Capítulo 27
Passei o dia todo pensando nela. Cheguei a pegar o celular algumas vezes, mas desisti. Era melhor que fosse assim. Sem nenhum tipo de contato. Sem alimentar falsas esperanças. Eu precisava seguir a minha vida e Ciça seguir a dela. Eu já não encontrava o perfil dela na rede social, o que indicava que provavelmente ela tinha me bloqueado. Para mim, um recado claro de que Ciça não queria mais nenhum vínculo.
Só voltei a falar com Érica três dias depois. Não me chateei quando ela perguntou:
— Tá mais calma?
Sabia que ela estava certa:
— Sim… Me desculpa por aquele dia.
Ela riu rapidamente do outro lado:
— Tudo bem… Eu sei que não tá sendo fácil pra você também.
Não estava, mas eu precisava me convencer que sim:
— Não é assim. Eu só… estou me acostumando com minha nova rotina.
Érica foi direta:
— Você mandou parabéns?
Eu não consegui me segurar:
— Ela não te falou nada?
Minha prima ignorou tudo que a minha pergunta carregava ocultamente: ironia e ciúme.
— Não. Ela não fala de você comigo.
Aquilo me incomodou. Ciça não falava de mim, por quê?
— Então como você sabe que ela sofreu quando eu vim embora?
A resposta dela foi imediata:
— Léo e Isabela me contaram.
Eu fiquei em silêncio, até Érica insistir:
— Mandou ou não mandou?
— Não.
Eu esperei minha prima me recriminar, me julgar, me dar um sermão, mas ela não fez nada disso. Ficou em silêncio depois de murmurar um “hum”. Eu aproveitei para mudar de assunto:
— E você, como tá?
Fazendo Érica falar por minutos sobre a nova rotina, sobre como Henrique ainda a procurava querendo retomar o casamento, como minha tia ainda nutria a esperança de que ela voltasse para o marido, como meu tio tinha se isentado, não opinando em nada, e como estava sendo ter que explicar para Luize que elas morariam numa casa diferente da do pai.
*****
Eu não imaginava que seria tão difícil entrar ali de novo, mesmo depois de tanto tempo. Sete meses para ser exata. Tentei parecer o mais natural possível, mas sabia que meus amigos deveriam estar todos pensando a mesma coisa.
— Entra, gente…
Érica deu passagem, todos entraram, eu fiquei por último. Nos cumprimentamos com dois beijos nas bochechas. Ela nos conduziu para a cozinha, apresentando a casa para Léo, Isabela e Ricardo. Eu estava muda desde que tínhamos chegado ali. Milhares de recordações em cada cômodo daquele apartamento. Eu conhecia todos os detalhes. Estava praticamente igual a quando Marcela morou ali. A diferença era a pequena cama de Luize ao lado da que agora pertencia à Érica e a televisão na sala.
— Ricardo, você abre o vinho?
Érica distribuiu as taças e foi inevitável que um sorriso dolorido surgisse nos meus lábios. Agora havia taças. As taças que nunca fizeram falta para mim e Marcela.
O restante da noite foi uma mistura de nostalgia e sofrimento. Em momento algum consegui me convencer de que estava na casa de Érica, não na de Marcela. Ela não mora mais aqui. Ela não estava mais ali, tinha ido embora. Meu cérebro parecendo não entender que, apesar de igual, aquele lugar não era mais o mesmo.
Quando nos despedimos, já passava de uma da manhã. Enquanto meus amigos desciam as escadas, Érica falou só para mim:
— Ciça… queria te falar uma coisa…
Eu parei e olhei para ela, esperando.
— Semana que vem é aniversário da minha mãe…
Eu concordei com a cabeça. Não estava entendendo por que Érica estava me dizendo aquilo, até ela completar:
— Marcela vem pra festa.
Entendi que Érica quis me avisar da chegada de Marcela com antecedência para que eu não fosse pega de surpresa. E para que eu pudesse decidir o que fazer. Ela viria no sábado e voltaria no domingo. Foi tudo o que a prima me disse. Aquela informação tirou minha paz durante os sete dias que faltavam para a chegada dela. Não sabia como seria ver Marcela de novo. Depois que ela não me mandou uma mensagem de aniversário, deixou bem claro que eu era página virada.
Na verdade, não sabia se eu… conseguiria vê-la. Pensei em sair da cidade, ir para a casa dos meus pais, para não correr o risco de encontrá-la. Mas ao mesmo tempo eu queria ter a imagem dela ali mais uma vez. Uma dualidade de sentimentos que ela passou a me provocar desde que tinha ido embora. Eu ainda amava Marcela. Mas precisava me apegar ao fato de que ela tinha decidido ir. Não que eu achasse que ela estivesse errada, pelo contrário, eu sabia que ela precisava partir. Mas alguma coisa tinha que me dar força para seguir minha vida, então todo dia eu, de forma bastante egoísta, me lembrava de que nosso ciclo havia se encerrado por escolha dela.
Quando o sábado chegou, já acordei ansiosa. Um frio na barriga me acometendo de tempos em tempos. Às vezes eu parava na janela que dava para a rua, como se ela pudesse passar por ali a qualquer momento. Depois que almocei, pensei em pegar o carro e andar pelas ruas. Eu queria vê-la. Precisava. Mas ao mesmo tempo morria de medo. E se ela estivesse com alguém? E se tivesse trazido a namorada? Eu iria suportar? Não sabia mais nada da vida dela. Eu tinha desativado a rede social em que éramos amigas justamente por não querer ver de longe a vida de Marcela seguindo. Uma foto com outra pessoa iria me desmoronar, eu tinha certeza, destruindo a frágil barreira que eu tinha criado. Mas naquele momento eu precisava saber. Ver. Sentir. E sofrer, se fosse o caso. Abri o aplicativo e ativei minha conta novamente. Cliquei na lupa e digitei o nome dela. Apertei na foto com as mãos trêmulas, o coração acelerado. Abri o perfil de Marcela, mas não havia nada novo. A última foto era ela sorrindo no topo da montanha, com um pôr do sol fantástico atrás. A foto que eu havia tirado.
*****
Eu já tinha me convencido de que não iria. Além de ser uma viagem longa e cansativa — principalmente de ônibus — para voltar no dia seguinte, eu não sabia se estava preparada para reencontrar Ciça. Eu me certifiquei com Érica se ela tinha sido convidada e minha prima me garantiu que não. Mas naquela cidade minúscula as chances de vê-la, ainda que de longe, eram muito altas.
O que me deixava pesarosa era faltar no aniversário de sessenta e cinco anos da minha tia, principalmente depois de tudo que ela havia feito por mim nos últimos anos. Liguei para ela e expliquei que, para conseguir ir, eu teria que viajar no próprio sábado, pois na sexta eu ainda trabalhava, e teria que voltar já no domingo, para trabalhar na segunda. Pedi mil desculpas e prometi que assim que tivesse um feriado, eu iria vê-la.
O que eu não esperava era que Vitor se ofereceria para ir comigo, no carro dele, já que João Paulo estaria viajando a trabalho. A princípio eu recusei, não o faria viajar por quase quatro horas, para ir até uma cidade que não oferecia muita coisa, num aniversário de uma sexagenária que ele sequer conhecia. Mas meu amigo disse que não seria sacrifício algum, já que ficaria o final de semana inteiro dentro de casa, sem fazer nada.
— A gente vai se divertindo pelo caminho… parando pra comer… conhecendo lugares…
A alegria explícita da minha tia no telefone, quando eu disse que tinha mudado os planos e iria na festa de aniversário dela, foi o meu convencimento final.
No sábado, acordamos bem cedo, às seis da manhã. Pouco depois das sete, eu e Vitor já estávamos dentro do carro, saindo da cidade. Como ele tinha sugerido, dirigimos sem pressa, parando em alguns lugares para comer e ir ao banheiro. Um pouco depois da metade do caminho, ele me passou o carro. Fomos seguindo o GPS, porque apesar de eu já ter ido para lá algumas vezes, não tinha o caminho decorado. Geralmente meu pai quem dirigia. E da última vez eu tinha feito a viagem de ônibus.
Quando entramos na rodovia que levava até a cidade, Vitor verbalizou o que eu sempre pensava quando passava por ali:
— Nossa, não vai parar de subir?
Eu ri, acelerando o carro para que não perdesse a força:
— Já estamos chegando.
Assim que entramos na cidade, meu coração acelerou. A primeira coisa que veio à minha mente foi a imagem de Ciça. A pessoa que me reapresentou às poucas ruas, aos comércios limitados e aos escassos lugares legais dali. Quando passamos em frente ao morro que eu tinha subido com ela — no que me parecia agora outra vida — eu disse para Vitor:
— Lá em cima tem uma vista incrível.
Minha voz soou quase triste. Carregada de nostalgia. Não sei se ele percebeu, mas não falou nada.
Quando estacionei o carro em frente à casa da minha tia e desci, automaticamente olhei para o apartamento do outro lado da rua, um pouco mais à frente. Um pequeno sorriso surgiu no meu rosto. Uma mistura de tristeza e saudade ao lembrar de tudo que aconteceu lá dentro.
Minha tia nos recebeu como se fôssemos famosos. Me abraçou e me beijou, depois eu a apresentei para Vitor, que precisou agradecer a imensa lista de coisas que ela ofereceu, entre comidas, bebidas e informações sobre a casa, para que ele ficasse à vontade.
Próximo do horário da festa, Érica ofereceu para que eu e Vitor fôssemos tomar banho e nos arrumar na casa dela, onde teríamos mais espaço.
Entrar de novo naquele apartamento me despertou emoções que eu pensava ter superado. Passei a ponta dos dedos pelas paredes enquanto me encaminhava para o quarto que seria de Luize, assim que ela começasse a dormir sozinha. O quarto que antes eu usava para guardar minhas ferramentas de pintura.
Mais tarde, quando ficamos todos prontos, fomos para o local da festa, um pequeno salão com mesas e cadeiras distribuídas, onde a festa já estava montada. Quando Luize ficou entretida com outras crianças, minha prima finalmente sentou na nossa mesa. Trouxe uma garrafa de cerveja gelada, e encheu os três copos. Eu estendi o meu e perguntei:
— Vamos brindar o quê?
Vitor se juntou a mim, e Érica sorriu, estendeu o copo dela:
— A liberdade…
Eu ri, tomei um gole e deixei o copo na mesa:
— Fico tão feliz de te ver assim…
Érica me olhou:
— Eu sei… Você sempre me deu força pra sair daquele… daquela prisão.
Depois se virou para Vitor e disse:
— Eu me separei há pouco tempo…
E continuou contando para o meu amigo tudo que aconteceu, como era a vida dela e mais alguns detalhes para colocá-lo a par da conversa.
Falamos sobre várias outras coisas, Vitor contou sobre a vida dele e em um determinado momento da conversa, parecia que eles é que eram melhores amigos.
Quando a festa terminou, só restaram os familiares. Ajudamos a juntar as mesas e cadeiras até minha tia se aproximar de nós:
— Tá ótimo… Vão descansar… Amanhã vem uma pessoa pra limpar.
Se virou para Vitor e falou:
— Você dorme lá em casa no quarto de Evandro… As meninas dormem na casa de Érica.
Eu não tive tempo de raciocinar uma resposta, minha prima foi mais rápida:
— Mãe, os dois vão dormir lá em casa. Já deixamos o quarto de Luize arrumado pra eles.
Minha tia colocou a mão sobre o peito:
— Érica, não é bom duas moças solteiras… dormirem sozinhas com um homem.
Se virou para Vitor e completou:
— Não é nada contra você, viu, meu filho? Eu sei que você é um menino bom, mas aqui a gente ainda tem esse costume, essa forma respeitosa de viver.
Vitor chegou a começar a concordar com ela:
— Tudo bem, dona Rita…
Mas Érica me surpreendeu mais uma vez:
— Mãe, pelo amor de Deus…
Passou o braço pelos ombros da minha tia e completou em um tom de voz moderado:
— Marcela e eu somos duas mulheres adultas… e solteiras, como você mesma disse…
Tia Rita não se deu por convencida, nem perto disso:
— Não importa, Érica. Você depois que se separou… Sinceramente…
Um pouco sem jeito, Vitor anunciou que precisava ir ao banheiro e se retirou. Eu sabia que era só para dar privacidade na conversa.
— Mãe… Marcela e Vitor viajaram horas pra vir pra sua festa. Não vamos arrumar um problema a essa altura do campeonato.
Tia Rita olhou para mim:
— Você se incomoda, Cela? Se ele dormir lá em casa?
Eu tentei ser sincera, sem ser sem educação:
— Érica já arrumou tudo pra gente na casa dela, tia…
Mas ela parecia irredutível. Se aproximou de mim e olhou nos meus olhos:
— Eu sei que lá no Rio as coisas são diferentes. Você pode sempre trazer seu namoradinho pra cá, mas enquanto vocês não forem casados…
Érica interrompeu completamente impaciente:
— Que namoradinho, mãe?
— Ué, o rapaz que ela trouxe.
E de uma forma que eu nunca, jamais, esperaria, minha prima falou curta e grossa:
— Eles não são namorados, são amigos. Vitor é casado com um homem. E Marcela gosta de mulher.
Eu olhei de uma para a outra completamente atônita, com a boca entreaberta. Minha tia perdeu o brilho, encarou Érica por alguns segundos, depois se virou e se afastou sem falar nada.
*****
O dia tinha se passado com minha inquietação interna cada vez mais incômoda. Será que ela realmente veio? Me causava vertigem só de pensar em Marcela ali, na minha rua, tão perto, depois de tanto tempo. À tarde peguei o carro e saí pelas ruas. Evitei subir minha rua em direção à casa de Rita, mas se tornou inevitável. Passei por lá. Uma. Duas. Três vezes. Mas não vi nada, nem ninguém. Apenas um carro diferente estacionado em frente ao portão da tia de Marcela. Como eu sabia que era um carro diferente? Simples! Assim como as pessoas, você também passa a conhecer o carro de cada um. Por isso perceberam meu carro — parado em frente ao apartamento em que ela morava — todas as noites. E aquela marca de carro não era comum por aqui. Será que ela comprou um carro? Ou é o carro da namorada? Aquele pensamento fez eu dirigir para casa. Mudei de ideia. Não queria vê-la. Não queria ver nada. Ficaria dentro de casa até ter que sair para trabalhar na segunda. Mas meu plano teve um único furo: precisei ir até a lanchonete buscar meu lanche. Estavam sem entregador naquele dia. Evandro, que com certeza estaria no aniversário da mãe. Fui a pé, protegida pela certeza de que àquela hora não a veria mais.
Entrei na lanchonete e a atendente precisou apenas bater o olho em mim para gritar por trás do balcão:
— O lanche de Ciça…
Eu aproveitei a espera para pagar. Quando ela me entregou a sacola, agradeci e me virei. Meu sorriso morreu no meu rosto instantaneamente. Minhas pernas amoleceram. Meu coração acelerou como se eu estivesse caindo de um precipício. Minha boca secou.
Marcela.
Parada bem atrás de mim.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
HelOliveira
Em: 21/05/2025
E aconteceu......autora como terminar o capítulo assim.....meu coração tá igual o da Ciça...vai difícil esperar até o próximo cap.
Pensando aqui duas cabeça dura, sofrendo assim por conta de 4h de viagem....dava pra se ver todo fds....
[Faça o login para poder comentar]
Dessinha
Em: 20/05/2025
Puta que pariu... poxa autora como que acaba isso assim? Pelamoooor!! Vai né matar de ansiedade, mulher!! Que estória sensacional!! Uma das melhores do site com certeza!!
AlphaCancri
Em: 22/05/2025
Autora da história
Obrigada, Dessinha! Fico muito feliz com seu comentário :))
Sexta já é logo ali kkkkk Não quero atacar a ansiedade de ninguém! Vou postar o mais cedo que conseguir, prometo
[Faça o login para poder comentar]
Socorro
Em: 20/05/2025
volta logo autoraaaaaa kkk
AGORA VAI KKKKKK
AlphaCancri
Em: 22/05/2025
Autora da história
Amanhã! Já tá quase kkkkkk
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
AlphaCancri Em: 22/05/2025 Autora da história
Tá quaseee, sexta já é logo ali kkkkk
Tbm acho que elas são cabeça dura, mas não sei se é tão simples assim hahahah viajar 4 horas por dia todo fim de semana e depois fazer a mesma viagem no dia seguinte, além de cansativo, tbm é dispendioso, né?
Acho que a questão das duas é mais a diferença no propósito final: Marcela não quer ficar no interior e Ciça não pretende largar o que tem para ir para a cidade grande… qual seria o futuro? Iriam ter um relacionamento a distância pra sempre?
Muitas questõeeeeees