. Achou que tinha ouvido errado.
— Como é?
— A Valentina vai nessa visita. Pode avisar os outros. Quinta, dez horas. Ela vai comigo.
Rafaela deu uma risada seca, de puro choque.
— Verena... — Disse num tom quase sarcástico — Você não tá entendendo o tamanho do risco ou tá fingindo?
— Tô entendendo perfeitamente. E eu decidi.
— Você decidiu. — Rafaela cruzou os braços. — Claro. Porque agora as decisões técnicas viraram emocionais. A gente tá indo fiscalizar um instituto que recebe verba do seu gabinete. Vai sair na imprensa. E você quer levar uma adolescente por quem tá nitidamente envolvida. Isso não é só imprudente. É ridículo. Vai botar tudo a perder.
Verena respirou fundo, sem se mover. As palavras bateram forte, mas não deixaram marca visível.
— Rafa, você pode não concordar com as minhas escolhas. Mas eu sou a parlamentar. O mandato é meu. E se tiver que explicar isso pra alguém, eu explico. Não devo nada.
— E a ética, Verena? — Ela se aproximou um passo. — Você tá perdendo a noção do perigo. Isso não é mais só sobre uma garota. É sobre o que pode respingar em todo mundo. E se eu tiver que bater de frente com você, eu vou! Porque não vou ser conivente com isso. Já passou do limite.
Verena ficou em silêncio por alguns segundos. Depois andou até a própria cadeira, girou-a devagar e sentou com calma. Então, olhou para Rafaela com uma frieza concentrada.
— Se quiser bater de frente comigo, fica a teu critério. Mas é bom lembrar quem tá na ponta da mesa. E quem assina as ordens. A Valentina vai. E ponto final.
As duas ficaram se encarando. Pela primeira vez em anos, não era mais apenas uma diferença de opinião entre amigas. Era guerra anunciada. Rafaela deu um meio sorriso amargo. Não disse mais nada. Virou as costas e saiu da sala com os saltos batendo alto no piso, deixando um rastro de tensão impossível de ignorar.
Verena ficou sozinha. Reclinou-se um pouco na cadeira, apertou os olhos por um segundo como quem sente a cabeça pesar, e puxou a pasta de volta. Abriu novamente na terceira página, mas não leu. Só ficou ali, olhando para o vazio do papel. O coração batendo rápido, descompassado.
Ela sabia. Estava cruzando uma linha. E agora, não havia mais como voltar.
Sede estadual do Partido Progressista Democrático (PPD) – Avenida Paulista, 17h15
Rafaela aguardava sentada em uma das cadeiras estofadas da recepção. Evitava mexer no celular, mas estava inquieta. A bandeira do partido tremulava do lado de fora da grande janela, ao lado da bandeira da cidade de São Paulo. O nome no letreiro em letras douradas refletia no vidro: PPD – Diretório Estadual.
Ela havia agendado aquela conversa por telefone, com o gabinete do presidente estadual da sigla, Henrique Bastos, um veterano da política, conhecido por saber conter crises antes que respingassem em Brasília. O tipo de homem que não se envolve diretamente nas baixarias internas, mas que puxa o freio de mão quando a coisa ameaça sair na mídia.
— A doutora Rafaela? — chamou a secretária, abrindo a porta com discrição.
Ela se levantou com elegância, ajeitou a barra da camisa por dentro da calça social e seguiu para dentro da sala ampla, onde Henrique já estava sentado em sua poltrona giratória, diante de uma mesa de madeira rústica. As paredes tinham fotos com ministros, ex-presidentes e líderes de bancada.
— Pode entrar, Rafaela. Fique à vontade. — Disse, simpático, mas direto.
Ela sentou-se, cruzando as pernas.
— Agradeço o tempo, presidente. Eu sei que o senhor não costuma se meter em disputas de gabinete, mas essa questão pode passar disso.
Henrique apoiou os antebraços na mesa.
— Tô ouvindo.
Rafa respirou fundo.
— É sobre a Verena. Deputada Castilho. E a estagiária do gabinete dela.
Ele ergueu as sobrancelhas, mas não interrompeu.
— Há algumas semanas, ela vem tomando decisões que, do ponto de vista administrativo, estão colocando o mandato numa zona de vulnerabilidade. Cancelou uma troca interna de setor que já havia sido aprovada. E agora determinou que a estagiária a acompanhe numa visita oficial ao Instituto Paulo Freire, em Sapopemba — uma unidade conveniada com a verba de emenda da própria deputada.
— E qual é o problema prático disso?
— O problema é o contexto. A menina é menor de idade, ainda está no ensino médio. E a relação entre as duas... não é transparente, tem um vínculo familiar envolvido. Não é exatamente institucional. E se isso vaza — e vai vazar, porque ninguém segura esse tipo de coisa por muito tempo — a imagem do partido vai junto. Vamos parecer amadores. Pior: coniventes.
Henrique encostou-se na poltrona, pensativo.
— E você tá trazendo isso como...?
— Como assessora técnica de confiança da deputada. Mas também como filiada do partido. Eu não posso ser responsabilizada por omissão, presidente. Sei que a Verena é popular, articulada e carrega base jovem. Mas ela tá desestabilizada emocionalmente. Teve um vídeo íntimo vazado há pouco. O gabinete tá em chamas.
Henrique ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, levantou-se e foi até uma pequena bancada onde havia uma garrafa de água e copos. Serviu-se, pensativo.
— Você tá pedindo que eu interfira diretamente no mandato de uma deputada estadual eleita?
— Não, senhor. — Respondeu Rafa, mantendo o tom profissional. — Tô pedindo que o partido a lembre da institucionalidade que ela representa. E que isso aqui não é só sobre ela. Nem sobre essa garota. É sobre o projeto. A imagem da legenda. A bancada feminina. A pauta LGBTQIA+ que ela mesma ajuda a construir.
Henrique sorriu com o canto da boca, meio cínico, meio admirado.
— Você seria uma excelente deputada, Rafaela.
Ela não respondeu. Apenas cruzou os braços.
— Eu vou conversar com ela. Com tato. — Disse ele, por fim. — Numa ligação informal, de liderança pra liderança. Mas saiba: se isso virar público, ou se essa menina virar pauta negativa na imprensa... quem segura a crise somos nós. E aí, não vai ter blindagem que resolva.
— Era só isso que eu precisava ouvir.
Ela se levantou, apertou a mão dele com firmeza e saiu da sala como quem sabe que fez o necessário — mesmo que odiasse cada segundo daquilo.
Gabinete de Verena Castilho – ALESP, 18h40
O gabinete já estava mais vazio naquele fim de tarde. A maioria dos assessores havia ido embora, e só se ouvia o ruído distante de teclados e vozes abafadas dos corredores. Verena estava sentada à mesa, revisando a programação da visita ao Instituto Paulo Freire. Um copo de café frio ao lado. A cabeça pesando.
O celular vibrou discretamente, exibindo um número que ela conhecia: Henrique Bastos – Presidente Estadual PPD.
Ela encarou a tela por dois segundos. Não era comum receber ligações diretas dele. E quando acontecia, não era bom sinal.
Atendeu com o tom firme, ainda que profissional:
— Deputada Verena Castilho.
— Boa noite, Verena. É o Henrique. Tudo certo por aí?
Ela recostou-se levemente na cadeira.
— Dentro do possível, sim. A que devo a honra?
— Ah, nada demais. Só uma conversa entre colegas. Um aviso de quem acompanha tudo de perto.
Ela franziu os lábios, preparando-se.
— Estou ouvindo.
— Chegou até mim que você decidiu levar uma estagiária do gabinete — Valentina, se não me engano — pra uma visita técnica essa semana ao Instituto Paulo Freire, em Sapopemba.
Verena respirou fundo, tentando não deixar o incômodo vazar na voz.
— Sim. Estava na pauta da semana. É uma visita de fiscalização de repasse por emenda impositiva. Tudo dentro da legalidade.
— Claro, claro. Ninguém está questionando a legalidade. Mas você sabe tão bem quanto eu que legalidade não significa isenção de risco político. E há uma preocupação dentro do diretório sobre a percepção disso.
Ela apertou os dedos contra a mesa, buscando conter o ímpeto de interromper.
— Com todo o respeito, presidente, essa “preocupação” veio da Rafaela, não foi?
Henrique hesitou por um segundo — o que bastou como resposta.
— Olha, Verena. A Rafa é uma liderança promissora. Tem a confiança do partido e trabalha com você há anos. Ela não veio aqui pra criar intriga. Veio como alguém preocupado com a estabilidade do mandato. E com a imagem da bancada.
Verena levantou-se, caminhando lentamente até a janela. Olhou São Paulo lá embaixo, o céu já escuro, o barulho da cidade em outro ritmo.
— Eu construí essa porr* de mandato na raça, Henrique. Em três anos, levamos educação de volta pra escolas do extremo leste. Enfrentamos o agronegócio em audiência pública. Reabrimos centros culturais. E é agora, por causa de uma estagiária, que vão me colocar na fogueira?
— Ninguém está te colocando em nada, Verena. Só estou dizendo que talvez seja a hora de você recuar um passo. Pra não perder o controle da narrativa.
Ela virou-se, séria, fria.
— A narrativa é minha. Ainda é minha.
— Até que pare de ser. E você sabe como isso funciona. A imprensa cheira sangue. Um click aqui, um vídeo ali… e a próxima manchete não é sobre verba mal fiscalizada. É sobre conduta. É sobre ética pública. É sobre confiança partidária.
Verena apoiou as mãos na mesa, inclinando-se para frente, como se pudesse encarar o outro lado da linha.
— Eu tô sendo avisada ou enquadrada, presidente?
Henrique suspirou.
— Tô te estendendo a mão. Só isso. Pensa bem, Verena. O partido tá contigo. Mas até onde?
Silêncio.
— Agradeço o aviso. — Respondeu ela, com frieza. — Boa noite.
E desligou.
Ela ficou ali, por alguns segundos, olhando pro nada. As palavras dele ainda martelando na cabeça. Sentia o sangue quente correndo nas veias, o maxilar travado. Mas o que a deixava realmente possessa… era saber que tinha sido a Rafaela. Não a imprensa, não os adversários, não o acaso. A Rafa. A amiga de anos. A cúmplice de tantas lutas. A mulher que agora estava armando por dentro.
Verena puxou a cadeira com força, se sentou e, com o indicador firme, apertou o botão da linha direta do gabinete:
— Júlia? Chama a Rafaela na minha sala. Agora.
Gabinete de Verena Castilho – ALESP, 19h05
O botão da linha direta ainda pulsava em vermelho, sinalizando que a assistente havia recebido o pedido.
Verena esperava.
Com os cotovelos apoiados na mesa e as mãos unidas diante da boca, ela encarava o monitor do notebook sem realmente enxergar nada. Os ponteiros do relógio analógico da parede pareciam zombar dela, marcando o tempo com precisão cruel: dois minutos, três, cinco.
— Ela tá fazendo de propósito…
A porta finalmente se abriu. Rafaela entrou com passos firmes e lentos, usando o blazer vermelho que costumava vestir em dias de visita técnica — como se reafirmasse sua autoridade simbólica mesmo fora do plenário. Parou diante da mesa com um leve sorriso contido.
— Chamou?
Verena não respondeu de imediato. Só a encarou, como quem estuda o inimigo.
— Eu chamei você cinco minutos atrás.
— Eu tava terminando uma ligação. — Disse Rafa, com uma calma provocadora. — Achei que poderia esperar.
Verena se recostou na cadeira, cruzou os braços.
— Pois não pode.
A tensão pairou como fumaça espessa.
— Quer que eu sente? — Provocou Rafaela.
— Fica em pé mesmo. Vai ser rápido.
As duas sabiam que não seria.
Verena inspirou devagar, cada palavra saindo como lâmina:
— Recebi uma ligação agora há pouco. Henrique Bastos. Disse que você esteve com ele.
Rafaela não tentou negar. Apenas cruzou os braços também, espelhando a postura da chefe.
— Estive, sim. Informalmente. Como filiada, como militante, e como alguém que ainda se importa com esse mandato.
— Ah, claro. — Verena inclinou-se para frente. — Se importa tanto que resolveu subir direto pra direção estadual sem passar nem pela porta do meu gabinete.
— E se eu tivesse passado, Verena? Você me ouviria?
O silêncio gelado que se seguiu respondeu por ela.
Rafaela avançou meio passo.
— Você tá perdendo o controle, e tá arrastando tudo com você. Eu fui lá porque, se der merd*, não é só seu nome que vai estar em jogo. É o da bancada. O da legenda. O meu, porr*. E diferente de você, eu ainda quero estar aqui no ano que vem.
— E eu não? — Rebateu Verena, com a voz baixa e tensa. — Eu tô aqui tentando salvar uma pauta, um projeto, uma linha de atuação social real. E o que você faz? Corre pra pedir a cabeça de uma estagiária.
— Não é sobre a Valentina!
— Não fode, Rafaela!
Foi a primeira vez que a voz subiu. Baixo, firme, mas cortante como um estalo.
Verena se levantou devagar. Caminhou até a lateral da mesa, parando diante da amiga. O blazer escuro caía com elegância sobre os ombros magros. Os olhos estavam vermelhos — de cansaço ou de raiva, era impossível saber.
— Você foi covarde. Não me procurou. Não pediu reunião. Não apontou um problema. Foi lá, plantou dúvida e lavou as mãos. E agora vem aqui posar de preocupada?
Rafaela manteve a postura.
— Eu tentei, Verena. Várias vezes. Você se fechou. Se blindou naquela menina como se ela fosse solução pra alguma coisa. Como se ela fosse… não sei o quê, caralh*. E todo mundo tá vendo. Só você que não quer admitir.
Verena se aproximou ainda mais. As duas estavam a menos de um metro de distância.
— Cuidado com o que você insinua.
— Você que devia ter tido cuidado, Verena. — Disse Rafa, mais baixo, agora sem ironia. — Porque não importa o quanto a gente tente manter a ética aqui dentro. O mundo lá fora não quer saber do que você sente ou deixa de sentir. Ele vai te devorar na primeira oportunidade.
— Eu tô ciente do risco. — Respondeu Verena. — Mas quem responde por mim sou eu. Eu sou a titular desse mandato. Sou eu quem assina. E sou eu que decido quem entra e quem sai. Se quiser confrontar, confronta. Mas assume. Porque se é guerra que você quer…
Fez uma pausa. O silêncio pesava como chumbo.
— …então pode se preparar, Rafaela. Porque a partir de agora, quem joga sem luva aqui dentro sou eu.
Rafaela segurou o olhar por um segundo, como quem ainda decidia se valia a pena dizer mais alguma coisa. Mas então recuou um passo, ergueu o queixo e, num tom quase formal, respondeu:
— Então boa sorte, deputada.
Virou-se e saiu, sem bater a porta.
Verena ficou ali, respirando fundo, sozinha, com a respiração pesada. O relógio marcava 19h27. Estava oficialmente em guerra com a única pessoa que conhecia todos os seus segredos políticos… e parte dos pessoais também.
Casa dos Moraes — Final de tarde
O portão rangeu quando Valentina o empurrou com o ombro. O cheiro de alho e cebola refogados a recebeu como um abraço antigo. Estava exausta, mas os sons familiares — a risada abafada de Isadora, o barulho da panela de pressão — a faziam sentir que, ali, pelo menos, o mundo era mais simples.
— Ô minha filha, tava ficando preocupada já — Disse Ana Paula, saindo da cozinha com as mãos ainda molhadas de sabão. — Janta primeiro, depois você toma banho, se não vai esfriar. Anda, vai lavar as mãos que sua irmã já tá terminando o suco.
Valentina deixou a mochila no canto da sala e foi direto pro banheiro. Estava pálida, mas ninguém reparou — ou, se repararam, preferiram não comentar. Voltou pra cozinha e viu a mesa pronta com o de sempre: arroz, feijão, frango cozido e farofa. Isadora já estava com o garfo na mão, toda impaciente.
Luiz já se sentava à cabeceira, ajeitando a cadeira.
— Bom, todo mundo com fome, vamos fazer a oração então, né Isa? — Disse ele, com um sorriso cansado.
As mãos se uniram. Carlos, como sempre, conduziu:
— “Senhor, obrigado por mais esse dia. Pela força, pela saúde e por mais um prato cheio. Abençoa nossa casa e nossa família. Dá sabedoria pra gente continuar firme e que a gente nunca perca a fé. Amém.”
— Amém! — Repetiram todos.
O jantar aconteceu com a leveza de sempre. Isadora contou sobre a aula de artes, Ana Paula comentou que lavou as cortinas e falou que queria muito fazer o tal bolo de cenoura pro fim de semana. Valentina riu em alguns momentos, mas sua cabeça ainda girava entre lembranças e preocupações.
Depois do jantar, ela ajudou com a louça, tomou banho e foi pro quarto. Isadora dormia pesadamente. Mai tarde, quando sentiu vontade de ir ao banheiro no meio da noite, levantou devagar e seguiu no escuro, tateando as paredes.
Foi ao sair do banheiro que escutou as vozes na sala. Baixas, tensas.
— Ana... eu fico pensando, será que a gente tá certo de deixar a Valentina nesse estágio?
A voz do pai veio contida, mas firme. Ana Paula respondeu quase em sussurro, sentada no sofá, ambos bem próximos. A luz azulada e trêmula da televisão, quase em mudo, iluminando os rostos cansados.
— Carlos, ela quis. E ela tá indo bem. A menina voltou com os olhos brilhando, você viu no começo. Agora que tá mais cansada, sim, eu percebo… mas é coisa da idade também. Ela não tá sendo forçada a nada.
— Eu sei. Mas é que... é coisa pesada, Ana. Ela mexe com documento de político, vai pra dentro de gabinete, tá no meio de rolo de gente grande. É responsabilidade demais pra uma menina de dezesseis anos. Eu queria que ela tivesse só preocupada com a prova de matemática. Ela é só uma menina… você viu hoje. Voltou pálida, nem quis falar nada. Não tá certo isso. É muita pressão.
— E você acha que eu não penso nisso todo dia?
Ela deu um suspiro longo, dolorido.
— Mas a gente nunca foi de podar as meninas. A Valentina sonha alto. E se a gente começar a duvidar dela agora… quem é que vai acreditar depois?
Carlos coçou o rosto com a palma da mão, suspirando também.
Valentina parou no corredor, imóvel.
Sentiu o peito apertar de um jeito diferente. Não era culpa — era um amontoado de amor, dor, e aquela sensação de que talvez… só talvez… ela não estivesse tão sozinha quanto imaginava.
Voltou devagar pro quarto. Deitou. Olhou o teto. E entendeu que era por eles que ela queria continuar. Por eles, e… talvez, por alguém mais.
Apartamento de Verena e Silvia — Noite
A porta foi aberta com o menor ruído possível. A chave girou, o trinco cedeu, e Verena entrou devagar. A sala estava escura, exceto pelo reflexo azulado da televisão desligada, onde ainda piscava um standby vermelho. Tirou os sapatos ali mesmo, sem acender as luzes. Conhecia o caminho até a cozinha de olhos fechados.
Do corredor, uma fresta de luz escapava pela parte inferior da porta do quarto do casal — Silvia ainda estava acordada.
Mas não haveria troca de palavras naquela noite.
Verena caminhou até a cozinha com o corpo moído, os ombros curvados e a cabeça ainda girando de tudo o que acontecera no dia. Abriu a geladeira numa lentidão quase mecânica. Tirou um pote de geleia de morango, um saquinho com três fatias de pão de forma e empurrou a porta com o quadril.
Não havia mesa posta. Apenas uma toalha desgastada no balcão americano, onde ela apoiou tudo sem paciência. Pegou uma faca, passou a geleia direto no pão, sem torrar, sem esquentar, sem se importar.
Estava sem fome, mas algo precisava ficar dentro do estômago. O último “almoço” tinha sido um café preto e duas bolachas no gabinete.
Mastigou devagar, olhando pro nada. Nem terminou o segundo pão. Jogou fora a última mordida, lavou as mãos e caminhou direto pro quarto de hóspedes. Não escovou os dentes, nem tirou a calça justa.
Apagou a luz e deitou de lado, com o braço embaixo da cabeça, o rosto voltado pra parede branca. O celular piscou com notificações ignoradas. Fechou os olhos. O silêncio da casa parecia amplificar tudo o que havia dentro dela.
Apartamento de Verena e Silvia — Madrugada
Silvia estava deitada, de olhos abertos, com a cabeça no travesseiro e o celular apagado ao lado. O tic-tac do relógio redondo na parede a incomodava, mas não tanto quanto a saudade. Ela respirou fundo e virou para o lado.
Foi então que ouviu.
Primeiro, um gemido abafado. Depois, um barulho inconfundível: o som seco e intermitente de alguém vomitando. Se sentou na cama de imediato. O coração disparou, um pânico contido em sua respiração.
— Verena? — Chamou baixo, sem resposta.
Calçou os chinelos e pegou o robe. Abriu a porta do quarto com cuidado, como se temesse encontrar algo que preferia evitar. O corredor estava escuro, mas uma luz fraca escapava pela fresta da porta entreaberta do banheiro social.
Outro vômito. Mais alto. Mais seco.
Silvia apressou o passo. Chegou à porta e empurrou devagar.
A cena a travou por um segundo: Verena estava ajoelhada no chão frio, uma mão segurando a borda da privada, a outra no abdômen. Suada, pálida, os cabelos grudados nas têmporas.
— Verena?! — Exclamou, entrando de vez.
A deputada não conseguiu responder. Apenas levantou o olhar por um instante, antes de baixar a cabeça de novo e soltar mais um jato de vômito.
Silvia ajoelhou-se ao lado dela imediatamente, sem pensar. Uma das mãos foi direto às costas da esposa, subindo e descendo devagar, num movimento instintivo. A outra afastou os cabelos da testa.
— O que você tem? Você comeu alguma coisa estragada?
Verena gem*u, o rosto lavado de suor, tentando responder:
— Eu… não sei… acho que foi o pão… ou… não sei…
Silvia pegou papel higiênico e passou com delicadeza pelo canto da boca da esposa. Depois puxou a lixeira pra perto e procurou alguma sacolinha pra eventual emergência.
— Você tá gelada, Verena. Sua mão tá tremendo.
— Tô com dor… — Murmurou, tentando se sentar no chão, encostada à parede.
— Vou buscar água e um remédio pro enjoo. Fica aqui. Não se mexe.
Silvia se levantou às pressas. Foi até a cozinha, pegou uma garrafinha de água gelada e voltou com um plasil que achou na farmacinha da casa. Verena tentou beber, mas tossiu ao engolir.
Silvia, então, a ajudou a levantar devagar e a levou até o sofá da sala, segurando-a pela cintura.
— Você tá se alimentando direito?
Verena respondeu com um silêncio culpado.
Silvia suspirou, sentando-se ao lado dela, os olhos fixos na expressão abatida da mulher que conhecia tão bem. Não disse mais nada. Apenas passou a mão nos ombros dela com cuidado.
A raiva que sentia não apagava o carinho que ainda morava em suas mãos.
Verena fechou os olhos, encostando a cabeça no encosto do sofá.
— Obrigada… — Sussurrou.
Silvia apenas assentiu, olhando pra ela. E naquele momento, não eram deputada e advogada, não eram inimigas. Eram duas pessoas que já se amaram demais, e que talvez ainda amassem, cada uma a sua maneira.
Apartamento de Verena e Silvia — Madrugada Avançada
Silvia não dormiu. Continuava sentada no sofá da sala, com os cotovelos apoiados nos joelhos, olhando para o corredor escuro. A garrafa de água, quase vazia, repousava no chão ao lado. A luz baixa da luminária deixava o ambiente com um tom amarelado, cálido, contrastando com o frio que parecia emanar do resto da casa.
Passaram-se quase quarenta minutos desde que Verena caiu no sofá. E agora, o silêncio havia voltado — mas Silvia não sentia alívio. Sentia um peso no peito.
Levantou-se devagar. Foi até o quarto de hóspedes. Ao abrir, a primeira coisa que a atingiu foi o cheiro. Whisky barato, cigarro, e comida velha de delivery. A luz do abajur estava acesa, revelando um cenário desolador: sacolas de iFood abertas sobre a escrivaninha, um copo com gelo derretido ao lado de uma garrafa pela metade. Bitucas de cigarro num prato de sobremesa. Roupas jogadas sobre a mala que entregara a ela alguns dias antes. O blazer pendurado de qualquer jeito na maçaneta da porta.
Silvia deu um passo pra trás.
Um enjoo a invadiu, não pelo cheiro, mas pela imagem.
Foi nesse momento que entendeu. Que sentiu o tamanho da queda.
Silvia fechou os olhos por um segundo e respirou fundo. Quando os abriu, não tinha mais espaço pra orgulho. Voltou para a sala decidida.
— Vê… — Falou baixinho, se ajoelhando ao lado da esposa. — Vamos pro nosso quarto, tá? Aqui não dá. Não assim.
Verena resmungou, tentando levantar a cabeça.
— Tô bem… só preciso... dormir…
— Você não tá bem. Olha pra você. Vem. Me ajuda a te ajudar.
Silvia passou o braço por baixo das axilas da esposa e começou a erguê-la com esforço. Verena cambaleou, tentou se apoiar, mas os joelhos falharam.
— Respira, isso… — Sussurrou Silvia, suando frio com o esforço.
No caminho, quase na porta do quarto delas, Verena vomitou de novo, agora diretamente no chão de madeira clara.
Ela tombou pra frente, e Silvia a segurou com o corpo.
— Merda… — Gem*u, encostando a testa na parede, os olhos fechados.
— Ei… não tem problema. — Silvia segurou o corpo da esposa antes que ela caísse. — Eu tô preocupada com você, não com o chão.
Silvia segurou firme, ajudando a esposa a se deitar na cama de qualquer jeito. O corpo mole, exausto. A pele gelada. Os olhos fechados, a respiração curta.
Sem pensar duas vezes, foi até o armário, pegou um moletom limpo. Voltou ao quarto e sentou-se ao lado da esposa. Primeiro, desabotoou os dois primeiros botões da camisa social, afrouxando o colarinho. Depois, com cuidado, ajeitou as meias e retirou a calça pesada. Vestiu-a com um moletom leve, de algodão, como fazia tantas vezes antes, quando ela chegava tarde de alguma viagem.
Verena não reagia. Apenas respirava como alguém que não tinha mais energia pra existir. Silvia correu para o banheiro. Pegou uma toalha pequena, álcool, um pano limpo. Molhou o pano com álcool e passou com delicadeza nas têmporas da esposa. Depois, na nuca, na testa, atrás das orelhas. O cheiro do álcool preenchendo o ambiente parecia limpar tudo, exceto a dor.
— Não vou deixar você assim, Vê. Nem que eu tenha que esquecer tudo por uma noite.
Verena mal abriu os olhos, apenas deixou escapar um suspiro.
Silvia ficou ali. Sem falar. Sem pensar no amanhã. Só cuidando. Como quem ainda ama, mesmo que não queira mais.
Apartamento de Verena e Silvia — Manhã seguinte
O quarto estava envolto num silêncio ameno, cortado apenas pelo som distante de um passarinho qualquer que parecia cantar para lembrar que o dia já tinha começado.
Verena acordou devagar. A cabeça latej*v* leve, o corpo mole como se tivesse passado por uma tempestade interna. Demorou a entender onde estava. O teto era familiar. A colcha também. Mas havia algo diferente: o travesseiro cheirava a lavanda.
Virou-se de lado e percebeu: estava na cama do quarto dela e da Silvia. Aquele que não entrava há dias, semanas… nem sabia mais.
Passou a mão devagar sobre o lençol amarrotado ao lado, sentindo a presença recente de alguém. Aquilo bastou pra ela fechar os olhos de novo e soltar um suspiro longo, de cansaço e estranheza.
Foi então que ouviu o leve ranger da porta sendo empurrada com cuidado.
Abriu os olhos e ergueu a cabeça. Silvia estava ali, com o cabelo preso num coque frouxo, o roupão fechado até o pescoço e uma bandeja nas mãos.
— Bom dia. — Disse, num tom que misturava gentileza e vigilância.
Verena piscou algumas vezes.
— Eu… o que você tá…
— Trouxe canja. — Disse Silvia, entrando e colocando a bandeja sobre a cômoda, ao lado da cama. — Tá quente. E antes que reclame, fui eu que fiz. Não é delivery, não tem conservante, e tem gosto de verdade.
Verena gem*u baixinho e se jogou de novo contra o travesseiro.
— Eu odeio canja. Isso é abuso de poder.
— É cuidado disfarçado. — Silvia pegou a tigela, assoprou uma colherada e se sentou ao lado da cama, estendendo pra ela. — Vamos lá, Deputada. Sem cena.
Verena virou o rosto.
— Tô sem fome.
— E eu tô sem paciência. — Silvia respondeu, sem alterar o tom. — Você vai comer, nem que seja só pra reforçar o estômago. Depois a gente vê o que faz com a alma.
Verena olhou pra esposa com expressão de cansaço e teimosia misturada.
— Você me odeia?
Silvia não respondeu de imediato. Olhou para a colher, para o vapor, para o moletom amassado da esposa.
— Tem horas que eu quero te esquecer. Tem outras… que eu quero te pôr pra dormir no colo. Hoje… não sei qual é.
— Por que você tá fazendo isso?
— Porque você tá visivelmente fraca, gelada, com olheiras até o queixo e tem cheiro de cigarro vencido. E porque, goste você ou não, eu ainda não consegui parar de me importar.
Verena desviou o olhar.
— Você devia parar.
— Eu sei. — Silvia assoprou a colher de novo. — Mas hoje, não consigo.
Verena respirou fundo. Sentou-se com esforço, a testa úmida, as mãos trêmulas. Pegou a colher da mão de Silvia como quem aceita uma trégua e grata por receber aquele cuidado que sabia não merecer.
— Agora prova.
— Não… Sil… por favor…
— Só um pouco. Vamos. Por mim.
Verena respirou fundo, fez uma careta dramática.
— Eu só espero que essa cena não vá parar em nenhuma biografia. — E levou a canja à boca, com expressão de puro sofrimento.
Silvia riu com os olhos.
— Vai sim. Vai estar no capítulo “Deputada que perdeu a compostura e foi salva por uma canja e um moletom velho.”
Verena engoliu a colherada e se recostou, franzindo o nariz.
— Eu prefiro o moletom.
— Eu sei.
— Sério, você errou no sal.
Silvia revirou os olhos.
— Eu sou advogada, não chefe de cozinha. Come logo.
Verena engoliu mais uma colherada e apoiou a cabeça no ombro da esposa. Silvia hesitou, mas não se afastou. Ficaram ali, em silêncio, por alguns segundos. Apenas o vapor da canja preenchendo o quarto — e o espaço entre elas.
Gabinete de Verena – ALESP – 10h12
Rafaela entrou no gabinete com o celular ainda na mão, o olhar ligeiramente desconfiado. Não havia o burburinho habitual, até o som das teclas dos estagiários estavam mais contidos. O silêncio era incômodo.
Ela respirou fundo e seguiu até sua sala. Lá dentro, bateu a porta com mais força que o necessário e largou o celular sobre a mesa. A mensagem de Silvia ainda brilhava na tela:
"Oi, Rafaela. Só pra te avisar que a Verena passou mal durante a madrugada. Vomitou várias vezes. Hoje não vai conseguir ir. Estou cuidando dela. Qualquer coisa, me liga. Silvia."
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, observando a tela apagada. Sabia que Verena não era do tipo que “ficava de cama”. Se Silvia, mesmo do jeito que estava, resolveu avisar, era porque a coisa tinha sido séria.
Antes que pudesse processar tudo, o interfone da presidência do partido tocou. Rafaela franziu a testa. Não era comum ligarem direto pra ela.
— Assessoria da deputada Verena Castilho, Rafaela falando.
— Rafa, é o Márcio. Tá com tempo pra subir aqui? Uns minutinhos.
— Claro, agora?
— Agora.
Ela desligou, pegou o blazer pendurado na cadeira e saiu.
Sala da Liderança do Partido – 10h26
A sala era bem diferente do gabinete da Verena. Menos personalidade, mais institucional. Tapete caro, madeira escura, e uma máquina de café que parecia uma nave.
Márcio, líder do partido na Alesp, ex-deputado federal e um dos nomes mais fortes nos bastidores, a recebeu com um sorriso morno.
— Senta aqui, Rafa. — Apontou pra poltrona à frente da mesa, sem rodeios. — Vamos conversar com maturidade, tá bom?
Ela assentiu, o maxilar já travado.
— A gente tem observado o desempenho da Verena nas últimas semanas. Oscilação de humor, decisões intempestivas, uma condução emocional... digamos, instável.
— Eu sei onde o senhor quer chegar, mas ela tá passando por um momento... —
— Rafa, você é inteligente. E eu confio em você. Por isso estou te chamando aqui, e não abrindo isso com o restante da bancada.
Ele girou o monitor e mostrou um clipping de notícias.
“Deputada Verena Castilho abandona coletiva em meio a pergunta sobre verba do Instituto São Damião.”
“Gabinete de Verena Castilho se recusa a responder denúncia de favorecimento.”
— A imprensa tá farejando. E o jurídico já me alertou que, se ela continuar nessa maré emocional, vamos expor o partido. O que queremos é uma solução estratégica. Não uma punição.
Rafaela o encarou com firmeza.
— Que tipo de “solução”?
— Uma licença. Médica. Oficial. Trinta dias. Afastamento justificado. A gente segura as pontas aqui, diz que ela tá tratando uma úlcera, sei lá. Você assume interinamente. E depois, com calma, ela volta.
Silêncio.
Rafaela se ajeitou na cadeira. Por um momento, sentiu raiva — não por ele estar sugerindo aquilo, mas por saber, no fundo, que talvez fosse o melhor. Mas não assim, não daquele jeito.
— Márcio... eu entendo. De verdade. Ela tá numa espiral. Mas forçar uma licença médica pode acabar sendo pior.
— Como assim?
— A Verena é paranoica. E com razão. Já tá achando que todo mundo quer derrubar ela. Se a gente empurrar uma licença agora, ela vai surtar. Literalmente.
— Então sugere o quê?
Rafaela respirou fundo.
— Me dá dois dias. Hoje ela já ficou em casa, passou mal mesmo. Deixa que eu converso com ela. Tiro a temperatura. Se ela continuar nesse ritmo, eu mesma convenço. Mas tem que vir de dentro, não de cima.
Márcio cruzou os braços.
— Dois dias, Rafaela. Nem um a mais. Se ela pisar errado de novo, nem eu vou conseguir segurar.
Ela assentiu, se levantando.
— Obrigada pela confiança.
Antes de sair, ouviu o recado final, seco:
— Cuida dela. Porque se ela cair... vocês todos caem juntos.
Corredor da ALESP – 10h55
Rafaela caminhou até o elevador com passos rápidos. O rosto sério. Mas, no fundo, uma parte dela doía. Verena era mais que uma chefe. Era sua amiga. Era a mulher por quem ela já teve medo e admiração ao mesmo tempo.
Quando entrou no elevador, puxou o celular e respondeu a Silvia:
“Obrigada por avisar. Fica com ela. Se precisar de alguma coisa, me avisa”.
A porta se fechou. E Rafaela soube que, a partir daquele dia, não havia mais zona cinzenta. Ou ela segurava Verena. Ou via tudo desmoronar.
Escola Estadual Professor Luiz Roberto Pinheiro – Zona Leste de São Paulo – 10h02
O corredor principal estava tomado por vozes. Estudantes do ensino médio saíam de suas salas como um enxame em direção ao intervalo, rindo, gritando, chutando tampas de garrafa PET como se fossem bolas de futebol. Valentina andava no meio da multidão, mochila nas costas, o olhar distraído.
— Val, quer um pastel de vento? — Brincou um menino da sala dela, apontando pro lanche que trazia na mão.
Ela forçou um sorriso sem parar de andar. A cabeça estava longe, girando entre a raiva por ter visto o vídeo da festa, e agora… uma sensação incômoda, como se algo estivesse prestes a acontecer.
Ao atravessar o corredor que dava acesso à cantina, escutou alguém a chamando:
— Valentina! — Era a coordenadora pedagógica, a dona Regina, com seu colete roxo e uma prancheta debaixo do braço. — Preciso que você vá até a sala da direção, por favor.
A menina parou.
— Aconteceu alguma coisa?
— Só vai lá, filha. Sua mãe já tá lá dentro.
Valentina congelou por um segundo. O estômago revirou. O coração disparou.
— Minha mãe?
Regina assentiu, já se virando de volta pelo corredor. Valentina olhou em volta. Algumas colegas perceberam. Uma delas murmurou:
— Eita, puxão de orelha?
Valentina não respondeu. Engoliu seco e foi.
Sala da Diretora – 10h10
A sala era pequena, abafada e decorada com cartazes motivacionais desbotados. O ar-condicionado, velho, fazia um barulho que lembrava um carro engasgando. Sentadas frente a frente, a diretora Ana Cláudia — sempre com o mesmo coque e óculos de meia-lua — e Ana Paula, a mãe de Valentina, que estava com a bolsa no colo e um semblante sério.
A porta se abriu com cuidado. Valentina entrou, confusa.
— Oi, mãe...
— Oi, filha — Ana Paula respondeu com um sorriso contido.
— Pode se sentar, Valentina — Disse a diretora, apontando pra cadeira ao lado da mãe. — A gente só queria conversar um pouquinho.
A menina se sentou devagar, os olhos indo de uma pra outra.
— Aconteceu alguma coisa?
A diretora cruzou as mãos sobre a mesa.
— Olha, quero deixar claro que não é nada grave, tá bom? Você é uma ótima aluna, educada, participativa… Mas como você tá participando de um programa estadual de estágio, a gente tem uma responsabilidade enquanto escola. Essa semana, a Secretaria de Educação entrou em contato solicitando um relatório de acompanhamento.
Ana Paula franziu a testa.
— Relatório de quê?
— Eles querem saber como tá sendo o desempenho dela, a rotina, se tem suporte, essas coisas. É parte do programa. Só que, nesse meio-tempo, chegaram até a mim algumas preocupações.
Valentina sentiu o estômago afundar.
— Que tipo de preocupações?
A diretora suspirou, medindo as palavras.
— Professores relataram que você anda distraída nas aulas, que parece exausta, e a gente também viu que você atrasou algumas entregas. Fora isso, a coordenadora ouviu de outros alunos que você anda “triste”... até “assustada” às vezes.
Ana Paula se virou para a filha, surpresa.
— Filha? Por que não falou nada disso em casa?
Valentina balançou a cabeça.
— Mãe, eu tô bem. É que às vezes o estágio atrasa, aí eu fico cansada. Mas eu não tô triste, nem assustada.
— Filha, a gente te conhece — Disse Ana Paula, mais firme agora. — Se algo estiver acontecendo, você precisa dizer.
A diretora interveio, num tom acolhedor.
— A gente não tá dizendo que há algo errado com o estágio em si, até porque você não reclamou oficialmente de nada. Mas o local onde você está — a Assembleia Legislativa — é um ambiente de alta pressão. E… bom, a gente sabe que você é uma adolescente. É muita carga.
Valentina respirou fundo.
— Eu gosto de estar lá. Sério. É difícil, às vezes, mas eu tô aprendendo muito. Não é a Verena que me trata mal, nem ninguém do gabinete. Só... tem dias que é muita coisa.
A diretora assentiu.
— A gente entende. Mas precisa garantir que você tá segura, saudável. Por isso, pedimos esse encontro com sua mãe. E a Secretaria também quer conversar com os estagiários da Alesp. Vai ter uma reunião com uma equipe deles nos próximos dias. Não é punição, só protocolo. Ok?
Valentina assentiu devagar.
Ana Paula, mais calma agora, tocou a mão da filha.
— A gente só quer te ver bem. Você é só uma menina, meu amor. Tem tempo pra virar o mundo. Mas não precisa se sobrecarregar pra isso.
Silêncio.
A diretora então sorriu, encerrando o tom formal.
— E nós também estamos aqui pra apoiar no que precisarem. Então... Ach que encerramos por aqui. Obrigada por ter vindo Ana Paula. Valentina, aproveitem o restinho do intervalo. E qualquer coisa… porta aberta.
As duas saíram juntas. Ana Paula segurava firme a alça da bolsa, tentando processar tudo.
— Não quero que você pare, filha. De verdade. Mas promete que, se algo não estiver certo, vai me contar?
Valentina hesitou, depois assentiu com um meio sorriso.
— Prometo.
Mas por dentro, ela sabia: não podia contar. Não com todos aqueles sentimentos confusos embaralhados dentro dela. Não agora.
Gabinete da Deputada Verena Castilho – ALESP – 14h42
O corredor da ala dos gabinetes estava mais silencioso do que o normal. O nome "Deputada Verena Castilho" reluzia discreto na plaquinha de acrílico ao lado da porta fechada. Lá dentro, o ar-condicionado fazia um esforço quase heróico pra compensar o ar abafado da tarde paulista. Verena não estava ali, mas seu nome pairava como um fantasma — e sua ausência, ainda mais.
Rafaela estava de pé, encostada na bancada da copa do gabinete, segurando uma xícara de café que já esfriava. Usava jeans, blazer e um rabo de cavalo alto, como quem tentava se manter operacional apesar das olheiras.
Do outro lado da sala, sentado à mesa de apoio dos assessores, estava Guilherme, um assessor jurídico de meia-idade, recém-inserido no núcleo da equipe, mas já com um ar de veterano. Camisa social clara, mangas dobradas, e aquele tipo de olhar que sempre sugere que ele sabe mais do que está dizendo.
A tensão entre os dois era palpável.
— Olha, Rafaela, com todo respeito… mas desde que a deputada se afastou, você tem se comportado como se fosse a titular do gabinete. E não é — Disse ele, com a voz baixa, quase protocolar.
Rafaela arqueou as sobrancelhas.
— Perdão?
— Eu só acho que decisões como essa — ele apontou para um maço de folhas sobre a mesa — deveriam passar por uma conversa mais ampla. Não basta mandar um e-mail pra equipe inteira dizendo "nova linha de atuação estratégica", como você fez hoje cedo. Tem processo aqui dentro. Tem hierarquia.
Rafaela deu um riso seco.
— Hierarquia? Quer mesmo puxar esse papo, Guilherme? Porque até onde eu sei, quem está há quase três anos com a deputada, segurando esse gabinete quando ela entra em parafuso, sou eu. Você chegou faz o quê? Quatro meses?
— E sou concursado. Estou aqui como apoio técnico, não pra bater palma pra vaidade de ninguém.
— Ah, tá — Rafaela largou a xícara na bancada, com força. — Agora o problema é a minha vaidade?
— O problema é que você tá centralizando tudo. A assessoria parlamentar tá no escuro, a equipe de base ligou duas vezes hoje perguntando se o evento de quinta vai ser cancelado, e você sequer comunicou oficialmente o afastamento da Verena.
— Porque não é um afastamento formal! Ela só não vai vir hoje. Tá doente, precisa de tempo, e isso não é assunto teu.
— Não é assunto meu? Rafaela, isso aqui é um gabinete público, sustentado por verba pública. Se a titular tá incapacitada, precisamos registrar isso. Se ela não for aparecer na Comissão de Educação amanhã, temos que avisar, providenciar suplência. A imprensa tá em cima, a oposição tá farejando cada tropeço. E você quer bancar a informalidade como se fosse uma república de repúblicos?
— Você não sabe o que tá falando — Ela retrucou, a voz subindo. — A Verena passando um momento difícil e eu tô tentando manter isso aqui de pé. Eu conheço essa casa. Eu sei como funcionam os tubarões. Se a gente vacilar, ela vira carne no tanque.
Guilherme levantou devagar, cruzando os braços.
— E você acha que vai proteger ela escondendo os fatos? Fingindo que tá tudo sob controle?
— Eu acho que vou proteger ela impedindo que quem não tem a menor noção do que ela enfrentou se aproveite da situação pra alavancar nome em cima da fragilidade dela.
Silêncio. Pesado.
A porta entreaberta deu um rangido leve. Um dos estagiários — que já ia entrar com uma pilha de correspondências — congelou ao ouvir a discussão. Rafaela percebeu e virou de imediato:
— Pode deixar aí fora. A gente pega depois. Fecha a porta, por favor.
O garoto assentiu, meio constrangido, e se retirou.
Rafaela virou de novo para Guilherme, agora com um olhar mais contido.
— Eu não sou perfeita, Guilherme. Nem quero ser. Mas se você tá mesmo preocupado com esse gabinete, ajuda. Sugere. Coopera. Não joga contra. Porque eu tô no limite — ela disse, agora com um tom de exaustão real. — E se eu cair, não vai ter ninguém pra segurar essa bomba.
Guilherme respirou fundo. Por um momento, hesitou. Depois:
— Eu não quero que ninguém caia. Mas eu também não vou compactuar com decisões erradas por omissão.
— Então não omite. Mas também não sabota.
Outro silêncio.
Guilherme voltou pra sua mesa sem responder. Ligou o monitor, abriu uma pasta de documentos e começou a digitar. Rafaela ficou ali por mais alguns segundos, encarando o nada, com a mão trêmula indo até o bolso para pegar o celular. Respirou fundo.
Na tela, uma nova mensagem de Silvia:
"Obrigada por segurar tudo aí hoje. Ela acordou melhor. Conseguiu comer um pouco."
Rafaela leu, digitou algo, apagou. Depois digitou de novo:
"Sabe que pode contar comigo. Ela vai ficar bem."
Enviou. Guardou o celular.
E voltou à trincheira.
Apartamento de Verena e Silvia – Quarto – 15h12
O quarto seguia em meia penumbra. A tigela com canja agora estava vazia, repousando sobre o criado-mudo ao lado de uma garrafa d’água quase pela metade. Verena, recostada nos travesseiros, ainda de moletom, segurava o celular com a tela acesa. Parecia refletir se deveria mesmo tocar naquele assunto naquele estado — mas o visor piscou, e ela não teve escolha.
Rafaela chamava.
Verena atendeu com a voz baixa, rouca, mas mais firme do que se sentia por dentro:
— Fala.
A ligação foi objetiva, direta.
— Desculpa te ligar assim, Silvia me falou que você passou bem mal ontem. Juro que tentei resolver sozinha, mas...
— Não enrola Rafaela — Murmurou, a voz rouca e arrastada. Ouviu um suspiro do outro lado da linha.
— Já recebi o retorno do Benedito. Ele confirma tudo. A movimentação partiu de um IP registrado no núcleo interno da Casa. Ele quer te encontrar hoje, fora da Alesp. Sugeri o apê de apoio. Tem como ir?
— Tem. — Verena fechou os olhos por um segundo, exausta. — Agenda pra depois das 20h. Se eu aparecer de dia alguém pode notar.
— Você vai conseguir levantar?
— Vou. Nem que seja me arrastando.
— Olha… só pra saber. Não temos que resolver isso hoje. Quer dizer... Se não tiver em condições...
Verena hesitou, olhando instintivamente pra porta fechada do quarto.
— Vou resolver isso hoje sim. Esse assunto é sério demais pra esperar.
Do outro lado da linha, Rafaela suspirou, mas não insistiu.
— Tá. Te aviso do horário exato assim que ele confirmar. Fica viva.
— É o que tá dando pra fazer.
Desligou.
Mas o que Verena não sabia é que, na sala, Silvia também desligava o fone do notebook depois de uma rápida reunião de equipe. Estava de moletom e meia, sentada com uma almofada no colo, e levantou para levar os remédios da esposa. Pegou um envelope de comprimidos para enjoo e um copo d’água, pensando em verificar se Verena tinha febre de novo também.
Foi atravessando a sala lentamente, os pés de meia arrastando no piso de madeira. Quando passou pela porta entreaberta do quarto, parou. Verena estava sentada na cama, cabelo preso num coque frouxo, o celular colado ao ouvido. A voz estava baixa, mas clara o suficiente pra Silvia captar:
" Vou resolver isso hoje sim. Esse assunto é sério demais pra esperar.”
Silvia ficou imóvel por um segundo. Depois respirou fundo, entrou no quarto sem bater. Verena tomou um susto leve, mas tentou manter a pose, como se estivesse apenas… descansando.
— Você tá falando com quem? — Perguntou, a voz calma demais.
— Você… ouviu?
Silvia pousou as coisas no criado-mudo e cruzou os braços.
— O suficiente pra entender que tá se metendo de novo em alguma coisa. Que não quer que eu saiba. — Ela ergueu os olhos. — Por que eu não posso saber, Verena?
A outra desviou o olhar.
— É só trabalho. Uma coisa que tá se resolvendo…
— E por que você tem que se arrastar pra resolver isso hoje? Mal ficou em pé essa manhã. Acordou branca feito cera, vomitou a madrugada toda. — Silvia se aproximou, ainda contida.
Verena abaixou a cabeça, apertando a ponta do nariz com os dedos.
— Não é isso.
— Então me explica o que é. Porque, sinceramente, eu tô cansada de ouvir esse “não é isso” toda vez que você resolve apagar incêndio no meio do furacão.
Silêncio.
— Verena…
— Era a Rafa. Assunto do gabinete. — Verena respondeu rápido demais.
— Achei que estivesse doente. Mal conseguia levantar há poucas horas. — A voz agora começava a mudar de tom. — Mas tá bem o bastante pra resolver “assunto do gabinete”?
Verena tentou suavizar:
— Eu só… precisava checar uma coisa.
— E essa coisa não podia esperar? Um dia. Um. — Silvia cruzou os braços. — Você quase caiu no banheiro, Verena. Vomitou em mim, lembra disso? Mal conseguiu chegar até a cama. E agora tá tramando reunião às escondidas?
Verena fechou os olhos por um segundo.
— Eu não tô tramando nada.
— Não mente. Eu ouvi. “Vou resolver isso hoje.” — Silvia imitou, carregada de ironia.
Silêncio.
Verena desviou o olhar.
Silvia se aproximou, falando baixo, mas firme:
— Sabe o que mais me assusta? Não é você estar doente. Não é o que sabe-se lá o quê vocês fazem lá. É o fato de você não conseguir desligar nem agora. De achar que, se não for você, tudo desmorona. E talvez até desmorone mesmo. Mas você... você vai junto. E eu não sei se tenho força pra ficar vendo isso.
Verena engoliu seco. Por um segundo, a vontade de pedir desculpas atravessou seu olhar. Mas ficou presa na garganta.
— É só mais uma coisa, Sil. Eu resolvo isso e pronto.
— E até lá, eu faço o quê? Fico de enfermeira por revezamento entre uma reunião e outra?
Verena tentou tocar no braço da esposa, mas Silvia recuou sutilmente.
— Não é justo. — Silvia completou, mais baixa. — Não é justo comigo. E, principalmente, não é justo com você.
Ela saiu do quarto sem dizer mais nada. Verena ficou sentada, imóvel, como se o ar tivesse saído do ambiente. Na tela do celular, a mensagem de Rafaela piscava:
“20h30. Endereço confirmado. Te mando daqui a pouco”
Verena bloqueou a tela. E ficou ali, em silêncio, com o coração pesado, dividido entre duas batalhas — uma na política. E outra em casa.
ALESP – Sala de Apoio aos Estagiários
A luz fria do teto piscava levemente, e o barulho do ar-condicionado quebrava o silêncio entre os poucos estagiários espalhados pela sala. Valentina terminava de revisar uma tabela no Excel, mas lia e relia o mesmo número há pelo menos cinco minutos.
Ela nem tinha se dado conta de que Léo tinha entrado. Só notou quando ele passou por trás dela, parando na mesa ao lado.
— Tá difícil hoje, hein?
Valentina virou o rosto, um pouco sobressaltada.
— Oi? Ah... é. Tô com a cabeça meio cheia.
Léo se sentou, girando um pouco na cadeira antes de encostar a mochila de lado.
— A chefe não veio, né?
Valentina mordeu o lábio, tentando disfarçar a reação. A vontade era de perguntar o que ele sabia, se tinha mais detalhes. Mas ela apenas assentiu com a cabeça.
— Ouvi falar que passou mal ontem. Um negócio meio forte.
— Quem te falou isso?
— A Rafaela. Acho que ela comentou com a chefe do jurídico. E aí você sabe... — Deu de ombros. — Vira assunto em cinco minutos.
Valentina suspirou e virou de novo pro computador, mas o olhar continuava longe. Verena, doente. Não encaixava. Parecia uma ideia impossível.
— Você tá preocupada com ela?
A pergunta veio mansa. Valentina hesitou.
— Claro. A gente trabalha com ela, né? É estranho não vê-la aqui. Ela sempre chega antes de todo mundo. Fica até tarde. Nunca... sei lá. Nunca falta.
Léo ficou em silêncio por alguns segundos. A cadeira dele ainda balançava devagar, como se estivesse ponderando o que dizer.
— Ela é meio... gigante, né?
Valentina arqueou a sobrancelha.
— Como assim?
— Tipo... imponente. Ela passa e parece que ninguém pode encostar. Que não sente nada. Nem dor, nem sono, nem enjoo. Aquela figura de “mulher que venceu tudo”.
Valentina sorriu de leve. Era exatamente assim que ela via Verena. Mas ouvir alguém descrever daquele jeito tornava tudo mais real. Mais dolorido.
— E aí quando a gente descobre que passou mal, parece que o mundo tá errado — completou Léo, com uma expressão pensativa.
— É. Exatamente isso.
Valentina desviou o olhar e pegou o celular. Nenhuma notificação. Nenhuma mensagem de Rafaela. Nenhuma da própria Verena, é claro. Suspirou. Parecia que o dia tinha perdido o brilho. Tentou se concentrar novamente na planilha. Como se uma parte dela ainda esperasse que Verena entrasse pela porta a qualquer instante, com aquele andar decidido e o cabelo solto, como se nada tivesse acontecido. Mas o vazio continuava. E ela não a veria naquele dia.
Apartamento de Verena e Silvia – Varanda
A cidade parecia suspensa no tempo. Do alto do apartamento, os prédios de São Paulo pareciam inertes, imóveis sob o sol meio encoberto. O barulho da rua mal chegava ali, abafado pelas janelas fechadas.
Silvia se apoiava no parapeito da varanda com os cotovelos, o celular na mão, os olhos voltados para o chão lá embaixo — mas sem ver nada de verdade. O cabelo continuava preso de qualquer jeito. Não tinha dormido bem, o corpo ainda carregava o peso da madrugada. O rosto estava tenso, os olhos cansados.
Ela respirou fundo, olhou de novo pra dentro do apartamento, conferindo se Verena ainda estava dormindo — ou pelo menos deitada. A porta do quarto estava encostada. O silêncio no corredor a tranquilizou por um segundo.
Desbloqueou o celular, abriu o WhatsApp. Viu o nome de Rafaela entre os contatos recentes. Tocou ali. Hesitou um instante, depois ativou o recurso de mensagem temporária por 24h — quase como um reflexo, como quem esconde sem querer esconder.
Gravou o áudio com o celular próximo ao rosto, a voz baixa, contida, mas firme.
— Oi, Rafa... bom dia. Olha, é só pra te pedir uma coisa, tá? Nada demais. Só... evita mandar coisa de trabalho pra Verena hoje. Eu sei que ela tá doida pra levantar da cama e fingir que tá tudo bem, mas... ela passou mal de verdade. Foi feio. Não dormiu direito, mal consegue manter nada no estômago. Eu... — respirou, como quem engole o orgulho — eu sei como ela é. Sei que se você chamar, ela vai levantar. Vai fingir que tá tudo sob controle. Mas hoje... hoje não dá. Por favor. Me ajuda com isso. Só hoje. Depois ela resolve sua vida e a de meio mundo, como sempre faz. Mas agora... deixa ela respirar um pouco. Tá bom?
Ela soltou o botão. Olhou para o áudio por um segundo, pensou em apagar. Mas não apagou. Apertou “enviar”.
E imediatamente bloqueou a tela.
Ficou ali, parada, sentindo a brisa suave bater no rosto. Os olhos úmidos, mas não chorando. Apenas... exausta.
Voltou devagar pra dentro, mas antes de entrar olhou uma última vez pro horizonte. Como se algo lá fora pudesse responder o que ela não conseguia mais perguntar em voz alta.
Gabinete de Verena – Sala de Rafaela – Minutos depois
Rafaela estava com os pés apoiados na borda da mesa, celular em mãos, passando os olhos preguiçosos pelas mensagens. O dia já tinha começado tenso, com o caso do assessor, o dossiê, e agora aquela pausa forçada da chefe.
Quando viu o nome da Silvia, seu corpo enrijeceu sutilmente. Não era comum. Não era nem esperado. O nome veio com o alerta de "mensagem temporária ativada". Aquilo já deixava o recado mais... urgente. Mais pessoal.
Ela pôs os pés no chão, se ajeitou na cadeira e colocou o fone de ouvido discreto. Quando ouviu o áudio, ficou um instante calada. Os olhos presos na tela, mas o pensamento longe.
O coração se apertou. Silvia parecia cansada. Mas mais que isso — parecia preocupada de verdade.
Rafaela passou a mão pelos cabelos, respirando fundo. Sabia que Verena era teimosa. Sabia que a amiga odiava mostrar fraqueza. E sabia também que, no fundo, ela mesma contava com essa força da Verena — mesmo quando estava caindo aos pedaços.
Mas agora... não dava. Nem precisou responder o áudio. Às vezes, saber que alguém ainda cuida dela... já era resposta suficiente.
Apartamento de Verena e Silvia – Quarto – Fim de Tarde
A claridade do fim do dia se infiltrava pelas brechas da cortina, dando ao quarto um tom âmbar e silencioso. Verena estava sentada na cama, as costas recostadas nos travesseiros, o notebook apoiado nas pernas. A camisa social de botão agora era outra, mais frouxa, e por cima um casaco leve, como se quisesse simular força. Os olhos, no entanto, estavam fundos. Cansados. Mas atentos.
Ela digitava algo, e de tempos em tempos, encarava o celular ao lado — a tela acesa mostrava uma notificação da Rafaela: “precisamos conversar, urgente”.
Ela suspirou, pegou o celular e desbloqueou a tela.
RAFAELA — [Mensagem de voz, 36s]
Verena colocou o volume baixo, pressionou o play.
— Verena... é... eu sei que você vai me mandar tomar no cu... Imagino que esteja cansada de conselhos, mas escuta, por favor. (pausa breve) Não vou entrar no mérito da escolha, mas Silvia me procurou hoje cedo. Pediu, com toda a delicadeza possível, que eu não te enviasse nada de trabalho. E sinceramente, vendo a situação, ela tem razão. Você está fraca. E isso não é julgamento, é fato. Talvez seja sensato adiar essa conversa com o Benedito. Eu posso conversar com ele amanhã cedo, pegar as informações com calma. Só… pensa com racionalidade, por uma vez.
Verena permaneceu imóvel por alguns segundos. Depois, sem pensar muito, pressionou o botão de chamada. A ligação foi atendida quase imediatamente.
— Interessante você decidir interferir justamente hoje. — A voz de Verena saiu baixa, seca. — Justamente agora.
— Eu não estou interferindo. Estou tentando preservar o que ainda resta de sanidade nesse gabinete — rebateu Rafaela, com uma firmeza calculada. — Você precisa descansar, Verena. A reunião pode esperar.
— Eu não compartilhei isso com você por acaso. Foi para evitar justamente esse tipo de apelo.
— Não viaja porr*. Ninguém tá apelando aqui. Mesmo que você ace que não, eu me preocupo com você.
Verena estreitou os olhos, com uma ponta de irritação contida.
— Eu estou doente, Rafaela. Não incapacitada. E você sabe disso. Só está dizendo o que Silvia pediu que dissesse, como uma mensageira disfarçada de amiga preocupada.
— Eu disse porque concordo. Silvia apenas teve mais coragem do que eu de verbalizar. E se você estivesse se enxergando de fora, talvez também tivesse.
Verena se levantou da cama com um suspiro irritado, caminhando em direção à janela. O corpo protestou, e ela encostou na parede por um instante.
— Você não tem ideia do que é sentir o chão afundando sob os pés e mesmo assim ser obrigada a andar. Eu não vou cancelar essa reunião. Não quando estamos tão próximos de descobrir quem está por trás dessa merd*.
— E se você cair no meio do caminho, quem vai levantar você? — A pergunta foi direta, seca.
— Eu me levanto. Sempre me levantei. — respondeu, com amargura na voz.
Houve uma pausa longa.
Do outro lado da linha, Rafaela abaixou o tom, quase num sussurro:
— Não é uma fraqueza precisar de ajuda, Verena.
Verena olhou para o próprio reflexo na vidraça, o rosto abatido, olheiras fundas.
— Não. Mas é perigoso confiar em quem te observa com desconfiança.
— Não foi desconfiança. Foi desespero. — disse Rafaela, num tom mais baixo. — E antes que pense o contrário, eu ainda estou ao seu lado. Mesmo quando você faz questão de empurrar todo mundo pra longe.
Verena apertou os olhos por um instante, como se afastasse algo dentro de si.
— Se quiser ir à reunião, vai. Se não quiser, tudo bem. Eu sigo.
— Só… prometa que vai se cuidar depois.
— Não prometo o que não posso garantir.
E desligou.
Silêncio.
Ela olhou para o relógio. 19h06. Ainda dava tempo de recuar. Mas Verena Castilho nunca recuava.
Salão da Igreja — Início da noite
As paredes simples do salão social da igreja foram enfeitadas com faixas escritas à mão, balões brancos e azuis, e algumas fitas metalizadas que balançavam discretamente sob a brisa de um ventilador de parede. A mesa principal estava coberta por uma toalha de renda branca, com um pequeno bolo de dois andares decorado com um sapatinho de bebê de biscuit no topo. À esquerda, potes de brigadeiro e balinhas de coco em forminhas azuis celeste. À direita, os salgadinhos que já começavam a esvaziar.
No centro da roda de cadeiras, improvisada com bancos acolchoados da própria igreja, a jovem Sara — de apenas 22 anos, barriga saliente e o olhar doce — sorria ao lado do marido, Samuel, um rapaz de fala tranquila e terno barato. Eles riam das brincadeiras típicas do chá: adivinhar sabores de papinhas, contar quantas fraldas o bebê usaria por semana, escrever mensagens de carinho em pequenos bilhetinhos coloridos. A pastora Cida já havia feito uma oração de abertura, e agora ajudava a organizar os presentes enquanto elogiava a dedicação do casal.
— Olha só, que bênção. Casaram no altar, foram fiéis um ao outro, e agora vão colher esse fruto lindo do Senhor — dizia ela, com a voz suave, acariciando a barriga de Sara. — Deus honra, meus filhos. Deus honra.
Sentada mais afastada, Valentina segurava um copo de refrigerante já sem gás e sorria, por educação, enquanto a mãe conversava animadamente com as outras mulheres da congregação. Estava com um vestido claro, simples, com mangas compridas e uma fita na cintura. Os cabelos estavam presos num coque frouxo, do jeito que Ana Paula sempre dizia que ela ficava “mais moça”. Tinha ajudado na arrumação desde cedo, varrido o salão, forrado as mesas, amarrado balões.
Mas agora que tudo estava pronto e o momento era de alegria… algo nela parecia fora de lugar.
Ouvia os risos, as músicas baixas tocando no fundo — versões cristãs de canções populares, adaptadas para louvores —, mas o som parecia longe. Quase abafado. O tempo parecia andar devagar.
Desde que contara para Carol sobre seus sentimentos por Verena, algo havia mudado. Como se a simples verbalização tivesse dado vida àquilo que antes era só confusão. Como se agora tivesse um nome, uma forma, um rosto. E naquele rosto, olhos verdes que ela não conseguia esquecer.
Olhou para o casal ao centro. Sara e Samuel. Tão jovens, tão certos. Tão dentro do que era esperado deles. Já tinham um lar montado com ajuda dos sogros, estavam no mesmo coral, liam a Bíblia juntos nas madrugadas. E ali estavam, rodeados de amor e aceitação. De bênçãos.
Valentina apertou levemente o copo em mãos. Queria aquilo? Ou queria apenas querer?
A pastora passou perto dela, com um sorriso generoso:
— Filha, já escreveu seu recadinho pro bebê?
Valentina forçou um sorriso e assentiu com a cabeça. Caminhou até a mesinha improvisada com canetas e papeizinhos decorados. Pegou um deles. “Escreva algo para o pequeno Miguel”, dizia no topo.
Ela respirou fundo. Pensou nas palavras.
"Que você cresça cercado de amor, com liberdade pra ser quem quiser. E que Deus esteja contigo, mesmo quando o mundo não entender."
Dobrou o papel devagar e colocou na caixinha com os outros.
Voltou ao seu canto e se sentou. Apoiou o queixo sobre as mãos. Olhou novamente para Sara. O jeito como o marido a envolvia num carinho automático, os dois já tão habituados a estar juntos. Tão encaixados.
Uma criança pequena passou correndo e esbarrou de leve em sua perna. Ela sorriu para o menino — um sorriso sincero — e ajeitou a fita do seu vestido, meio constrangida. Ana Paula a observava de longe, orgulhosa da filha prestativa e comportada. Não sabia o que se passava por trás daquele rosto tão calmo.
Ela precisava respirar. O salão estava abafado, mas era mais que isso. Era uma pressão invisível que se encaixava nos ombros como um véu que não podia ser tirado em público. O casal se beijou rapidamente antes de abrirem um presente com roupas minúsculas. Todos aplaudiram. Valentina sorriu por reflexo, mas seu peito apertava.
E então pensou em Verena.
Em como não a viu naquele dia. Os boatos no estágio que diziam que a deputada tinha passado mal. Ela não sabia detalhes — e nem teria por que saber. Mas sentiu um aperto estranho. Tristeza. Preocupação.
Desejo de cuidar.
“Ridícula”, pensou. “Você tá louca.”
Mas não conseguia impedir o pensamento de voltar. A imagem dela, com aquele olhar sério e vulnerável ao mesmo tempo. O jeito como ela falava, como fazia tudo parecer importante.
Desde que confessara para Carol seu sentimento por Verena, tudo parecia mais intenso. Como se dar nome àquilo tivesse acendido uma luz incômoda que ela não podia mais ignorar. Olhar para casais assim, casais "certos", casais como se esperava que ela fosse um dia... era como olhar para um molde que não a servia, mas que todos esperavam que ela vestisse. E esse sentimento era tão mais forte do que tudo o que tinha aprendido até ali. Tão mais verdadeiro do que qualquer regra dita de púlpito.
Valentina suspirou, tentando se concentrar na oração que uma das tias fazia, abençoando a criança que viria. Os olhos dela, porém, estavam longe. Na mulher que não via, que não podia tocar, que provavelmente nunca saberia da bagunça que ela tinha causado dentro do peito de uma adolescente que nem sabia quem era — só sabia quem não queria ser. E mesmo isso já parecia demais pra carregar sozinha.
Casa da Valentina – Quarto | 22h
A luz fraca da luminária de mesa iluminava apenas parte do quarto. A colcha florida de Valentina estava cuidadosamente esticada, mas ela própria parecia desmanchada, como se algo dentro dela não se encaixasse mais. Sentada na cama, ainda com o vestido do chá de bebê, os ombros curvados, ela olhava para o chão como se ali estivesse a resposta de alguma coisa.
Isadora já dormia na cama da parede oposta. Tinha deixado a luz do corredor acesa — um hábito infantil que Valentina, no fundo, gostava. Mas agora, a claridade filtrada pela porta semiaberta só parecia revelar a bagunça em sua cabeça.
Ela se debruçou sobre os joelhos, fechou os olhos com força. Queria rezar. Tentava rezar.
— Deus… — sussurrou, a voz quase sumida. — Por favor… me ajuda.
A oração travava na garganta.
— Tira isso de mim. Tira isso de mim, Senhor… por favor.
A lembrança do casal jovem, do bebê a caminho, da felicidade tranquila — tudo aquilo vinha como um peso no peito. Valentina sentia. Não era inveja. Era sede. Um tipo de desejo tão íntimo e abafado que ela mal conseguia reconhecer.
Ela queria ter uma família. Queria um lar. Queria alguém pra amar, pra construir, pra cuidar.
Mas por que, então, quando pensava nisso… era o rosto de Verena que surgia?
Cobriu o rosto com as mãos, envergonhada, assustada, presa dentro de si. A garganta arranhava de vontade de chorar, mas nem isso vinha. Só o silêncio desconfortável da certeza de que algo estava errado com ela. Algo que não podia ser dito em voz alta.
Isadora se mexeu na cama, murmurando algo e puxando o cobertor. Valentina olhou, cuidando pra não fazer barulho. A irmã dormia tranquila, inocente. Como ela mesma era há tão pouco tempo.
Deitou-se devagar, encolhida. Mas seus pensamentos eram tudo, menos calmos. E Sem querer, a pergunta surgiu.
Duas mulheres podem ter um filho?
Ela engoliu seco. Nunca tinha pensado nisso. Nunca tinha ousado.
Como seria? É possível? — o pensamento parecia correr solto, proibido, impuro, mas fascinante. Elas adotam? Existe tratamento? Elas… podem formar uma família?
Seu coração batia forte no peito, e não era amor — era pânico.
Virou-se na cama, de costas pra irmã. Olhos abertos. A respiração presa. O travesseiro agora parecia mais um muro entre ela e o mundo.
— Por que isso tá acontecendo comigo…? — sussurrou, quase sem voz.
E ali, no escuro, Valentina não chorou. Não teve força.
Ficou apenas deitada, em silêncio, tentando vencer a própria mente. Tentando ser forte. Tentando não amar. Tentando não desejar.
Tentando não imaginar uma família que, na cabeça dela, não podia existir — mas que, no coração, começava a nascer.
Apartamento de Verena e Silvia – Cozinha | 19h45
A luz amarela da cozinha era quente, aconchegante até demais para o clima que rondava a casa. Silvia estava com o cabelo preso de qualquer jeito, um vestido simples e os pés descalços sobre o chão gelado. Estava de costas, enxaguando um tupperware na pia com movimentos automáticos. Tinham sobrado algumas coisas do almoço que ela resolvera guardar. Uma maneira de ocupar o corpo enquanto a cabeça não parava.
Verena parou no batente da porta, calçando uma bota baixa, casaco de tecido fino sobre a blusa preta. Não era um look de padaria, mas também não chamava atenção. Ainda se sentia fraca — o corpo parecia ter levado um golpe que o espírito tentava esconder.
Ficou ali um instante, observando a mulher que amava, a mulher que cuidou dela o dia todo. E que agora terminava de guardar a comida, como se fosse o dia mais comum do mundo. Verena odiava mentir, mas tinha medo de contar. A verdade exigia mais do que ela podia dar.
— Eu… vou até a padaria — disse, num tom quase neutro, casual, como quem diz que vai só ali.
Silvia se virou devagar, ainda com um pano de prato na mão. Os olhos demoraram um segundo para descer pelo corpo da esposa. O casaco, a bolsa. Tudo dizia que aquela saída não era rápida. Secou um tupperware com mais força do que precisava.
— Vai sim — disse, num riso baixo, seco, quase cínico. — E volta quando? Antes ou depois do café da manhã?
Verena prendeu a respiração. Riu também, mas era um riso desconcertado. Meio debochado, meio defensivo.
— Agora eu tenho hora pra sair de casa? Virei sua filha?
O comentário escapou antes que pudesse segurar. Silvia baixou os olhos, sentindo a frase como um tapa. Apertou o pano entre os dedos, depois o largou sobre a pia.
— Sabe o que é pior, Verena? — disse, com a voz embargada, contida. — É que às vezes eu tenho a sensação de que você preferia que eu fosse sua mãe mesmo. Alguém que cuida, que cuida, que cuida… e que não cobra nada.
Verena sentiu um gosto amargo na garganta. Deu um passo à frente, tentando suavizar.
— Ei… calma. Eu só… eu preciso de ar. Ficar o dia inteiro em casa me sufoca, você sabe disso.
Silvia cruzou os braços. Os olhos estavam marejados, mas ela falava com firmeza.
— Eu também fiquei o dia inteiro em casa, Verena. Não dormi praticamente nada! Trabalhei, respondi cliente, lavei banheiro, cozinhei, dei remédio pra você. E não tô aqui surtando porque precisei respirar.
Verena abaixou o olhar. Não tinha como negar. Silvia estava exausta, e tinha razão.
— Eu sei… — murmurou. — Eu só não queria brigar.
— Pois então para de me testar — rebateu Silvia, mais alto agora. — Eu não sou idiota. Você não vai na padaria. Vai encontrar alguém. Vai resolver alguma coisa do trabalho. E quer que eu fique aqui, sorrindo, fingindo que tá tudo bem.
— Não é isso. É só algo rápido — tentou explicar. — É importante. Coisa minha.
Silvia sorriu, mas foi um sorriso doído, que não chegava aos olhos.
— E eu sou o quê? Um detalhe na sua vida?
O silêncio caiu pesado.
— Me diz… onde foi que eu errei? — continuou Silvia, num tom mais baixo, quase um desabafo. — Onde foi que eu falhei como mulher pra você se sentir no direito de sair assim, doente, escondida, me tratando como se fosse um obstáculo?
Verena sentiu a dor no peito como se fosse física.
— Você não falhou — disse rápido. — Nunca. Eu que…
Mas Silvia ergueu a mão.
— Não. Eu não quero suas desculpas agora. Eu só quero que você vá. Se é tão importante assim, vá. Mas saiba que quando você voltar, Verena… — parou, respirando fundo. — As coisas não vão estar iguais.
Verena ficou imóvel por um segundo. O ar parecia pesado demais pra respirar. Aquilo não era uma ameaça. Era um limite. Um ponto final não dito.
— Silvia…
— Vai, Verena. Vai logo — cortou ela, virando de costas e indo em direção à sala, os olhos brilhando em silêncio. — Antes que eu peça pra você ficar e me arrependa depois.
Verena ficou ali, parada. A mão apertando a alça da bolsa, o coração disparado. Queria ir. Tinha que ir. Mas nunca se sentiu tão dividida.
Deu um passo para trás. E depois outro.
Saiu em silêncio. O som da porta se fechando ecoou pela casa como uma promessa quebrada.
Fim do capítulo
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Zanja45
Em: 22/05/2025
Autora, se até a esposa de Verena ficou com pena ao ver o estado lastimável dela, roupa amarrotada, perda de peso, largada. - Também fiquei condoida por ela - Queria cuidar dela igualmente. - A bichinha está desmazelada.- Mas ela está sobrevivendo do jeito que ela sabe. kkkkk!
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Zanja45
Em: 22/05/2025
Silvia é uma mulher e tanto, porque além de trabalhar fora, ainda é responsável por garantir que as coisas dentro de casa estejam organizadas. - Isso vai desde de tarefas como cozinhar, roupas da esposa, etc. - Agora é perceptível ver quem praticamente carregava tudo nas costas. - Verena está toda desajeitada sem o apoio da esposa. - isso é porque ela não estava acostumada a fazer, pois vivia apenas para exercer o cargo enquanto deputada, e as outras coisas ficavam tudo ao encargo de Silvia.
anonimo2405
Em: 22/05/2025
Autora da história
Exatamente. A Verena que fique esperta, porque é difícil encontrar uma mulher como a Silvia., dedicada, cuida com carinho. Não é qualquer uma que passa o que ela passa e continua.
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Zanja45
Em: 22/05/2025
Não entendi aquela frase "deixa que eu lavo e seco depois", a principio pensei que ela estivesse falando da xícara, mas no final Silvia falou que foi outra coisa o que ela quis dizer. - Foi o banheiro?
anonimo2405
Em: 22/05/2025
Autora da história
Menina, confesso que eu também achei que fosse da xícara rsrs. Mas talvez ela tenha dito sobre a bagunça que a Verena vem fazendo no casamento delas. Tipo, deixa que eu arrumo tudo. Eu acho rsrs
Zanja45
Em: 22/05/2025
Kkkk! Está bem.
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Hanna28
Em: 21/05/2025
As duas estão lidando com muita coisa ao mesmo tempo. É difícil deixar a razão apossar-se mesmo quando o momento exige frieza e um olhar mais calculista diante desta "armação"sobre nossa deputada..
Valentina sendo ainda uma menina lidando com o fato da aceitação sexual pesada pelo simples fato de viver em lar evangélico e se recriminar por desejar o mesmo gênero
anonimo2405
Em: 21/05/2025
Autora da história
Falou tudo agora. É tanta coisa que você nem enxerga mais nada que não seja confusão. Não sei qual das duas tá numa situação mais difícil, mas olha, essa fase da Valentina é bem complicada. Bem complicada mesmo.
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anonimo2405 Em: 22/05/2025 Autora da história
kkkkkkkkkkkk, eu também fiquei com pena. Passar mal é péssimo, jamais conseguiria ser insensível nesse nível. E já sabemos que se a Silvia pede o divórcio, a Verena corre sérios riscos kkkkkkk