Capitulo 35
O ar na sala tornou-se denso, carregado de tensão. Um temor crescente tomou conta do corpo de Marcela. Um pavor profundo, quase visceral, infiltrou-se em sua alma; em sua mente, a sombria imagem do homem se aproximando para raptar sua filha já se formava, distorcida e aterrorizante. O coração de Marcela batia descompassado, um tambor frenético em seu peito, e ela sentia o sangue irrompendo por suas veias como uma torrente impetuosa em noite de tempestade. Valesca precisou elevar a voz – o tom urgente, rasgando o véu espesso de seus pensamentos O magnata foragido não era apenas um nome nos jornais, estampado nas páginas policiais; ele era o próprio sinônimo de perigo. Com sua intrincada rede de informantes, não demoraria a chegar perigosamente perto de descobrir seu paradeiro ou, pior ainda, o da policial que destruíra sua paz e transformara sua vida num verdadeiro inferno. Tudo havia começado com o desaparecimento de Alex, seguido pela morte repentina de todos os seus homens de confiança. Ninguém viu, ninguém ouviu. Tudo aconteceu no mais absoluto silêncio, como se a própria sombra tivesse agido.
Marcela não era nenhuma lunática. Tinha quase certeza de que ele vinha tentando ameaçar os policiais, oferecendo dinheiro em troca de informações sobre o que realmente acontecera com seus capangas. Diante disso, decidiu revisitar cada detalhe, cada conversa e cada atitude que tivera enquanto estava infiltrada na favela — desde as interações com seu amigo Jacinto até as reuniões em becos escuros e os olhares atravessados nas vielas.
No entanto, havia um trunfo que ele tinha em mãos e mantivera em segredo absoluto: ninguém da corporação sabia exatamente em qual comunidade Marcela vivia. E, mais importante ainda, ela nunca revelara o quão próxima havia se tornado da mãe biológica de Alex.
— Marcela, presta atenção! — A voz de Valesca soou irritada, quase um grito. — Que diabos está acontecendo com você? Está completamente dispersa!
Marcela levou um susto quando percebeu Valesca sacudindo seu braço. Ela tentava chamar sua atenção para algo que não tinha ouvido, a mente perdida em suas próprias lembranças.
— Não enche meu saco, Valesca! — Marcela puxou o braço com força, detestando ser tocada ou puxada. — O que você estava dizendo? Não ouvi uma palavra.
Estranhamente, o gesto brusco de Marcela pareceu divertir Valesca. Ela abriu um sorriso largo, mudando completamente a postura.
— Ah, dá para ver mesmo que não escutou nada! Sim, estou te pedindo para recontar tudo que aconteceu na noite em que você tirou a Alex do barracão. — Valesca pediu, a voz firme, mas com uma ponta de preocupação velada
— Não vejo em que isso possa ajudar. Já te entreguei um relatório confidencial, tanto escrito quanto oral — Marcela deslizou para o lado de Jacinto, sentando-se tão perto que ocupou quase todo o espaço disponível.
— Mas, naquela ocasião, Jacinto não estava junto. Quero que me conte tudo de novo. Ou melhor ainda, Jacinto pode começar a contar e você vai completando os espaços. O que acha?
— Alguém tem ideia para onde o Magnata fugiu?— Marcela parecia não estar muito preocupada com as vontades da amiga.
— Descobrimos um irmão que ele criou e ama como se fosse seu proprio filho. Esse irmão sempre viveu fora do radar; as autoridades nunca desconfiaram de nada porque eles não têm o mesmo sobrenome.
—Não lembro de ter escutado que o Magnata tinha parente além das amantes o boato de ser pai da Alex.— Só em mencionar essa possibilidade, Marcela se arrepiava toda.
— Esse sujeito é dono de duas academias, as maiores que existem: uma na Baixada Fluminense e outra em Duque de Caxias. Todo o dinheiro do tráfico passa por lá e é distribuído limpo, em forma de investimento. Seu irmão é a pessoa encarregada de investir todo o dinheiro arrecadado. E a esposa dele… essa é o maior perigo. É ela quem detém o controle dos cartéis, de todo o fluxo de entrada e saída, e também a responsável pelos pagamentos dos policiais envolvidos.
— Eu suspeitava que tinha um testa de ferro muito forte quando fui morar no morro, só não tinha como investigar a fundo para não levantar suspeitas. Lá é como uma empresa, com os setores e seus supervisores. Os próprios irmãos de Alex já trabalhavam na organização como "aviõezinhos". Coloquei no pendrive uma relação com todos os nomes envolvidos, os quais eu já vinha investigando.
— Um policial que me deve uns favores, me mandou um email com o nome da mulher e a quanto tempo ela está vindo para o ceará. De posse dessa informação a gente fecha o cerco e você e o Jacinto pega eles, é uma maneira de limpar seu nome jacinto, e os dois serão promovidos, já pensaram?
— Eu não posso me envolver, passei no concurso para polícia federal e tenho que esperar ser desligada da civil. — Na verdade, eu estava me coçando para pegar todos eles, mas não podia, não enquanto não fosse efetivada. queria correr
— Não sei se te parabenizo ou se lamento, esse é o momento de prender a quadrilha, enfim…imprevistos acontecem, me falem da noite em que tiraram Alex do cativeiro.
— Foi tudo muito rápido. Um baile de favela estava acontecendo e o uma parte dos homens do Magnata estavam por lá, a outra parte estava espalhada em pontos estratégicos. Os seguranças que saiam só para dar uma olhada e voltavam para o posto, chegamos de mansinho, a Marcela foi por um lado e eu pelo outro, matamos a todos sem um barulho de nada.― Jacinto completou o relato.
Valesca caminhou com classe até a escrivaninha, pegando um envelope grande, amarelo, que Marcela até então não tinha visto e o deslizou sobre a mesa, o papel grosso roçando na madeira com um som sibilante, passou para as mãos da mãe da Alex.
— Aí está a foto do casal, eles têm duas filhas adolescentes. Se quiser pegá-los, sequestre as garotas este fim de semana. Elas estudam no The British College of Brazil, a escola mais cara do Rio de Janeiro. Suponho que elas não saibam das atividades dos pais. Ajam com discrição, do jeito que sabem fazer. Me mantenham fora do radar.
Marcela se afastou, abrindo o envelope. Sua mente se desligou da conversa, imersa nas fotografias. Começou pela foto do homem. Nada chamava atenção à primeira vista: cabelos bem cortados, olhos claros, pele branca, sobrancelhas normais. Vestia-se com uma elegância discreta, mas impecável. Era, enfim, um homem bonito e refinado, a imagem perfeita de alguém acima de qualquer suspeita. Um calafrio percorreu a espinha de Marcela ao pensar no que esse homem seria capaz de fazer pelo irmão – o que ele poderia ocultar por trás daquela fachada de bom chefe de família.
A mulher ao seu lado, no entanto, era deslumbrante. Tinha um sorriso largo, daqueles que contagiam a alma, e parecia estar de bem com a vida, com uma energia vibrante. Usava roupas de academia, o tecido justo realçando sua silhueta atlética, e olhava com carinho para alguém — provavelmente o homem que tirava a foto. No pescoço, um cordão de ouro vistoso brilhava, e no pulso, um relógio pequeno, mas nitidamente luxuoso, cintilava. As unhas, perfeitamente esmaltadas em um tom de vermelho vibrante, e, no dedo ao lado da aliança, um anel de diamante tão grande que não deixava dúvidas: ela era uma típica mulher da alta sociedade carioca, acostumada ao luxo e à vida sem preocupações, o que tinha um pouco de verdade inquietante em tudo isso.
Em outra foto, duas adolescentes saíam do colégio, as mochilas pesadas penduradas nos ombros, o uniforme impecável. A farda do colégio das filhas, onde se via o brasão do escudo na cor azul e dourado e um livro aberto, marca registrada de um dos colégios mais caros do País, o "The British School," ou para todos o The British College of Brazil. Marcela sentiu uma pontada de inveja com a educação de primeiro mundo que as garotas estavam recebendo, o que a deixava com pensamentos contraditórios e perturbadores. Como alguém assim poderia estar ligada a um homem tão perigoso?
A mais velha, aparentando uns catorze ou quinze anos — não dava para ser precisa —, era a cópia fiel da mãe, com os mesmos cabelos sedosos e o sorriso largo, o mesmo olhar atrevido e consciente da sua beleza. A mais nova, por volta de doze anos, foi quem mais chamou a atenção de Marcela. Aquele olhar, aquele sorriso… ela os conhecia. Mas de onde? Com quem aquela menina se parecia? A pergunta martelava em sua mente, uma memória fugaz que teimava em não se revelar. Zara esse era o nome escrito na alça da mochila que a garota carregava pendurada no ombro, aquele sorriso inocente trouxe recordações apagadas pelo tempo, fragmentos de um passado distante. Aquela foto parecia ser a própria Chiara em outro uniforme de colégio, os mesmos traços delicados, a mesma expressão curiosa.
Marcela não sabia por que, mas sentiu um carinho inesperado pelas duas garotas. No fundo, ela sabia que jamais teria coragem de sequestrá-las. Ou escondê-las em um hotel só para dar um susto nos pais, embora seus colegas, vez ou outra usavam desses artifícios ela mesma nunca foi de acordo.
— Está ficando louca? Quem teve essa ideia macabra? — Marcela cuspiu praticamente as palavras, o tom de voz traindo a raiva e o desespero que a invadiam.
Valesca suspirou, tentando manter a calma diante da explosão de sua amiga.
— Olha, eu sei que parece loucura, mas soube que o Magnata faz qualquer coisa por essas sobrinhas. A mais velha é afilhada dele, e nós só vamos "passear" com as meninas. — A tentativa de amenizar a situação era quase patética, tingida de uma falsa inocência.
— Vocês lembram como estava o barracão quando chegaram? — ouviu a voz de Valesca ao longe, tentando reconectá-la à conversa.
— Estava normal, só um pouco bagunçado. A Alex era a única lá, muito assustada, tentava falar, mas não conseguia pronunciar uma palavra — respondeu Jacinto.
— Você precisa conversar com sua filha. Ela pode saber de coisas. — Valesca insistiu, a sugestão pairando no ar como uma sombra iminente.
Marcela ficou paralisada com a sugestão. Aquilo era um absurdo, uma afronta a delicadeza de sua filha.
— Eu não vou expor minha filha a um interrogatório inútil, ainda mais agora, que ela está começando a falar normalmente. Ou você já esqueceu o trauma que ela sofreu?
— Não esqueci. E lamento por tudo o que ela passou. Mas acredito que ela possa ter visto ou escutado algo que ache sem importância. Não é nada de mais. Vou perguntar coisas aleatórias, ela pode simplesmente confirmar com um sim ou não. Eu não sou uma carrasca. Marcela. . — Valesca tentou suavizar o tom, consciente da sensibilidade do assunto.
Marcela sabia que Valesca não era. E sabia também que precisava tomar cuidado para não assustar Alex mais do que ela já havia sido. Era crucial que Alex se sentisse segura, amada, e não uma peça em um quebra-cabeça perigoso.por isso, decidiu permitir.
— Vou saber com minha mãe se as crianças já chegaram da pescaria. Melhor dar um tempo, deixá-la almoçar primeiro. Depois conversamos, na cozinha mesmo, para manter um clima mais informal. . — Marcela disse, a voz mais suave, já planejando como abordaria Alex de maneira gentil e não intrusiva.
— Está bem. Vou tomar um banho e trocar de roupa. Jacinto, não vá ainda, preciso de você.— Valesca disse, um brilho enigmático em seus olhos, enquanto falava com uma intimidade desconcertante com o amigo de Marcela, deixando um rastro de perguntas não ditas no ar.
— Pode falar na frente da Marcela, não tem nada que seja tratado entre nós dois que ela não possa ouvir.
Marcela não pôde esconder o brilho nos olhos de satisfação, tampouco o sorriso que ameaçava ficar visível, ali mesmo na frente da Valesca, que olhou surpresa com a atitude do homem.
— Não tive a intenção de excluir a Marcela da conversa, foi mais por força do hábito. — se justificou com um sorriso mecânico que não chegava aos olhos.
— Pode falar, estou esperando. — Jacinto, que já estava de pé próximo à porta, voltou e sentou, cruzando uma perna por cima da outra de um jeito elegante para sua postura. Sem outra alternativa, Valesca falou.
— Anote no seu celular: Rua Silva Paulet 2080 Meireles. — Aguardou o homem tomar nota. — Você e a Marcela são os melhores investigadores que conheço, por isso preciso desse favor para ontem. Esse é o endereço onde a cunhada do Magnata sempre vem duas vezes ao ano tratar de negócios. Quero saber quem mais mora lá, se a casa é do cartel, quem anda ou andou lá. Se descobrir isso, acho que encontramos o fio da meada e quem está no comando sombrio do tráfico aqui do Ceará.
— Pode deixar, estou indo agora — falou, levantando-se. — Vai precisar de mim. Marcela?
— Não, pode ir tranquilo. Se eu precisar me ausentar, Alex fica aqui na fazenda.
— Sendo assim, eu vou na sua moto, é mais rápido e consigo me passar por motorista de aplicativo procurando um endereço.
Os dois se despediram, com o amigo já seguindo para os lados onde os veículos ficavam estacionados. Marcela também caminhou à procura da namorada enquanto observava a juíza que caminhava apressada, falando ao celular. Não foi possível ouvir o conteúdo da conversa, mas Marcela desconfiava que fosse um de seus informantes secretos. Jacinto jamais passaria informações diretamente para Valesca sem antes falar com ela; eles haviam construído essa cumplicidade inquebrantável ao longo do tempo em que trabalharam juntos.
Fim do capítulo
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